Resenha do Livro: 17 contradi��es e o fim do capitalismo

 


Daniele Cruz

Mestre em Educa��o, Professora na Secretaria de Educa��o do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

andreedan@ig.com.br

 

Recebido em 16 de agosto de 2018

Aprovado em 30 de outubro de 2019

Publicado em 17 de dezembro de 2019

 

A import�ncia do livro 17 contradi��es e o fim do capitalismo, de David Harvey, � relativa ao fato de abordar criticamente a quest�o do capitalismo e suas intensas contradi��es. Caracterizado pelo pr�prio autor como o livro mais perigoso que j� escreveu, a obra traz elucida��es sobre as crises, sobre as cada vez maiores e agudas tentativas de reprodu��o do capitalismo, sobre capital e trabalho com uma vis�o bastante atual e com exemplos espec�ficos desses aspectos inseridos na sociedade atual. Trata-se, portanto, de uma obra desafiante, pois cuida de um assunto em movimento, e que caminha a passos largos. Parte da trajet�ria investigativa do autor, este complementa outros de seus trabalhos, que tratam de acompanhar historicamente os arranjos do capital no mundo contempor�neo.

O autor traz inicialmente elucida��es sobre as crises e como elas s�o essenciais para o capitalismo, para que as instabilidades apare�am, para que as fragilidades sejam revistas, e principalmente pra que sejam analisadas as dr�sticas mudan�as decorrentes dela em todos os segmentos da sociedade, sejam institui��es, ideologias dominantes, processos, tecnologia, pol�tica, enfim, todo o entorno, o que faz esse trabalho ser ainda mais valoroso no momento presente. �As crises abalam profundamente nossas concep��es de mundo e do lugar que ocupamos nele.� (Harvey, 2016, P.9)

A partir da�, ap�s citar Marx (1969), Harvey conceitua contradi��o para que possa de fato trazer as 17, t�tulo do livro, e deixa claro que as contradi��es n�o s�o todas ruins, e que n�o tem inten��o de dar aqui apenas conota��es negativas, pois para o autor, elas podem ser fontes de mudan�as pessoais e sociais. E frisa �as contradi��es t�m o p�ssimo h�bito de n�o se resolveram, apenas se deslocarem� (Harvey, 2016, p.17), voltando a esse �princ�pio� em outros momentos da obra. E d�, como objetivo do presente trabalho, identificar as contradi��es internas do capital que foram respons�veis pelas crises recentes e que d�o a entender que n�o h� sa�da sem uma devastadora destrui��o no mundo.

Dividido em tr�s partes, na parte I �As contradi��es fundamentais�, o autor traz sete delas, sendo 1. Valor de uso e valor de troca; 2. O valor social do trabalho e sua representa��o pelo dinheiro; 3. Propriedade Privada e Estado capitalista; 4. Apropria��o privada e riqueza comum; 5. Capital e trabalho; 6. Capital como processo ou como coisa; 7. A unidade contradit�ria entre a produ��o e a realiza��o, e enfatiza que essas �primeiras sete contradi��es s�o fundamentais porque o capitalismo simplesmente n�o funciona sem elas. Al�m disso, est�o ligadas de tal maneira que � imposs�vel modificar substancialmente e muito menos abolir qualquer uma delas sem modificar ou abolir as outras.� (Harvey, 2016, p.25).

E segue, de maneira bem did�tica, explicando ponto a ponto e trazendo exemplos da vida cotidiana, como por exemplo, ao comentar a sa�de e educa��o, onde o valor de troca predomina cada vez mais sobre os aspectos do valor de uso. Quanto valor de troca, seria necess�rio para produzir os usos desses itens?

O que o leva � contradi��o seguinte a respeito do valor social do trabalho e sua representa��o pelo dinheiro. O valor de troca requer uma medida de �quanto� as mercadorias valem em rela��o �s outras. Essa medida chama-se �dinheiro�, e o usamos sem de fato refletir sobre ele. Assim, o autor destaca que dependemos do trabalho dos outros para obter valores de uso para viver.

Esse �dinheiro�, segundo Harvey , tem tr�s fun��es, como dinheiro-mercadoria, dinheiro para circula��o e dinheiro fiduci�rio.

Na contradi��o 3 � exposta a rela��o jur�dica, onde os indiv�duos tem direitos de propriedade privada adquiridos e um quadro de leis e costumes para sua prote��o, com interven��o do Estado, e na 4 fica evidente que h� uma liga��o entre a perpetuidade da forma dinheiro e dos direitos de propriedade privada, pois o Estado emite a moeda, meio de troca, o que consequentemente, constitui a base para a forma��o da classe capitalista, que depende do capital para se reproduzir principalmente atrav�s da mercantiliza��o da for�a de trabalho, o que nos leva � contradi��o 5.

A sexta contradi��o, que traz o questionamento do capital como processo ou como coisa, tem na interpreta��o do autor a vis�o de que deve ser compreendido como ambos, pois quando a mercadoria � vendida, o capital retorna a sua forma-dinheiro, e nesse fluxo cont�nuo, o processo e as coisas mant�m uma rela��o de depend�ncia.

Neste momento, o autor explica a tend�ncia acelera��o, a obsolesc�ncia programada, o modismo e outros aspectos enraizados na cultura capitalista.

A s�tima e �ltima das contradi��es chamadas de fundamentais pelo autor, refere-se � unidade contradit�ria entre produ��o e realiza��o, ou em outras palavras, o valor agregado na produ��o s� se efetiva quando se vende o produto no mercado. A circula��o cont�nua do capital depende da passagem bem sucedida por esses dois momentos: de produ��o e de realiza��o, onde o autor comenta os detalhes do livro I e II de O Capital (Marx,1976,1978).

Na parte II, tem-se o que o autor chama de �As contradi��es mut�veis�, onde ele engloba outras 7 contradi��es, a saber: 8. Tecnologia, trabalho e descartabilidade humana; 9. Divis�es do trabalho; 10.Monop�lio e Competi��o: Centraliza��o e Descentraliza��o; 11. Desenvolvimentos Geogr�ficos desiguais e produ��o de espa�o;12. Disparidades de riqueza e renda; 13.Reprodu��o social e 14.Liberdade e domina��o.

Esses t�picos s�o surpreendentemente contempor�neos e marcados pela face cruel e utilitarista do capital e novamente de forma bem did�tica e orquestrada, o autor os comenta com exemplos plaus�veis dentro da realidade da sociedade em que vivemos. Harvey (2016, p.90) afirma que �as contradi��es mut�veis evoluem de modo diferente e fornecem grande parte da for�a din�mica que est� por tr�s da evolu��o hist�rica e geogr�fica do capital.�

Ao tratar na contradi��o 8 que os aumentos dr�sticos de produtividade s�o mais um dos polos de movimentos contradit�rios, o autor explica que a mudan�a tecnol�gica nunca � gratuita ou indolor, que � importante se perguntar quem ganha com a cria��o e quem arca com o impacto da destrui��o, citando Schumpeter (1942). Ainda dentro dessa contradi��o o autor aborda os cinco imperativos tecnol�gicos dominantes, que s�o a organiza��o da coopera��o e das divis�es de trabalho para maximizar o lucro, a necessidade de facilitar a acelera��o da circula��o do capital, as tecnologias de produ��o e dissemina��o do conhecimento para armazenar e recuperar dados, como fundamentais para a perpetua��o do capital, as finan�as e o dinheiro como dom�nio crucial para o funcionamento do capital e finalmente a quest�o do controle do trabalho e da m�o de obra.

Na contradi��o 9, Harvey (2016, p.111), afirma que �o capital se apoderou da divis�o do trabalho reconfigurando-a radicalmente� e por isso a incluiu como contradi��o mut�vel e n�o como fundamental como as sete primeiras, pois esta est� sempre em revolu��o. Aqui o autor cita ainda Marx (1981) e Braverman (1987).

Monop�lio e competi��o; centraliza��o e descentraliza��o s�o a t�nica da d�cima contradi��o, onde o autor trata da quest�o da concorr�ncia e diz que �o que falta na discuss�o sobre o monop�lio � o conceito e a realidade de poder de monop�lio de classe (poder coletivo do capital), inclu�das as rendas do poder de monop�lio, como aplicado nos processos econ�micos e pol�ticos�. (Harvey, 2016, p. 130).

A contradi��o 11 trata dos �desenvolvimentos geogr�ficos desiguais e produ��o do espa�o�, onde Harvey reafirma o esfor�o do capital para produzir uma paisagem geogr�fica favor�vel a sua reprodu��o, e que para isso n�o prescinde do interm�dio dos poderes estatais. E traz exemplos de condom�nios, rotas de transporte, a valoriza��o e desvaloriza��o de cidades, tendo como consequ�ncia concentra��es desiguais regionais de riqueza, poder e influ�ncia.

J� na contradi��o 12, com rela��o a �disparidades de renda e riqueza�, o autor traz dados de an�lises de declara��es de imposto de renda americanos para tratar da disparidade dr�stica de renda, que s� vem se elevando desde 1970.

A contradi��o 13, reprodu��o social, aborda explicitamente a contradi��o entre as condi��es necess�rias para garantir a reprodu��o social da for�a de trabalho e as condi��es necess�rias para reproduzir o capital, que, segundo o autor, sempre existiu, mas nos dois �ltimos s�culos ela evoluiu e tem possibilidades perigosas, complexas, de longo alcance e desiguais. Aqui Harvey cita al�m de Adam Smith (1996), a teoria do capital humano, de Becker (1994).

A �ltima das contradi��es mut�veis, a d�cima quarta, Liberdade e domina��o, trata de ideologias e de como elas fortalecem o capital. O autor diz que �esses dois termos antag�nicos situam-se nos extremos de uma contradi��o que adota formas sutis, cheia de nuances, para n�o dizer disfarces (a domina��o pode e mascarar de consentimento, ou e estabelecer por persuas�o e manipula��o ideol�gica)�. (Harvey, 2016, p. 196).

Finalmente na parte III, nas chamadas �contradi��es perigosas�, o autor diz que elas podem ser consideradas potencialmente fatais e mais uma vez cita Marx (1969) ao dizer que este previu que o capital acabaria ruindo sob o peso de suas pr�prias contradi��es internas.

Para o Harvey (2016) autor o capital continuar� funcionando para sempre, mas provocando uma degrada��o progressiva da terra e um empobrecimento em massa, aumentando a desigualdade e a desumaniza��o. E, assim, apresenta os tr�s �ltimos t�picos, as contradi��es que ele caracteriza como �crescimento exponencial infinito�, �a rela��o do capital com a natureza� e �a revolta da natureza humana: aliena��o universal.�

O primeiro deles, crescimento exponencial infinito, a contradi��o 15, j� tem uma explica��o no pr�prio subt�tulo, pois o capital gira em torno do pr�prio crescimento, o que leva o autor a questionar se � poss�vel esse crescimento ser perp�tuo. A partir da� trata das an�lises de renda, juros compostos, taxas.

Na rela��o do capital com a natureza, a contradi��o 16, ap�s citar as profecias devastadoras que n�o se concretizaram, Harvey comenta que sob a press�o do crescimento exponencial cont�nuo, a degrada��o cancerosa se acelera, e que a rela��o do capital com a natureza e com a natureza humana � extremamente alienante e a aliena��o da natureza � a aliena��o do potencial da nossa esp�cie.

A �ltima contradi��o, de n�mero 17, trata da revolta da natureza humana: a aliena��o universal, onde o autor admite que n�o � imposs�vel que o capital sobreviva at� aqui, ap�s todas as contradi��es enumeradas, mas que o custo dessa sobreviv�ncia se tornar� inaceit�vel para a maioria da popula��o. Ap�s conceituar o verbo �alienar�, Harvey diz que o tema da aliena��o est� presente em muitas das contradi��es j� ditas, e dentro desse significado est� a forma como as pessoas v�o lidar com todos esses acontecimentos e que atitudes tomar�o.

�Enfrentar coletivamente as m�ltiplas aliena��es que o capital produz � uma maneira convincente de se mobilizar contra o motor econ�mico engasgado que leva t�o imprudentemente o capitalismo de uma crise a outra, como consequ�ncias potencialmente desastrosas para a nossa rela��o com a natureza e com os outros.�( HARVEY, 2016, p.255)

Em sua conclus�o, o autor traz as perspectivas de um futuro feliz e controverso a partir do humanismo revolucion�rio, questiona que tipo de humanismo precisamos para transformar o mundo em um lugar diferente, povoados por pessoas diferentes, por uma a��o anticapitalista e complementa que a �nica esperan�a � que a humanidade veja o perigo antes que a podrid�o avance e o danos humanos e ambientais sejam grandes demais para se recuperar. Citando Fanon (1968), diz que sempre h� �lagrimas a serem derramadas, atitudes inumanas a serem combatidas, modos condescendentes a serem descartados, homens a serem humanizados.� (Harvey, 2016, p.266).

 

Refer�ncias

 

 

BECKER, Gary. Human capital: A theoretical and empirical analysis, with special reference to education. University of Chicago Press,1994.

BRAVERMAN, Harry. Labor and Monopoly Capital. Nova York, Monthly Review Press, 1974.

Fanon, Frantz, 1968. The wretched of the Earth. Nova York, Grove Press, 2005.

HARVEY, David. 17 contradi��es e o fim do capitalismo. S�o Paulo, SP: Boitempo, 2016.

MARX, Karl. Theories of surplus value, V.2.Londres, Lawrence and Wishart, 1969.

MARX, Karl. Capital, V.1.Harmondsworth, Penguin, 1976.

MARX, Karl. Capital, V.2.Harmondsworth, Penguin, 1978.

MARX, Karl. Capital, V.3.Harmondsworth, Penguin, 1981.

SCHUMPETER, Joseph. Capitalism, Socialism and Democracy. Londres, Routledge,1942.

SMITH, Adam. A riqueza das na��es: investiga��o sobre sua natureza e suas causas. Trad. Luiz Jo�o Bara�na. S�o Paulo: Nova Cultural, 1996. Vol. I e II.1996.

Correspond�ncia

Daniele Cruz � Secretaria de Educa��o do Estado do Rio de Janeiro � Secretaria de Educa��o do Estado do Rio de Janeiro, Niter�i, CEP 24365-170, Rio de Janeiro, Brasil.