A educa��o e a experi�ncia de si nos relatos de uma narradora �s margens do Rio Doce

Education and the self-experience in the stories of a narrator alongside Rio Doce

 

Fabiano Oliveira Moraes

Professor na Universidade Federal do Esp�rito Santo, Vit�ria, Esp�rito Santo, Brasil.

professorfabianomoraes@gmail.com � https://orcid.org/0000-0001-6741-4564

 

Monique Linciano de Azevedo Costa

Mestra pela Universidade Federal do Esp�rito Santo, Vit�ria, Esp�rito Santo, Brasil.

moniquelincianocosta@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-5099-7326

 

Recebido em 30 de outubro de 2018

Aprovado em 12 de novembro de 2019

Publicado em 17 de dezembro de 2019

 

RESUMO

Objetiva compreender as pr�ticas educacionais efetivadas por meio da propaga��o dos relatos orais de narradores tradicionais e as rela��es entre as narrativas tradicionais, as experi�ncias de si e a educa��o, refletindo sobre os enredamentos entre as narrativas orais e a constitui��o dos sujeitos. Para tanto, faz uso dos conceitos de narrador e experi�ncia de Benjamin (1979) e de dispositivo pedag�gico, experi�ncia e consci�ncia de si de Larrosa (1994; 2004). Com abordagem qualitativa, trata-se, quanto aos procedimentos metodol�gicos, de um estudo de caso que toma por corpus as narrativas, coletadas por meio de entrevista gravada, de Geni de Oliveira Ramos, narradora tradicional da vila de Povoa��o (Linhares-ES), localizada na margem norte da foz do Rio Doce. A partir da transcri��o da entrevista (DELGADO, 2006; MARCUSCHI, 2007), a an�lise de dados aponta eventuais rela��es dos relatos coletados com os mitos brasileiros (CASCUDO, 1983; 1998). O estudo analisa as narrativas � luz do referencial te�rico, destacando trechos diretamente relacionados aos elementos da tradi��o e � experi�ncia de si no �mbito da institui��o de dispositivos pedag�gicos e pr�ticas educacionais no tempo e espa�o da narra��o. Salienta, por fim, a relev�ncia da pesquisa no registro da mem�ria da comunidade para seu processo de re-exist�ncia diante da situa��o atual do Rio Doce, apontando para poss�veis a��es de transmiss�o da experi�ncia de si das narrativas de Dona Geni �s novas gera��es.

Palavras-chave: Educa��o; Narrador; Experi�ncia.

 

ABSTRACT

It aims to understand the educational practices performed through the propagation of oral narratives of traditional narrators and the relationships between traditional narratives, self-experiences and education, reflecting on the entanglements between oral narratives and the constitution of the subjects. To do so, it uses the concepts of narrator and experience of Benjamin (1979) and of pedagogic device, experience and self-awareness of Larrosa (1994, 2004). With a qualitative approach, according to the methodological procedures, a case study that takes as a corpus the narratives, collected by recorded interview from Geni de Oliveira Ramos, a traditional narrator from the village of Povoa��o (Linhares-ES), located on the north bank of the Rio Doce mouth. From the transcription of the interview (DELGADO, 2006; MARCUSCHI, 2007), the data analyses points out eventual relationships of the collected stories with the Brazilian myths (CASCUDO, 1983; 1998). This study analyzes the narratives in the light of the theoretical reference, highlighting sections directly related to the elements of tradition and to the self-experience within the scope of the institution of pedagogic devices and educational practices in the time and space of the narration. Finally, it highlights the relevance of the research in the record of the community�s memory for its process of re-existence in face of the current situation of the Rio Doce, pointing to possible actions of transmission of self-experience from Dona Geni�s narratives to the new generations.

Keywords: Education; Narrator; Experience.

Introdu��o

����������� O presente artigo � resultado de uma sequ�ncia de viagens para entrevistas e coletas de narrativas realizadas no litoral do estado do Esp�rito Santo em 2002 pelo seu coautor, e do posterior estudo de caso, tomando por corpus as narrativas de uma das narradoras tradicionais entrevistadas, realizado pela sua coautora (sob a orienta��o do coautor) nos anos de 2015 e 2016[1].

A pesquisa teve por objetivo contribuir com os estudos que buscam entender as pr�ticas educacionais efetivadas por meio da propaga��o dos relatos orais de narradores tradicionais, favorecendo desse modo a compreens�o das rela��es entre as narrativas tradicionais, as experi�ncias de si, a educa��o e a reflex�o sobre as rela��es entre as narrativas orais e a constitui��o dos sujeitos. Tamb�m objetivou efetivar transcri��es das narrativas do sujeito pesquisado, destacando as eventuais rela��es de suas narrativas com os mitos brasileiros a partir de Cascudo (1983; 1998) e analisando-as � luz dos autores tomados como referencial te�rico da pesquisa.

Se considerarmos o ato de contar hist�rias como algo inerente �s sociedades h� dezenas de milhares de anos, podemos dizer que as mudan�as sofridas por tal pr�tica na sociedade ocidental nos �ltimos quinhentos anos, e de forma ainda mais intensa no �ltimo s�culo, correspondem a uma transforma��o brusca e recente na capacidade do homem de transmitir as suas tradi��es �s novas gera��es.

[...] a arte de narrar caminha para o fim. Torna-se cada vez mais raro o encontro com pessoas que sabem narrar alguma coisa direito. � cada vez mais frequente espalhar-se em volta o embara�o quando se anuncia o desejo de ouvir uma hist�ria. � como se uma faculdade, que nos parecia inalien�vel, a mais garantida entre todas as coisas seguras, nos fosse retirada. Ou seja: a de trocar experi�ncias (BENJAMIN, 1979, p. 57).

Para Benjamin (1979), a narrativa � colhida pelo narrador na experi�ncia, seja ela pr�pria ou relatada, e ao ser narrada � transformada outra vez em experi�ncia daqueles que ouvem sua narrativa.

Larrosa (2004), por sua vez, destaca, a partir de Benjamin, que a experi�ncia n�o � aquilo que passa, que acontece ou que toca, mas sim aquilo que nos passa, que nos acontece, que nos toca. No entanto, embora tantas coisas se passem em nossos dias, a experi�ncia tem se tornado cada vez mais rara pelo excesso de informa��o e de opini�o (que diferem da experi�ncia), pela falta de tempo e pelo excesso de trabalho.

Essa mesma falta de tempo, somada ao excesso de trabalho, de informa��o e de opini�o, destacada por Larrosa (2004), � reflexo da modernidade, per�odo em que aconselhamento, sabedoria, experi�ncia e narrador perdem espa�o.

O narrador � um homem que d� conselhos ao ouvinte. Mas se hoje �dar conselhos� come�a a soar nos ouvidos como algo fora de moda, a culpa � da circunst�ncia de estar diminuindo a imediatez da experi�ncia. Por causa disso n�o sabemos dar conselhos nem a n�s, nem aos outros. O conselho � de fato menos resposta a uma pergunta do que uma proposta que diz respeito � continuidade de uma hist�ria que se desenvolve agora. Para receb�-lo seria necess�rio, primeiro de tudo, saber narr�-la. (Sem levar em conta que uma pessoa s� se abre a um conselho na medida em que verbaliza a sua situa��o.) O conselho entretecido na mat�ria da vida vivida, � sabedoria. A arte de narrar tende para o fim porque o lado �pico da verdade, a sabedoria, est� agonizando. Mas este � um processo que vem de longe. Nada seria mais tolo do que querer vislumbrar nele apenas um �fen�meno da decad�ncia� - muito menos ainda �moderno�. Ele � antes uma manifesta��o secund�ria de for�as produtivas hist�ricas seculares que aos poucos afastou a narrativa do �mbito do discurso vivo, ao mesmo tempo em que tornava palp�vel uma nova beleza naquilo que desaparecia (BENJAMIN, 1979, p. 59)

 

Larrosa (2004) afirma ainda que, como decorr�ncia desse processo, em nosso tempo tornou-se rara a experi�ncia de paci�ncia, de aten��o e de paix�o ativa de sujeitos que estejam abertos � pr�pria transforma��o como condi��o de renascimento.

A experi�ncia, a possibilidade de que algo nos passe, nos aconte�a, nos toque, requer um gesto de interrup��o, um gesto que � quase imposs�vel nos tempos que correm: requer parar para pensar, para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se mais nos detalhes, suspender a opini�o, suspender o ju�zo, suspender a vontade, suspender o automatismo da a��o, cultivar a aten��o e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentid�o, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paci�ncia e dar-se tempo e espa�o (LARROSA, 2004, p. 160).

Ao nos depararmos com a narra��o da Geni de Oliveira Ramos[2] (doravante, Dona Geni), que apresenta claramente essas caracter�sticas raras de aten��o, delicadeza, lentid�o, escuta, sil�ncio, encontro, paci�ncia e arte de dar-se tempo e espa�o, gravada na vila de Povoa��o, � margem norte da foz do Rio Doce, percebemos de pronto que est�vamos diante de uma produ��o de pot�ncia educacional e cultural inestim�vel. Por essa raz�o, entre os tantos contadores que pudemos entrevistar em diversas comunidades do litoral capixaba no ano de 2002, optamos por evidenciar, no presente artigo, a import�ncia da transmiss�o de experi�ncias de vida nas narrativas de Dona Geni, pois para Benjamin (1979), � por meio desse elemento que o narrador aconselha o ouvinte.

A orienta��o para o interesse pr�tico � um tra�o caracter�stico de muitos narradores natos. [...] Tudo aponta para a rela��o que isso mant�m com qualquer narrativa verdadeira. Clara ou oculta, ela carrega consigo sua utilidade. Esta pode consistir ora numa li��o de moral, ora numa indica��o pr�tica, ora num ditado ou norma de vida � em qualquer caso o narrador � um homem que d� conselhos ao ouvinte (BENJAMIN, 1979, p. 59).

Ademais, considerando o silenciamento de vozes consolidado pela historiografia oficial que, ao mesmo tempo em que beneficia o discurso dos vencedores em detrimento dos dominados, contribui com a barb�rie que lega ao esquecimento o processo de transmiss�o dos bens culturais do povo, buscamos favorecer em nossa pesquisa a necess�ria tarefa de �[...] escovar a hist�ria a contrapelo� (BENJAMIN, 2012, p. 245), atentos � voz de sujeitos da educa��o transmissores de bens culturais deixados de lado pela historiografia hegem�nica.

Experi�ncia de si, educa��o, cultura e mem�ria

Para Larrosa (1994, p. 43), a experi�ncia de si � o que o sujeito oferece de si mesmo a seu pr�prio ser �[...] quando se observa, se decifra, se interpreta, se descreve, se julga, se narra, se domina, quando faz determinadas coisas consigo mesmo, etc.�. A experi�ncia de si tamb�m se configura como algo que deve ser transmitido, que deve ser aprendido. A cultura transmite, portanto, determinado �[...] repert�rio de modos de experi�ncia de si, e todo novo membro de uma cultura deve aprender a ser pessoa em alguma das modalidades inclu�das nesse repert�rio� (LARROSA, 1994, p. 45).

� como se a educa��o, desse modo, n�o apenas constru�sse e transmitisse uma experi�ncia do mundo exterior, mas tamb�m constru�sse e transmitisse �[...] a experi�ncia que as pessoas t�m de si mesmas e dos outros como "sujeitos". Ou, em outras palavras, tanto o que � ser pessoa em geral como o que para cada uma � ser ela mesma em particular� (LARROSA, 1994, p. 45, grifo do autor).

E como, em grande parte, a experi�ncia de si constitui-se a partir das narra��es, aquilo que somos e, ainda, o sentido de quem somos depende das hist�rias que contamos para o outro e para n�s mesmos. Essas hist�rias, por sua vez, se constroem em rela��o �s narrativas que escutamos, que lemos, que experienciamos, e s�o �[...] produzidas e mediadas no interior de pr�ticas sociais mais ou menos institucionalizadas� (LARROSA, 1994, p. 48).

Qualquer lugar em que se efetiva a constitui��o ou a transforma��o da experi�ncia de si, qualquer lugar em que s�o aprendidas ou modificadas as rela��es estabelecidas pelo sujeito consigo mesmo �, para Larrosa (1994), um dispositivo pedag�gico. As narrativas de Dona Geni, coletadas de experi�ncias vividas ou relatadas, s�o rememoradas e tornadas novamente experi�ncia do ouvinte no dispositivo pedag�gico institu�do no tempo e espa�o da narra��o.

Segundo Girardello (2014, p. 22), � a mem�ria quem guarda cenas de nossas vidas e as transforma em algo extremamente valioso que � o relato oral, a autora evidencia ainda que esses relatos transcendem a fam�lia e passam a ser elementos de significados e de riqueza simb�lica de comunidades inteiras.

Larrosa (1994, p. 68) acrescenta que a recorda��o requer a habilidade narrativa de imaginar e de compor, de produzir sentido sobre o que somos. �O narrador � que expressa, no sentido de exteriorizar, o rastro que aquilo que viu deixou em sua mem�ria�. No movimento de narrar, o contador de hist�rias numera e ordena os rastros que conservam aquilo que foi visto, escutado, lido. O tempo da hist�ria se constitui nessa ordena��o.

Essa ampla rede de ordena��es da mem�ria e de produ��es de sentidos sobre si por meio das narrativas constitui e transmite a experi�ncia de si em um processo educacional cont�nuo.

Metodologia, locus, corpus, sujeito

Um largo intervalo separa a coleta das narrativas por meio de entrevistas gravadas em 2002 e sua an�lise em 2015 e 2016. O coautor deste artigo, ap�s retornar ao Esp�rito Santo em 1998 depois de haver residido por seis anos no Rio de Janeiro-RJ, detectou um processo acelerado de rarefa��o de narradores tradicionais nas comunidades camponesas do Esp�rito Santo em decorr�ncia, dentre outros fatores, do acelerado processo de globaliza��o propagado pela m�dia televisiva com a expans�o da rede el�trica e do alcance dos sinais de TV (na �poca, por meio do uso de parab�licas) no campo.

Suas primeiras entrevistas, sempre realizadas no interior, se deram nos anos de 1999 e 2001 nos munic�pios de Castelo-ES e Venda Nova do Imigrante-ES (regi�o serrana do estado), onde residiu na ocasi�o. As visitas eram feitas a partir da busca, entre moradores das comunidades, dos nomes de narradores tradicionais da regi�o. Ap�s consentimento dos sujeitos, a entrevista era feita com uso de gravador de fita cassete, papel e prancheta. Em alguns casos fazia-se uso apenas de papel e prancheta, tanto por escolha do entrevistado como por quest�es t�cnicas (falta de pilhas ou de fitas cassete), pois algumas regi�es um tanto isoladas eram alcan�adas apenas por meio de longas caminhadas a p�.

Em 2002, o pesquisador planejou viagens pelo litoral norte do estado. Os trechos, em sua maioria, foram percorridos a p� (com exce��o dos deslocamentos feitos em ve�culo do Projeto Tamar no trecho de Povoa��o a Campo Grande e de �nibus no trecho de Concei��o da Barra a Ita�nas). O pernoite foi feito em barraca de camping ou na casa de alguns entrevistados (Comboios e Concei��o da Barra). Para registro das entrevistas, utilizou-se prancheta para anota��es e gravador port�til de fita cassete.

O primeiro trecho de viagem compreendeu uma caminhada de Barra do Riacho (Aracruz-ES) a Reg�ncia (Linhares-ES), pela praia de Comboios (37 km de extens�o) com entrevistas realizadas nas localidades de Barra do Riacho, da Aldeia Tupiniquim de Comboios e de Reg�ncia (margem sul da foz do Rio Doce). O segundo trecho compreendeu caminhada de Povoa��o (Linhares-ES) a Guriri (S�o Mateus-ES), com entrevistas realizadas em Povoa��o, Campo Grande (S�o Mateus-ES), Barra Nova (S�o Mateus-ES) e Guriri. O terceiro trecho compreendeu viagem da sede de Concei��o da Barra-ES ao Riacho Doce (divisa do Esp�rito Santo com a Bahia), com coleta de hist�rias na sede de Concei��o da Barra e em Ita�nas (Concei��o da Barra-ES).

O segundo trecho de viagem, ocasi�o da entrevista que comp�e o corpus dessa pesquisa, foi realizado entre os dias 1� e 3 de mar�o de 2002, com chegada a Povoa��o e realiza��o de entrevistas no local no dia 1�, pernoite em Povoa��o (Sede do Projeto Tamar), deslocamento em ve�culo do Projeto Tamar de Povoa��o a Campo Grande no dia 2 de mar�o, chegada a Campo Grande e realiza��o de entrevistas em Campo Grande e em Barra Nova no dia 2 de mar�o, pernoite na margem norte da foz do Rio Mariricu (Barra Nova), deslocamento por meio de caminhada de Barra Nova a Guriri com coleta de hist�rias nesse local no dia 3 de mar�o.

Ao chegarmos � vila de Povoa��o no dia 1� de mar�o de 2002 em busca de narradores tradicionais da regi�o, fomos informados pelos moradores da regi�o que a maior detentora de hist�rias da vila havia sido removida dias antes para um hospital de Linhares, e que pela sua idade e pelas condi��es de sa�de em que se encontrava, provavelmente n�o retornaria. Recebemos a indica��o de dois outros mestres da narra��o: Seu Joviano Pereira dos Santos e Dona Geni de Oliveira Ramos. Pela proximidade, fomos primeiramente � casa de Seu Joviano, nascido em 22 de janeiro de 1920, mestre de Congo da vila e detentor do Bast�o de S�o Benedito, que seria repassado para o novo mestre que estava sendo devidamente preparado para isso. Ele nos recebeu muito bem, contando v�rias hist�rias da tradi��o.

Em seguida, fomos � casa de Dona Geni, nascida em 1928, que nos concedeu a entrevista ao lado de seus netos e de seu filho (esse �ltimo chegou ao local durante a grava��o) que com ela residiam. Logo ap�s a nossa primeira abordagem com apresenta��o do projeto e a sua autoriza��o para grava��o, ela prontamente p�s-se a narrar com desenvoltura e propriedade. O registro das narrativas foi feito com uso de gravador port�til e prancheta para anota��es complementares. As perguntas foram direcionadas no sentido de buscarmos a presen�a de mitos da regi�o bem como de relatos que pudessem nos trazer par�metros de compara��o entre a vila de Povoa��o de sua inf�ncia e juventude e a do momento da entrevista.

No que tange � coleta de dados, foram tomados os cuidados necess�rios na abordagem e na execu��o da entrevista, respeitando as falas da contadora de hist�rias e dos familiares presentes e registrando-as como material auditivo. De acordo com Delgado (2006), a entrevista deu-se de tal forma que a pesquisada pudesse se expressar de seu modo, sem ser interrompida pelo pesquisador (a n�o ser para respostas e perguntas breves ou para sugest�es de temas), respeitando cada relato de mem�ria.

No ano de 2015, duas das entrevistas coletadas nas viagens de 2002 constitu�ram corpus de duas pesquisas orientadas, uma delas foi a de Dona Geni, presente neste artigo. A coautora, portanto, realizou transcri��o e an�lise dos dados, sob a orienta��o do coautor.

No que diz respeito � fase de tratamento dos dados, trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa. No que tange aos procedimentos metodol�gicos, trata-se, especificamente, de um estudo de caso de cunho bibliogr�fico e anal�tico (SILVEIRA; C�RDOVA, 2009).

O corpus dessa pesquisa �, portanto, composto por narrativas orais contadas pela narradora tradicional Geni de Oliveira Ramos (Dona Geni), nascida no distrito de Povoa��o, no dia 08 de abril de 1928 e falecida em 14 de julho de 2016. Os relatos das entrevistas gravadas na comunidade de Povoa��o (Linhares-ES) em 1� de mar�o de 2002 foram transcritos, bem como categorizados a partir das eventuais cita��es de mitos (CASCUDO, 1983; 1998) e analisados em sua rela��o com a mem�ria, com as experi�ncias da narradora e com os dispositivos pedag�gicos institu�dos no tempo e espa�o dos sujeitos envolvidos nas narrativas (DELGADO, 2006).

O processamento e as an�lises das entrevistas foram realizadas em tr�s etapas. A primeira foi a transcri��o das entrevistas (MARCUSCHI, 2007), tomando-se o devido cuidado com a pontua��o para se alterar o m�nimo poss�vel o sentido das palavras e frases. Nessa primeira escrita, utilizamos certos artif�cios, como colchetes nas passagens pouco claras, retic�ncias nas d�vidas, sil�ncios e hesita��es, e a palavra �riso� para identificar risos. A segunda etapa foi a confer�ncia de fidelidade. Nela tomamos o cuidado de escutar novamente o depoimento junto a uma leitura da transcri��o, com o intuito de conferir nomes e informa��es importantes, bem como todos os detalhes de pontua��o, omiss�es ou acr�scimos para evitarmos leituras equivocadas. Na terceira e �ltima etapa fizemos a sele��o dos trechos das narrativas a serem analisadas e categorizadas de acordo com os objetivos da pesquisa (DELGADO, 2006).

A presen�a, nos relatos, de seres mitol�gicos (CASCUDO, 1983), nos conduziu a pesquisas que nos permitiram identificar os mitos e caracterizar as narrativas mitol�gicas com base em Cascudo (1983, 1998), com isso, pudemos compreender o modo como os elementos da tradi��o vinculam-se a narrativas de experi�ncias de si em processos educacionais n�o formais.

No decorrer da pesquisa de transcri��o e an�lise do material, ocorreu o despejo de lama no Rio Doce. Tivemos, em 09 de agosto de 2016, nove meses ap�s a trag�dia, a oportunidade de visitar Povoa��o. Na ocasi�o, a entrevistada havia falecido recentemente e a vila de pescadores, outrora graciosa e v�vida, parecia anestesiada. A filha de Dona Geni recebeu-nos em sua casa simples onde residia com seu filho, neto de Dona Geni. Ela relatou as dificuldades, decorrentes da trag�dia, por que passavam a sua fam�lia e outros tantos moradores do local, sobretudo pela impossibilidade de realiza��o da atividade econ�mica que lhes deu sustento por d�cadas: a pesca. Relatou ainda a situa��o de escassez e as dificuldades vividas em decorr�ncia do derramamento de lama somadas � dificuldade de deslocamento para a cidade.

Cabe ressaltar que Povoa��o fica a 40 quil�metros do Centro de Linhares e seu acesso se d� pela rodovia ES-248 (considerando que 30 quil�metros da via n�o s�o pavimentados e que na ocasi�o esse trecho apresentava estado prec�rio de manuten��o). O tempo de deslocamento por �nibus � de cerca de 1h40min pela linha �Linhares x Povoa��o� da via��o Unimar, �nica que atende a regi�o, com quatro hor�rios di�rios de partida de segunda-feira a s�bado e dois hor�rios nos domingos e feriados.

Tamb�m era percept�vel no semblante das pessoas que encontramos na vila a sensa��o de impot�ncia e des�nimo diante do tr�gico acontecimento, diante da morte de um rio de suma import�ncia para o Brasil, para o Sudeste, para o Esp�rito Santo, para a vida de cada um dos sujeitos que mora �s suas margens e que vivia de seus frutos.

Tais fatos tornam ainda mais relevantes os dados apresentados e o material coletado por meio desta pesquisa como registro e mem�ria da comunidade para seu processo de re-exist�ncia na conjuntura atual e para futuros projetos que possibilitem a transmiss�o da experi�ncia de si das narrativas de Dona Geni �s novas gera��es.

As narrativas de Dona Geni: da fala para a escrita

Para uma melhor compreens�o da abrang�ncia do corpus do trabalho, apresentamos uma breve an�lise descritiva dos �udios coletados. Nas transcri��es (DELGADO, 2006) todas as falas que n�o foram de Dona Geni foram identificadas com a palavra entre par�nteses indicando �pesquisador�, �neto� e �filho�. Tamb�m apresentamos em todos os �udios da entrevista, sua dura��o em minutos (min) e segundos (s), bem como a contagem de caracteres com espa�os das transcri��es feitas.

No primeiro �udio (20s), encontramos a apresenta��o feita pelo pesquisador, onde s�o registrados a data, o local da grava��o e o nome completo da entrevistada, e � anunciado que ela a seguir ir� nos contar um tanto da tradi��o e da sabedoria do povo. A transcri��o do �udio alcan�ou 189 caracteres com espa�os.

No segundo �udio (1min47s), encontramos relatos de mem�rias da vida de Dona Geni. A transcri��o desse �udio chegou a 1.323 caracteres com espa�os: �[...] naquele tempo era assim uma ro�a, um atraso, n�? [...] Eu estudei pouco. N�o tinha condi��es. Meu pai n�o tinha condi��es de botar n�s para estudar porque n�o tinha mesmo, n�? N�o tinha estrada. Aqui tinha o Juparan� (Dona Geni), embarca��o a vapor que a partir de 1927 realizou transporte de pessoas e mercadorias no Rio Doce. Segundo Dona Geni, seu pai �[...] era um pobre coitado� (Dona Geni). Para estudar, as pessoas andavam pela matinha at� chegar a uma casa onde funcionava o col�gio.

No terceiro �udio (2min47s), com 2.059 caracteres com espa�os em sua transcri��o, o pesquisador pergunta se as pessoas mais velhas contavam muitas hist�rias para ela, e que tipo de hist�rias. Nesse momento, Dona Geni rememora hist�rias contadas para ela e para suas irm�s, principalmente na �poca da quaresma, como a hist�ria do Boitat�, e acrescenta:

Meu pai era muito instrutivo, conversava com n�s dentro de casa. [...] Todo mundo sentado em volta dando aten��o, n�... Lamparina acesa. [...] Ele n�o gostava que n�s, assim, sa�sse pra rua, eu ent�o fui muito bem acionada, eu s� dormia depois que eu fazia um metro de renda, ele tinha prazer de eu t� ali trocando bilro ali [...] era meu servi�o, n�? (Dona Geni).

No quarto �udio (40s), com 359 caracteres com espa�os em sua transcri��o, Dona Geni conta um pouco sobre o trabalho do pai, jangadeiro de Reg�ncia a Colatina, que contava muitas hist�rias dessas travessias. Ele, por medo de seguir viagem � noite, encalhava a embarca��o para prosseguir durante o dia.

No quinto �udio (1min34s), com transcri��o em 1.287 caracteres com espa�os, Dona Geni narra um epis�dio sobre o Caboclo-d��gua, ser mitol�gico classificado por Cascudo (1983, p. 127; 1998, p. 209) entre os Ipupiaras que vivem nas �guas, frequentemente presente em relatos dos moradores das comunidades que margeiam o Rio S�o Francisco.

Ent�o ele [seu pai] falava assim: � C� n�o vai tomar banho no rio que aqui tem Caboclo d��gua. Ele falava. A� quando foi um dia, foi eu mais minhas irm�s, chegou l�, n�s vimos mesmo, quase que pegou n�s (risos). [...] Ele [o Caboclo] correu atr�s de n�s e n�s corremo gritando. Ele [seu pai] disse: � mas eu disse a voc�s que tinha e voc�s n�o me obedeceram (Dona Geni).

No sexto �udio (40s), o pesquisador pergunta a Dona Geni sobre a M�e-d��gua, mito pesquisado e descrito por Cascudo (1983, p. 131; 1998, p. 532), tamb�m familiar aos Ipupiaras, ao Boto e � Cobra Grande. Ela responde que nunca a viu, mas que seu pai �[...] contava que via� (Dona Geni). O relato foi transcrito em 321 caracteres com espa�os.

A transcri��o do s�timo �udio (2min2s) alcan�ou 1.413 caracteres com espa�os. N�o conseguimos compreender todas as palavras, pois alguns trechos foram ditos em intensidade baixa. No �udio, Dona Geni fala sobre o Saci-Perer�, ser mitol�gico presente em relatos do Brasil interior, sobretudo das regi�es Sul e Sudeste (1983, p. 99; 1998, p. 794). Seu filho Prud�ncio participou da conversa.

N�s tinha um rapaz que morava com n�s aqui. [...] A�, n�, ele inventou de sair de noite l� pra uma fazenda que tem ali pra cima do Imp�rio, do Z� Rangel [...] A� eu falei assim: � Olha, meu pai dizia que passou de seis horas tem que haver respeito. N�o pode andar de noite que disse que tem o Saci � Ele disse: � Ah, tem Saci nada, eu vou � Ele disse que ia e foi. Quando ele chegou ali [...] a� ele se assombrou e veio embora, chegou aqui bateu na porta [...] veio o, o bicho, atr�s dele assoviando: Siiiiiit, Saci Perer�. Falou mesmo, eu ouvi. A� ele bateu: � Oh, dona Geni, me acode eu estou assombrado, bem que a senhora me falou � ele disse assim. � Eu t� vendo, eu escutei n�, mas maior s�o os poder de Deus! N�s n�o devemos de abusar. O senhor foi abusado (Dona Geni).

O oitavo �udio (55s) alcan�ou 843 caracteres com espa�os em sua transcri��o. Nele, Dona Geni relatou a exist�ncia de uma igreja que foi tomada pelo Rio Doce: �[...] tinha uma rua l�. Foi enchendo, foi acabando� (Dona Geni). E comentou novamente sobre o Saci: �Foi embora porque ele entrou e eu pedi, pedi a Deus� (Dona Geni).

No nono �udio coletado (1min32s), com transcri��o com 1.049 caracteres com espa�os, Dona Geni contou sobre o Boitat�, considerado por Cascudo (1983, p. 119; 1998, p. 171) um dos mitos de origem ind�gena recorrentes no Brasil.

E outra vez, minha m�e era muito oportuna, ent�o faltou �gua [...] e o rio [...] era l� fora e tinha uma barreira. A� ela disse assim [...]: � V� buscar �gua. � Falei assim: � Ah, mam�e, a senhora fazer eu buscar �gua uma hora dessa? � Se voc� n�o for voc� vai apanhar � a� eu fui, quando eu cheguei na beira do rio eu vi aquele foguinho vim assim digo: � Ai Jesus, a� vem o fogo. � a� eu enchi a lata d��gua e vim, quando eu subi a barreira, que eu cheguei em casa, passou aquele fogar�u assim por mim [...] o fogo dele � azul e vermelho [...] passou aquela peneira a� eu ca�, ca� desfalecida. [...] N�o vi mais nada. A� papai falou. Papai ainda achou ruim com ela que ela fez aquilo (Dona Geni).

No d�cimo �udio (34s), o pesquisador iniciou perguntando sobre a Mula sem Cabe�a, mito descrito por Cascudo (1998, p. 596). Dona Geni relatou: �Rodou muito a mula sem cabe�a aqui, muita gente que via. [...] Essa eu nunca vi n�o, mas vi gente certo contar que via� (Dona Geni) e as pessoas corriam dela. A transcri��o desse relato alcan�ou 498 caracteres com espa�os.

No d�cimo primeiro �udio (1min2s) foi perguntado sobre mais um mito, o Lobisomem, mito provindo da Europa, detalhadamente apresentado por Cascudo (1983, p. 145; 1998, p. 518). Dona Geni respondeu: �Lobisomem, tamb�m j� vi [...] aqui em Povoa��o [...] ele gosta de quaresma [...] de lua cheia e lua nova [...] se transforma num cachorro muito grande. Hoje n�s tamos num mundo de meu Deus, n�? [...] N�o � como era� (Dona Geni). A transcri��o do �udio alcan�ou 774 caracteres com espa�os.

No d�cimo segundo �udio (1min25s), transcrito em 1.075 caracteres com espa�os, com algumas palavras n�o identificadas, o pesquisador perguntou � narradora se ela se lembrava de alguma hist�ria muito contada na regi�o. Dona Geni rememorou a hist�ria do her�i Caboclo Bernardo, que salvou muitas pessoas de um famoso naufr�gio ocorrido em Reg�ncia.

Bom, eu ouvi falar assim que Reg�ncia, como... at� hoje, eles ainda... eles ainda louvam ele [...] Caboclo Bernardo, n�? � que salvou muita gente, n�? N�o foi no meu tempo [...] Tem at� a avenida l�, Caboclo Bernardo, n�? Eles fazem a festa l�, n�? foi muito, como..., assim, come... comemorativa, n�? Ficou na hist�ria essa hist�ria do Caboclo Bernardo (Dona Geni).

No d�cimo terceiro �udio (3min20s), transcrito em 1.321 caracteres com espa�os, e no d�cimo quarto (2min1s), com transcri��o em 1.363 caracteres com espa�os, Dona Geni aborda algumas quest�es sobre a educa��o.

[...] aqui em casa d� muita crian�a, sabe? [...] mas a gente tem um modo de tratar as crian�as. Ent�o, um dia desses, tava ali, essa pracinha tava cheia de crian�as, mas cheia, eles tavam at� brigando ali, sabe? A� ent�o eu cheguei e falei assim: � Meus filho, n�o briga n�o, briga de crian�a chega pra papai e mam�e, voc�s s�o umas crian�a, umas crian�a bonita, vem aqui, vem c� pra n�s, pra n�s contar um bocado de hist�ria.

Primeiro o carinho sai de n�s da casa e depois o da escola, porque se n�s n�o souber agradar as nossas crian�as, como � que ele vai chegar na escola? [...] quando eles t�o aqui comigo assim eu sempre, � eu ensino assim modos deles tratar uma pessoa, n�? Eu ensino, n�? Bom dia, boa tarde, ben�a, n�? Eu ensino assim, n�? Eu aprendi muito pouco. Naquela �poca n�o tinha escola. [...] Eu n�o tenho coragem de chamar uma professora pelo nome. Eu chamo Dona. (Dona Geni).

O d�cimo quinto �udio (1min45s) inicia-se com o pesquisador indagando sobre algum fato importante que tenha marcado a sua vida. Dona Geni afirma: �Porque importante nosso � n�s ter amizade e o amor [...] Eu n�o sei o que eles [as pessoas que chegaram a Povoa��o] acharam comigo que eles se adapta muito assim comigo, sabe? �, sei n�o� (Dona Geni). A transcri��o do �udio alcan�ou 1.179 caracteres com espa�os.

Nos dois �ltimos �udios, d�cimo sexto (1min12s), transcrito em 809 caracteres com espa�os e d�cimo s�timo (1min3s) transcrito em 1.090 caracteres com espa�os, o pesquisador, Dona Geni e seu filho Prud�ncio conversaram sobre o Rio Doce. Ela relatou: �O menino foi tomar o banho no rio. O menino pequeno, acho que tinha uns tr�s anos e desapareceu que at� hoje nunca ningu�m viu, nunca ningu�m soube� (Dona Geni). Ela e seu filho contaram que muitas pessoas j� haviam sido levadas pelo rio: �Muita gente. Muita gente� (Dona Geni). Seu filho finaliza afirmando: �Todo mundo que � de Povoa��o sabe nadar no rio [...] todos n�s atravessa. [...] D� porque tem a ilha, n�? E vem outro bra�o [de rio] l�, outra ilha de novo, outro [bra�o de] �gua, tem mais ilha...� (Prud�ncio).

A experi�ncia de si presente nas narrativas dos �udios coletados � imensur�vel. Os dezessete �udios totalizaram 24 minutos e 39 segundos de grava��o. As transcri��es, por sua vez, totalizaram 16.952 caracteres com espa�o.

Experi�ncia de si, mem�ria e educa��o nas hist�rias de Dona Geni

A partir das transcri��es e das an�lises dos �udios coletados, selecionamos algumas passagens que est�o diretamente ligadas ao nosso objetivo de compreender o modo como os elementos da tradi��o e a experi�ncia de si vinculam-se a processos educacionais.

� percept�vel o quanto a mem�ria, de diferentes formas, traz consigo as recorda��es, que s�o �[...] forte marca dos elementos e mitos fundadores, al�m dos elos que conformam as identidades e as rela��es de poder� (DELGADO, 2006, p. 39). De suas recorda��es emergem tradi��es e experi�ncias de si que s�o �nicas, que se enredam nos processos de constitui��o dos sujeitos da comunidade, de sua educa��o e de transmiss�o de sua cultura que, portanto, precisam e devem ser valorizadas.

Os mitos, quando presentes, surgem envoltos em narrativas de experi�ncia de si e na transmiss�o de valores, conselhos e experi�ncia, configurando-se como dispositivos pedag�gicos e pr�ticas educacionais institu�das no tempo e espa�o da narra��o, como nas narrativas sobre o seu encontro com tr�s Caboclos d��gua: �Ent�o ele [seu pai] falava assim: C� n�o vai tomar banho no rio que aqui tem Caboclo d��gua. Ele falava. A� quando foi um dia, foi eu mais minhas irm�s, chegou l�, n�s vimos mesmo, quase que pegou n�s (risos)� (Dona Geni). Ou na ocasi�o em que escutou o assobio do Saci-Perer� perseguindo um rapaz que fora incauto: �[...] veio o, o bicho, atr�s dele assoviando: - Siiiiiit, Saci Perer�. Falou mesmo, eu ouvi. A� ele bateu: Oh, Dona Geni me acode, eu estou assombrado, bem que a senhora me falou� (Dona Geni). Ou ainda quando sua m�e mandou que ela fosse ao rio buscar �gua � noite e o Boitat� a perseguiu: �[...] a� eu enchi a lata d��gua e vim, quando eu subi a barreira, que eu cheguei em casa, passou aquele fogar�u assim por mim, aquela peneira, a� eu ca�. Era o Boi tat�. Eu vi [...] A� papai falou. Papai ainda achou ruim com ela [sua m�e] que ela fez aquilo.� (Dona Geni).

Tamb�m pudemos notar que em diferentes momentos as narrativas de Dona Geni de Oliveira Ramos atestam a institui��o de dispositivos pedag�gicos e pr�ticas educacionais. Em alguns trechos, a narradora se refere �s crian�as a quem educava e contava as suas hist�rias:

[...] aqui em casa d� muita crian�a. sabe? Aqui, gra�as a Deus, essa casa aqui n�o falta crian�a. Ent�o, mas a gente tem um modo de tratar as crian�as. Ent�o, um dia desses, tava ali, essa pracinha tava cheia de crian�as, mas cheia, eles tavam at� brigando ali, sabe? A� ent�o eu cheguei e falei assim: � Meus filho, n�o briga n�o, briga de crian�a chega pra papai e mam�e, voc�s s�o umas crian�a, umas crian�a bonita, vem aqui, vem c� pra n�s, pra n�s contar um bocado de hist�ria. [...]

Primeiro o carinho sai de n�s da casa e depois o da escola, porque se n�s n�o souber agradar nossas crian�as como � que ele vai chegar na escola? N�o �? Ent�o, sai de n�s pra depois ir da escola n�o �? A� eles ficam. Gra�as a Deus eles ficaram tudo assim instrutivo assim comigo. [...] � quando eles t�o aqui comigo assim eu sempre, � eu ensino assim modos deles tratar uma pessoa, n�? Eu ensino, n�? Bom dia, boa tarde, ben�a, n�? Eu ensino assim, n�? (Dona Geni).��

Em outros trechos, ela se refere ao modo como seu pai as educava, tamb�m por meio das hist�rias:

[...] meu pai era muito instrutivo, conversava com n�s dentro de casa [...] �, ele contava que ele era jangadeiro l� em Reg�ncia, de Reg�ncia a Colatina, sabe? Ele trabalhava na jangada carregando tora de Colatina at� Reg�ncia nesse Rio Doce, n�? Ent�o ele contava muita hist�rias [...] (Dona Geni).

Outros trechos de seus relatos nos permitem inferir que do mesmo modo como ela fora educada por seu pai, ela tamb�m educou seus filhos, as crian�as da comunidade e as pessoas que com ela conviveram. Al�m de dizer que seu pai contava hist�rias e era instrutivo, Dona Geni relata o modo com seu pai ressaltava os conselhos nos momentos oportunos, como na ocasi�o em que apesar dele haver recomendado que ela e suas irm�s n�o sa�ssem para tomar banho de rio, elas sa�ram e l� encontraram os Caboclos-d��gua. Seu pai, num processo educacional familiar, lhes disse: �[...] mas eu disse a voc�s que tinha e voc�s n�o me obedeceram� (Dona Geni). Esse processo educacional deflagrado por seu pai se far� presente na experi�ncia de si narrada por Dona Geni, que institui um dispositivo pedag�gico no tempo e espa�o da narra��o da hist�ria gravada, como certamente institu�ra um dispositivo pedag�gico a cada vez que narrara esse relato.

Do mesmo modo como seu pai a instru�ra, Dona Geni agiu ao alertar o rapaz que morava em sua casa para que tivesse respeito e n�o sa�sse ap�s as seis horas da tarde �A� eu falei assim: Olha, meu pai dizia que passou de seis horas tem que haver respeito. N�o pode andar de noite que disse que tem o Saci� (Dona Geni). Ainda assim, o rapaz decidiu sair � noite sozinho, voltando assombrado e perseguido pelo Saci. Ela o acudiu e por fim falou: �N�s n�o devemos de abusar. O senhor foi abusado� (Dona Geni). Tamb�m nesse caso, a experi�ncia de si institui um dispositivo pedag�gico no tempo e espa�o em que � narrada.

Podemos afirmar que as experi�ncias de si narradas por Dona Geni Ramos, vinculam-se aos saberes, � cultura e � hist�ria de sua comunidade, e s�o provenientes de sua mem�ria. Girardello (2014, p. 22), afirma que em quem j� viveu muito �[...] as mem�rias de inf�ncia podem estar t�o tenras e frescas, que se tornam apenas um jeito de contar n�o o que se foi um dia, mas o que continua sendo�.

A experi�ncia de si escutada ou vivida � de novo (e ainda) experi�ncia para quem narra e uma nova experi�ncia para quem escuta, pois o processo de constru��o e transforma��o da consci�ncia de si depender� �[...] da participa��o em redes de comunica��o onde se produzem, se interpretam e se medeiam hist�rias� (LARROSA, 1994, p. 70).

A transforma��o da consci�ncia de si, prossegue Larrosa (1994, p. 70), depender� �[...] desse processo intermin�vel de ouvir e [...] de contar hist�rias, de mesclar hist�rias, de contrapor algumas hist�rias a outras, de participar, em suma, desse gigantesco e agitado conjunto de hist�rias que � a cultura�.

Ao ser perguntada sobre algo de importante que tenha marcado a sua vida, a entrevistada responde: �Porque importante nosso � n�s ter amizade e o amor, n�? A amizade e o amor � muito importante. Olha, toda a vida. Quando chegou esse IBAMA pra gente, eles pegaram logo amizade assim comigo, n�o sei porque� (Dona Geni).

E o que nossa narradora nos teria a dizer sobre o seu saber? Ou sobre o seu processo educacional de transmiss�o da experi�ncia de si e de transforma��o da consci�ncia de si? Ou ainda sobre sua participa��o nesse gigantesco conjunto de narrativas que � a cultura?

Dona Geni, que reunia as crian�as em sua casa ou na pracinha (localizada a poucos metros de sua casa), mesmo ap�s narrar v�rias mem�rias de sua vida, envolvendo as pessoas de sua fam�lia e de sua comunidade, em meio ao ambiente e ao contexto hist�rico e social do local onde viveu, afirma em princ�pio que n�o sabia muito para poder ensinar, mas logo em seguida reconhece que aprendeu e ensinou o que para ela era o mais importante:

�Eu aprendi pouco. Naquela �poca n�o tinha escola� (Dona Geni).

O pesquisador retruca: �A senhora que pensa que aprendeu pouco, viu?� (Pesquisador).

Ela concorda: �� (risos). Agora... coisa importante, respeito, n�?� (Dona Geni).

O pesquisador responde, concordando: �ɔ (Pesquisador).

E Dona Geni conclui: �Eu n�o tenho coragem de chamar uma professora pelo nome. Eu chamo Dona[3]. Porque ela tem, n�? Ela tem o importante dela qual eu n�o tenho. Chamo todo mundo Dona Fulana� (Dona Geni).

Era uma vez, na margem norte da foz do Rio Doce...

����������� Por fim, o Rio Doce.

Na ocasi�o da entrevista, esse mesmo Rio Doce que j� levou �Muita gente. Muita gente�. (Dona Geni) e que imp�e respeito de tal modo que todos os moradores de Povoa��o sabem nadar no rio (como nos foi informado na entrevista), de um lado tirava algumas vidas, mas de outro dava vida a todos os moradores da singela vila de Povoa��o. Geni e seu filho concentraram-se no relato de algumas vidas que se perderam no grande rio. Quanto � vida dada pelo rio, isso n�o precisava ser contado. Era parte da vida, como o ar que se respira, algo que simplesmente impregnava as narrativas, enchia os pratos de peixe, molhava os rostos, fazia brotar sorrisos e fecundar mitos. O rio era, e pensava-se que seria sempre, a um s� tempo e em todos os tempos, meio de sustento e via de transporte dos moradores de suas margens, piscina, brinquedo e fonte de cria��es imagin�rias, dispositivos pedag�gicos e pr�ticas educacionais de in�meras gera��es de crian�as ribeirinhas.

����������� Ao regressarmos a Povoa��o, Dona Geni havia acabado de partir dessa vida, quase junto com o rio. Ela partira poucos meses ap�s uma trag�dia impens�vel, inimagin�vel nos tempos em que seu pai singrava a correnteza do Rio Doce com sua jangada, nos tempos em que o vapor Juparan� era o �nico meio de transporte coletivo do local, nos tempos em que os Caboclinhos e o Boitat� habitavam seu leito, nos tempos em que a vida, toda vida de seu entorno, existia em fun��o do Rio Doce, rio vida. Mas o rio, que outrora abrigou narrativas, modos de viver, meios de vida, experi�ncias de si, processos educacionais e dispositivos pedag�gicos singulares, afogou-se em lama. Lament�vel morte de um rio. Como lament�vel tamb�m foi para n�s saber da partida de Dona Geni em um momento em que a comunidade tanto precisava de suas narrativas, de sua experi�ncia de si, de seus conselhos e ensinamentos.

����������� Consideramos que a pesquisa alcan�ou seus objetivos, no entanto, algo um tanto amargo nos assombrou no curso de sua realiza��o. Pensamos que h� muito mais o que fazer com o que ora temos em m�os. Como as �guas retornam filtradas por meio da chuva ao Rio Doce num pranto que aos poucos tenta lavar o que o homem sujou, para qui�� refazerem o que um dia a gan�ncia fez destruir, iniciamos os contatos com a comunidade com o intuito de fazermos o caminho inverso, entregando � vila de Povoa��o retextualiza��es das narrativas de Dona Geni, que poder�o ser lidas por crian�as e adultos da comunidade em seu processo re-exist�ncia para que as mem�rias do Rio Doce e de Povoa��o, presentes na experi�ncia de si de suas hist�rias, fomentem produ��es de sentidos e constitui��es de sujeitos que criem, transmitam e narrem, junto a outras experi�ncias de si e dispositivos pedag�gicos presentes na comunidade, uma nova hist�ria na dura luta por um recome�o, por um renascer. Tomara que seja Doce![4].

Refer�ncias

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BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da hist�ria. In: Magia e t�cnica, arte e pol�tica: ensaios sobre literatura e hist�ria da cultura. Tradu��o de S�rgio Paulo Rouanet. 3. ed. S�o Paulo: Brasiliense, 2012. p. 241-252.

CASCUDO, Lu�s da C�mara. Geografia dos mitos brasileiros. Belo Horizonte: Itatiaia; S�o Paulo: EdUSP, 1983.

CASCUDO, Lu�s da C�mara. Dicion�rio do folclore brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.

DELGADO, Luc�lia de Almeida Neves. Hist�ria Oral: mem�ria, tempo, identidades. Belo Horizonte: Aut�ntica, 2006.

GIRARDELLO, Gilka. Uma clareira no bosque: Contar hist�rias na escola. Campinas: Papirus, 2014.

LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educa��o. In: Silva, Tomaz Tadeu (Org.). O sujeito da educa��o. Tradu��o de Tomaz Tadeu da Silva. Petr�polis: Vozes, 1994, p.35-86.

LARROSA, Jorge. �Linguagem e educa��o depois de Babel. Tradu��o: Cynthia Farina. Belo Horizonte: Aut�ntica, 2004.

MARCUSCHI, Luiz Ant�nio. Da fala para a escrita: atividades de retextualiza��o. 8. ed. S�o Paulo: Cortez, 2007.

MELLO, Thiago. Antemanh�. Correio da Manh�: 1� Caderno. Rio de Janeiro, n. 19436, p. 9, 4 ago. 1956.

SILVEIRA, Denise Tolfo; C�RDOVA, Fernanda Peixoto. A pesquisa cient�fica. In: GERHARDT, Tatiana Engel; SILVEIRA, Denise Tolfo (Orgs.). M�todos de pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009, p. 31-42.

Correspond�ncia

Fabiano Oliveira Moraes � Universidade Federal do Esp�rito Santo � Av. Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras, CEP 29075-910, Vit�ria, Esp�rito Santo, Brasil.

Notas



[1] Pesquisa financiada pelo CNPq por meio de bolsa de Inicia��o Cient�fica concedida � coautora.

[2] Obtivemos autoriza��o pr�via para identifica��o do sujeito pesquisado e para publica��o de seus textos.

[3] Em respeito � valoriza��o do uso de �Dona� pela entrevistada ao se referir �s professoras e considerando-a uma narradora que institu�a processos educacionais e dispositivos pedag�gicos no tempo e espa�o da narra��o, optamos por identific�-la, neste trabalho, sempre como �Dona� Geni.

[4] Alus�o ao Rio Doce e ao trecho �Tomara que seja azul!�, do poema �Antemanh�, de Thiago de Mello: �O mundo est� come�ando / agora, na tua m�o. / Tudo pode acontecer! / Cuidado!, de tua palma, / aberta sob as estrelas, / o mundo est� come�ando / a se erguer: como se fosse / um p�ssaro que se acorda, / que acabou de se acordar, / e vai sair para um v�o / � porque tem fome de c�u.� / (Tomara que seja azul!) [...]� (MELLO, 1956, p. 9).