Modificações Corporais: atores e significados a partir de uma websérie
Body Modifications: actors and meanings from a web series
* Eveline Ximenes Tomaz
Doutoranda na Universidade de Aveiro, Portugal.
evelineximenes@yahoo.com.br – https://orcid.org/0000-0001-6864-9218
** Rui Neves
Professor doutor na Universidade de Aveiro, Portugal.
rneves@ua.pt – http://orcid.org/0000-0002-3285-7733
Recebido em 12 de outubro de 2018
Aprovado em 07 de maio de 2019
Publicado em 15 de julho de 2019
RESUMO
Considerando o crescimento da procura pelas Modificações Corporais (MC), em especial por jovens e adolescentes, este se efetiva como um tema importante a ser discutido no processo educacional. Na perspectiva de minimizar algumas preocupações associadas a estas ações, propõe-se mais conhecimento sobre seus adeptos, objetivos e significados. Utilizando a internet como fonte de promoção do conhecimento sobre as MC, este estudo tem suporte no Youtube, site de partilha de vídeo, com uma investigação centrada sobre a natureza das MC realizadas pelos sujeitos ao longo da sua vida. Elegemos a websérie Sautering, do conjunto de 8 episódios disponibilizados até a data de julho/2017, selecionando os 3 primeiros, para análise, envolvendo um total de dezesseis sujeitos entrevistados. Objetivos: i) caracterizar os utilizadores das técnicas de modificações corporais; ii) identificar o primeiro contato com as MC; e iii) descrever o significado dessas MC para cada sujeito. Em termos metodológicos tratou-se de uma abordagem qualitativa de caráter descritivo, com base na análise de conteúdo do discurso dos entrevistados. As modificações mais comuns são as tatuagens e os piercing; o interesse de fazer uso das MC desperta na adolescência, sob influencias diversas; os significados estão relacionados a fatos históricos importantes, gostos pessoais, personagens que admiram, registros de conquistas alcançadas e outros. Considerando-se a relação das MC com os riscos à saúde, a relação com a auto-estima e a formação da identidade, reforça-se a importância de inserir a temática em momentos de formação na escola, promovendo maiores conhecimentos e melhores esclarecimentos aos jovens e formadores.
Palavras-chave: Modificações Corporais; Educação; Websérie.
ABSTRACT
Considering the growth on demand for Body Modifications (MC), particularly young people and teenagers, this evolution currently becomes as an important subject to be discussed in the educational development. Regarding the perspective of minimizing some of the concerns associated with these actions, is proposed extra knowledge about its supporters, objectives and meanings. Using the internet as a basis of promotion for MC knowledge, this study is supported on YouTube (video sharing site) with an investigation focused on the nature of the MC and It will be performed by the subjects throughout their life. We chose the Sautering web series, a 8 episodes set, available until July 2017. For the analysis, stood selected the first 3 episodes, involving a total of sixteen subjects interviewed. Objectives: i) characterize the users of techniques for corporal modifications; ii) identify the first contact with MC; iii) describe the meaning of these CM for each individual. In methodological terms it was a qualitative approach focused on descriptive basis, built on the content analysis of the interviewees' discourse. The most common modifications are tattoos and piercings; the interest in making use of MCs starts in adolescence, under different influences; the meanings are related to important historical facts, personal tastes, idols, registers of realized achievements and others. Considering the relationship between MCs and health risks, the relation with self-esteem and identity development, it was important the insertion of the theme at school, promoting knowledge and settlement to young people and trainers.
Keywords: Body Modification; Education; Web Series.
Introdução
Historicamente, as Modificações Corporais (MC) existem desde tempos remotos, em várias culturas (WOHLRAB et al, 2007; GONZAGA, 2011), no início relacionadas à hábitos culturais, consideradas naturalmente como simbologia de pertencimento a determinada tribo; com o passar do tempo pertencente à outras filosofias de vida. Na década de 1960 dá-se o advento da Body Art[i] nos Estados Unidos; e no início dos anos 1970, a body modification começa a ser praticada: o corpo surge como suporte da arte, são os modern primitives. Este movimento estava associado a contracultura, o corpo era a vitrine que expunha as crenças e valores dos sujeitos em contradição ao que era divulgado como modelo ideal a ser seguido (GONZAGA, 2011).
De acordo com Wohlrab et al (2007), 10% da população nas sociedades ocidentais modernas tem alguma forma de modificação corporal, estando presente principalmente entre jovens e adolescentes. Armstrong et al. (2013) e Owen et al. (2013) destacam que as estimativas atuais para arte corporal indicam que aproximadamente 25% dos adultos jovens com idades entre 18 e 25 anos possuem tatuagens, enquanto os que usam piercings variam de 33% a 50%. Wohlrab et al (2007) sugere ainda que podemos fazer uma análise das MC a partir de pelo menos 3 perspectivas: sociológica, biológica e na perspectiva de transmitir informações sociais não relacionadas a uma função de desvantagem, mas de superar estereótipos e aproximar-se do novo perfil da população que busca as MC.
O estereótipo de pessoas com tatuagens serem mais agressivos e rebeldes está se modificando de acordo com o resultado das pesquisas de Swami et al (2015), mas a falta de conhecimento ainda associa estas práticas ao(s) comportamento(s) de risco, à pré-conceitos, à sintomas considerados psicopatológicos, além da preocupação com os riscos à saúde.
Levando em consideração a necessidade de esclarecimentos referentes aos cuidados necessários, ao perfil de (semi)permanência das MC no corpo e a desmistificação de pré-conceitos, entende-se a pertinência da temática para ser discutida no âmbito educacional a fim de promover a melhor socialização entre todos e refletir sobre as condições de busca e efetivação das práticas de MC.
Esta preocupação existe, e está sendo cuidada na área da saúde, onde várias pesquisas vem sendo desenvolvidas, apontando a necessidade de políticas educacionais na perspectiva de minimização dos danos identificados. Os pesquisadores aconselham que todos os adultos, sejam educadores, conselheiros e administradores, estejam sempre alerta frente a responsabilidade de esclarecimentos aos jovens e adolescentes; promovam atuação nas associações e Programas de Educação em Saúde (AYANLOWO et al, 2017; DUKES; STEIN, 2011; CEGOLON et al 2010).
Mesmo com o aumento efetivo e a prevalência das MC entre jovens e adolescentes, identificamos que há uma carência de pesquisas com esta temática na área da Educação, fato que motiva a intenção de contribuir com o cenário educacional na perspectiva de promover momentos de reflexão, esclarecimentos e contribuições por parte dos jovens e dos educadores.
A internet como fonte de conhecimento
O Youtube é um site de compartilhamento de vídeo, sendo estes disponibilizados pelos próprios usuários. Fundado em 2005, a criação do site surgiu devido a dificuldades que existiam na época para partilhar vídeos na internet. Em seguida, a adesão e a procura de informações foi tão relevante, que fizeram deste canal de informação uma das melhores invenções, sendo eleito como a melhor invenção do ano de 2006 pela revista norte americana Time por "criar uma nova forma para milhões de pessoas se entreterem, se educarem e se chocarem de uma maneira como nunca foi vista"[ii].
De acordo com Gonzaga (2011) os instrumentos midiáticos, dentre eles a internet, constituem a imagem como o principal meio de transmissão de valores e significados, considerando o momento histórico vivido como uma época visual. Sendo assim, as MC como práticas consideradas alvo de preconceitos, encontram nestes espaços midiáticos um meio de divulgar seus significados e impressões, em especial o Youtube que tem destacado em sua missão a intenção de “dar a todos uma voz e revelar o mundo”[iii].
Após vários estigmas fincados na conceituação e tratamento do corpo nos períodos históricos que antecederam o modernismo, na atualidade encontramos o corpo transformação, o corpo objeto, o corpo adereço, que se modifica a cada nova moda, ou a partir do simples querer, ou mesmo logo após nova indicação da mídia. Um processo de alteração constante do corpo. Por quê e para quê? Quais são estas alterações e quais os objetivos de submissão a tantas técnicas superficiais ou invasivas? Estas pessoas alcançam o objetivo almejado?
Refletindo sobre o processo vivido pelo corpo ao longo da história, identificamos um processo que se inicia na desvalorização completa do corpo - considerado a prisão da alma. Na continuidade da história, mesmo evoluindo para uma melhor conceptualização, o corpo continua ocupando um lugar subalterno à alma ou espírito, e logo em seguida à mente e ao cognitivo. O pensamento cartesiano disseminou uma visão do ser humano fragmentada em corpo e mente, como se fosse possível executar sem precisar pensar ou mesmo pensar sem nada executar.
Algumas abordagens referentes ao corpo surgiram com o objetivo de promover a valorização do mesmo a partir de uma ótica integrada de ser humano. A psicomotricidade, que dá importância a todos os sistemas do corpo humano enfatizando suas interrelações na execução das ações (LE BOULCH, 1982); a abordagem da corporeidade[iv] que considera a complexidade do ser humano através das dimensões física, emocional-afetiva, mental-espiritual, sócio-histórico-cultural (JOÃO; BRITO, 2004), sem sobrepor uma a outra considerando a interdependência entre elas; a fenomenologia de Merleau-Ponty (2006) valorizando as sensações e percepções desencadeadas através do corpo.
Na pós-modernidade, frente ao avanço tecnológico com aparentes conquistas de valorização do corpo, depara-se com um novo processo de (in)significância do corpo frente à ausência de harmonia entre corpo e sujeito. Nesta ótica de insatisfação consigo mesmo, consideramos a efervescência das Modificações Corporais (MC).
As modificações corporais
São muitas as MC, desde mudanças da cor do cabelo às alterações estética do corpo como as cirurgias estéticas, executadas a partir de influências externas e/ou de desejos pessoais. Esta busca insaciável que, ao mesmo tempo em que alcança o bem-estar, arrisca-o, em nome de um ideal que parece inatingível, pode ser decorrente de várias condições. A procura pelas modificações do corpo tem evoluído e desperta o interesse da aproximação destas práticas ousadas, impulsionadas por ideais que superam a condição de dor, riscos à saúde, em busca do ser diferente.
O corpo é desenvolvido e marcado pela cultura que se estabelece ao seu redor, é produto da educação que recebe. Silva e Weiss (2004) consideram o corpo e o seu cuidado, através das práticas corporais, importante para a formação cidadã, assim como a negação deste corpo em movimento pode acarretar um ser humano “agressivo, retraído, frustrado, sem iniciativas próprias e inseguro para saber lidar com os desafios” (SILVA; WEISS, 2004, p. 81). Acrescentam que
Os indivíduos estão moldando os seus corpos conforme os esquemas culturais de beleza, achando que, assim, serão mais felizes, mais atraentes, terão mais amigos, serão aceitos pela sociedade. Que preço pagam em nome de um corpo belo? Em nome de que fazem isso? (id. p. 82).
As MC são consideradas um fenômeno social e que tem se expandido na atualidade, principalmente nos grandes centros urbanos (GONZAGA, 2011; ABONÍZIO; FONSECA, 2010).
Utilizado para designar várias, tais práticas como: técnicas de tatuagem, piercing, branding, cutting, escarificação, amarrações ou suspensões, inserções de implantes subcutâneos, bifurcação da língua e amputação de membros, entre outros, já que neste movimento sempre surge novas técnicas. No entanto, as intervenções da cirurgia plástica, os exercícios físicos e a química de esteróides para construção do corpo (body building) também são consideradas formas de modificações corporais. (GONZAGA, 2011, p. 14).
Para Ortega (2008) as MC podem ser uma resposta à perda da identidade ou consequência da instabilidade social, e divide em dois grupos: um como práticas que se submetem ao consumismo e ao modismo, referenciando-se a sociedade do espetáculo; o outro como práticas patológicas. Abonízio e Fonseca (2010) dividem as MC sendo um grupo referente às modificações que têm como objetivo acompanhar a estética referente à moda, as técnicas de embelezamento (práticas convencionais), corroborando com Ortega, referindo-se às tatuagens e piercings; e o outro grupo referente às modificações mais impactantes, mais distantes das aceites usualmente, consideradas práticas radicais ou extremas.
As motivações para a realização das MC são várias, podendo estar relacionadas a questões pessoais e/ou sociais, desde as mais simples como um símbolo associado a moda, até às mais complexas como a criação da auto-identidade (WOLHRAB, et al., 2007).
As MC estão associadas a auto-estima, a imagem corporal, a satisfação corporal, percebendo-se um cenário complexo, e o que é mais curioso, apesar da existência da dor e dos riscos à saúde, o desejo de realizar MC não se esgota em apenas uma modificação, mas existe o desejo de dar continuidade. Olivier (1995) confere que “a labilidade da imagem corporal justifica-se pela influência que sobre ela exercem os estados emocionais, os conflitos psíquicos, os intercâmbios com as imagens corporais alheias” (OLIVIER, 1995, p. 13).
Ainda para Olivier (1995), a imagem corporal não está ligada apenas ao corpóreo, mas também a corporeidade, “o corpo sujeito que age no mundo” (idem, p. 18), que para além da sua estrutura biológica, é constituído pelos símbolos da cultura, e este é o corpo que se estabelece no espaço educacional, “uma unidade expressiva da existência” (idem, p. 46), sempre em mudança.
A corporeidade na escola/ O corpo no processo educacional
Para Rios e Moreira (2015, p. 50) “falar do corpo na Educação não é algo simples, justamente por ser um assunto pouco discutido e difundido nos ambientes escolares e em nossa formação acadêmica”, mas o corpo é a matéria prima que molda e é moldado pela cultura, complexo pela interdependência entre suas dimensões e indispensável à funcionalidade da vida.
O corpo é o foco de estudos importantes como o de Marcel Mauss, que destaca as técnicas corporais, apresentando a atuação do homem na sociedade e sua adaptação ao surgimento dos desafios do dia a dia, criando formas e técnicas para responder às suas necessidades. Na Sociologia do corpo de Le Breton (2003), o autor perspectiva dar visibilidade às inúmeras formas de atuações e interpretações deste corpo na sociedade. A fenomenologia da percepção de Merleau Ponty valoriza a experiência vivida pelo sujeito através do seu corpo. Enfatiza que o corpo sente de forma associada a afetividade e a motricidade, se não o corpo vivido transforma-se em um simples objeto.
Todas estas concepções que percebem o ser humano de forma integral, contribuem para superar um olhar dicotomizado e para valorizar a multiplicidade do corpo que é, ao mesmo tempo social, psicológico, biológico. Esta superação transcende o fato da escola considerar o corpo passivo, em nome da disciplina, e passar a enxergar a corporeidade que permite uma maior aproximação da realidade, entendendo que o “ser” é um emaranhado de dimensões funcionando de forma interrelacionada.
Corporeidade “é o nosso corpo vivenciado [...] formando uma relação de constante diálogo com outros corpos expressivos, com os objetos do nosso mundo” (RIOS; MOREIRA, 2016, p. 232), efetivando a participação nos acontecimentos da vida real através da presença do corpo e suas redes de relações criadas com o mundo ao seu redor. Apesar destas afirmações, de acordo com Bezerra e Moreira (2013) o corpo ainda precisa ser considerado de forma efetiva no processo de ensino aprendizagem, a partir da sua expressividade, atuação, e efetivação da sua corporeidade. Para os autores, a compreensão da corporeidade na prática é uma das maneiras de efetivar o corpo no processo educacional, compreendendo-a “como base fundadora do ser humano, da escola, da sala de aula e do processo de ensino aprendizagem” (BEZERRA; MOREIRA, 2013, p. 73).
Wolhab et al. (2007) identifica que as MC podem ser analisadas a partir de 3 perspectivas: a sociológica, representada pelo aumento da popularidade destas práticas, não sendo mais restrita a certos grupos sociais, mas alargando-se a todas as idades e classes sociais; a biológica considera as MC um ornamento do corpo, seja ele visível ou velado, se relaciona com a capacidade de custeio do indivíduo, com os riscos à saúde, e possui relação com a escolha do parceiro; a psicológica identifica as relações das MC com comportamentos anti-sociais correlacionando estas marcas como possíveis marcadores de identidade.
Assim, é possível relacionar a corporeidade, as MC e a imagem corporal, através da imagem tridimensional que todos possuem de si mesmo, levando em consideração os aspectos psicológicos, sociológicos e fisiológicos. Consequentemente, o sujeito, com seu corpo e suas marcas, ocupa um lugar importante no processo de formação da escola, promovendo e sendo alvo das estratégias e dos processos pedagógicos, que devem ser pensados a partir do compromisso assumido com estes sujeitos e com o universo em que estes se inserem e atuam.
Objetivos do estudo e questões investigativas
Considerando a web como fonte potencial de informações e conhecimentos, realizámos uma busca sobre os corpos mutantes, mais precisamente sobre as MC. Além de imagens de marcas e modificações do corpo, personagens exóticos, a internet disponibiliza programas visuais, sendo eles documentários, websérie, informativos, registro de eventos, produções individuais e outros, compondo uma bagagem considerável de descrições sobre a prática das MC.
De acordo com Gonzaga (2011) a internet impulsionou o crescimento sobre a temática abordada pelo fluxo intenso de informações disseminadas, auxiliando na profissionalização, nos esclarecimentos de dúvidas e divulgando acontecimentos. Assim, através da análise de uma websérie, a pesquisa tem como objetivo o conhecimento sobre MC, levantando questões como: i) quem são os adeptos destas práticas; ii) quando se deu o primeiro contato com as MC; iii) quais as MC que eles possuem e iv) qual o significado destas práticas para estas pessoas.
Metodologia
Tipo de estudo
Na intenção de responder às questões supracitadas, optou-se por uma abordagem qualitativa, numa base descritiva, pois possui o “objetivo principal de descrever os fenômenos” (COUTINHO, 2016, p. 42), neste caso, o fenômeno social das MC, que evoluiu de forma significativa na pós-modernidade. Assim, considera-se o “método qualitativo” como o que se aplica aos estudos “das percepções e opiniões, produção das interpretações que os humanos fazem a respeito de como vivem, constroem seus artefatos e a si mesmo, sentem e pensam” (MINAYO, 2006, p. 57).
De acordo com Gonzaga (2011, p. 27) “[...] a internet e outros instrumentos das mídias constroem e tratam a imagem como principal meio de transmissão de valores e significados”. Nessa ótica, percebe-se que os recursos visuais disponibilizados por sites como o Youtube são responsáveis por disseminar conhecimentos ainda pouco difundidos, caracterizando os dias atuais como uma época visual, ainda segundo o autor.
Natureza e contexto do estudo
No conjunto das produções em vídeo disponíveis na plataforma Youtube, optou-se pela websérie Sautering devido à sua sistematização e quantidade de informações sobre o assunto. Sautering[v] está disponível em 8 episódios (até a presente data), dos quais foram selecionados os 3 primeiros para análise, por considerar-se que, para efeito da pesquisa, constituíram conteúdo e dados bastante. A análise incidiu sobre os discursos dos 16 entrevistados que refletem sobre o processo de experiência com as MC no contexto de suas histórias de vida.
A série se passa na capital mineira, em Belo Horizonte, com os iniciadores desta prática no local, suas influências, contemplando diferentes objetivos a cada episódio. O primeiro episódio, “Primeiros passos, primeiras peças ...” foi publicado em 6 de dezembro de 2016 com o objetivo de “conhecer quais as dificuldades em se produzir e viver a modificação corporal em Belo Horizonte”, sendo o segundo (episódio) a continuação do primeiro. Para T. Angel (apresentador da websérie) a relação entre as pessoas que possuem interesse pelo assunto, reverbera no empenho em promover melhorias e abrir novos caminhos, ao mesmo tempo que aparentam se organizar numa “rede de afetos”, demonstrando “paixão” pelo que fazem, tornando-se uma prática enraizada na modalidade ou filosofia de vida.
No terceiro episódio, “Esse corpo sou eu!”, publicado em 27 de fevereiro de 2017 com 631 visualizações e duração de 37’45’’, os entrevistados compartilham sobre suas modificações corporais e conversam sobre o direito de auto manipulação do próprio corpo, como as MC interfere nas relações sociais dessas pessoas e outros assuntos pertinentes à temática.
Os dados serão analisados em termos de conteúdo a partir do discurso dos entrevistados, que para Severino (2007, p. 121) trata-se de uma metodologia de “tratamento e análise de informações constantes de um documento, sob forma de discursos pronunciados em diferentes linguagens: escritos, orais, imagens, gestos”, enfatizando que este tipo de análise atua sobre a fala.
Minayo (2006, p. 303) considera que esta metodologia de análise dos dados “permite tornar replicáveis e válidas inferências sobre dados de determinado contexto”, conferindo ao pesquisador mais propriedade sobre o objeto pesquisado.
Grupo de estudo
Os entrevistados eram todos moradores de Belo Horizonte (Brasil) ou oriundos de cidades do interior do estado de Minas Gerais. Os 16 entrevistados foram escolhidos pelos idealizadores do programa, todos com participação na história do local no que se refere à consolidação da prática das MC. Destes 13 são do gênero masculino, apenas 2 do gênero feminino e 1 dos entrevistados se identifica como trans, fato que chama a atenção do entrevistador e é destaque no terceiro episódio da websérie, a “presença de pessoas trans no meio da tatuagem”.
A grande maioria são profissionais da área: tatuadores (5), body piercer (7), sendo um deles tatuador e body piercer (1), body modifier (1); com exceção de dois deles, um é fotógrafo e o outro ator/dançarino. Alguns possuem formação acadêmica em outras áreas como biologia, artes visuais e moda.
Quadro 1: Gênero dos entrevistados
Gênero |
Masculino |
Feminino |
Trans |
16
|
13 |
2 |
1 |
Fonte: Dados do autor
Quadro 2: Profissão dos entrevistados
Profissão |
Tatuador |
Body piercer |
Tatuador e body piercer |
Body Modifier |
Outras |
16 |
5 |
7 |
1 |
1 |
2 |
Fonte: Dados do autor
Tratamento dos dados
Do ponto de vista da análise dos dados, a partir dos discursos dos entrevistados, a técnica utilizada será a análise de conteúdo. Para Bardin (1977) a análise de conteúdo é um método empírico precisa considerar algumas regras como estar bem adequada ao objetivo pretendido da pesquisa e estar disponível para se reinventar a todo momento. O instrumento ainda nos permite analisar os significados e os significantes na perspectiva de interpretar e, consequentemente, conhecer mais sobre o tema abordado,
pois os conteúdos podem ser de natureza psicológica, sociológica, histórica, econômica [...] a intenção da análise é a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção (ou eventualmente de recepção), inferência esta que recorre a indicadores (quantitativos ou não) (p. 38).
Em concordância com Minayo (2006), a análise de conteúdo possui a mesma lógica das metodologias quantitativas. Desta forma, considerando a regularidade das falas, enfatizaram-se 3 categorias: i) caracterizou-se os utilizadores das técnicas de MC; ii) o primeiro contato destes utilizadores com as MC; e iii) o significado dessas MC para cada sujeito.
Análise e discussão dos dados
Sautering[vi] é uma websérie publicada na plataforma Youtube, com profissionais e usuários das MC, abordando suas histórias de vida, com o objetivo de dar visibilidade aos atores deste cenário, a divulgação das técnicas e o significado destas práticas, assim como as consequências destas práticas nas relações sociais.
A série possui 8 episódios (até a data deste estudo), com duração média de trinta minutos cada. É dirigida por César Pessoa e T. Angel, que também é o apresentador e entrevistador dos episódios.
Dentre tantos outros vídeos referente ao tema, encontrados no momento da busca, Sautering, de nome bem sugestivo, chama a atenção pela sistemática com que os episódios foram publicados, com frequência quase quinzenal, inferindo a complexidade do assunto e o compromisso dos responsáveis para com a temática em curso.
Caracterizando os utilizadores das técnicas de modificações corporais
Os episódios analisados foram elaborados em torno dos mesmos entrevistados (16), enfatizando aspectos diferentes, sendo questões da pesquisa investigadas e analisadas a partir dos três primeiros episódios.
Quadro 3: Modificações corporais dos entrevistados
Entrevistados |
Tatuagem e/ou Piercing |
Outras MC (mais radicais) |
1 |
Tatuagens e piercings |
|
2 |
Tatuagens e piercings |
Implantes, alargadores, escarificação |
3 |
Tatuagens e piercings |
|
4 |
Tatuagens e piercings |
|
5 |
Tatuagens e piercings |
Implantes, escarificações, perfurações |
6 |
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Adepto da body art |
7 |
Tatuagens e piercings |
Implantes (nas mãos, nos peitos, já retirou alguns), alargadores (nos lábios, no lóbulo, no nariz, no septo, no umbigo, nos mamilos e no pênis), língua bifurcada |
8 |
Piercings (sobrancelhas, nariz, língua e retirou o do mamilo) |
|
9 |
Tatuagens e piercings |
Alargadores, suspensão, |
10 |
Tatuagens e piercings |
Alargadores, big erics, bifurcação, escarificação, implantes |
11 |
Tatuagens |
|
12 |
Tatuagens e piercings |
Implantes, bifurcação |
13 |
Tatuagens |
|
14 |
Tatuagens e piercings |
|
15 |
Tatuagens e piercings |
Prótese mamária (vai fazer orquiectomia, scalp, escarificação |
16 |
Tatuagens e piercings |
Implantes (nas mãos e já retirou alguns), 10 pinos no joelho, 4 placas, 1 dente de ouro, alargadores (septo, tinha 4 nostril, 2 raynostril), tragos perfurados (sem jóia no momento), orelhas, big alex, mamilos, um PA, alguns 20 bits de 4 mm. |
Fonte: Dados do autor
As modificações mais comuns são as tatuagens e os piercing, mas existe uma grande variação de modalidades, algumas mais radicais como é o caso da suspensão que, de acordo com Volpi (2009, p. 5) “não é considerada uma remodelagem do corpo, mas sim, um ‘esporte radical’. Consiste em pendurar a pessoa por ganchos que são presos na pele como piercings temporários”.
Volpi (2009) descreve algumas destas transformações utilizadas pelos Body Moder (os profissionais que realizam a Body Modification): tatuagens, implante, piercing, alargadores, pocket, branding, escarificação, bifurcação de língua e suspensão[vii], todas citadas pelos entrevistados.
Percebemos que os adeptos das MC possuem, geralmente, uma diversidade destas modificações em seus corpos, sendo preciso apenas dar o primeiro passo (realizar a primeira MC) para desencadear a realização de outras. Entre afirmações do tipo “falei que nunca mais ia voltar, e viciei no esquema” (entrevistado 2), “um ano depois eu fiz o meu segundo piercing, e mais um ano depois eu fiz o meu terceiro, e a partir daí eu comecei a fazer com mais frequência” (entrevistado 7), “ai depois disso eu já queria furar o septo, já queria furar o lábio, já queria furar o trago, já queria furar tudo” (entrevistado 10), descreve este processo que parece sempre inacabado. Em linha com esta ideia Winchel & Stanley (1991 apud Wohlrab, 2007) “Tatuagens e piercings possuem um caráter viciante, que pode ser devido à liberação de endorfinas, associada à penetração dolorosa do corpo, anestesiando e acarretando um sentimento positivo” (p. 91).
O fato da busca incessante pela alteração do corpo permite refletir ainda, ser possível considerar que esta inquietação esteja relacionada com a busca de um ideal de corpo, ou pelo menos de tornar satisfatória a imagem corporal, que segundo Schilder (1935, p. 102 apud SCATOLIN, 2012, p. 116) “a imagem corporal, em seu resultado final, é uma unidade. Mas esta unidade não é rígida, e sim passível de transformação”.
A imagem e a satisfação corporal são dois aspectos comprometidos entre os jovens e adolescentes, mediante o bombardeiro de imagens e informações que geram dúvidas, desejos e atitudes (in)(com)sequentes, e que fazem parte da realidade da vida atual. É necessário a existência de espaços para debater sobre o assunto, e reconhecendo a escola como um espaço de esclarecimentos, discussões e formação, Freire e Dantas (2012, p. 149) consideram que
A instituição escolar tem um importante papel a desenvolver: é fundamental que se abra um espaço para construção de representações do corpo e dos valores que a ele se atribui. É importante perceber esse espaço como lugar privilegiado para refletir sobre a formação dos sujeitos, desmistificando estigmas, estereótipos, valores e atitudes, buscando assim, humanizar a prática pedagógica.
A escola é lugar de desenvolvimento humano, e desenvolvimento humano implica no desenvolvimento cultural, na aceitação da diversidade, e no trato com as influências que, de modo não controlável, interferem na construção dos “modelos” na atualidade. Candau (2011) sugere a perspectiva intercultural no processo educacional, respeitando as identidades culturais, as diversidades de pensamentos e as diferenças, sejam elas relacionadas à desigualdade ou à construção de identidade, realidades presentes no “chão da escola”.
Apenas 7 dos entrevistados não possuem modificações radicais, mas manifestam a intenção de realizar novas modificações, mesmo apesar do medo existente, riscos à saúde, preconceitos e outros.
O primeiro contato com as MC
De acordo com os relatos, o interesse de fazer uso das MC desperta na adolescência, outros ainda na infância, a partir de influências externas como cantores de banda, influências musicais, movimento punk, hard core, movimentos sociais, imagens na televisão (filmes, programas), revistas e outros, sendo as tatuagens e os piercings a porta de entrada das MC. Corroborando com os resultados da pesquisa de Gonzaga (2011), que identificou as mesmas influências pelos seus entrevistados, acrescentando que tudo isso está relacionado aos objetivos da “busca de ser diferente e achar-se bonito” (p. 99).
Cabe considerar a influência midiática, através das imagens disseminadas, na construção da imagem corporal/do ideal de corpo na pós-modernidade, processo participante da formação e construção da identidade destes jovens e adolescentes. Para Gonzaga (2011, p. 27) instrumentos como a televisão, internet, as propagandas, moda e etc., “constroem e tratam a imagem como principal meio de transmissão de valores e significados”.
A realização da primeira modificação varia de faixa etária, indo dos 9 aos 21 anos, e quando acontece o retardamento é devido a condição imposta, muitas vezes pelos pais, com a justificativa de aguardar a chegada da maior idade, enquanto alguns realizam o(s) procedimento(s) às escondidas. Ferreira (2011) afirma que é comum que se identifique a adolescência como o período mais efervescente em relação à iniciação nas MC, isso porque é característico desta faixa etária a busca de reorganizar-se identitariamente e socialmente.
Na ausência de modalidades na “construção de si” socialmente determinadas, de ritos prescritos para a demarcação e enquadramento da transição para a adultícia, os jovens de hoje vêem-se destinados, eles próprios, a definir e a escolher as provas simbólicas das transições que, de forma gradual e cumulativa, pautam o seu curso de vida (FERREIRA, 2011, p. 140).
De acordo com Carvalho (2012), a escola é uma instituição social importante na construção da identidade por ser um espaço de constituição do saber e funciona como “um fio condutor que une, orienta e exibi todo um conjunto de referências acerca da construção da identidade do adolescente” (p. 210).
Quadro 4: Idade da primeira modificação dos entrevistados[viii]
Entrevistado |
1ª MC |
Idade |
1 |
|
|
2 |
|
|
3 |
Tatuagem |
16 anos |
4 |
Tatuagem |
14 anos |
5 |
|
|
6 |
|
|
7 |
Piercing |
11 anos |
8 |
Piercing |
21 anos |
9 |
Brinco |
9 anos |
10 |
Piercing |
13 anos |
11 |
|
|
12 |
Piercing |
12 anos |
13 |
|
|
14 |
Tatuagem |
18 anos |
15 |
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13 anos |
Fonte: Dados do autor
Significado das MC
Foi possível identificar uma variedade de condições entre aqueles que mencionaram o significado das MC, mas em especial, das tatuagens. Ao mesmo tempo que se observavam, os entrevistados iam recordando o significado de cada marca (tatuagens) e fazendo o seu relato. Alguns possuíam “frase de música [...] mistura do mapa do Brasil com o mapa da África [...] uma árvore inspirada na letra da música de Nina Simone”[ix] (entrevistado 8); “homenagem para as filhas, banda, mulher, programa de rádio, o capeta, uma boca, frase de música “La commedia è finita” (ópera de Leoncavallo) (entrevistado 1); “Nome do pai e da mãe (sobrenome) [...] data em homenagem ao veganismo” (entrevistado 1). Todas as tatuagens detinham significado, mesmo que aparentemente não expressassem muita coisa, para o sujeito existia uma justificativa.
Os registros são referentes a fatos históricos que consideram importantes, gostos pessoais, personagens que admiram, registros de conquistas alcançadas e outras considerações capazes de promover a mudança no entendimento de quem realiza as MC. Para Ferreira (2011, p. 144) é uma espécie de “sacralidade pessoal” onde o sujeito cria “uma mitologia biográfica, uma narrativa ancorada na sua própria trajetória de vida”.
[...] homenagem que eu fiz pro Cavalo louco, que é o índio Lakota [...] Tem as minhas do braço de cá que eu chamo de geladeira, que eu tô enchendo de adesivo, assim, eu tô fazendo as coisas ... mais picado. Tudo tem uma história, tem um porque, assim [...] Tem esse aqui que causa um pouco de torcer o nariz por ser uma arma, aqui em BH o povo acha que eu faço apologia a violência, e não é, é uma arma que eu gosto, e eu gosto muito de faroeste italiano. A latinha de espinafre por que meu segundo apelido era Popeye. A canequinha, a xicrinha de café que eu fiz [...] eu tenho o 9 que é o meu número. Na numerologia o meu é 9 (Entrevistado 4).
Para outros a iniciação nas modificações corporais dá-se em busca do diferente, da mutação, da despadronização, da intenção de chocar a sociedade com visuais impactantes. Entre os discursos, o objetivo em aderir às MC significava que: “Eu queria ser a diferentona” (entrevistado 15); era “uma questão de rebeldia, mostrar pra sociedade que você era um ser diferente” (entrevistado 3); ou ainda “é ideologia, ser político, interagir com a sociedade” (entrevistado 5).
A plasticidade de corpo na pós-modernidade também é uma característica identificada entre os discursos, como afirma Rodrigues (2015, p. 26) “a pele deixou de ser mero invólucro, e a própria anatomia já não é um destino, mas uma matéria-prima moldável que se pode submeter a um design”. As modificações alteram o visual, promovem marcas individuais, criam um modelo pessoal, atendem a uma insatisfação que move o sujeito a decisão de “criar o que eu quero ser fisicamente. [...] eu quero ser assim, eu quero fazer isso, ah eu acho que isso vai ficar legal” (entrevistado 10); considerando o corpo uma espécie de adereço, vitrine, “um rascunho a ser corrigido” (LE BRETON, 2003, p. 16).
Ao considerar a participação da escola, que durante muito tempo educou uma mente descorporificada, a mesma encontra hoje o desafio de superar a imagem dualista corpo/mente e incluir, além do afeto, a relação com o meio ambiente e as influências existente, onde tudo interfere no processo de educação. Isso ajuda a entender que a construção do conhecimento dá-se pela relação, através do corpo, dos sentidos, com a realidade cultural que se estabelece ao seu redor (BERTE; MARTINS, 2016).
Le Breton promove no seu livro Adeus ao corpo uma densa reflexão sobre o corpo, sugerindo que chegamos no “tempo do fim do corpo”, onde o corpo torna-se obsoleto ao ponto de, já que não pode ser eliminado que seja constantemente modificado, expondo como referência o corpo supranumerário do espaço cibernético, “um mundo em que as fronteiras se misturam e em que o corpo se apaga” (LE BRETON, 2003, p. 142).
Considera-se que os motivos pelos quais as pessoas procuram as MC e o que elas representam são os mais diversos. Para um dos entrevistados a tatuagem é uma forma de escapar de momentos tensos, que desestabiliza as emoções:
“Minhas tatuagens, não tem uma mais significante, mas as minhas tatuagens, eu sempre faço quando estou puto com a vida, sabe! (risos). Quando bate aquele estresse, aquele nervoso aqui dentro. Cê precisa liberar alguma coisa, então a tattoo me ajuda nisso.” (entrevistado 11)
Para Ferreira (2011) “o acto de fazer mais uma tatuagem corresponde a um investimento de sentido num dado momento de crise”, uma espécie de válvula de escape. Já Volpi (2009) relaciona a prática das modificações com algumas patologias da psicologia corporal, considerando a relação existente entre o caráter, o corpo e as sensações[x]. Considerando que a tentativa de modificar o caráter incide na busca pelas modificações corporais, que a realização de uma modificação (corporal) implica na outra (caráter), enquanto Moreira et al (2010) dão destaque à dor proporcionada no ato da execução das modificações como lugar do masoquismo, representando a criação de um novo modelo corporal, uma nova pele.
Vários autores - Volpi (2009), Moreira et al (2010) e Silva (2011) - nos apresentam a pele como aparelho sensório e psíquico responsável por filtrar as sensações e percepções do corpo e determinante na construção e desenvolvimento do caráter e do pensamento. Chama de eu-pele[xi] a proteção do corpo, interligada com o psíquico e com o social, e responsável por promover ao aparelho psíquico a condição de bem-estar.
“Mas a história de tatuagem assim foi meio que pra me mostrar ou pra me achar dentro de um grupo. Tinha minhas amigas né, tinha aquele padrão de beleza, assim todas vestindo 38, 36, bonitinhas, patricinhas, assim eu me achava a patinho feio sempre vestia 40-42, era meio fora do padrão delas. E aí eu falei eu tenho que ser diferente, não posso, já que não tenho o padrão de beleza delas, corpinho magrinho e tal, eu tenho que me mostrar de alguma forma, e fiz minha primeira tatuagem”. (Entrevistado 14)
Para Silva (2011, p. 255) o eu interior sobrevive naquilo que você gostaria de ser, pensa que é ou ainda naquilo que você deseja ser. Quem fala agora é a pele, tela branca que reflete as projeções pictográficas de uma cultura voltada eminentemente para o hedonismo, corpolatria, espetáculo, consumo e a moral das sensações.
Considerações finais
A partir da análise da fala dos entrevistados foi possível sistematizar um conjunto de conhecimentos referente ao universo das MC, suas implicações e significados de subjetividade. Os entrevistados eram profissionais da área, ou quando de outras áreas, desenvolviam atividades próximas das modificações por serem adeptos ou admiradores, como era o caso do ator/dançarino e do fotógrafo. Eram tatuadores, body piercing, body modifier, apenas 3 possuíam formação acadêmica em outras áreas, levando a perceber que encaram o ofício com muito profissionalismo e dedicação, sempre buscando qualificação e novos conhecimentos.
Mesmo que houvesse a intenção de se qualificar ou buscar o profissionalismo, foi comum identificar nos relatos que, no início, tanto em si como nos colegas por quem eram procurados, todos executaram as MC de forma bem artesanal, com relatos de processos inflamatórios, adaptação de material e etc. Aspecto a ser considerado quanto ao risco à saúde causado por falta de conhecimento ou falta de acesso a um profissional capacitado.
Ainda em relação ao perfil dos entrevistados, o gênero masculino ainda é preponderante, enquanto a presença do gênero trans aparece como um aspecto que está chamando atenção, entre os tatuadores. As tatuagens e os piercings são as modificações mais realizadas, seguidos de implantes e alargadores, e em sequência escarificações, língua bifurcada, suspensões.
Influenciados por várias imagens, desde cantores de bandas, movimentos sociais e imagens de filmes, percebe-se a arte e a mídia como grandes propagadores deste modelo. Além de constatar que, o primeiro contato com as MC ocorre na adolescência, período de grande vulnerabilidade, referente a faixa etária em que a identidade está se organizando, em busca de afirmação na sociedade. Assim, considerando a faixa etária deste público e o período em que eles estão construindo sua identidade, destaca-se a importância da escola no processo de formação, oferecendo informação, promovendo diálogos e esclarecimentos sobre esta temática.
Os significados destas marcas, em especial das tatuagens, são referentes a fatos marcantes em suas trajetórias de vida. A plasticidade do corpo na pós-modernidade é uma representação da desvalorização da anatomia do corpo em detrimento do designe. O aumento do uso das MC chama atenção para a importância da pele, considerada uma espécie de couraça que absorve sensações, que está diretamente ligada ao psíquico e tem responsabilidade na sensação de bem-estar. Assim, é possível relacionar as MC com comportamentos saudáveis e patológicos, explicados pela psicologia.
Considerar o conceito de corporeidade como uma estratégia de restituir a unidade corpórea é uma proposta significante de participação da escola na contribuição deste processo de formação, no qual o adolescente busca meios de se afirmar identitariamente. A escola possui autonomia para informar e esclarecer sobre estas práticas, podendo ser considerada, de acordo com Carvalho (2012, p. 210), como “um local privilegiado de transmissão cultural específica e de produção de sentido para as diversas prática sociais”.
A tecnologia, a mídia e todas as ferramentas que espalham informação, são influencias que interferem no processo educacional, e que as estratégias pedagógicas necessitam de pensar como considerar tudo isso, preferindo sempre a um processo humanizado, que inclui, aceita a diversidade, estando sempre atualizado com as temáticas contemporâneas e sendo efetivo na vida das pessoas, contribuindo para uma formação cidadã.
A prática das MC é também analisada como narcisista, hedonista, assim como portadora de subjetividade que supera o poder de representação, contribuindo na busca de um modelo de corpo ideal que parece nunca alcançado. Consideramos importante salientar que as MC ainda são uma temática alvo de preconceitos, e referente à um público aparentemente reduzido. Consequentemente, é um tema pouco abordado, mas que desperta a necessidade de ser discutido em espaços educacionais por possuir ligação direta com a faixa etária escolar, pelo fato de por em risco a saúde de seus adeptos, e por ser uma prática que se firma de forma permanente no corpo.
Considerando-se que a presença significativa em meio ao público adepto das MC são de jovens e adolescentes, e que são os mesmos que frequentam o ambiente escolar e que demonstram desconhecimento sobre aspectos importantes referentes a adesão destas práticas, reforça-se a importância de inserir a temática em momentos de formação, assim como a busca de maiores conhecimentos sobre estas práticas que tanto avançam na sociedade atual, para melhores esclarecimentos dos jovens e formadores.
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Correspondência
Eveline Ximenes Tomaz – Universidade de Aveiro – Campus Universitário de Santiago, 3810-193 Aveiro, Portugal.
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Notas
[i] Body art é uma proposta de arte em que se evidenciou o corpo e cuja proposta fundamental era expor o corpo e potencializá-lo, abandonando sua exaltação à beleza (GONZAGA, 2011, p. 57).
[iv] Para Ahlert (2011) o termo corporeidade faz referência a essência, a natureza do corpo, sempre em busca de reencontrar o humano e sua relação com o mundo através do seu corpo, contra a coisificação da vida.
[v] Primeiro episódio da websérie Sautering (https://www.youtube.com/watch?v=GCUnEQlwM-Q&t=1240s).
[vi] https://saunteringblog.wordpress.com/
[vii] José Henrique Volpi. Body modification: uma leitura caracterológica da identidade inscrita no corpo.
[viii] José Henrique Volpi. Body modification: uma leitura caracterológica da identidade inscrita no corpo.
[ix] Eunice Kathleen Waymon mais conhecida pelo nome artístico Nina Simone (Tryon, 21 de fevereiro de 1933 – Carry-le-Rouet, 21 de abril de 2003) foi uma pianista, cantora, compositora e ativista pelos direitos civis dos negros norte-americanos (https://pt.wikipedia.org/wiki/Nina_Simone). Percebe-se uma identidade de interesses entre o entrevistado e a cantora em relação a raça.
[x] No caso do duplo núcleo psicótico com cobertura masoquista, a pessoa perde a noção dos limites do seu corpo e tenta a todo custo superar a dor. Já o duplo núcleo psicótico de cobertura narcisista, perde o contato com o seu self e passa a cultuar uma imagem distorcida da realidade, achando que ninguém é melhor, mais bonita e mais corajosa do que ela mesma (Volpi, 2009, p. 15).
[xi] Teoria proposta a partir da metapsicologia proposta por Didier Anzieu (1989)