Pedagogia das competências como princípio de organização curricular: “efeitos colaterais” para a educação superior...

 

Competences pedagogy as a principle of curricular organization: "collateral effects" for higher education...


Ricardo Rezer

Professor doutor na Universidade Comunitária da Região de Chapecó. Chapecó, Santa Catarina, Brasil.

rrezer@unochapeco.edu.br - http://orcid.org/0000-0002-2664-9292

 

Recebido em 01 de outubro de 2018

Aprovado em 18 de julho de 2019

Publicado em 29 de março de 2020

 

RESUMO

O objetivo deste ensaio é problematizar a Pedagogia das Competências como princípio de organização curricular para a educação superior. Inicialmente, o texto apresenta considerações acerca de uma ideia de universidade, considerando que a discussão proposta parte, antes de mais nada, de uma concepção e de um projeto de universidade. Logo após, apresenta uma problematização da noção de Pedagogia das Competências como princípio de organização curricular. Este tópico se subdivide em três momentos. No primeiro, apresenta reflexões acerca da etimologia da palavra competência. Logo após, procura demonstrar que “competência” é uma característica humana de segundo nível. Finalmente, apresenta alguns “efeitos colaterais” da Pedagogia das Competências como princípio de organização curricular para a educação superior. Alçar esta lógica (a partir de uma característica humana de segundo nível) como princípio de organização curricular se trata de um grande equívoco, com prejuízos incalculáveis para a educação superior brasileira.

Palavras-chave: Pedagogia; Competências; Educação Superior.

 

ABSTRACT

The purpose of this essay is to problematize the Competences Pedagogy as the principle of curricular organization for the higher education. Initially, the article present considerations on an idea of the university, understanding that the discussion this text start from a conception and a project of the university. Right after, intend develop a problematization of the Competences Pedagogy notion like a principle of the curricular organization. For this, this topic is subdivided in three moments. In the first, present reflections on the “competence” word etymology. Right after, intends to demonstrated that “competence” is a human characteristic of the second level. Finally, present some “collateral effects” of the Competences Pedagogy how principle of the curricular organization to higher education. Put this logic (start from a second level human characteristic) as principle of the curricular organization is a big mistake, with huge loss for the higher education.

Keywords: Pedagogy; Competence; Higher Education.

 

Introdução

Imerso em uma série de discussões e polêmicas, o tema em discussão neste ensaio não é “novo”. Por exemplo, a Resolução N° 7, datada de 31 de março de 2004, que institui as “Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Educação Física” já expressava em seu texto, a ideia de competências. Porém, sua inserção como princípio de organização curricular na educação superior vem ganhando espaço com significativos desdobramentos para os processos de formação universitária, tal como evidenciam os trabalhos de Costa (2005), Santos (2011), Trevisan e Albertti (2015), entre outros.

Desta forma, entendo que a “colonização” da educação superior (e da escola) por esta lógica representa uma demanda contemporânea que merece atenção de distintas comunidades acadêmicas, especialmente em tempos de Exame nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE, e da “implantação” de uma Base Nacional Curricular Comum, ambos, atravessados pela Pedagogia das Competências.

Não pretendo neste ensaio, apresentar as origens da Pedagogia das Competências – tal esforço pode ser observado em trabalhos como o de Trevisan e Alberti (2015). Também não pretendo justificar sua importância – tal como o artigo de Adams, Dorneles e Lauxen (2017). Certamente, não desconsidero que muitos trabalhos já foram produzidos na direção de justificar e sustentar tal lógica, com destaque para Perrenoud (1999, 2000, 2001, 2002). Porém, também cabe destacar que muitas críticas vêm sendo produzidas a respeito deste tema, conforme será abordado ao longo deste texto.

Partindo disso, me coloco na direção de participar deste movimento, destacando alguns elementos (em meu entendimento, perniciosos) da Pedagogia das Competências como princípio de organização curricular para a educação superior. Nessa direção, o objetivo central deste ensaio é problematizar a Pedagogia das Competências como princípio de organização curricular para a educação superior[1].

Inicialmente, apresento considerações acerca de uma ideia de universidade, considerando que a discussão proposta parte, antes de mais nada, de uma concepção e de um projeto de universidade. Após, procuro desenvolver uma problematização da Pedagogia das Competências como princípio de organização curricular. Para tal, subdivido o tópico em três momentos: (i) nos rastros da etimologia da palavra competência; (ii) Competência: característica humana de segundo nível; (iii) Pedagogia das Competências: efeitos colaterais.

Uma ideia de universidade

No seu melhor, a universidade é um modelo pioneiro de fluxos internacionais de ideias, professores, estudantes e livros. Vivemos num mundo globalizado, mas não num mundo homogeneamente globalizado. Existem não apenas lógicas diferentes que determinam o movimento dos fluxos globalizados, mas também diferentes relações de poder por detrás da distribuição dos custos e dos benefícios da globalização. De par com a ganância transnacional existe uma solidariedade transnacional. De que lado estará a universidade? Tornar-se-á numa empresa transnacional ou numa cooperativa ou organização sem fins lucrativos transnacional? (SOUSA SANTOS, 2011, p. 03).

 

Pensar criticamente a questão da Pedagogia das Competências como princípio de organização curricular representa pensar criticamente sobre determinada concepção e projeto de universidade no contemporâneo. Isso significa ponderar acerca dos rumos que a universidade vai tomando em nosso tempo. Para onde vamos? A epígrafe de Boaventura nos permite refletir (com radicalidade) acerca da encruzilhada na qual se encontra a universidade contemporânea. Ou então, já teria ela, a universidade, sido transformada em uma agência de ensino determinada (exclusivamente) por fins estranhos a ela?

Tomando como referência Schneider (1999), parto do princípio de que a universidade, como instituição republicana, representa (ainda) tempo e lugar de reflexão radical sobre a totalidade do que foi posto como conhecimento prático e teórico na sociedade (acrescento, nas sociedades). Tal perspectiva alça a universidade a um nível de diferenciação de outras instituições/agências que se estruturam na sociedade contemporânea. Especificamente, ela se apresenta como uma possibilidade de constante e radical processualidade reflexiva acerca das “coisas do mundo” e sobre si mesma. Ou seja, a universidade pode (ainda e em tese) permitir uma preocupação radical com discussões e problemas que se estabelecem, tanto em seu interior, como na conjuntura na qual se edifica.

A seu modo, Chauí (2003) afirma que ela deveria, tal como a escola, porém em nível mais aprofundado, introduzir alguém ao passado de sua cultura, nas “coisas do mundo”, chamando a atenção para as questões que esse passado engendra para o presente, lembrando que este presente é sempre uma construção, e que, por consequência, não está “dado”. Além disso, deveria colocar estas “coisas do mundo”, ou seja, a tradição na qual ela própria se insere, em crise, abrindo possibilidades para um ruir, um fraquejo, uma queda de falsos valores e esquemas teóricos – conforme Schneider (1999), valores e esquemas teóricos, muitas vezes, santificados cedo demais por deslumbrado atropelo e por impaciência utilitária. Porém, para ele, crise, nada mais é do que tempo de julgamento (crisis) e exercício reflexivo do humano, que possibilita e potencializa a reflexão radical, que promove a autonomia (sempre relativa) e a construção de si pela edificação do próprio saber (SCHNEIDER, 1999).

Lembrando Darcy Ribeiro (1986), o papel da universidade é ser a Casa (em maiúsculo) em que a Nação brasileira se pensa a si mesma como problema e como projeto. De outro modo, ainda acompanhando os argumentos de Darcy Ribeiro, “Universidade para quê?

Levar a sério considerações como estas, representa compreender a universidade como espaço e tempo de pensar o pensamento, pensar o pensado, pensar as possibilidades de mundo, pensar as implicações das escolhas assumidas, pensar os desdobramentos de exigências legais, de imposições ideológicas legalizadas, enfim, concordando com Sousa Santos (2011), representa reconhecer e assumir que a universidade, em seu melhor, foi um lugar de pensamento, tendo em vista, a possibilidade do mundo ser de todos e todas, inclusive, dando vez e voz, às demandas de sujeitos invisíveis (ou invisibilizados) diante da ordem hegemônica vigente.

A noção de competências e a metáfora do iceberg

Ao trazer para este ensaio a ideia do iceberg como um dispositivo para o pensamento, procuro potencializar, pelo uso da metáfora, a compreensão de que temos de tratar com proposições e fenômenos complexos por profundidade – a superfície de problemas complexos pouco nos permite compreender. Ou seja, por mais óbvio que possa parecer, o “encoberto” necessita ser examinado com mais cuidado. Para tal, o exercício da reflexão crítica é fundamental[2].

Certamente, a ideia do iceberg como metáfora não se trata de novidade, tendo sido tratado em vários outros trabalhos acadêmicos (por exemplo, GOULART, 2015). Mesmo assim, apresenta pertinência e fecundidade com relação ao tema em tela – a Pedagogia das Competências como princípio de organização curricular não pode ser analisada “por superfície”, tendo em vista sua projeção no cenário contemporâneo da educação superior, bem como, as “entrelinhas” contidas em sua lógica (como por exemplo, as influências contundentes de diversas fundações e institutos nos rumos do Ministério da Educação).

Assim, a seguir, apresento os três tópicos que se constituem como eixo condutor deste ensaio, na direção de mergulhar na discussão proposta (tal como sugere a expressão alemã, “tauchen in das Eiswasser” – mergulhar na água gelada).

(i) nos rastros da etimologia da palavra competência

O estudo da etimologia pode nos possibilitar uma rica abertura de horizontes, esforço que permite afirmar que o sentido das palavras admite fluidez e ambiguidade, algo própria da condição babélica da linguagem. Ou seja, mergulhar na etimologia da palavra “competência” possibilita afirmar que há elementos que merecem ser analisados com mais cuidado.

Na busca por compreender melhor nossos próprios argumentos, caberia perguntar: o quanto nossas palavras nos pertencem? Qual o sentido de discursos como os que analiso neste ensaio? Quais os fundamentos e possíveis consequências de discursos “oficiais” tais como o da Pedagogia das Competências na educação superior? Perguntas como estas representam importantes horizontes, na medida em que permitem ilustrar nossa disposição em conhecer melhor o que nos rodeia, constituindo-se como antídotos contra a arrogância e a soberba das certezas últimas. Assim, perguntas desta ordem nos colocam na condição de críticos de nosso próprio pensamento, algo muito “saudável” em tempos sectários como o que vivemos.

Nessa direção, cabe atentar para os argumentos de Tugendhat (2007, p. 32), “[...] devemos sempre ter como ponto de partida que não faz sentido discutir sobre o verdadeiro sentido das palavras. O que interessa é distinguir os diversos sentidos possíveis de uma palavra/discurso e ter bem claro para si com que sentido se quer empregá-la”. Portanto, se faz necessário “cuidar” de palavras importantes, na direção de compreendê-las melhor, um esforço mais de acordo com a fluidez e a contingência da linguagem. Neste caso, teorizar representa uma importante possibilidade de intervenção concreta no cotidiano, esforço que exige capacidade para imaginar (em tempos de determinismos) possibilidades de mundo, na direção de potencializar um debate atual e necessário.

“Competência” é uma palavra oriunda do Latim competere, que significa “lutar”, mas também, “procurar ao mesmo tempo”, “coincidir”. Uma palavra que pode ser compreendida também a partir de sua decomposição, com (junto), mais petere (disputar, procurar, inquirir). Ou seja, se refere a perseguir algo, procurar junto com outros. Lembrando Machado (2006, p. 1), é possível dizer que aquele que não sabe buscar junto com outros pode ser considerado incompetente.

Derivações próximas são competitio, que significa tanto acordo quanto rivalidade, o que conduziu, apenas no latim tardio, à ideia de competição; competentia, que remete a proporção, a justa relação, ou à capacidade de responder adequadamente em dada situação. A associação de competência com capacidade conduz a atenção à capacitas, que significa a possibilidade de conter alguma coisa, de apreender, de compreender algo. (grifo meu).

Derivado disso, merece destaque dois aspectos:

(a) competência se refere a uma possibilidade de mundo que se intensifica na medida em que se reduz. Assim, como se refere Machado (2006), podemos afirmar que um motorista é competente em seu ofício. Porém, temos dificuldades de sustentar a ideia de que um cidadão é competente. Ou seja, a noção de competência se associa a especificidade (já de partida), um movimento produzido em situações singulares, sendo difícil formar nessa lógica, um cidadão competente para a vida (considerando a fluidez, bem como, a contingência do mundo contemporâneo).

(b) apenas tardiamente a noção de competição foi incorporada ao sentido da palavra. Desta forma, a ideia de competição atrelada a competência pode ser tensionada, na direção de qualificar nossa perspectiva interpretativa a seu respeito. Assim, há de se considerar com o devido cuidado a ambiguidade do sentido da palavra competência, que pode se referir a ideia de competição, mas também, pode se referir a ideia de buscar junto com outros, em um movimento que pode potencializar o exercício da solidariedade e da alteridade, elementos tão necessários em nosso tempo.

(ii) Competência: característica humana de segundo nível

Concordando com Nóvoa (2000), há possibilidades humanas que são decorrentes de nossa capacidade de pensar, de argumentar e de conhecer o mundo. Portanto, características secundárias (derivações menores de nossa formação, geradas a partir de um repertório mais denso), por vezes, alçadas apressadamente, sem o devido cuidado, à condição de categorias primárias – em tese, categorias mais elaboradas, que representam um lastro (os alemães chamariam de “Grund”), que carrega os fundamentos necessários para a geração de categorias mais específicas, portanto, secundárias.

Ao considerar argumentos desta ordem, é possível trabalhar com a ideia de que “Competência” não é uma característica primária do ser humano, mas sim, uma característica secundária, uma possibilidade humana decorrente de nossa capacidade de pensar, julgar, ler, escrever e movimentar-se no mundo. De acordo com González (2014), competência representa uma capacidade humana que permite explicar e expressar como se mobilizam recursos primários a fim de atuar de forma eficaz num conjunto de situações similares e específicas. Derivado dessa perspectiva, é possível refletir acerca de alguns desdobramentos da lógica da Pedagogia das Competências como princípio de organização curricular para a educação superior.

Um desdobramento pernicioso, entre outros, seria a obliteração da construção de recursos primários que podem ser mobilizados em situações específicas (pois elas, as situações específicas, assumiriam a centralidade da formação). Ou ainda, o distanciamento de experiências que não tenham aplicabilidade direta, algo bastante cultivado na contemporaneidade, solo fecundo para o utilitarismo, o superficialismo e o barateamento conceitual.

Como exemplo, recordo de uma proposição bem conhecida no Estado de Santa Catarina: “O concurso de oratória nas escolas”. Se trata de uma competição escolar que possui diversas fases em âmbito municipal, estadual e nacional, promovida pela JCI – Junior Chamber International. Nela, jovens devem elaborar e ler em público “[...] um discurso encorajador capaz de multiplicar ideias e mobilizar o ambiente onde está inserido”, com o objetivo de “[...] estimular a prática de falar em público, competência necessária para diferenciar-se no mercado de trabalho atualmente” [3]. Chama atenção neste “concurso”, a centralidade da forma em detrimento ao conteúdo – mesmo que conste perifericamente na planilha de avaliação, o conteúdo é claramente colocado em nível de menor importância. Via de regra, ele é reduzido a meio para se chegar a um discurso eloquente, sensibilizador, performático, derivado de “coisas práticas” que apresentem “soluções” (por exemplo, um discurso sobre como acabar com a fome e a miséria no mundo, entre outros temas definidos pela organização do concurso). Portanto, um discurso que tem a intenção primeira de, através de sua performance, “conquistar” o público e os jurados.

Com este breve exemplo, é possível ilustrar como a oratória é alçada, em um contexto específico, a uma condição central. Neste caso, o que se tem para dizer parece ganhar menor importância frente a forma de dizer. Ou seja, a performatividade é alçada à uma condição de significativa importância, uma competência “[...] necessária para diferenciar-se no mercado de trabalho atual”, conforme expresso pela própria JCI.

Certamente, a Pedagogia das Competências não nega o conteúdo nem o conhecimento, mas o desloca radicalmente para uma lógica adaptativa, utilitária e aplicacionista (conhecimento bom é aquele aplicável, de preferência de imediato, que permita a adaptação qualificada do trabalhador ao sistema, tendo como referência um problema específico a resolver).

O problema assume proporções maiores quando, lembrando Nuccio Ordine (2016), percebemos que nem tudo que importa tem “serventia”, no sentido estreito do termo. Porém, percebemos o crescimento de uma indução para a sublimação, indiferença e rejeição do que não for considerado útil e aplicável na resolução de problemas da/na formação universitária. Por outro lado, concordando com Ordine (2016, p. 91), “[...] a experiência do aparentemente inútil e a aquisição de um bem não imediatamente quantificável são investimentos cujos lucros se revelarão a longue durée”, esforço que, ao que parece, não temos mais paciência de cultivar.

Portanto, ao elevarmos uma capacidade secundária como competência à condição de centralidade, por sua especificidade lógica, nos deparamos com vários problemas (efeitos colaterais), conforme será abordado a seguir.

(iii) Pedagogia das Competências: efeitos colaterais

Neste momento, apresentarei algumas reflexões que possibilitam destacar alguns “efeitos colaterais” [4] (entre outros) da lógica da Pedagogia das Competências como princípio de organização curricular para a educação superior.

Efeito colateral 1: a (des) importância das “humanidades”...

Um efeito colateral perceptível deste movimento tem sido a veiculação de um “discurso” que potencializa, sutilmente, a (des) importância das ditas “humanidades” na formação universitária, em nome de conhecimentos (científicos) úteis à resolução de problemas profissionais específicos.

Para Boaventura, considerando a realidade europeia, os critérios de mercantilização do cenário global vão reduzindo o valor das diferentes áreas de conhecimento ao seu preço de mercado, a tal nível que “[...] o latim, a poesia ou a filosofia só serão mantidos se algum Macdonald informático vir neles utilidade” (SOUSA SANTOS, 2011, p. 1).

Os argumentos de Blanch (2013, p. 98-99), a partir da realidade espanhola, apresentam-se em direção semelhante.

En este marco, si la calidad del servicio es función de la satisfacción del cliente, la relevancia de los contenidos programáticos se determina no tanto en función de criterios de profesionales expertos, cuanto de los deseos percibidos y expresados por un estudiantado que, como todo consumidor, está cada vez más informado y consciente de sus derechos y poderes, sin dejar de ser a la vez exigente, seducible, adaptable, flexible y variable. Si se interesa por software avanzado, dos tazas; si no le va la filosofia, se la retira de los estantes del hipermercado académico y se sustituye por otros productos atractivos que garanticen la fidelidad de la clientela. Cuando el mercado demanda hamburguesas, la McDonalds University oferta la exitosa titulación de Hamburguerología, en un tiempo de progresiva extinción de especializaciones con poco gancho mercantil.

Martha Nussbaum (2010), ao tratar da “Crise planetária da Educação”, afirma, a partir da realidade estadunidense que a perda de valor das artes e humanidades parece que vai finalmente cobrando seu preço (não só na universidade). Inclusive, ela arrisca dizer que tal crise possivelmente será muito mais prejudicial ainda para o futuro da democracia mundial. Para ela, estão sendo produzidas profundas alterações naquilo que as sociedades democráticas ensinam aos estudantes, algo que ainda não temos ideia do alcance e das consequências. Se esta tendência persistir, em breve, teremos no mundo inteiro, gerações de máquinas úteis, dóceis, resilientes e tecnicamente qualificadas, criativas naquilo que o status quo permitir, em vez de cidadãos capazes de pensar por si próprios, de pôr em causa a tradição e de compreender o sentido do sofrimento e das realizações dos outros.

Consideradas pelos políticos acessórios inúteis, numa época em que os países têm de desfazer-se do supérfluo para continuarem a ser competitivos no mercado mundial, estas disciplinas desaparecem em grande velocidade dos programas lectivos, mas também, do espírito e do coração dos pais e das crianças. Aquilo a que poderíamos chamar de aspectos humanistas da ciência e das ciências sociais, está igualmente em retrocesso, preferindo os países, o lucro de curto prazo, através de competências úteis e altamente aplicadas, adaptadas a esse objectivo. (NUSSBAUM, 2010)

De forma semelhante, baseados em autores como Goergen (2010), Nusbaumm (2010) e Brandt (2011), Dalbosco e Cenci (2014) sinalizam para a diminuição de disciplinas humanísticas dos currículos (literatura, filosofia, artes, entre outras), em um movimento que assume o crescimento econômico como discurso e passa a adotar como norma, uma formação (por competências) voltada para a adaptação ao sistema. Nessa lógica, a competitividade é assumida como característica “natural” do ser humano, bem como, o sucesso (individual) e a obtenção de lucro (que permita acesso ao consumo), finalidades da formação universitária.

A seu modo Stederoth (2013, p. 13), partindo da realidade alemã, afirma que, quanto mais a universidade se aproxima estruturalmente da condição de uma empresa, mais seus membros assumirão progressivamente uma consciência empresarial, se abstendo da reflexão acerca de tal estrutura (bem como, dos elementos que permitem tal reflexão). Certamente, este movimento se constitui de modo oculto, diminuindo o espaço para a reflexão, num processo aparentemente contínuo, que naturaliza finalidades voltadas para o utilitarismo, o lucro e o individualismo (por mais que discursos dissimulados sinalizem, por exemplo, para a importância de “trabalho em equipe” e das “humanidades” na formação).

Assim, o repertório das “humanidades” passa a fazer parte de uma “estante de livros” cada vez menos consultada no âmbito da universidade (um movimento em escala internacional), uma referência cada vez menos valorizada. Em meio a discursos envernizados que dizem “não podemos jogar a criança, a água e a bacia pela janela”, mais perceptível é a dissimulação que parece alçar, aos poucos, determinadas leituras de mundo a invisibilidade.

Fazendo uma analogia com o futebol, se não podemos mais ver “Pelés” e “Garrinchas” jogando futebol como artistas, vemos surgir cada vez mais jogadores eficientes, experts em resolver problemas específicos do jogo, fisicamente bem treinados e aptos a suportar um jogo de alta intensidade (resilientes). Afinal, não há mais espaço para o lúdico, o drible supérfluo e a perda de tempo com “jogadas improdutivas”, algo que, no fundo, parece representar a alma que vai se desprendendo do corpo, rumo ao esquecimento. Tal como se refere Lenine, na música Paciência, “Mesmo quando o corpo pede um pouco mais de alma, a vida não para”...

Efeito colateral 2: da legalidade à subserviência...

Em meio a um movimento de implantação da lógica da Pedagogia das competências como princípio de organização curricular, cabe pensar como vamos lidar com determinações legais que se colocam como imperativos para a sobrevivência dos cursos de graduação. Cabe lembrar que, a Pedagogia das Competências se coloca como uma imposição legal, fruto de um movimento de globalização neoliberal com desdobramentos significativos para as políticas públicas, com impactos em distintos setores da sociedade, entre eles, para a educação superior[5].

Ao considerar isso, entendo que, se temos de cumprir determinações legais, ao mesmo tempo, devemos tensionar radicalmente seus princípios, bem como, sua lógica interna (neste caso, formação de capital humano adaptado ao nosso tempo como meio para manutenção do sistema – ou seja, o humano tratado como meio), abrindo as entrelinhas dos textos legais, bem como, produzindo uma crítica que se coloque no plano político e epistêmico, esforço que represente uma possibilidade de recuperar o sentido da epistemologia no debate contemporâneo educacional, certamente, sem pretendê-la desvinculada de elementos de ordem política.

Ao que parece, muitos e muitas foram seduzidos pelo canto da sereia. Por outro lado, a subserviência política e cognitiva nunca é uma boa conselheira. Mesmo porque, determinações legais representam perspectivas e possibilidades de mundo, e não o destino inexorável, pois são fruto do cruzamento entre o plano epistêmico, mas também, ético e político, portanto, carregadas de ideologia (por qualquer via, representam decisões derivadas de projetos societários, mais ou menos explícitos em sua estruturação). Uma hermenêutica rigorosa, bem como, nossa possibilidade de estudo, reflexão e pensamento (individual e coletivo) se colocariam como horizontes de possibilidades para enfrentar determinações que vem sendo estabelecidas como princípios de organização curricular na educação superior. Certamente, um desafio nada fácil, mas bem de acordo com o que (ainda) se espera de uma instituição como a universidade.

Ou então, caberia uma analogia com o “Discurso da servidão voluntária”, de Étienne de La Boétie (1530-1563), escrito em 1548 e publicado somente após a sua morte, em 1563. Segundo ele, quem se sustenta com base na servidão, tende a não questioná-la, naturalizando-a ao ponto de desejá-la. Umas das coisas que mais o deixava intrigado se refere ao fato de que os seres humanos subservientes obedecem ao tirano, mesmo quando podem ser prejudicados pelas consequências de sua submissão, algo paradoxal. Pergunto se isso ainda tem sentido ou seria apenas um pensamento do século XVI? Bem verdade que a fluidez do contemporâneo diluiu a tirania nas estruturas, fazendo-a se manifestar de distintas formas, desde pressões de caráter interno, até pressões de caráter externo, cada vez mais, de maneira dissimulada, intensa e legalista.

A meu ver, determinações legais como esta, que impactam de forma decisiva na formação universitária, precisam ser investigadas por uma perspectiva crítica, habitando a pauta do cotidiano de pesquisa da universidade (uma responsabilidade da pós-graduação). Nos cabe, assim, manter a vigilância, deixando aberta a possiblidade do pensamento, da articulação política (interna e externa) e do estudo com profundidade, possibilidades que (ainda) temos para lidar com a complexidade de temas como este.

Efeito colateral 3: o discurso da adaptação e da competitividade como paradigma para a formação...

Se faz sentido afirmar que vivemos em meio a discursos com pretensões de validade, também faz sentido pensar que a ideia de “competição como motor da sociedade” representa mais um destes discursos, cada vez mais aceito – inclusive e especialmente na universidade. Próximo disso, a noção de competência parece se sustentar, via de regra, na ideia de competição, seletividade e adaptação – em um darwinismo social que não parecer ter sustentação.

Mesmo que a ideia de “trabalho em equipe” esteja presente em muitas referências, tais como em Perrenoud (1999, 2000, 2001, 2002), ao analisar a literatura crítica a respeito do tema, é possível perceber que elementos como individualização e conformismo são incorporados a esta lógica, produzindo efeitos de acomodação conceitual que induzem a ideia de operar nesta lógica (adaptação), mais do que a ideia de criticá-la e repensá-la.

Assim, o lado perverso da lógica da Pedagogia das Competências se consolida em uma individualização do sujeito, que acaba criando nos indivíduos um conformismo social (RICARDO, 2010). Tal conformismo parece nos conduzir a um estado de letargia, resignação e aceitação do cenário contemporâneo como irreversível/inevitável (afinal, o que fazer?). Neste caso, nos caberia aceitar e lutar pela sobrevivência e pelas migalhas que nos sobrariam da precariedade do trabalho, da incerteza do futuro profissional e da individualização da responsabilidade com relação à sobrevivência no mercado (MACHADO, 2002). Desta forma, olhar o mundo por um outro viés, imaginar outras possibilidades de futuro, passam a fazer parte da fantasia, de algo fora da realidade, para muitos e muitas, nada mais é que “mero devaneio”. Assim, não podemos, nesta lógica, “perder tempo” em contestar o que parece instituído, refletindo sobre possibilidades de formação assentadas na construção de projetos sociais coletivos e emancipadores (RAMOS, 2001). Portanto, caberia à universidade potencializar a formação de um “novo trabalhador”, mais de acordo com este “novo mundo do trabalho”, afeito a questões como adaptação, competitividade e resiliência.

Porém, assumir uma lógica na qual a adaptação e competitividade sejam o motor da formação universitária destoa radicalmente da ideia de universidade apresentada no tópico inicial deste texto. Nessa direção, lembro de uma frase se Humberto Maturana: se competir é bom, cooperar pode ser muito melhor (2002). Cabe refletir que o mundo contemporâneo é permeado muito mais por situações de cooperação do que por situações de competição. Acerca disso, embora não seja escopo deste texto, caberia a leitura do texto “Uma teoria da cooperação baseada em Maturana” (FRANCO, 2001).

No texto, o autor apresenta argumentos na direção de sustentar a ideia de que a competição se coloca como uma manifestação cultural não determinada pela “natureza humana”. Assim, afirma que a cooperação está na constituição do humano, a meu ver, algo bem de acordo com a ideia de formação humana como possibilidade de construção de mundo comum. Da mesma forma, sustenta que a cooperação está na fundação do que denominamos de sociedade. Para Franco, baseado em Maturana, só pode haver sistema social se houver recorrência de interações que resultem na coordenação de condutas entre os seres vivos que o compõem, quando tal recorrência de interações passa a ser um mecanismo mediante o qual esses seres vivos realizam sua autopoiesis[6]. Neste caso, a cooperação se funda na aceitação do outro como um ser legítimo na convivência de mundo.

Portanto, as tensões entre competição e cooperação representam um tema a ser tratado criticamente na formação universitária, um campo de estudos acerca de condutas humanas que extrapolam a ordem disciplinar de formação. Nesta lógica, se um dos elementos constituintes da Pedagogia das Competências é formar para competir de forma qualificada no mercado contemporâneo, considerando as contribuições de Maturana, a negação do outro passa a ser a lógica de fundo (o fundamento maior) com a qual a formação passa a operar. Seria este então, o télos da universidade contemporânea?

Uma frase bem conhecida parece pertinente para encerrar este tópico: Formar para a competição é formar para a guerra. Quando aprendermos a formar para a cooperação, estaremos formando também para a paz[7]. Sem dúvida, aqui temos um “salto” que ainda devemos dar enquanto humanidade.

Assim, se a ideia de que a vida em sociedade se sustenta mais pela cooperação do que pela competição faz sentido, valeria a pena apostar nisso como horizonte para a educação superior. O exemplo das Universidades Comunitárias representa bem isso. Se assumirem a competição como lógica interna para lidar com a externalidade do mundo, gestarão sua própria destruição como instituições comunitárias. A meu ver, as Universidades Comunitárias somente poderão se tornar viáveis como tal, se aprenderem a cooperar (entre si, por exemplo). Do contrário, morrerão como universidade comunitária e renascerão (se é que já não) como universidade empresa, em um cenário no qual não haverá espaço para todas.

Efeito colateral 4: o conhecimento como “ferramenta”...

Outro aspecto que gostaria de destacar se refere a um dos princípios fundantes da universidade: o conhecimento. Pode-se dizer que instituições entram em crise, na medida em que há um fraquejo, ruptura e/ou deslocamento de seus princípios fundantes. Por exemplo, uma crise na família como instituição se materializa na medida em que há uma ruptura ou fraquejo de seu princípio fundante, o amor. E na universidade, a crise parece se amplificar quando vemos fraquejar ou ruir a crença em seu princípio fundante: o conhecimento (algo que, certamente, se estende à escola).

É possível inferir que, no contemporâneo, há uma desconfiança acerca das potencialidades do conhecimento em profundidade, como se fosse suficiente um conhecimento “útil” e imediato para lidar com desafios do mundo (há casos que poderiam ser denominados até de epistemofobia).

Desta desconfiança para a ideia de conhecimento como ferramenta, há uma distância muito pequena. Via de regra, a ideia de conhecimento como ferramenta para enfrentar os problemas do mundo representa um discurso muito propagado por diversos especialistas da educação, da administração, entre outras áreas. Um dos problemas derivados disso é reduzir a complexidade da cultura produzida ao longo da história da humanidade à condição de instrumento, de meio, de ferramenta, tal como uma escada, que simplesmente leva a algum lugar, mas não se coloca neste lugar de maneira orgânica, como “parte do ser”.

Desta forma, nesta lógica, uma leitura, uma sinfonia ou um quadro seriam apenas meios para se chegar a algum objetivo. Perrenoud (1999, p. 20) chega a afirmar categoricamente que, diante de nossa capacidade de invenção, qualquer repertório se torna inútil, pois qualquer que seja ele, não daria conta da imprevisibilidade do mundo.

Certamente, o mundo sempre se coloca como um “de novo diferente” frente a nós. Porém, mesmo um músico que toca um instrumento “de improviso” necessita de um repertório que o permita improvisar (um lastro). Nos argumentos de Perrenoud, a noção de criação parece atrelada a uma lógica divina, na qual, do nada, tudo se cria. De minha parte, distinto disso, entendo que nossa condição humana necessita de um lastro que se constitua como referência de mundo, condição primária para mínima compreensão de nossa existência.

Por outro lado, percebemos, em nosso tempo, um corte, uma ruptura abissal entre o viver e o desejo de conhecer. Se Aristóteles, em sua famosa frase expressa no capítulo inicial do livro “Metafísica”, afirmou que todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer, ao que parece, no contemporâneo, teríamos de completar sua frase: todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer aquilo que for útil e de aplicação, preferencialmente, imediata.

A meu ver, isso representa mais um elemento que permite sustentar a afirmação de Ordine (2016, p. 11),

[...] no universo do utilitarismo um martelo vale mais do que uma sinfonia, uma faca mais do que um poema, uma chave inglesa, mais do que um quadro, porque é fácil perceber a eficácia de um utensílio e cada vez mais difícil compreender para que serve a música, a literatura ou a arte.

Caberia levar a sério e refletir criticamente acerca das palavras de Ordine, tendo em vista a condição com que a música, a literatura e a arte são colocadas na formação universitária contemporânea – quando muito, como entretenimento ou curiosidade, presentes via de regra, em aberturas de eventos ou situações esporádicas no ambiente universitário.

Na lógica da “ferramenta”, uma música, um título acadêmico, um artigo, um livro, passam a representar meios para acesso ao mercado, status profissional, melhor salário e ao consumo. Certamente, em uma sociedade capitalista, elementos que representam seu “cerne”, o motor que parece mover frente a possibilidade de conhecer as “coisas do mundo”, algo que parece conduzir a um empobrecimento intelectual (por exemplo, não é incomum, alunos da graduação perguntarem, quando solicitada a leitura de um texto, se “vale nota”).

Nesse contexto, experiências de mundo que se colocam para além da recompensa imediata perdem força, são desprezados em nome de saberes utilitários, algo que se desdobra na forma como percebemos diferentes dimensões da vida (por exemplo, a associação comum de causa e efeito que se faz entre práticas corporais e gasto calórico, e não como fonte de experiência de mundo, ilustra bem os argumentos ora produzidos). Como se refere Paviani (2013), no cotidiano, existe a tendência de considerar o agir e o fazer, como opostos ao conhecer.

Na lógica do utilitarismo, a apatia no desejo de conhecer em profundidade e amplitude as “coisas” do mundo parece se derivar em uma anestesia da imaginação e do pensamento curioso, em um tempo no qual saber muito de pouco parece suficiente e o entretenimento parece assumir o centro do cotidiano[8]. Derivado disso, o estudo com disciplina e rigor perde espaço para propostas de formação “dinâmicas”, “lúdicas”, “ativas” que, via de regra, compõem uma “moda contemporânea” bem aceita nas universidades de “vanguarda”. Segundo Ordine (2016, p. 87), na ânsia de produzirmos formas de “[...] tornar a aprendizagem mais agradável, não se pedem mais sacrifícios (aos estudantes), mas, pelo contrário, procura-se atraí-los com a perversa redução progressiva dos programas e com a transformação das aulas num jogo interativo superficial”.

Nesse caso, qual passa a ser o sentido da universidade no contemporâneo, tendo em vista que há uma crise do sentido do conhecimento em nosso tempo? O que fazer em meio a esta simplificação da potência humana de conhecer? Como lidar com uma “apatia epistêmica” que se instala em muitos docentes e estudantes universitários? Em tempos de crise, com a pretensão de “responder” a questões como estas, se derivam diferentes proposições que se colocam como “portas de saída”, derivadas de diferentes projetos e interesses. A Pedagogia das Competências se coloca como uma delas. Assim, entendo que retomar o valor do conhecimento como possibilidade de experiência de mundo comum, e não como ferramenta, representa uma das responsabilidades nevrálgicas da universidade, algo que, a meu ver, passa distante da Pedagogia das Competências.

Considerações Finais

Diante do exposto, cabe, neste momento, apresentar algumas sínteses que, na verdade, mais se constituem como horizontes. Se, tal como referi anteriormente, a universidade representa um lugar de inconformidade, edificada por meio da possibilidade da crítica radical acerca das coisas do mundo, tratar sobre o tema Pedagogia das Competências se constitui como espinhoso, mas importante empreendimento, sob risco de “sobrar” ao professor universitário, “executar” o já pensado por outros. A universidade não pode ser lugar do conformismo, subserviência e simplificação.

Um problema significativo derivado da lógica Pedagogia das Competências reside na tese de que uma característica humana secundária (competência) vem sendo alçada à condição de primária, bem como, se coloca com pretensões de universalidade, instituída como princípio de organização curricular para a educação superior. Nessa lógica, também parece sem sustentação a ideia de uma Pedagogia das Competências com vistas à “formação generalista”, conforme presente no Perfil do Egresso de muitos cursos de graduação (aqui reside, no mínimo, uma contradição a ser melhor examinada), considerando a especificidade com que tal termo se coloca etimologicamente, com sentido de “ação prática” voltada para “resolução de problemas” específicos.

Em meio a uma significativa produção intelectual sobre o tema, é possível concluir que estamos em meio a produção de uma proposição que coloca o utilitarismo, a competividade, a adaptação ao sistema, a resiliência e as leis de mercado como balizadores para a formação universitária, por meio de dispositivos legais com pretensões de consolidar esta noção como irreversível princípio organizador do currículo para a educação superior (bem como, na educação básica), com tudo que isso implica.

Se torna nevrálgico pensar mais e melhor sobre os desdobramentos deste processo para a formação, bem como, para o trabalho docente. A meu ver, alçar a lógica da Pedagogia das Competências como princípio de organização curricular se trata de um equívoco enorme, com prejuízos incalculáveis para a educação brasileira. Princípios desta ordem para o campo educacional são destruidores, pois não potencializam o surgimento de novas gerações de pensadores, mais afeitas a execução e resolução de problemas de ordem específica, vitaminados em resiliência e improviso, porém, possivelmente atrofiados na dimensão crítica e cultural que uma formação humana permitiria.

Certamente, é necessário destacar, não advogo em favor da incompetência. Minhas críticas se referem ao fato da noção de “competências” ser alçada como princípio de organização curricular, como característica primária, bem como, potencializar um discurso de competição e de adaptabilidade que necessita ser melhor pensado. Afinal, um terrorista ou um torturador podem ser extremamente competentes em suas ações (mobilizando saberes práticos para ações específicas).

Portanto, me parece necessário sustentar a tensão da crítica e a instabilidade conceitual como mecanismos de resistência. Ou seja, embora oficiais, o assunto não está “resolvido” (os dados estão rolando). Portanto, cabe apostar com radicalidade em nossa capacidade de pensar, algo que é da idade do humano, mas continua sendo nossa maior possibilidade de inovação. E, para isso, temos de defender a universidade como espaço (heterotópico) e tempo (não linear) de pensamento, crítica e produção. A meu ver, uma de nossas últimas possibilidades de potencializar a transgressão frente a processos de colonização universitária como o que vivemos.

Uma postura socrática desta ordem poderia potencializar a criação de “focos de rupturas” como possibilidades concretas de transgressão, edificadas pela nossa capacidade de inventar soluções a partir de um lastro que nos dê subsídios para tal. Somente desta forma poderemos reconhecer os pontos cegos (NUSSBAUM, 2010), espaços vazios, onde necessitamos aprender a nos mover (GADAMER, 2004), na direção de evidenciar focos de esperança (FREIRE, HORTON, 2003) que brotam de las grietas de la vida cotidiana (WALSH, 2014).

Finalizando, não me parece possível avançar nas discussões que apresento ao longo do texto com uma “fuga para a frente” [9]. Criar a impressão de que resolvemos problemas da formação universitária com soluções arrojadas, quando na verdade, não os enfrentamos com radicalidade, é assumir a superficialidade como perspectiva de mundo, em uma condição de menoridade que não é compatível com a complexidade dos grandes problemas conjunturais de nosso tempo, nem com o que se espera de uma universidade. E a meu ver, se não enfrentarmos com radicalidade a questão “da universidade das competências”, nos restará o destino anunciado da “universidade do futuro”, um discurso que ganha ares de vanguarda, cabe destacar, bem aceito por distintas protagonistas da universidade no contemporâneo.

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Correspondência

Ricardo Rezer Universidade Comunitária da Região de Chapecó Servidão Anjo da Guarda, 295-D, CEP 89809-900, Efapi, Chapecó, Santa Catarina, Brasil.

 

Notas



[1] O ensaio se origina de um programa de estudos desenvolvido entre março e agosto de 2018, tendo em vista um ciclo de discussões acerca deste tema, realizado na Área de Ciências Humanas e Jurídicas da universidade na qual trabalho.

[2] Por reflexão crítica, entendo nossa capacidade de pensamento e ponderação, estruturada por meio de critérios de justificação dotados de sentido, que permitam examinar e colocar em inspeção diferentes fenômenos e produções do mundo humano – neste caso, a reflexão crítica é uma forma de potencializar o pensamento pela capacidade do estranhamento curioso e interessado frente as “coisas do mundo”. Assumindo uma postura Kantiana, a crítica representaria nossa possibilidade de reflexão sobre a validade e os limites da produção humana, algo a ser sempre legitimado coletivamente, no “entre pessoas”. Portanto, a reflexão crítica pode representar um esforço potencializador de nossa capacidade de pensar, esforço que exige estudo, cultivo e diálogo.

[3] Disponível em: http://www.jci.org.br/o-que-fazemos/programas/10/concurso-oratoria-nas-escolas, acessado em 17 de maio de 2018.

[4] De maneira bastante breve, efeitos colaterais podem ser compreendidos como consequências indesejadas ou desconhecidas que a ingestão de determinado medicamento pode causar à pessoas e/ou animais. Algo que representa um efeito paralelo ao que é desejado da substância farmacológica absorvida. Na discussão em tela, cabe suspeitar, ou mesmo, supor, que os efeitos colaterais doravante perspectivados podem ser considerados ou até mesmo desejados por determinados grupos, tendo em vista a ideologia que se manifesta nas entrelinhas deste modelo de formação.

[5] A globalização neoliberal corresponde a um novo regime de acumulação do capital, um regime mais intensamente globalizado que os anteriores, que visa, por um lado, dessocializar o capital, libertando-o dos vínculos sociais e políticos que no passado garantiram alguma distribuição social e, por outro lado, submeter a sociedade no seu todo à lei do valor, no pressuposto de que toda atividade social é mais bem organizada quando organizada sob a forma de mercado. A consequência principal desta dupla transformação é a distribuição extremamente desigual dos custos e das oportunidades produzidos pela globalização neoliberal no interior do sistema mundial, residindo aí a razão do aumento exponencial das desigualdades sociais entre países ricos e países pobres e entre ricos e pobres no interior do mesmo país. (SOUSA SANTOS, 2002).

[6] Cabe lembrar que autopoiese ou autopoiesis (do grego auto "próprio", poiesis "criação") é um termo produzido na década de 1970 pelos biólogos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana. Tal expressão permite representar a capacidade que os seres vivos possuem de produzir a si próprios.

[7] Acerca desta questão, sugiro a leitura de “Emoções e linguagem na educação e na política”, de Humberto Maturana (2002). Concordando com ele, “[...] no momento em que uma pessoa se torna estudante para entrar na competição profissional, ela faz de sua vida estudantil um processo de preparação para participar num âmbito de interações que se define pela negação do outro, sob o eufemismo: mercado da livre e sadia competição. A competição não é nem pode ser sadia, porque se constitui na negação do outro” (p. 13). Para ele, o mais grave é que, sob um discurso que valoriza a competição como um bem social, não se vê a emoção que constitui a práxis do competir, que é a que constitui ações que negam o outro. Nesta lógica, o outro passa a ser meio para a obtenção da vitória e a concordância entre eles se dá pela via da permissão em disputar qual será aquele que irá se sobrepor ao outro. No esporte, isso ainda pode ser perspectivado como aceitável (melhor competir no esporte do que na vida), mas transpor isso para a vida em sociedade, produz efeitos, no mínimo, devastadores.

[8] Na realidade brasileira, o telejornalismo televisivo parece ilustrar bem esta assertiva: de uma condição de mídia que investiga/produz e veicula informações jornalísticas, migra para a dimensão do entretenimento informativo, o que faz perder força a capacidade de análise, de reflexão e de tomada de posição crítica, já que as matérias são veiculadas com descontração e velocidade.

[9] A expressão “Fuga para a frente” é uma tradução direta de uma expressão de origem francesa (fuite en avant), datada de 1968 (Le Nouveau Petit Robert de la Langue Française), e significa criar a impressão de resolver um problema com solução arrojada, quando na verdade, se está a fugir dele. Fonte: https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/fuga-para-a-frente/31889, acessado em 20 de junho de 2018.