A educação e a experiência de si nos relatos de uma narradora às margens do Rio Doce
Education and the self-experience in the stories of a narrator alongside Rio Doce
Fabiano Oliveira Moraes
Professor na Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo, Brasil.
professorfabianomoraes@gmail.com — https://orcid.org/0000-0001-6741-4564
Monique Linciano de Azevedo Costa
Mestra pela Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo, Brasil.
moniquelincianocosta@gmail.com — https://orcid.org/0000-0002-5099-7326
Recebido em 30 de outubro de 2018
Aprovado em 12 de novembro de 2019
Publicado em 17 de dezembro de 2019
RESUMO
Objetiva compreender as práticas educacionais efetivadas por meio da propagação dos relatos orais de narradores tradicionais e as relações entre as narrativas tradicionais, as experiências de si e a educação, refletindo sobre os enredamentos entre as narrativas orais e a constituição dos sujeitos. Para tanto, faz uso dos conceitos de narrador e experiência de Benjamin (1979) e de dispositivo pedagógico, experiência e consciência de si de Larrosa (1994; 2004). Com abordagem qualitativa, trata-se, quanto aos procedimentos metodológicos, de um estudo de caso que toma por corpus as narrativas, coletadas por meio de entrevista gravada, de Geni de Oliveira Ramos, narradora tradicional da vila de Povoação (Linhares-ES), localizada na margem norte da foz do Rio Doce. A partir da transcrição da entrevista (DELGADO, 2006; MARCUSCHI, 2007), a análise de dados aponta eventuais relações dos relatos coletados com os mitos brasileiros (CASCUDO, 1983; 1998). O estudo analisa as narrativas à luz do referencial teórico, destacando trechos diretamente relacionados aos elementos da tradição e à experiência de si no âmbito da instituição de dispositivos pedagógicos e práticas educacionais no tempo e espaço da narração. Salienta, por fim, a relevância da pesquisa no registro da memória da comunidade para seu processo de re-existência diante da situação atual do Rio Doce, apontando para possíveis ações de transmissão da experiência de si das narrativas de Dona Geni às novas gerações.
Palavras-chave: Educação; Narrador; Experiência.
ABSTRACT
It aims to understand the educational practices performed through the propagation of oral narratives of traditional narrators and the relationships between traditional narratives, self-experiences and education, reflecting on the entanglements between oral narratives and the constitution of the subjects. To do so, it uses the concepts of narrator and experience of Benjamin (1979) and of pedagogic device, experience and self-awareness of Larrosa (1994, 2004). With a qualitative approach, according to the methodological procedures, a case study that takes as a corpus the narratives, collected by recorded interview from Geni de Oliveira Ramos, a traditional narrator from the village of Povoação (Linhares-ES), located on the north bank of the Rio Doce mouth. From the transcription of the interview (DELGADO, 2006; MARCUSCHI, 2007), the data analyses points out eventual relationships of the collected stories with the Brazilian myths (CASCUDO, 1983; 1998). This study analyzes the narratives in the light of the theoretical reference, highlighting sections directly related to the elements of tradition and to the self-experience within the scope of the institution of pedagogic devices and educational practices in the time and space of the narration. Finally, it highlights the relevance of the research in the record of the community’s memory for its process of re-existence in face of the current situation of the Rio Doce, pointing to possible actions of transmission of self-experience from Dona Geni’s narratives to the new generations.
Keywords: Education; Narrator; Experience.
Introdução
O presente artigo é resultado de uma sequência de viagens para entrevistas e coletas de narrativas realizadas no litoral do estado do Espírito Santo em 2002 pelo seu coautor, e do posterior estudo de caso, tomando por corpus as narrativas de uma das narradoras tradicionais entrevistadas, realizado pela sua coautora (sob a orientação do coautor) nos anos de 2015 e 2016[1].
A pesquisa teve por objetivo contribuir com os estudos que buscam entender as práticas educacionais efetivadas por meio da propagação dos relatos orais de narradores tradicionais, favorecendo desse modo a compreensão das relações entre as narrativas tradicionais, as experiências de si, a educação e a reflexão sobre as relações entre as narrativas orais e a constituição dos sujeitos. Também objetivou efetivar transcrições das narrativas do sujeito pesquisado, destacando as eventuais relações de suas narrativas com os mitos brasileiros a partir de Cascudo (1983; 1998) e analisando-as à luz dos autores tomados como referencial teórico da pesquisa.
Se considerarmos o ato de contar histórias como algo inerente às sociedades há dezenas de milhares de anos, podemos dizer que as mudanças sofridas por tal prática na sociedade ocidental nos últimos quinhentos anos, e de forma ainda mais intensa no último século, correspondem a uma transformação brusca e recente na capacidade do homem de transmitir as suas tradições às novas gerações.
[...] a arte de narrar caminha para o fim. Torna-se cada vez mais raro o encontro com pessoas que sabem narrar alguma coisa direito. É cada vez mais frequente espalhar-se em volta o embaraço quando se anuncia o desejo de ouvir uma história. É como se uma faculdade, que nos parecia inalienável, a mais garantida entre todas as coisas seguras, nos fosse retirada. Ou seja: a de trocar experiências (BENJAMIN, 1979, p. 57).
Para Benjamin (1979), a narrativa é colhida pelo narrador na experiência, seja ela própria ou relatada, e ao ser narrada é transformada outra vez em experiência daqueles que ouvem sua narrativa.
Larrosa (2004), por sua vez, destaca, a partir de Benjamin, que a experiência não é aquilo que passa, que acontece ou que toca, mas sim aquilo que nos passa, que nos acontece, que nos toca. No entanto, embora tantas coisas se passem em nossos dias, a experiência tem se tornado cada vez mais rara pelo excesso de informação e de opinião (que diferem da experiência), pela falta de tempo e pelo excesso de trabalho.
Essa mesma falta de tempo, somada ao excesso de trabalho, de informação e de opinião, destacada por Larrosa (2004), é reflexo da modernidade, período em que aconselhamento, sabedoria, experiência e narrador perdem espaço.
O narrador é um homem que dá conselhos ao ouvinte. Mas se hoje “dar conselhos” começa a soar nos ouvidos como algo fora de moda, a culpa é da circunstância de estar diminuindo a imediatez da experiência. Por causa disso não sabemos dar conselhos nem a nós, nem aos outros. O conselho é de fato menos resposta a uma pergunta do que uma proposta que diz respeito à continuidade de uma história que se desenvolve agora. Para recebê-lo seria necessário, primeiro de tudo, saber narrá-la. (Sem levar em conta que uma pessoa só se abre a um conselho na medida em que verbaliza a sua situação.) O conselho entretecido na matéria da vida vivida, é sabedoria. A arte de narrar tende para o fim porque o lado épico da verdade, a sabedoria, está agonizando. Mas este é um processo que vem de longe. Nada seria mais tolo do que querer vislumbrar nele apenas um “fenômeno da decadência” - muito menos ainda “moderno”. Ele é antes uma manifestação secundária de forças produtivas históricas seculares que aos poucos afastou a narrativa do âmbito do discurso vivo, ao mesmo tempo em que tornava palpável uma nova beleza naquilo que desaparecia (BENJAMIN, 1979, p. 59)
Larrosa (2004) afirma ainda que, como decorrência desse processo, em nosso tempo tornou-se rara a experiência de paciência, de atenção e de paixão ativa de sujeitos que estejam abertos à própria transformação como condição de renascimento.
A experiência, a possibilidade de que algo nos passe, nos aconteça, nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se mais nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2004, p. 160).
Ao nos depararmos com a narração da Geni de Oliveira Ramos[2] (doravante, Dona Geni), que apresenta claramente essas características raras de atenção, delicadeza, lentidão, escuta, silêncio, encontro, paciência e arte de dar-se tempo e espaço, gravada na vila de Povoação, à margem norte da foz do Rio Doce, percebemos de pronto que estávamos diante de uma produção de potência educacional e cultural inestimável. Por essa razão, entre os tantos contadores que pudemos entrevistar em diversas comunidades do litoral capixaba no ano de 2002, optamos por evidenciar, no presente artigo, a importância da transmissão de experiências de vida nas narrativas de Dona Geni, pois para Benjamin (1979), é por meio desse elemento que o narrador aconselha o ouvinte.
A orientação para o interesse prático é um traço característico de muitos narradores natos. [...] Tudo aponta para a relação que isso mantém com qualquer narrativa verdadeira. Clara ou oculta, ela carrega consigo sua utilidade. Esta pode consistir ora numa lição de moral, ora numa indicação prática, ora num ditado ou norma de vida – em qualquer caso o narrador é um homem que dá conselhos ao ouvinte (BENJAMIN, 1979, p. 59).
Ademais, considerando o silenciamento de vozes consolidado pela historiografia oficial que, ao mesmo tempo em que beneficia o discurso dos vencedores em detrimento dos dominados, contribui com a barbárie que lega ao esquecimento o processo de transmissão dos bens culturais do povo, buscamos favorecer em nossa pesquisa a necessária tarefa de “[...] escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 2012, p. 245), atentos à voz de sujeitos da educação transmissores de bens culturais deixados de lado pela historiografia hegemônica.
Experiência de si, educação, cultura e memória
Para Larrosa (1994, p. 43), a experiência de si é o que o sujeito oferece de si mesmo a seu próprio ser “[...] quando se observa, se decifra, se interpreta, se descreve, se julga, se narra, se domina, quando faz determinadas coisas consigo mesmo, etc.”. A experiência de si também se configura como algo que deve ser transmitido, que deve ser aprendido. A cultura transmite, portanto, determinado “[...] repertório de modos de experiência de si, e todo novo membro de uma cultura deve aprender a ser pessoa em alguma das modalidades incluídas nesse repertório” (LARROSA, 1994, p. 45).
É como se a educação, desse modo, não apenas construísse e transmitisse uma experiência do mundo exterior, mas também construísse e transmitisse “[...] a experiência que as pessoas têm de si mesmas e dos outros como "sujeitos". Ou, em outras palavras, tanto o que é ser pessoa em geral como o que para cada uma é ser ela mesma em particular” (LARROSA, 1994, p. 45, grifo do autor).
E como, em grande parte, a experiência de si constitui-se a partir das narrações, aquilo que somos e, ainda, o sentido de quem somos depende das histórias que contamos para o outro e para nós mesmos. Essas histórias, por sua vez, se constroem em relação às narrativas que escutamos, que lemos, que experienciamos, e são “[...] produzidas e mediadas no interior de práticas sociais mais ou menos institucionalizadas” (LARROSA, 1994, p. 48).
Qualquer lugar em que se efetiva a constituição ou a transformação da experiência de si, qualquer lugar em que são aprendidas ou modificadas as relações estabelecidas pelo sujeito consigo mesmo é, para Larrosa (1994), um dispositivo pedagógico. As narrativas de Dona Geni, coletadas de experiências vividas ou relatadas, são rememoradas e tornadas novamente experiência do ouvinte no dispositivo pedagógico instituído no tempo e espaço da narração.
Segundo Girardello (2014, p. 22), é a memória quem guarda cenas de nossas vidas e as transforma em algo extremamente valioso que é o relato oral, a autora evidencia ainda que esses relatos transcendem a família e passam a ser elementos de significados e de riqueza simbólica de comunidades inteiras.
Larrosa (1994, p. 68) acrescenta que a recordação requer a habilidade narrativa de imaginar e de compor, de produzir sentido sobre o que somos. “O narrador é que expressa, no sentido de exteriorizar, o rastro que aquilo que viu deixou em sua memória”. No movimento de narrar, o contador de histórias numera e ordena os rastros que conservam aquilo que foi visto, escutado, lido. O tempo da história se constitui nessa ordenação.
Essa ampla rede de ordenações da memória e de produções de sentidos sobre si por meio das narrativas constitui e transmite a experiência de si em um processo educacional contínuo.
Metodologia, locus, corpus, sujeito
Um largo intervalo separa a coleta das narrativas por meio de entrevistas gravadas em 2002 e sua análise em 2015 e 2016. O coautor deste artigo, após retornar ao Espírito Santo em 1998 depois de haver residido por seis anos no Rio de Janeiro-RJ, detectou um processo acelerado de rarefação de narradores tradicionais nas comunidades camponesas do Espírito Santo em decorrência, dentre outros fatores, do acelerado processo de globalização propagado pela mídia televisiva com a expansão da rede elétrica e do alcance dos sinais de TV (na época, por meio do uso de parabólicas) no campo.
Suas primeiras entrevistas, sempre realizadas no interior, se deram nos anos de 1999 e 2001 nos municípios de Castelo-ES e Venda Nova do Imigrante-ES (região serrana do estado), onde residiu na ocasião. As visitas eram feitas a partir da busca, entre moradores das comunidades, dos nomes de narradores tradicionais da região. Após consentimento dos sujeitos, a entrevista era feita com uso de gravador de fita cassete, papel e prancheta. Em alguns casos fazia-se uso apenas de papel e prancheta, tanto por escolha do entrevistado como por questões técnicas (falta de pilhas ou de fitas cassete), pois algumas regiões um tanto isoladas eram alcançadas apenas por meio de longas caminhadas a pé.
Em 2002, o pesquisador planejou viagens pelo litoral norte do estado. Os trechos, em sua maioria, foram percorridos a pé (com exceção dos deslocamentos feitos em veículo do Projeto Tamar no trecho de Povoação a Campo Grande e de ônibus no trecho de Conceição da Barra a Itaúnas). O pernoite foi feito em barraca de camping ou na casa de alguns entrevistados (Comboios e Conceição da Barra). Para registro das entrevistas, utilizou-se prancheta para anotações e gravador portátil de fita cassete.
O primeiro trecho de viagem compreendeu uma caminhada de Barra do Riacho (Aracruz-ES) a Regência (Linhares-ES), pela praia de Comboios (37 km de extensão) com entrevistas realizadas nas localidades de Barra do Riacho, da Aldeia Tupiniquim de Comboios e de Regência (margem sul da foz do Rio Doce). O segundo trecho compreendeu caminhada de Povoação (Linhares-ES) a Guriri (São Mateus-ES), com entrevistas realizadas em Povoação, Campo Grande (São Mateus-ES), Barra Nova (São Mateus-ES) e Guriri. O terceiro trecho compreendeu viagem da sede de Conceição da Barra-ES ao Riacho Doce (divisa do Espírito Santo com a Bahia), com coleta de histórias na sede de Conceição da Barra e em Itaúnas (Conceição da Barra-ES).
O segundo trecho de viagem, ocasião da entrevista que compõe o corpus dessa pesquisa, foi realizado entre os dias 1º e 3 de março de 2002, com chegada a Povoação e realização de entrevistas no local no dia 1º, pernoite em Povoação (Sede do Projeto Tamar), deslocamento em veículo do Projeto Tamar de Povoação a Campo Grande no dia 2 de março, chegada a Campo Grande e realização de entrevistas em Campo Grande e em Barra Nova no dia 2 de março, pernoite na margem norte da foz do Rio Mariricu (Barra Nova), deslocamento por meio de caminhada de Barra Nova a Guriri com coleta de histórias nesse local no dia 3 de março.
Ao chegarmos à vila de Povoação no dia 1º de março de 2002 em busca de narradores tradicionais da região, fomos informados pelos moradores da região que a maior detentora de histórias da vila havia sido removida dias antes para um hospital de Linhares, e que pela sua idade e pelas condições de saúde em que se encontrava, provavelmente não retornaria. Recebemos a indicação de dois outros mestres da narração: Seu Joviano Pereira dos Santos e Dona Geni de Oliveira Ramos. Pela proximidade, fomos primeiramente à casa de Seu Joviano, nascido em 22 de janeiro de 1920, mestre de Congo da vila e detentor do Bastão de São Benedito, que seria repassado para o novo mestre que estava sendo devidamente preparado para isso. Ele nos recebeu muito bem, contando várias histórias da tradição.
Em seguida, fomos à casa de Dona Geni, nascida em 1928, que nos concedeu a entrevista ao lado de seus netos e de seu filho (esse último chegou ao local durante a gravação) que com ela residiam. Logo após a nossa primeira abordagem com apresentação do projeto e a sua autorização para gravação, ela prontamente pôs-se a narrar com desenvoltura e propriedade. O registro das narrativas foi feito com uso de gravador portátil e prancheta para anotações complementares. As perguntas foram direcionadas no sentido de buscarmos a presença de mitos da região bem como de relatos que pudessem nos trazer parâmetros de comparação entre a vila de Povoação de sua infância e juventude e a do momento da entrevista.
No que tange à coleta de dados, foram tomados os cuidados necessários na abordagem e na execução da entrevista, respeitando as falas da contadora de histórias e dos familiares presentes e registrando-as como material auditivo. De acordo com Delgado (2006), a entrevista deu-se de tal forma que a pesquisada pudesse se expressar de seu modo, sem ser interrompida pelo pesquisador (a não ser para respostas e perguntas breves ou para sugestões de temas), respeitando cada relato de memória.
No ano de 2015, duas das entrevistas coletadas nas viagens de 2002 constituíram corpus de duas pesquisas orientadas, uma delas foi a de Dona Geni, presente neste artigo. A coautora, portanto, realizou transcrição e análise dos dados, sob a orientação do coautor.
No que diz respeito à fase de tratamento dos dados, trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa. No que tange aos procedimentos metodológicos, trata-se, especificamente, de um estudo de caso de cunho bibliográfico e analítico (SILVEIRA; CÓRDOVA, 2009).
O corpus dessa pesquisa é, portanto, composto por narrativas orais contadas pela narradora tradicional Geni de Oliveira Ramos (Dona Geni), nascida no distrito de Povoação, no dia 08 de abril de 1928 e falecida em 14 de julho de 2016. Os relatos das entrevistas gravadas na comunidade de Povoação (Linhares-ES) em 1º de março de 2002 foram transcritos, bem como categorizados a partir das eventuais citações de mitos (CASCUDO, 1983; 1998) e analisados em sua relação com a memória, com as experiências da narradora e com os dispositivos pedagógicos instituídos no tempo e espaço dos sujeitos envolvidos nas narrativas (DELGADO, 2006).
O processamento e as análises das entrevistas foram realizadas em três etapas. A primeira foi a transcrição das entrevistas (MARCUSCHI, 2007), tomando-se o devido cuidado com a pontuação para se alterar o mínimo possível o sentido das palavras e frases. Nessa primeira escrita, utilizamos certos artifícios, como colchetes nas passagens pouco claras, reticências nas dúvidas, silêncios e hesitações, e a palavra ‘riso’ para identificar risos. A segunda etapa foi a conferência de fidelidade. Nela tomamos o cuidado de escutar novamente o depoimento junto a uma leitura da transcrição, com o intuito de conferir nomes e informações importantes, bem como todos os detalhes de pontuação, omissões ou acréscimos para evitarmos leituras equivocadas. Na terceira e última etapa fizemos a seleção dos trechos das narrativas a serem analisadas e categorizadas de acordo com os objetivos da pesquisa (DELGADO, 2006).
A presença, nos relatos, de seres mitológicos (CASCUDO, 1983), nos conduziu a pesquisas que nos permitiram identificar os mitos e caracterizar as narrativas mitológicas com base em Cascudo (1983, 1998), com isso, pudemos compreender o modo como os elementos da tradição vinculam-se a narrativas de experiências de si em processos educacionais não formais.
No decorrer da pesquisa de transcrição e análise do material, ocorreu o despejo de lama no Rio Doce. Tivemos, em 09 de agosto de 2016, nove meses após a tragédia, a oportunidade de visitar Povoação. Na ocasião, a entrevistada havia falecido recentemente e a vila de pescadores, outrora graciosa e vívida, parecia anestesiada. A filha de Dona Geni recebeu-nos em sua casa simples onde residia com seu filho, neto de Dona Geni. Ela relatou as dificuldades, decorrentes da tragédia, por que passavam a sua família e outros tantos moradores do local, sobretudo pela impossibilidade de realização da atividade econômica que lhes deu sustento por décadas: a pesca. Relatou ainda a situação de escassez e as dificuldades vividas em decorrência do derramamento de lama somadas à dificuldade de deslocamento para a cidade.
Cabe ressaltar que Povoação fica a 40 quilômetros do Centro de Linhares e seu acesso se dá pela rodovia ES-248 (considerando que 30 quilômetros da via não são pavimentados e que na ocasião esse trecho apresentava estado precário de manutenção). O tempo de deslocamento por ônibus é de cerca de 1h40min pela linha “Linhares x Povoação” da viação Unimar, única que atende a região, com quatro horários diários de partida de segunda-feira a sábado e dois horários nos domingos e feriados.
Também era perceptível no semblante das pessoas que encontramos na vila a sensação de impotência e desânimo diante do trágico acontecimento, diante da morte de um rio de suma importância para o Brasil, para o Sudeste, para o Espírito Santo, para a vida de cada um dos sujeitos que mora às suas margens e que vivia de seus frutos.
Tais fatos tornam ainda mais relevantes os dados apresentados e o material coletado por meio desta pesquisa como registro e memória da comunidade para seu processo de re-existência na conjuntura atual e para futuros projetos que possibilitem a transmissão da experiência de si das narrativas de Dona Geni às novas gerações.
As narrativas de Dona Geni: da fala para a escrita
Para uma melhor compreensão da abrangência do corpus do trabalho, apresentamos uma breve análise descritiva dos áudios coletados. Nas transcrições (DELGADO, 2006) todas as falas que não foram de Dona Geni foram identificadas com a palavra entre parênteses indicando “pesquisador”, “neto” e “filho”. Também apresentamos em todos os áudios da entrevista, sua duração em minutos (min) e segundos (s), bem como a contagem de caracteres com espaços das transcrições feitas.
No primeiro áudio (20s), encontramos a apresentação feita pelo pesquisador, onde são registrados a data, o local da gravação e o nome completo da entrevistada, e é anunciado que ela a seguir irá nos contar um tanto da tradição e da sabedoria do povo. A transcrição do áudio alcançou 189 caracteres com espaços.
No segundo áudio (1min47s), encontramos relatos de memórias da vida de Dona Geni. A transcrição desse áudio chegou a 1.323 caracteres com espaços: “[...] naquele tempo era assim uma roça, um atraso, né? [...] Eu estudei pouco. Não tinha condições. Meu pai não tinha condições de botar nós para estudar porque não tinha mesmo, né? Não tinha estrada. Aqui tinha o Juparanã” (Dona Geni), embarcação a vapor que a partir de 1927 realizou transporte de pessoas e mercadorias no Rio Doce. Segundo Dona Geni, seu pai “[...] era um pobre coitado” (Dona Geni). Para estudar, as pessoas andavam pela matinha até chegar a uma casa onde funcionava o colégio.
No terceiro áudio (2min47s), com 2.059 caracteres com espaços em sua transcrição, o pesquisador pergunta se as pessoas mais velhas contavam muitas histórias para ela, e que tipo de histórias. Nesse momento, Dona Geni rememora histórias contadas para ela e para suas irmãs, principalmente na época da quaresma, como a história do Boitatá, e acrescenta:
Meu pai era muito instrutivo, conversava com nós dentro de casa. [...] Todo mundo sentado em volta dando atenção, né... Lamparina acesa. [...] Ele não gostava que nós, assim, saísse pra rua, eu então fui muito bem acionada, eu só dormia depois que eu fazia um metro de renda, ele tinha prazer de eu tá ali trocando bilro ali [...] era meu serviço, né? (Dona Geni).
No quarto áudio (40s), com 359 caracteres com espaços em sua transcrição, Dona Geni conta um pouco sobre o trabalho do pai, jangadeiro de Regência a Colatina, que contava muitas histórias dessas travessias. Ele, por medo de seguir viagem à noite, encalhava a embarcação para prosseguir durante o dia.
No quinto áudio (1min34s), com transcrição em 1.287 caracteres com espaços, Dona Geni narra um episódio sobre o Caboclo-d’Água, ser mitológico classificado por Cascudo (1983, p. 127; 1998, p. 209) entre os Ipupiaras que vivem nas águas, frequentemente presente em relatos dos moradores das comunidades que margeiam o Rio São Francisco.
Então ele [seu pai] falava assim: – Cê não vai tomar banho no rio que aqui tem Caboclo d’água. Ele falava. Aí quando foi um dia, foi eu mais minhas irmãs, chegou lá, nós vimos mesmo, quase que pegou nós (risos). [...] Ele [o Caboclo] correu atrás de nós e nós corremo gritando. Ele [seu pai] disse: – mas eu disse a vocês que tinha e vocês não me obedeceram (Dona Geni).
No sexto áudio (40s), o pesquisador pergunta a Dona Geni sobre a Mãe-d’Água, mito pesquisado e descrito por Cascudo (1983, p. 131; 1998, p. 532), também familiar aos Ipupiaras, ao Boto e à Cobra Grande. Ela responde que nunca a viu, mas que seu pai “[...] contava que via” (Dona Geni). O relato foi transcrito em 321 caracteres com espaços.
A transcrição do sétimo áudio (2min2s) alcançou 1.413 caracteres com espaços. Não conseguimos compreender todas as palavras, pois alguns trechos foram ditos em intensidade baixa. No áudio, Dona Geni fala sobre o Saci-Pererê, ser mitológico presente em relatos do Brasil interior, sobretudo das regiões Sul e Sudeste (1983, p. 99; 1998, p. 794). Seu filho Prudêncio participou da conversa.
Nós tinha um rapaz que morava com nós aqui. [...] Aí, né, ele inventou de sair de noite lá pra uma fazenda que tem ali pra cima do Império, do Zé Rangel [...] Aí eu falei assim: – Olha, meu pai dizia que passou de seis horas tem que haver respeito. Não pode andar de noite que disse que tem o Saci – Ele disse: – Ah, tem Saci nada, eu vou – Ele disse que ia e foi. Quando ele chegou ali [...] aí ele se assombrou e veio embora, chegou aqui bateu na porta [...] veio o, o bicho, atrás dele assoviando: Siiiiiit, Saci Pererê. Falou mesmo, eu ouvi. Aí ele bateu: – Oh, dona Geni, me acode eu estou assombrado, bem que a senhora me falou – ele disse assim. – Eu tô vendo, eu escutei né, mas maior são os poder de Deus! Nós não devemos de abusar. O senhor foi abusado (Dona Geni).
O oitavo áudio (55s) alcançou 843 caracteres com espaços em sua transcrição. Nele, Dona Geni relatou a existência de uma igreja que foi tomada pelo Rio Doce: “[...] tinha uma rua lá. Foi enchendo, foi acabando” (Dona Geni). E comentou novamente sobre o Saci: “Foi embora porque ele entrou e eu pedi, pedi a Deus” (Dona Geni).
No nono áudio coletado (1min32s), com transcrição com 1.049 caracteres com espaços, Dona Geni contou sobre o Boitatá, considerado por Cascudo (1983, p. 119; 1998, p. 171) um dos mitos de origem indígena recorrentes no Brasil.
E outra vez, minha mãe era muito oportuna, então faltou água [...] e o rio [...] era lá fora e tinha uma barreira. Aí ela disse assim [...]: – Vá buscar água. – Falei assim: – Ah, mamãe, a senhora fazer eu buscar água uma hora dessa? – Se você não for você vai apanhar – aí eu fui, quando eu cheguei na beira do rio eu vi aquele foguinho vim assim digo: – Ai Jesus, aí vem o fogo. – aí eu enchi a lata d’água e vim, quando eu subi a barreira, que eu cheguei em casa, passou aquele fogaréu assim por mim [...] o fogo dele é azul e vermelho [...] passou aquela peneira aí eu caí, caí desfalecida. [...] Não vi mais nada. Aí papai falou. Papai ainda achou ruim com ela que ela fez aquilo (Dona Geni).
No décimo áudio (34s), o pesquisador iniciou perguntando sobre a Mula sem Cabeça, mito descrito por Cascudo (1998, p. 596). Dona Geni relatou: “Rodou muito a mula sem cabeça aqui, muita gente que via. [...] Essa eu nunca vi não, mas vi gente certo contar que via” (Dona Geni) e as pessoas corriam dela. A transcrição desse relato alcançou 498 caracteres com espaços.
No décimo primeiro áudio (1min2s) foi perguntado sobre mais um mito, o Lobisomem, mito provindo da Europa, detalhadamente apresentado por Cascudo (1983, p. 145; 1998, p. 518). Dona Geni respondeu: “Lobisomem, também já vi [...] aqui em Povoação [...] ele gosta de quaresma [...] de lua cheia e lua nova [...] se transforma num cachorro muito grande. Hoje nós tamos num mundo de meu Deus, né? [...] Não é como era” (Dona Geni). A transcrição do áudio alcançou 774 caracteres com espaços.
No décimo segundo áudio (1min25s), transcrito em 1.075 caracteres com espaços, com algumas palavras não identificadas, o pesquisador perguntou à narradora se ela se lembrava de alguma história muito contada na região. Dona Geni rememorou a história do herói Caboclo Bernardo, que salvou muitas pessoas de um famoso naufrágio ocorrido em Regência.
Bom, eu ouvi falar assim que Regência, como... até hoje, eles ainda... eles ainda louvam ele [...] Caboclo Bernardo, né? É que salvou muita gente, né? Não foi no meu tempo [...] Tem até a avenida lá, Caboclo Bernardo, né? Eles fazem a festa lá, né? foi muito, como..., assim, come... comemorativa, né? Ficou na história essa história do Caboclo Bernardo (Dona Geni).
No décimo terceiro áudio (3min20s), transcrito em 1.321 caracteres com espaços, e no décimo quarto (2min1s), com transcrição em 1.363 caracteres com espaços, Dona Geni aborda algumas questões sobre a educação.
[...] aqui em casa dá muita criança, sabe? [...] mas a gente tem um modo de tratar as crianças. Então, um dia desses, tava ali, essa pracinha tava cheia de crianças, mas cheia, eles tavam até brigando ali, sabe? Aí então eu cheguei e falei assim: – Meus filho, não briga não, briga de criança chega pra papai e mamãe, vocês são umas criança, umas criança bonita, vem aqui, vem cá pra nós, pra nós contar um bocado de história.
Primeiro o carinho sai de nós da casa e depois o da escola, porque se nós não souber agradar as nossas crianças, como é que ele vai chegar na escola? [...] quando eles tão aqui comigo assim eu sempre, é eu ensino assim modos deles tratar uma pessoa, né? Eu ensino, né? Bom dia, boa tarde, bença, né? Eu ensino assim, né? Eu aprendi muito pouco. Naquela época não tinha escola. [...] Eu não tenho coragem de chamar uma professora pelo nome. Eu chamo Dona. (Dona Geni).
O décimo quinto áudio (1min45s) inicia-se com o pesquisador indagando sobre algum fato importante que tenha marcado a sua vida. Dona Geni afirma: “Porque importante nosso é nós ter amizade e o amor [...] Eu não sei o que eles [as pessoas que chegaram a Povoação] acharam comigo que eles se adapta muito assim comigo, sabe? É, sei não” (Dona Geni). A transcrição do áudio alcançou 1.179 caracteres com espaços.
Nos dois últimos áudios, décimo sexto (1min12s), transcrito em 809 caracteres com espaços e décimo sétimo (1min3s) transcrito em 1.090 caracteres com espaços, o pesquisador, Dona Geni e seu filho Prudêncio conversaram sobre o Rio Doce. Ela relatou: “O menino foi tomar o banho no rio. O menino pequeno, acho que tinha uns três anos e desapareceu que até hoje nunca ninguém viu, nunca ninguém soube” (Dona Geni). Ela e seu filho contaram que muitas pessoas já haviam sido levadas pelo rio: “Muita gente. Muita gente” (Dona Geni). Seu filho finaliza afirmando: “Todo mundo que é de Povoação sabe nadar no rio [...] todos nós atravessa. [...] Dá porque tem a ilha, né? E vem outro braço [de rio] lá, outra ilha de novo, outro [braço de] água, tem mais ilha...” (Prudêncio).
A experiência de si presente nas narrativas dos áudios coletados é imensurável. Os dezessete áudios totalizaram 24 minutos e 39 segundos de gravação. As transcrições, por sua vez, totalizaram 16.952 caracteres com espaço.
Experiência de si, memória e educação nas histórias de Dona Geni
A partir das transcrições e das análises dos áudios coletados, selecionamos algumas passagens que estão diretamente ligadas ao nosso objetivo de compreender o modo como os elementos da tradição e a experiência de si vinculam-se a processos educacionais.
É perceptível o quanto a memória, de diferentes formas, traz consigo as recordações, que são “[...] forte marca dos elementos e mitos fundadores, além dos elos que conformam as identidades e as relações de poder” (DELGADO, 2006, p. 39). De suas recordações emergem tradições e experiências de si que são únicas, que se enredam nos processos de constituição dos sujeitos da comunidade, de sua educação e de transmissão de sua cultura que, portanto, precisam e devem ser valorizadas.
Os mitos, quando presentes, surgem envoltos em narrativas de experiência de si e na transmissão de valores, conselhos e experiência, configurando-se como dispositivos pedagógicos e práticas educacionais instituídas no tempo e espaço da narração, como nas narrativas sobre o seu encontro com três Caboclos d’Água: “Então ele [seu pai] falava assim: – Cê não vai tomar banho no rio que aqui tem Caboclo d’água. Ele falava. Aí quando foi um dia, foi eu mais minhas irmãs, chegou lá, nós vimos mesmo, quase que pegou nós (risos)” (Dona Geni). Ou na ocasião em que escutou o assobio do Saci-Pererê perseguindo um rapaz que fora incauto: “[...] veio o, o bicho, atrás dele assoviando: - Siiiiiit, Saci Pererê. Falou mesmo, eu ouvi. Aí ele bateu: – Oh, Dona Geni me acode, eu estou assombrado, bem que a senhora me falou” (Dona Geni). Ou ainda quando sua mãe mandou que ela fosse ao rio buscar água à noite e o Boitatá a perseguiu: “[...] aí eu enchi a lata d’água e vim, quando eu subi a barreira, que eu cheguei em casa, passou aquele fogaréu assim por mim, aquela peneira, aí eu caí. Era o Boi tatá. Eu vi [...] Aí papai falou. Papai ainda achou ruim com ela [sua mãe] que ela fez aquilo.” (Dona Geni).
Também pudemos notar que em diferentes momentos as narrativas de Dona Geni de Oliveira Ramos atestam a instituição de dispositivos pedagógicos e práticas educacionais. Em alguns trechos, a narradora se refere às crianças a quem educava e contava as suas histórias:
[...] aqui em casa dá muita criança. sabe? Aqui, graças a Deus, essa casa aqui não falta criança. Então, mas a gente tem um modo de tratar as crianças. Então, um dia desses, tava ali, essa pracinha tava cheia de crianças, mas cheia, eles tavam até brigando ali, sabe? Aí então eu cheguei e falei assim: – Meus filho, não briga não, briga de criança chega pra papai e mamãe, vocês são umas criança, umas criança bonita, vem aqui, vem cá pra nós, pra nós contar um bocado de história. [...]
Primeiro o carinho sai de nós da casa e depois o da escola, porque se nós não souber agradar nossas crianças como é que ele vai chegar na escola? Não é? Então, sai de nós pra depois ir da escola não é? Aí eles ficam. Graças a Deus eles ficaram tudo assim instrutivo assim comigo. [...] É quando eles tão aqui comigo assim eu sempre, é eu ensino assim modos deles tratar uma pessoa, né? Eu ensino, né? Bom dia, boa tarde, bença, né? Eu ensino assim, né? (Dona Geni).
Em outros trechos, ela se refere ao modo como seu pai as educava, também por meio das histórias:
[...] meu pai era muito instrutivo, conversava com nós dentro de casa [...] É, ele contava que ele era jangadeiro lá em Regência, de Regência a Colatina, sabe? Ele trabalhava na jangada carregando tora de Colatina até Regência nesse Rio Doce, né? Então ele contava muita histórias [...] (Dona Geni).
Outros trechos de seus relatos nos permitem inferir que do mesmo modo como ela fora educada por seu pai, ela também educou seus filhos, as crianças da comunidade e as pessoas que com ela conviveram. Além de dizer que seu pai contava histórias e era instrutivo, Dona Geni relata o modo com seu pai ressaltava os conselhos nos momentos oportunos, como na ocasião em que apesar dele haver recomendado que ela e suas irmãs não saíssem para tomar banho de rio, elas saíram e lá encontraram os Caboclos-d’Água. Seu pai, num processo educacional familiar, lhes disse: “[...] mas eu disse a vocês que tinha e vocês não me obedeceram” (Dona Geni). Esse processo educacional deflagrado por seu pai se fará presente na experiência de si narrada por Dona Geni, que institui um dispositivo pedagógico no tempo e espaço da narração da história gravada, como certamente instituíra um dispositivo pedagógico a cada vez que narrara esse relato.
Do mesmo modo como seu pai a instruíra, Dona Geni agiu ao alertar o rapaz que morava em sua casa para que tivesse respeito e não saísse após as seis horas da tarde “Aí eu falei assim: – Olha, meu pai dizia que passou de seis horas tem que haver respeito. Não pode andar de noite que disse que tem o Saci” (Dona Geni). Ainda assim, o rapaz decidiu sair à noite sozinho, voltando assombrado e perseguido pelo Saci. Ela o acudiu e por fim falou: “Nós não devemos de abusar. O senhor foi abusado” (Dona Geni). Também nesse caso, a experiência de si institui um dispositivo pedagógico no tempo e espaço em que é narrada.
Podemos afirmar que as experiências de si narradas por Dona Geni Ramos, vinculam-se aos saberes, à cultura e à história de sua comunidade, e são provenientes de sua memória. Girardello (2014, p. 22), afirma que em quem já viveu muito “[...] as memórias de infância podem estar tão tenras e frescas, que se tornam apenas um jeito de contar não o que se foi um dia, mas o que continua sendo”.
A experiência de si escutada ou vivida é de novo (e ainda) experiência para quem narra e uma nova experiência para quem escuta, pois o processo de construção e transformação da consciência de si dependerá “[...] da participação em redes de comunicação onde se produzem, se interpretam e se medeiam histórias” (LARROSA, 1994, p. 70).
A transformação da consciência de si, prossegue Larrosa (1994, p. 70), dependerá “[...] desse processo interminável de ouvir e [...] de contar histórias, de mesclar histórias, de contrapor algumas histórias a outras, de participar, em suma, desse gigantesco e agitado conjunto de histórias que é a cultura”.
Ao ser perguntada sobre algo de importante que tenha marcado a sua vida, a entrevistada responde: “Porque importante nosso é nós ter amizade e o amor, né? A amizade e o amor é muito importante. Olha, toda a vida. Quando chegou esse IBAMA pra gente, eles pegaram logo amizade assim comigo, não sei porque” (Dona Geni).
E o que nossa narradora nos teria a dizer sobre o seu saber? Ou sobre o seu processo educacional de transmissão da experiência de si e de transformação da consciência de si? Ou ainda sobre sua participação nesse gigantesco conjunto de narrativas que é a cultura?
Dona Geni, que reunia as crianças em sua casa ou na pracinha (localizada a poucos metros de sua casa), mesmo após narrar várias memórias de sua vida, envolvendo as pessoas de sua família e de sua comunidade, em meio ao ambiente e ao contexto histórico e social do local onde viveu, afirma em princípio que não sabia muito para poder ensinar, mas logo em seguida reconhece que aprendeu e ensinou o que para ela era o mais importante:
“Eu aprendi pouco. Naquela época não tinha escola” (Dona Geni).
O pesquisador retruca: “A senhora que pensa que aprendeu pouco, viu?” (Pesquisador).
Ela concorda: “É (risos). Agora... coisa importante, respeito, né?” (Dona Geni).
O pesquisador responde, concordando: “É” (Pesquisador).
E Dona Geni conclui: “Eu não tenho coragem de chamar uma professora pelo nome. Eu chamo Dona[3]. Porque ela tem, né? Ela tem o importante dela qual eu não tenho. Chamo todo mundo Dona Fulana” (Dona Geni).
Era uma vez, na margem norte da foz do Rio Doce...
Por fim, o Rio Doce.
Na ocasião da entrevista, esse mesmo Rio Doce que já levou “Muita gente. Muita gente”. (Dona Geni) e que impõe respeito de tal modo que todos os moradores de Povoação sabem nadar no rio (como nos foi informado na entrevista), de um lado tirava algumas vidas, mas de outro dava vida a todos os moradores da singela vila de Povoação. Geni e seu filho concentraram-se no relato de algumas vidas que se perderam no grande rio. Quanto à vida dada pelo rio, isso não precisava ser contado. Era parte da vida, como o ar que se respira, algo que simplesmente impregnava as narrativas, enchia os pratos de peixe, molhava os rostos, fazia brotar sorrisos e fecundar mitos. O rio era, e pensava-se que seria sempre, a um só tempo e em todos os tempos, meio de sustento e via de transporte dos moradores de suas margens, piscina, brinquedo e fonte de criações imaginárias, dispositivos pedagógicos e práticas educacionais de inúmeras gerações de crianças ribeirinhas.
Ao regressarmos a Povoação, Dona Geni havia acabado de partir dessa vida, quase junto com o rio. Ela partira poucos meses após uma tragédia impensável, inimaginável nos tempos em que seu pai singrava a correnteza do Rio Doce com sua jangada, nos tempos em que o vapor Juparanã era o único meio de transporte coletivo do local, nos tempos em que os Caboclinhos e o Boitatá habitavam seu leito, nos tempos em que a vida, toda vida de seu entorno, existia em função do Rio Doce, rio vida. Mas o rio, que outrora abrigou narrativas, modos de viver, meios de vida, experiências de si, processos educacionais e dispositivos pedagógicos singulares, afogou-se em lama. Lamentável morte de um rio. Como lamentável também foi para nós saber da partida de Dona Geni em um momento em que a comunidade tanto precisava de suas narrativas, de sua experiência de si, de seus conselhos e ensinamentos.
Consideramos que a pesquisa alcançou seus objetivos, no entanto, algo um tanto amargo nos assombrou no curso de sua realização. Pensamos que há muito mais o que fazer com o que ora temos em mãos. Como as águas retornam filtradas por meio da chuva ao Rio Doce num pranto que aos poucos tenta lavar o que o homem sujou, para quiçá refazerem o que um dia a ganância fez destruir, iniciamos os contatos com a comunidade com o intuito de fazermos o caminho inverso, entregando à vila de Povoação retextualizações das narrativas de Dona Geni, que poderão ser lidas por crianças e adultos da comunidade em seu processo re-existência para que as memórias do Rio Doce e de Povoação, presentes na experiência de si de suas histórias, fomentem produções de sentidos e constituições de sujeitos que criem, transmitam e narrem, junto a outras experiências de si e dispositivos pedagógicos presentes na comunidade, uma nova história na dura luta por um recomeço, por um renascer. Tomara que seja Doce![4].
Referências
BENJAMIN, Walter. O Narrador. In: Textos escolhidos. Tradução de Modesto Carone. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 57-74.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 241-252.
CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EdUSP, 1983.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História Oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
GIRARDELLO, Gilka. Uma clareira no bosque: Contar histórias na escola. Campinas: Papirus, 2014.
LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: Silva, Tomaz Tadeu (Org.). O sujeito da educação. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis: Vozes, 1994, p.35-86.
LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de Babel. Tradução: Cynthia Farina. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2007.
MELLO, Thiago. Antemanhã. Correio da Manhã: 1º Caderno. Rio de Janeiro, n. 19436, p. 9, 4 ago. 1956.
SILVEIRA, Denise Tolfo; CÓRDOVA, Fernanda Peixoto. A pesquisa científica. In: GERHARDT, Tatiana Engel; SILVEIRA, Denise Tolfo (Orgs.). Métodos de pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009, p. 31-42.
Correspondência
Fabiano Oliveira Moraes — Universidade Federal do Espírito Santo — Av. Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras, CEP 29075-910, Vitória, Espírito Santo, Brasil.
Notas
[1] Pesquisa financiada pelo CNPq por meio de bolsa de Iniciação Científica concedida à coautora.
[2] Obtivemos autorização prévia para identificação do sujeito pesquisado e para publicação de seus textos.
[3] Em respeito à valorização do uso de “Dona” pela entrevistada ao se referir às professoras e considerando-a uma narradora que instituía processos educacionais e dispositivos pedagógicos no tempo e espaço da narração, optamos por identificá-la, neste trabalho, sempre como “Dona” Geni.
[4] Alusão ao Rio Doce e ao trecho “Tomara que seja azul!”, do poema “Antemanhã”, de Thiago de Mello: “O mundo está começando / agora, na tua mão. / Tudo pode acontecer! / Cuidado!, de tua palma, / aberta sob as estrelas, / o mundo está começando / a se erguer: como se fosse / um pássaro que se acorda, / que acabou de se acordar, / e vai sair para um vôo / – porque tem fome de céu. / (Tomara que seja azul!) [...]” (MELLO, 1956, p. 9).