Fundamentos formativos da Base Nacional Curricular Comum (BNCC): uma análise a partir de Zygmunt Bauman
Formative foundations of the National Curricular Common Base (BNCC): an analysis from Zygmunt Bauman
Rafael
Bianchi Silva
Professor doutor da Universidade Estadual de Londrina. Londrina, Paraná, Brasil.
tibx211@yahoo.com.br - http://orcid.org/0000-0002-1170-7920
Guilherme Elias da Silva
Professor doutor da Universidade Estadual de Maringá. Maringá, Paraná, Brasil.
guilhermin@hotmail.com - http://orcid.org/0000-0002-2834-2905
Recebido em 20 de novembro de 2018
Aprovado em 15 de janeiro de 2019
Publicado em 29 de março de 2020
RESUMO
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, no diagnóstico do presente construído ao longo de sua obra, analisou a passagem da sociedade de produtores para um modelo de relações sociais pautada pela lógica do consumo. Em tal configuração, o consumo passa a ser o principal crivo que serve de princípio valorativo para as instituições e relações sociais de nosso tempo difundindo elementos como o individualismo, a efemeridade e o custo-benefício para diferentes campos que incluem a educação. A partir dessa premissa, o presente artigo visa discutir os fundamentos formativos presentes na Base Nacional Curricular Curricular (BNCC) para indicar de que modo tais elementos se materializam como projeto educativo no contexto brasileiro. Observou-se que o referido documento, ao pautar-se pelo conceito de competência, oferece segmento aos elementos já presentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), ampliando a importância do desenvolvimento de traços individuais atrelados a exigências de um contexto de trabalho em constante modificação. Conclui-se que, nesse contexto, amplia-se a transformação do homem em mercadoria e minimiza-se o lugar do trabalho, que visto enquanto sinônimo de emprego e renda, perde seu espaço enquanto princípio educativo.
Palavras-Chaves: Formação Humana; Currículo mínimo nacional; Zygmunt Bauman.
ABSTRACT
The polish sociologist Zygmunt Bauman, in the diagnosis of the present constructed throughout his work, analyzed the passage of the society of producers to a model of social relations guided by the logic of consumption. In such a configuration, the consumer becomes the main screen that serves as a value-principle for the institutions and social relations of our time spreading elements like individualism, ephemerality and cost-effective for different fields including education. Based on this premise, this article discusses the formative foundations present in the National Curricular Curricular Base (BNCC) to indicate how these elements materialize an educational project in the Brazilian context. It was noted that the document, to be guided by the concept of competence, it offers segment to the elements already present in the National Curriculum Parameters (PCN), increasing the importance of individual development linked traits the requirements of a work context that constantly changing. It is concluded that, in this context, the transformation of the man into merchandise is expanded at the same time that the place of work being understood as synonymous with employment and income, is minimized, losing its space as an educational principle.
Keywords: Human Formation; National minimum curriculum; Zygmunt Bauman.
Introdução
Cada sociedade possui uma direção para a qual seus membros são formados e suas ações são dirigidas. As transformações sociais observadas, em especial, a partir da segunda metade do século XX estão relacionadas exatamente com mudanças importantes nesse caminho a ser percorrido pelos diferentes sujeitos sociais no que tange ao trajeto e objetivos formativos. Tais modulações observadas marcam um diferente sentido para o que chamamos de educação, gerando impactos para o destino individual como também para todo o contexto social em que vivemos.
Para os fins desse trabalho, compreendemos que uma dessas mudanças diz respeito à passagem de uma sociedade voltada para a produção para outro modelo pautado pelo consumo, conforme descrição e análise realizada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Tais transformações atingem os modos de relações dos indivíduos tanto na esfera institucional como também na dimensão pessoal nos vínculos estabelecidos com os outros.
O presente trabalho tem como objetivo realizar uma discussão de como estas questões se materializam como objeto da formação educacional escolar na Base Nacional Curricular Comum (BNCC) - regulamentada na Resolução CNE/CP nº 2 de 22 de dezembro de 2017 (BRASIL, 2017a) - e publicada em sua versão completa em 2018. A partir de um diagnóstico dos problemas enfrentados pela educação básica, o documento tem como função fornecer uma direção ao trabalho pedagógico a ser realizado nas escolas na educação básica. Ao analisar seus princípios fundamentais, pretendemos observar as relações que essa proposta estabelece com aquela que a antecede, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de 1997.
A escolha desses documentos não é aleatória. Ambos trazem em si a marca de um tempo atravessado pelas mudanças políticas que, de certa forma, ciclicamente, nos mostram elementos do que chamamos de neoliberalismo e uma íntima relação entre as políticas de Estado e o capital materializado pelo setor produtivo (GALIAN, 2014; CARVALHO; SILVA; DALBONI, 2017). Se os PCN nasceram em época (final da década de 1990) de diminuição do papel do Estado, marcada pelas privatizações e problematização acerca da capacidade de formação do estudante para inserção no mercado de trabalho, a BNCC é divulgada quase que ao mesmo tempo em que a aprovação da reforma trabalhista - Lei 13467/2017 (BRASIL, 2017b), a ampliação dos dados relativos ao desemprego e na perda do poder aquisitivo das famílias utilizado, até então, para movimentar a economia através do incentivo ao consumo interno (OREIRO, 2017).
Assim, entendemos que a análise da direção colocada em movimento pelo projeto formativo materializado nos documentos e parâmetros torna-se importante para problematizar os valores e práticas hegemônicos em nossa sociedade. Mais do que isso, ao nos aproximarmos dos documentos foi possível observar as rupturas e continuidades no tratamento das temáticas em debate.
Enquanto caminho de investigação da questão, partimos do diagnóstico do presente realizado por Bauman, em especial, no que tange à relação entre os modelos de formação para o trabalho e para o consumo, pensando sua articulação com a dimensão educativa. Em um segundo momento, é realizado um debate a partir dos fundamentos pedagógicos indicados pela BNCC de modo a indicar como tais questões se materializam no documento.
Formação para a Sociedade de Consumidores
Iremos percorrer ao longo dessa seção as transformações sociais e os efeitos derivados da sociedade de consumidores no que diz respeito à questão da formação humana. Esse caminho terá como base as análises realizadas pelo sociólogo Zygmunt Bauman, em especial, no que tange o diagnóstico do modo de vida atrelado à lógica de consumo. Como ponto de partida, é importante compreender que:
O segredo de todo sistema social duradouro (ou, o que é o mesmo, capaz de se autoreproduzir com êxito) é a reformulação de seus “requisitos funcionais prévios” em forma de justificativas de conduta para os seus membros. Ou de modo distinto: o segredo de toda “socialização” com êxito é conseguir que os indivíduos desejem fazer o que o sistema necessita que façam para reproduzir a si mesmo [...] (BAUMAN, 2010a, p. 213, grifo do autor)
A principal mudança observada pelo autor diz respeito à direção dada a nossa sociedade ao longo do que chamamos de modernidade. A princípio, este tempo social trata-se da ampla capacidade de lidarmos e provocarmos mudanças. Se em um primeiro momento da modernidade, a égide da ordem buscou eliminar ou minimizar as intempéries do indeterminado, a segunda modernidade não apenas modificou o vetor de ação como também, através da pretensa capacidade de controle da vida dos diferentes agentes sociais, tornar cada um sujeito de sua própria existência. Como impacto, segundo Bauman (2013a, p.18), “hoje a cultura consiste em ofertas, e não em proibições; em proposições, não em normas [...], em produzir, semear, plantar novos desejos e necessidades, não em cumprimento do dever [...]”.
Paralelo a isso, tem-se uma transformação que atravessa todo o tecido social que surge como catalisadora desse processo. Tal ponto se deve, em especial, ao fato de que o desenvolvimento de novas tecnologias levou a observação de uma relação inversamente proporcional entre capacidade de produzir e gerar empregos, levando aos indivíduos a ter de buscar outros modos de produção de si para além das modalidades de trabalho existentes.
Um segundo movimento diz respeito à modificação do entendimento do que gera desenvolvimento social. No contexto da primeira modernidade, a riqueza de um país e, por desdobramento, a riqueza individual, possuía uma relação diretamente proporcional com a capacidade de produção. Porém, conforme apontado acima, o que encontramos na segundo modernidade é a quebra dessa ligação, sendo necessário um novo motor para o avanço da sociedade. Para operar essa mudança, mais do que alterar processos, tornou-se fundamental modificar a forma com que as pessoas compreendem seu lugar na satisfação das necessidades sociais (incluindo aqui a dimensão individual). O principal mediador e operador dessa transformação será o consumo.
No que tange à questão formativa, observa-se que, na sociedade de produtores, havia uma direção para uma modelagem do corpo e da subjetividade para suportar a rotina e a repetição. Alternativamente a isso, o que encontramos na sociedade de consumidores é a ausência de protocolos rígidos e o incentivo à realização constante de escolhas marcam os traços presentes no perfil que comumente chamamos de consumidor.
De modo sintético, Bauman (2010b) afirma que o indivíduo se torna o único administrador de uma política da vida, não mais por coerção, mas por necessidades e desejos. Isso faz com que seja necessária a constituição de um contexto social que vise estabelecer a vida não mais como uma série ordenada, fixa e previsível de junções, mas sim, pautada pelo caos, pela desordem e consequente, reformulação.
Assim, a ausência de padrões absolutos e o aumento da velocidade dos bens oferecidos confere a própria formação a necessidade de inserir-se em tal movimento, de modo a ser condescendente com a inconsistência, inconstância e com a flexibilidade. Para tanto, é necessário um eu que se forme e se reforme continuamente, partindo-se da premissa que a cada modificação, surge uma versão de si nova e melhorada. “Como consequência disso, os indivíduos atuam voluntariamente, aderindo aos valores difundidos pelo mercado de consumo, visto como expressão de liberdade e leveza, o que confere um novo estatuto ético às relações humanas” (SILVA, 2018, p. 117).
A partir disso, podemos entender que aquilo que está em jogo é a estimulação da busca de novas formas de conduta que, por sua vez, nunca chegam a se cristalizar enquanto hábitos. Desse modo, diferente de um tempo em que a formação se configurava a partir da noção de perenidade, estas novas formas de conduta devem ser mantidas até o término do ciclo de consumo para então passarem por modificações e reiniciar todo processo.
[...] A satisfação do consumidor deveria ser instantânea em duplo sentido: os bens consumidos deveriam satisfazer em forma imediata, sem impor demoras, aprendizagens ou prolongadas preparações; porém, essa satisfação deveria terminar no preciso momento em que se conclui o tempo necessário do consumo, tempo que deveria reduzir-se a sua vez a mínima expressão [...] (BAUMAN, 2000, p. 46).
Assim, os indivíduos encontram-se afastados da obrigação de adoção de uma identidade para toda a vida. Uma sociedade voltada para produção demandava a necessidade de escolha de um modo operante intimamente atrelado com a capacidade de atuação no campo do trabalho. A construção da identidade haveria de ser regular e coerente, passando por etapas claramente definidas que percorreriam toda a carreira laboral. Nesse sentido, o ser encontrava-se intimamente atrelado ao fazer, estando a identidade atrelada ao lugar que se ocupava no modo de produção vigente.
Ainda que não estejamos falando de uma ruptura, a passagem para a sociedade de consumidores implica em outro modelo de formação, visto que o mundo do trabalho não demanda mais um indivíduo detentor de um traço estável que se encontra ligado a um modo operante restrito, em especial, pelo contexto de trabalho marcado por contratos temporários, terceirização, teletrabalho e part-time job que demandam por diferentes formas de ação em tempo cada vez mais reduzido. Flexibilidade passa a ser a palavra de ordem (BAUMAN, 2008a).
No diagnóstico realizado pelo autor, a instabilidade será vivenciada no mundo do trabalho não apenas na falta de garantias por parte do empregador quanto à manutenção do emprego, como também na existência da função ou ainda na reconfiguração das atividades inerentes a mesma. Por essa razão, a capacidade de ser flexível tanto em termos do polimorfismo do trabalho como também nos modos de gestão, garante vantagem para a sobrevivência de indivíduos e organizações. Como bem ressalta Mancebo (2007, p.76):
[...] os processos de trabalho flexibilizados desmontam a fixidez dos cargos, a fragmentação das responsabilidades, a rigidez dos horários de trabalho, a demarcação contundente das tarefas e operam a partir das competências e dos resultados do trabalho. Essa dinâmica ganha terreno no cotidiano onde a flexibilização e a aceleração acentuam a volatilidade e efemeridade não só das modas e dos produtos, mas também de ideias, valores, práticas estabelecidas e relações interpessoais.
Isso vem ao encontro de uma mudança profunda no campo do capital que passa a necessitar de um corpo social voltado não apenas para ampliar a capacidade de produção, mas principalmente aumentar o desejo de consumir. Para Bauman (2001), a partir de reposicionamento da relação produção-consumo, a força de trabalho é tomada como uma dimensão secundária, sendo o ato de compra/consumo, o motivador primário.
Agora somos todos consumidores, consumidores acima de tudo, consumidores por direito e por dever [...]. É o nível de nossa atividade de compras e facilidade com que nos livramos de um objeto de consumo a fim de substituí-lo por um “novo e aperfeiçoado” que nos serve de principal forma de medir nossa posição social e marcar pontos na competição pelo sucesso da vida. Para todos os problemas que encontramos no caminho que leva para longe dos problemas e no rumo da satisfação, buscamos a solução nas lojas. Do berço ao túmulo, somos treinados e adestrados a tratar as lojas como farmácias repletas de remédios para curar ou pelo menos aliviar as moléstias e aflições em nossas vidas e nas vidas em comum (BAUMAN, 2013b, p. 82-83, grifo nosso)
Entende-se, desse modo, que a sociedade contemporânea considera o consumo mais do que simplesmente obtenção de bens ou objetos, mas principalmente modos de vida (SILVA; CARVALHO, 2013). Conforme é possível observar pela citação acima, trata-se de um processo que implica uma ação formativa por parte de diferentes esferas da sociedade, materializada nas instituições sociais que dela fazem parte.
Se existia uma forte vinculação da educação com o mundo do trabalho, para isso, a escola será um dos pilares para construção desse novo homem capaz de atuar também sob a égide dos valores regidos pelo consumo. Quais as características da educação em tal contexto?
A vida para o consumo é uma vida que demanda aprendizagens rápidas. Isso nos leva a dois elementos: primeiro, a adoção de uma metodologia de ensino que possa garantir essa velocidade e, segundo, em vista do movimento impresso pela obtenção de novas informações, torna-se também fundamental identificar o que deve ser esquecido para que novos conhecimentos possam ser adquiridos. Bauman (2008b, p.93) aponta que isso interfere na capacidade de aprendizagem, gerando consequências prejudiciais aos indivíduos:
[...] A capacidade de aprender, memorizar e adotar como hábito um tipo de conduta que no passado demonstrou ser exitosa (ou dizer, que resultou gratificante) pode ser, no entanto, suicida se as relações entre os atos e suas consequências são aleatórias e efêmeras e passam por mudanças sem aviso prévio.
Um segundo ponto indicado pelo autor é a disseminação de uma concepção de mundo na qual a formação humana trata-se de um processo contínuo e permanente que passa a ser tomado também como objeto de consumo pelos envolvidos. Desse modo, proliferam-se diferentes sistemas de ensino vendidos como mais eficientes (e, portanto, considerados com maior e melhor resultados, independente do que isso possa significar) ou cursos em graus variados de complexidade vinculados à promessa de aumento de salário ou mesmo inserção produtiva.
Dessa forma, naturaliza-se um processo no qual os indivíduos não estranham esse modo de vida voltado para o processo de si não apenas como consumidores de mercadorias, mas também e, principalmente, objetos que também podem e devem ser consumidos.
Assim temos uma sociedade na qual os indivíduos estão o todo tempo investindo em si próprios para se destacaram e diferenciarem, buscando se tornarem ao mercado de trabalho, por exemplo, os mais vendáveis possíveis, com mais atributos e qualificações, ou seja, mercadorias melhores a serem “compradas” [...] (ANDRADE; ZECCHIN, 2017, p.77).
Enquanto modelo a ser adotado tem-se a imagem das multitarefas. Bauman (2012) afirma que em vista do grau de incerteza vivenciada na sociedade atual, a formação precisa ser voltada para um sujeito capaz de executar não apenas diferentes funções, mas principalmente realizá-las ao mesmo tempo. Em decorrência, ampliam-se simultaneamente as possibilidades de satisfações a partir do contato com diferentes estimulações que, provocam ações variadas por parte do vivente, potencializando o desenvolvimento de diferentes tipos de habilidades que não podem ser avaliadas aprioristicamente, visto que não sabemos quais delas poderão ser úteis em um futuro próximo.
Paradoxalmente, o estímulo à diferença e pluralidade acaba por ser intensificado a partir da centralização no eu que passa a ser a chave para verificação do sucesso da formação colocada em marcha. Discursos como “seja você mesmo” são amplamente disseminados e aceitos socialmente. O que está historicamente construído não se configura como garantia de bons resultados na vida presente. Por isso, afirma Bauman (2010b, p. 53-54):
É necessário, ao contrário, ter ideias inusitadas, apresentar projetos fora do comum, nunca propostos antes, e sobretudo ter a vocação dos gatos para seguir seus próprios caminhos solitários. Dificilmente se adquirem e se aprendem tais virtudes nos livros-texto (à parte os manuais que desafiam o conhecimento e a sabedoria herdados e infundem a coragem de viver na solidão). Por definição, tais dotes são desenvolvidos a partir do “interior”, liberando e desenvolvendo “forças interiores” que se esconderiam na própria personalidade, e que só esperam ser despertadas e acionadas (grifos nossos).
A partir de tal contexto, qual seria a função dos professores? Para compreendermos o impacto das mudanças nessa questão, precisamos partir da premissa que o autor utiliza como forma de ilustrar a educação no mundo contemporâneo. O autor aponta que a educação moderna pode ser entendida como uma espécie de míssil balístico que possui objetivos previamente traçados, bastando aos diferentes agentes educativos dar e garantir condições para que uma trajetória adequada e previsível atinja a sua finalidade. Para tanto, são necessários conhecimentos específicos que tem a função de auxiliar para que impedir ou minimizar a incidência de variáveis que possam interferir no processo.
Porém, no mundo contemporâneo, tal metáfora perde o seu sentido. Diferentemente de alvos fixos passíveis de serem previstos no alcance a partir de análise de distância e velocidade, vivemos um contexto em que os alvos são móveis e, portanto, impossíveis de serem atingidos a partir de uma análise voltada apenas para a previsão e controle. Desse modo, conforme indica Bauman em entrevista a Porcheddu (2009, p.672), a educação e aprendizagem ganham novos contornos:
Os mísseis inteligentes, portanto, diferentemente dos velhos artefatos balísticos, aprendem no ar. Assim, devem ser inicialmente dotados da capacidade de aprender e de aprender de modo rápido. Isso é óbvio. O que é menos evidente, se bem que não menos importante dentro de uma rápida capacidade de aprendizagem, é todavia a capacidade de esquecer instantaneamente o que se aprendeu antes [...] Aquilo que os "cérebros" dos mísseis inteligentes não devem nunca esquecer é que o conhecimento adquirido é eminentemente eliminável, somente eficaz até uma nova ordem e útil apenas temporariamente, e que a demonstração do sucesso está em não deixar escapar o momento em que o conhecimento adquirido não é mais útil e deve ser eliminado, esquecido e substituído (grifo nosso).
Os mesmos princípios também podem ser observados quando pensamos na posição do educador. Ele não será mais visto como o porta voz do conhecimento verdadeiro ao qual todos os não iluminados (a-lunos) devem seguir. Na sociedade de consumo, não se buscam mais professores que orientem em um percurso único e antecipadamente determinado, mas sim, consultores que ensinem os indivíduos a caminhar. Treinadores (coaching) que “[...] devem (e querem) ajudá-los a escavar em profundidade seu próprio caráter e sua própria personalidade [...]” (BAUMAN, 2010b, p. 54), considerada como a maior riqueza para o enfrentamento das incertezas do contexto contemporâneo.
Esse ponto está atrelado ao modelo de competências que como veremos na próxima seção será proposto como princípio educativo pela BNCC. Ao mesmo tempo em que o conhecimento é tomado como condição fundamental para o desenvolvimento das pessoas, é necessária a aquisição de ferramentas práticas que possam conferir a dimensão imaterial efetividade em termos de resultados.
A partir desse modelo, articula-se a formação a ser realizada pelas diferentes instituições educativas com a orientação ofertada pelo mercado que passa inclusive a ofertar modelos de transmissão (conforme indicado anteriormente) que poderiam garantir uma melhor adequação às necessidades práticas observadas no cotidiano no trabalho (BENDASSOLLI, 2009).
Porém, se o contexto em que vivemos a dimensão do trabalho está intimamente relacionada com o consumo, a formação para o trabalho passa a ser também constituição de uma subjetividade pautada por elementos como a volatilidade, o descarte, a privatização e o individualismo, sendo estes fundamentais para a manutenção de uma sociedade de consumidores.
Assim, de modo sintético, vê-se uma mudança importante no que tange aos processos formativos. Primeiro, de uma educação voltada para o conhecimento historicamente construído para o desenvolvimento de habilidades subjetivas dos indivíduos. Isso se vincula a um projeto de uma sociedade do e para o trabalho (que demanda níveis de integração e comunicação e, portanto, coletividade) para uma sociedade do consumo (vivência individual e solitária). Essa passagem gera impactos à construção dos projetos pedagógicos escolares (em seus diferentes níveis de formação) e com isso, à configuração da instituição escolar e o lugar do educador envolvido no processo.
Princípios Formativos da BNCC em Análise
Podemos observar no que diz respeito ao documento propositivo, a BNCC faz uma série de menções sobre a relação trabalho e consumo. Segundo indicado pela proposição da BNCC, essa articulação com o contexto do trabalho é justificada na própria Constituição Federal – que aponta a relação da educação com o desenvolvimento da pessoa, o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho – como também para a LDB 9394/96, que indica a necessidade da educação fornecer meios para o indivíduo progredir no trabalho e em estudos posteriores.
Somado a isso, o documento realiza um diagnóstico pontuando, por exemplo, que o atual ensino médio possui um excesso de conteúdos curriculares que se encontram distantes pedagogicamente “das culturas juvenis e do mundo do trabalho” (BRASIL, 2018, p. 461), o que em última análise, justificaria, segundo o documento, a perda de motivação do estudante, servindo de motor para a evasão escolar. Tal apontamento motivaria uma nova direção para a formação que, por sua vez, demandaria conceitos diferentes daqueles que vem sendo preconizados atualmente.
Como uma das formas de enfrentamento dessa questão, o documento defende que no contexto escolar nas diferentes etapas da educação formal (educação infantil, fundamental e médio), os sistemas e redes de ensino devem incorporar aos seus currículos e propostas pedagógicas, elementos que afetem a vida contemporânea. A partir disso, a BNCC propõe diferentes temas, cada um deles devidamente vinculados a regulamentações e leis específicas, sendo que dentre eles encontram-se a educação para o consumo, educação financeira e fiscal, como também, a questão do trabalho.
Tomando esse último item como ponto de investigação, a primeira articulação proposta com o campo do trabalho se encontra logo no início do documento ao descrever as competências gerais da educação básica, consideradas importantes para a garantia do direito do desenvolvimento e aprendizagem, além de encontrar-se alinhada à agenda de proposta pela Organização das Nações Unidas (ONU) para a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável composta por 17 objetivos e 167 metas que incluem a dimensão educativa (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS 2015).
Nas teses que fundamentam o documento, as quais descrevem as dez competências gerais da educação básica, o sexto item faz referência direta à questão do trabalho. É indicada a necessidade da apropriação de conhecimento e experiências que possibilitem o entendimento das relações próprias ao mundo do trabalho. Entende-se que através disso será possível ao indivíduo fazer escolhas que estejam alinhadas ao exercício de cidadania e projeto de vida a partir de uma condição de liberdade, autonomia e consciência crítica.
Porém, mais do que a expressão de forma direta, observa-se que enquanto conceito fundamental para a proposta pedagógica, a adoção do termo “competência” como base para o tratamento didático proposto para as três esferas da educação básica, mostra a interrelação entre educação e trabalho. Enquanto definição, o documento mostra a preocupação em mobilizar conhecimento, habilidades, atitudes e valores “para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício de cidadania e do mundo do trabalho” (BRASIL, 2018, p. 8, grifo nosso).
Para além da questão legal e tentativa de resolução de tais aspectos, o documento também indica que a adoção do conceito de competência como fundamento pedagógico mostra também um alinhamento da proposta com o que vem sendo indicado pelos organismos internacionais como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a ONU, de forma manter uma aproximação do Brasil com os objetivos educacionais de um mundo cada vez mais globalizado.
Machado (1998, p. 80) realizou um estudo acerca do conceito no qual indica que ele é uma forma de representar “[...] um conjunto das práticas sociais que têm definido o modo através do qual as empresas e o mercado de trabalho têm feito a gestão da força de trabalho”. Tal entendimento ganhou força a partir da ação de organismos internacionais como o Banco Mundial e a Unesco que tomaram o conceito de competências como paradigma das estratégias curriculares e da gestão da formação humana e profissional. Assim, como observa Deluiz (2001, p. 12):
Neste modelo importa não só avaliar a posse dos saberes escolares ou técnico-profissionais, mas a capacidade de mobilizá-los para resolver problemas e enfrentar os imprevistos na situação de trabalho. Os componentes não organizados da formação, como as qualificações tácitas ou sociais e a subjetividade do trabalhador assumem, no modelo das competências, extrema relevância.
A presença de tal concepção na BNCC constitui uma retomada de um preceito já presente nos PCN que em seus princípios fundamentais, ao realizar uma leitura acerca das demandas emergentes no final do século XX, afirmava que:
[...] Não basta visar à capacitação dos estudantes para futuras habilitações em termos das especializações tradicionais, mas antes trata-se de ter em vista a formação dos estudantes em termos de sua capacitação para a aquisição e o desenvolvimento de novas competências, em função de novos saberes que se produzem e demandam um novo tipo de profissional, preparado para poder lidar com novas tecnologias e linguagens, capaz de responder a novos ritmos e processos [...] (BRASIL, 1997, p. 27).
Nessa mesma direção, considerando as demandas no contexto histórico e cultural atual, a BNCC aponta para um modelo de formação que ultrapassaria o acúmulo de informações, formulando um perfil para o indivíduo em formação: criativo, comunicativo, analítico-crítico, participativo, aberto ao novo, colaborativo, resiliente, produtivo e responsável. Tais características estariam articuladas com um modelo educacional diferenciado, pois ele:
Requer o desenvolvimento de competências para aprender a aprender, saber lidar com a informação cada vez mais disponível, atuar com discernimento e responsabilidade nos contextos das culturas digitais, aplicar conhecimentos para resolver problemas, ter autonomia para tomar decisões, ser proativo para identificar os dados de uma situação e buscar soluções, conviver e aprender com as diferenças e as diversidades (BRASIL, 2018, p. 14).
Observa-se pela passagem acima que o foco da formação escolar a ser materializada no currículo mantém a mudança de vetor já indicada pelos PCN: dos conhecimentos transmitidos e proporcionados pelo contexto escolar para um olhar para capacidades individuais que parecem, discursivamente, nos caminhos propostos pelos documentos, ser independentes em seu caminho de constituição. Elege-se, assim, prioritariamente uma visão de indivíduo que parece encontrar-se independente das condições histórico-culturais e das relações sociais. Conforme afirmam Carvalho, Silva e Delboni (2017, p. 485):
Esse modelo de base é, em verdade, o rosto do cidadão do mundo, ou o rosto que as forças dominantes econômicas, políticas e sociais almejam. Assim, esse rosto buscado toma como parâmetro o quadrilátero aprendizagem-competência-qualificação profissional-empregabilidade, sendo a aprendizagem convertida em competências que visam, nessa perspectiva, à obtenção de qualificações para garantir a empregabilidade máxima e, num círculo viciado e vicioso, é transformado/transportado para itens de aferição de “desempenho” em avaliações de larga escala.
Para compreender essa articulação, seguimos a problematização realizada, observando que o conceito de competência se encontra articulado com a ideia de “habilidade”, ambos presentes desde a LDB 9394/96. A BNCC indica que para cada temática curricular (ou seja, os conteúdos específicos, conceitos e processos trabalhados ao longo da educação básica) serão contempladas um conjunto de habilidades específicas de acordo com as particularidades e o contexto em que se apresentam.
As habilidades são apresentadas segundo a necessária continuidade das aprendizagens ao longo dos anos, crescendo progressivamente em complexidade. Acrescente-se que, embora as habilidades estejam agrupadas nas diferentes práticas, essas fronteiras são tênues, pois, no ensino, e também na vida social, estão intimamente interligadas (BRASIL, 2018, p. 84).
Pela citação acima é possível perceber que as habilidades, de certo modo, segundo a proposição do documento, materializam a articulação entre as aprendizagens com a vida social. Para tanto, elas encontram-se articuladas a partir de três campos, sendo eles “práticas”, “cognitivas” e “socioemocionais”. Dessa forma, a formação pretendida pelo modelo de educação básica teria a capacidade de contemplar a totalidade das dimensões humanas.
Enquanto síntese, as habilidades relacionam-se com a esfera do “saber fazer”, entendido como um dos princípios fundamentais da aprendizagem visto que é ele que possibilita contextualização dos saberes nas práticas, de modo que a aprendizagem na educação básica “[...] inclui tanto saberes quanto a capacidade de mobilizá-los e aplica-los” (BRASIL, 2018, p. 12).
O campo do “saber fazer” expressa uma ampla gama de conhecimentos caracterizados como procedimentais que diferem da apreensão de conceitos. Conforme indica os PCN, trata-se da capacidade do sujeito em formação construir “[...] instrumentos para analisar, por si mesmos, os resultados que obtêm e os processos que colocam em ação para atingir as metas a que se propõem” (BRASIL, 1997, p. 52).
Tal concepção traz à tona a preocupação não apenas com os fundamentos da ação (que remetem à dimensão conceitual), como também, aos seus efeitos, seus resultados. Ao trazer o debate acerca dos possíveis modos de “fazer”, a proposta formativa aproxima-se das discussões acerca da performance. Esta, por sua vez, está intimamente relacionada não apenas com o campo dos procedimentos, como também enquanto expressão de atitudes e valores.
Se em um primeiro momento da história da educação brasileira, a defesa dos conteúdos escolares possuía destaque, observa-se que, segundo os dois documentos analisados, a dimensão atitudinal assume um papel de destaque em um mesmo patamar de importância. Para tanto, destacam que é necessário valorizar na formação educacional elementos subjetivos que apontariam para a necessidade da escola se fazer presente como motor, disparador ou incentivador do desenvolvimento da personalidade do indivíduo. Por razão, termos que remetem ao campo subjetivo (como autonomia, auto regulação, emoções, etc.) passam a fazer da proposição curricular, sendo citados e indicados pelos referidos documentos.
A partir da análise realizada, é possível entender que as atitudes a serem desenvolvidas são aquelas que levam a determinados resultados que implicam na análise de percurso para obtenção de certo patamar de desempenho. Para sua realização, a visão de professor se aproxima do consultor colocada como uma das tarefas do educador contemporâneo que se configura como um especialista, capaz de acompanhar e indicar os rumos para um “sucesso” do aluno, que pode ser visto por exemplo, na entrada em um curso superior, a obtenção de um índice elevado em provas oficiais (como o Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM) ou mesmo na capacidade de colocação no mercado de trabalho (independentemente do modo e da condição em que isso aconteça, visto que a análise do contexto organizativo possui papel secundário). Tal lógica finalista entende que potencializando os sujeitos em formação para serem capazes de atingir objetivos socialmente traçados, a escola estaria por fim, cumprindo seu papel social.
Assim, as atividades escolares devem ser direcionadas para a formação de sujeitos capacitados para enfrentar as complexidades de nosso tempo e realizar ações as quais, agindo sobre si mesmo remodelar as condutas existentes ou adquirir novos modos de ação, ou seja, aumentando seu potencial de performance (BENDASSOLLI, 2001). Temos aqui um problema, visto que essa concepção parece pressupor, como bem afirma Bauman (2008c), que os indivíduos sejam capazes de buscar soluções biográficas para problemas sistêmicos, o que consistiria tal tarefa na atualização do mito de Sísifo. Desse modo, a proposta de formação educativa escolar coloca o peso para o enfrentamento e possibilidades de resolução dos problemas contemporâneos à sorte dos próprios indivíduos.
Por fim, tal ponto nos dirige a discussão sobre as finalidades da aprendizagem. Sobre esse ponto, a visão de educação estaria voltada fundamentalmente sobre a noção de “aprender a aprender” que também já havia sido apresentada nos PCN e fazia parte dos pilares da educação para o século XXI pela Unesco. A partir de tal visão, constrói-se uma nova tarefa para a educação básica: “[...] garantir condições para que o aluno construa instrumentos que o capacitem para um processo de educação permanente” (BRASIL, 1997, p. 25).
O discurso da necessidade de uma educação permanente faz sentido em um mundo em constante mudança e para a qual os indivíduos precisam se reformular continuamente e, portanto, aprender coisas novas e desenvolver-se, para atendimento das novas demandas provindas do contexto de flexibilidade.
Na BNCC, o termo aparece sempre vinculado como uma das competências gerais e atrelado à resiliência, responsabilidade e autonomia. Observa-se que se trata de uma qualidade fundamental que possui relação com a tomada de decisão e a adoção de atitudes éticas e responsáveis. Estas características, vistas a partir da ótica da sociedade do conhecimento e da performance, atrelam-se a um projeto de Estado para a educação que inclui uma reconfiguração da dimensão individual, assim sintetizada por Bendassolli (2009, p.113-114):
[...] se as pessoas são instruídas a encontrarem por si mesmas, por meio de suas personalidades, seu lugar na economia ou no mercado de trabalho, sem o suporte do Estado, então elas são também incentivadas a tomarem todas as medidas necessárias para sua “educação”, alijando o Estado de ter de investir em recursos nesse sentido [...].
Alçada a traço subjetivo, a flexibilidade parece encontrar em contraposição à rigidez de outros tempos que demarcava lugares específicos a serem exercidos ao longo da vida, construindo alternativas às metamorfoses do mundo do trabalho. Essa marca encontra-se assim descrita nos PCN ao indicar um dos objetivos da escola:
Um ensino de qualidade, que busca formar cidadãos capazes de interferir criticamente na realidade para transformá-la, deve também contemplar o desenvolvimento de capacidades que possibilitem adaptações às complexas condições e alternativas de trabalho que temos hoje e a lidar com a rapidez na produção e na circulação de novos conhecimentos e informações, que têm sido avassaladores e crescentes. A formação escolar deve possibilitar aos alunos condições para desenvolver competência e consciência profissional, mas não restringir-se ao ensino de habilidades imediatamente demandadas pelo mercado de trabalho (BRASIL, 1997, p. 34, grifo nosso).
Sobre esse ponto Vieira e Feijó (2018, p. 37) indicam que a BNCC reitera elementos já presentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais, porém, a partir de um novo contexto de demanda social. Se em um primeiro momento, a necessidade de aprender novos modos de aprender encontra-se atrelada a construção de alternativas ao mercado de trabalho cada vez mais restritivo, nos dias de hoje, tal exigência parece mostrar uma nova finalidade:
[...] os conteúdos já eram deslocados ou ficavam – ficam – subsumidos às competências, pois o importante era – é – “aprender a aprender”. Nada mais de acordo com as novas exigências da produção capitalista. Nada mais de acordo com a vontade de padronização dos processos de ensino desejados pelo capitalismo globalizado. Nada mais de acordo com a formação de “escolhedores livres”.
Desse modo, mais do que uma passagem e mudanças em termos de finalidades formativas, o que pode ser observado é a adoção da formação para o trabalho de estratégias próprias da sociedade de consumo. O discurso que movimenta a lógica de desenvolvimento de determinados modos de ação ou mesmo de espécies de kits identitários (vide o que é apontado por ROLNIK, 1997) fomentados por sistemas de ensino vendidos a partir de selos de qualidade, amplifica a transformação do homem em mercadoria, dessa vez, não apenas a partir de estratégias disciplinares, mas principalmente, a partir da atuação e agenciamento de seu desejo.
Considerações Finais
Partindo do pressuposto de que, no contexto contemporâneo, o mercado assuma um lugar de importância na referência para a construção de modos de vida, as instituições sociais passariam a voltar-se para a formação de sujeitos atrelados a tais valores, de modo a perpetuar e reiterar um modelo.
O que observamos na investigação realizada parece mostrar que as mudanças sociais apontadas nas análises críticas realizadas por Zygmunt Bauman estão presentes na política colocada em movimento pelo governo brasileiro expressada pelos parâmetros formativos para a educação básica desde a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais de 1997. Assim, vê-se que os valores e discursos correntes no contexto atual possuem íntima relação com a consolidação de uma sociedade voltada para o consumo, tendo na preparação para o trabalho o seu elemento mediador e na relação com o desenvolvimento de características individuais e sociais a condição para sua materialização.
Quanto a questão do trabalho, para além de uma formação que o considere como fundamento educativo, é possível observar nas duas propostas – PCN e BNCC - uma aproximação do conceito de trabalho com o de emprego, ou ainda, com a capacidade de obtenção de renda. Entendemos que os documentos expressam a ideia de que mais do que formar para a inserção no campo formal do trabalho, torna-se fundamental a preparação para enfrentamento solitário de inclusão produtiva, reiterando valores presentes em tempos de precarização do trabalho.
Isso acontece, em especial, pela ausência nos documentos de uma análise crítica do trabalho que inclua a sua capacidade e potencialidade enquanto princípio educativo. Transformado em um meio para que novos nichos educativos de mercado possam atuar, a formação para o trabalho, conforme apontado acima, é minimizada em formação para o emprego, em pílulas (como, por exemplo, em cursos de curta duração), passíveis de ser adquiridas quando a enfermidade (desemprego) bate à porta.
Assim, se no contexto dos PCN, termos como empregabilidade e uma atualização da teoria do capital humano faziam-se presentes, atualmente, observa-se a presença do discurso de empreendedorismo que passa a ser amplamente difundido no campo educacional em suas diferentes modalidades (da educação infantil ao ensino superior). Para a consolidação de tais ideias, investir na disseminação de um modelo de sujeito possuidor de determinadas características que possuem valor (de mercado), torna-se tarefa fundamental a ser colocado em movimento pela educação escolar.
Concomitantemente, como bem afirma Pontes (2014), é importante ressaltar que mesmo com um direcionamento social para a perpetuação de uma lógica de construção e manutenção do indivíduo enquanto objeto (e portanto, passível de venda e aquisição), é possível identificar nos escritos de Zygmunt Bauman que a educação tem como potencial, ainda que cerceado e limitado no contexto atual, a servir de mola propulsora para transformações dos valores vigentes, fomentando a capacidade crítica e a apropriação de novas ideias que podem servir de base para a construção de um sociedade mais inclusiva e participativa politicamente.
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Correspondência
Rafael Bianchi Silva – Universidade Estadual de Londrina – Rodovia Celso Garcia Cid - Pr 445 Km 380 - Campus Universitário, CEP 86057-970, Londrina, Paraná, Brasil.