Reconhecimento docente: a experiência social de professores do ensino privado gaúcho

Recognition and teachers: the social experience of private teaching teachers on Rio Grande do Sul

 

Jerusa Alves Cuty

Doutoranda na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.

jerusa.cuty@acad.pucrs.br – https://orcid.org/0000-0002-7945-7876

Marcos Villela Pereira

Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.

marcos.villela@pucrs.br – https://orcid.org/0000-0002-3977-5167

 

Recebido em 30 de maio de 2018

Aprovado em 21 de fevereiro de 2019

Publicado em 17 de dezembro de 2019

 

RESUMO

O presente artigo objetiva analisar o reconhecimento social docente sob a visão articulada da teoria do reconhecimento de Axel Honneth (2009) com o modelo desenvolvido por Nancy Fraser – integrando as esferas de reconhecimento com os conceitos de redistribuição e status, analisando como os professores se veem como sujeitos frente à ausência de reconhecimento social e a consequente falta de autorrealização. Para tanto, trabalhou-se com um recorte restrito, a partir de um corpus mais extenso, produzido em uma pesquisa que analisou os discursos docentes publicados na coluna Palavra de Professor do jornal Extra Classe, do SINPRO/RS, entre 2006 e 2015, investigando como eles sugerem aspectos de relações interpessoais na coluna “Palavra de Professor”, e formulando considerações sobre a significação do reconhecimento para docentes do ensino privado do Rio Grande do Sul. As análises limitam-se a explorar traços de presença ou ausência do reconhecimento em sequências discursivas extraídas do jornal, explorando indicadores estratégicos derivados de um olhar dirigido aos traços enunciativos dos sujeitos.

Palavras-chave: Reconhecimento Docente; Ensino Privado; Professor.

 

ABSTRACT

This article aims to analyze the social recognition of teachers under the articulated vision of Axel Honneth's theory of recognition with the model developed by Nancy Fraser - integrating the spheres of recognition with the concepts of redistribution and status, analyzing how teachers see themselves as front subjects the absence of social recognition and the consequent lack of self-realization. In order to do so, a restricted cut was made, based on a more extensive corpus, produced in a research that analyzed the teaching discourses published in the column Word of Professor of the newspaper Extra Class, of SINPRO / RS, between 2006 and 2015, investigating as they suggest aspects of interpersonal relationships in the "Teacher's Word" column, and formulating considerations about the significance of recognition for teachers in private education in Rio Grande do Sul. The analyzes are limited to explore traits of presence or absence of recognition in sequences discursives extracted from the newspaper, exploring strategic indicators derived from a look aimed at the enunciative traits of the subjects.

Keywords: Teaching Recognition; Private education; Teacher.

A propósito do reconhecimento

O reconhecimento é um termo polissêmico e sua redução a uma única definição seria assaz equivocada. Buscando, então, entender a diversidade de significação do vocábulo no contexto relacional da Educação e o acirrado debate em torno da noção de reconhecimento, pretende-se evidenciar como o termo emerge, na realidade dos professores gaúchos, fazendo um recorte de um estudo mais amplo, realizado a partir da análise do termo e/ou de seus derivados frente às esferas de reconhecimento lançadas por Axel Honneth (2009), em sua Teoria do Reconhecimento, somada às leituras posteriores. Houve, pois, após importantes articulações com os textos de Nancy Fraser[1] (2001), um resíduo de ideias a respeito do reconhecimento.

Pela visão de Axel Honneth[2], o reconhecimento constitui uma questão filosófica e psicológica, e não uma questão social dada fora dos sujeitos, não se restringe à dimensão cultural da justiça, a despeito do que Fraser (2001) trata em seu modelo. Por isso, faremos uma breve retomada da teoria do reconhecimento e de seus elementos constitutivos, os quais serviram de categorias a priori para a análise do recorte de um corpus que envolvia os textos publicados na coluna “Palavra de Professor” do Jornal Extra Classe, do Sindicato dos Professores Particulares do Rio Grande do Sul (SINPRO-RS), de 2006 a 2015. Em seguida, discutiremos as críticas aos apontamentos do filósofo alemão e revisões feitas por Nancy Fraser (2001), tomando como base a ideia weberiana de status e o conceito de redistribuição que a autora aborda em sua teoria. Por último, apontaremos sinais da relação dos docentes gaúchos com o reconhecimento no contexto em que atuam.

Honneth e as esferas de reconhecimento

Com o intuito de observar as questões filosóficas e psicológicas, o filósofo alemão adota, em sua teoria do reconhecimento, uma divisão em esferas, que podem ser consideradas categorias que propiciam a análise da interação entre sujeitos. No ambiente escolar, podemos encontrar certa similaridade entre a situação apontada por Axel Honneth (2009) e a relação entre os atores que estão envolvidos com a Escola: docentes e discentes, docentes e direção, docentes e administração escolar, docentes e seus pares. Assim, tanto no contexto intersubjetivo – amor, direito e estima social -, quanto em suas formas correlatas no contexto subjetivo – autoconfiança, autorrespeito e autoestima – surgem esses elementos, analogamente, nos diferentes âmbitos em que se inserem os sujeitos-professores.

No entanto, o desequilíbrio dessas esferas pode ocasionar o conflito, matriz do estudo de Honneth (2009), já que ele é intrínseco tanto à formação da intersubjetividade como dos próprios sujeitos em sua subjetividade; por conseguinte, ele é desencadeador de uma luta por reconhecimento e fonte motivacional das mudanças sociais. Na apresentação da obra “Luta por reconhecimento”, Marcos Nobre, sobre o filósofo, afirma que:

Interessam-lhe aqueles conflitos que se originam de uma experiência de desrespeito social, de um ataque à identidade pessoal ou coletiva, capaz de suscitar uma ação que busque restaurar relações de reconhecimento mútuo ou justamente desenvolvê-las num nível evolutivo superior. Por isso, para Honneth, é possível ver nas diversas lutas por reconhecimento uma força moral que impulsiona desenvolvimentos sociais. (NOBRE, 2009, p. 18)

 

Assim, o filósofo alemão determina, entre as suas categorias de análise, que o reconhecimento amoroso é o primeiro que se estabelece em qualquer contexto intersubjetivo. Com ele, os sujeitos reconhecem e confirmam suas carências e atualizam o vínculo de dependência ou de autonomia do sujeito em si e no mundo. Portanto, essa experiência é capaz de estabelecer condições para uma relação – autorrelação e entre sujeitos – resultando no desenvolvimento da sua autoconfiança, o que precede todas as formas de reconhecimento. No contexto escolar, o docente que se encontra com algumas carências pode renovar suas relações com os demais membros da comunidade escolar ao estabelecer um laço de confiança com os seus pares, com os discentes, com as equipes diretiva e administrativa, com os funcionários, o que impactará o desenvolvimento de sua autoconfiança, parte importante do âmbito subjetivo.

Por efeito da esfera do direito, diferentemente do reconhecimento por meio da esfera do amor, com o qual há aquela ligação emotiva, o filósofo traz o reconhecimento jurídico, no qual os sujeitos reconhecem-se reciprocamente como indivíduos dotados de uma condição de igualdade. Com essa segunda categoria, o autorrespeito aparece como uma possibilidade de referência positiva a si mesmo, em um contexto subjetivo, quando o indivíduo está inserido em uma coletividade que conjuga características semelhantes que lhe capacitam a participar de uma formação discursiva semelhante. Estabelecem-se, pois, as prerrogativas para o respeito entre os indivíduos, consequentemente, para o reconhecimento do trabalho de cada sujeito.

Na terceira dimensão, dá-se o domínio das relações de estima social (leistung, no original), as quais propiciam o respeito universal, com o qual os sujeitos podem encontrar a valorização de suas idiossincrasias, considerando a aceitação mútua das características pessoais de cada indivíduo. Honneth (2009) demarca, por conseguinte, um reconhecimento social que está ligado à relevância social que é dada à pessoa, configurando a estima social. No âmbito subjetivo, analogamente, os sujeitos demonstram a sua autoestima, vinculada à terceira esfera da prática social e ao aspecto subjetivo que advém das relações sociais, posto como o elo da triangulação para se analisar qualquer sujeito.

 

 

Figura 1 – Esferas de Reconhecimento

Esferas de reconhecimento

Fonte: (CUTY, 2017)

 

No âmbito escolar, podemos encontrar uma certa similaridade entre a situação apontada por Honneth e o ambiente escolar. Para que os indivíduos possam dispor de suas capacidades individuais, é preciso que socialmente sejam reconhecidas suas necessidades, sua igualdade legal e suas contribuições sociais. O pertencimento ao grupo reconhecido ou ao grupo com a ausência de reconhecimento estabelece outros pontos de conexão. Assim, o contraste entre essas esferas propicia melhor compreensão sobre a experiência da falta de reconhecimento em uma ou mais dessas esferas, com a violação, privação ou exclusão, o que motivaria os sujeitos à luta por reconhecimento no cenário educacional.

Discussões acerca da teoria de Honneth trazem um potencial especulativo e teórico que podem contribuir para perceber que, se o sujeito-professor não recebe o reconhecimento social por suas capacidades e competências, com a desvalorização de suas habilidades profissionais, tal ação pode provocar uma perda da autoestima. Consequentemente, no âmbito subjetivo, deriva a ausência de autorrealização.

 

Adjacência com Nancy Fraser: status e redistribuição

Como nenhum autor consegue explicar de forma universal as formas de reconhecimento, buscamos acrescentar, neste artigo, a visão da filósofa norte-americana Nancy Fraser, filiada ao pensamento da Teoria Crítica, como um contraponto possível, contribuindo para o exercício de necessária relativização das ideias até aqui apresentadas. Assim como Honneth, ela propõe um modelo de reconhecimento calcado na ideia weberiana de status. A filósofa aponta que a sua base normativa é a noção de paridade de participação, com uma justiça que requer arranjos sociais. Observa-se, aqui, pois, a visão de reconhecimento como questão de justiça. Nessa perspectiva, a ausência de reconhecimento não é explicada em termos de subjetividade, mas como parte de uma subordinação social. Citando a autora “o que requer reconhecimento não é a identidade específica do grupo, mas o status de seus membros individuais como parceiros por completo na interação social.” (FRASER, 2007, p. 113)

No modelo de Fraser, só são justificáveis as reivindicações de reconhecimento que sejam moralmente vinculantes, fomentando a paridade de participação, sem gerar formas alternativas de subordinação. Para a autora: “Apenas uma teoria bidimensional, que abarcasse tanto distribuição quanto reconhecimento, poderia fornecer os níveis necessários de complexidade social-teórica e discernimento moral-filosófico.” (FRASER, 2009, p.18). O importante é que as próprias pessoas afetadas participem, em processos dialógicos, da construção de soluções para superar quadros de injustiça. Assim, na análise do desrespeito ou da ausência de reconhecimento dos sujeitos-professores, encontramos um objeto empiricamente palpável: padrões institucionalizados de desvalorização cultural, que constroem certas categorias de atores sociais dentro de uma norma, a exemplo da equipe diretiva, dos pais e alunos nas escolas, e outras como inferiorizadas dentro dessa hierarquia institucionalizada, os quais são postos como os professores e os funcionários.

Essa proposta de análise da filósofa traz centralidade ao conceito de reconhecimento através da construção de formas de dominação social e das tentativas de resolução dos diferentes tipos de conflitos sociais. Assim, a autora, com seu artigo “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista” (2001), reafirma que o reconhecimento, sozinho, não basta para fundamentar uma teoria de justiça. Então, para essa pensadora,

A “luta por reconhecimento” está rapidamente se tornando a forma paradigmática de conceito político no final do século XX. Demandas por “reconhecimento da diferença” dão combustível às lutas de grupos mobilizados sob as bandeiras da nacionalidade, etnicidade, “raça”, gênero e sexualidade. Nestes conceitos “pós-socialistas”, a identidade de grupo suplanta o interesse de classe como o meio principal da mobilização política. A dominação cultural suplanta a exploração como a injustiça fundamental. E o reconhecimento cultural toma o lugar da redistribuição socioeconômica como remédio para a injustiça e objetivo da luta política. (FRASER, 2001, p. 231)

 

Dessa visão, depreende-se que a justiça requer tanto a redistribuição quanto o reconhecimento com ênfase nas questões econômicas para a estruturação de conflitos emancipatórios e para a construção de uma sociedade mais justa. Isso surge porque Fraser (2007) argumenta que as teorias da justiça devem-se tornar tridimensionais, incorporando a dimensão política da representação ao lado da dimensão econômica da distribuição e da dimensão cultural do reconhecimento.

            O modelo de Fraser (2001) evidencia quatro consequências: primeiramente, não se opta por uma concepção específica de bem em detrimento de outra, tendo em vista que o modelo de status é uma tendência humana. Em segundo lugar, o desrespeito é situado em relações sociais, e não em estruturas internas dos sujeitos – a exemplo do que expõe Honneth com suas esferas de reconhecimento –, o que poderia acarretar culpa nos indivíduos que o sofrem, pela absorção da opressão ou pela prática autoritária de policiamento de valores. Em terceiro lugar, a pesquisadora “evita a visão de que todos têm igual direito à estima social” (FRASER, 2009, p. 32). Ao contrário de Honneth, ela diz que o que é preciso é que todos possam buscar estima. Em quarto lugar, temos as tentativas de atrelar as lógicas da redistribuição e do reconhecimento, já que são tratadas pela pensadora como duas dimensões da justiça, cuja integração se faz necessária para não reduzir uma a outra. Eis o que motivou Fraser a construir essa teoria.

Em suma, surgem concepções diferentes de justiça que levam ao reconhecimento. Fraser se pauta pelo bem da participação; Honneth, pelo bem da autorrealização. Na comparação entre a teoria de Honneth (2009) e o modelo de Fraser (2001), podemos vislumbrar que a partir da teoria do reconhecimento, para o filósofo alemão a centralidade é o indivíduo, com o desrespeito como sentimento que propicia a luta por reconhecimento. Para Fraser (2001), essa luta está se tornando a forma paradigmática de conflito político. Somado a isso, para ambos, a fim de se atingir a condição de paridade, há de se permitir a possibilidade que todos os indivíduos da sociedade interajam uns com os outros como semelhantes. Conforme Fraser (2007a), em relação à paridade, ela requer que os padrões institucionalizados de valores culturais expressem igual respeito a todos os participantes, independentemente de classe, nacionalidade, etnia, sexualidade ou gênero, assegurando, assim, igual oportunidade para que sejam reconhecidos.

            Embora as concepções de Honneth e Fraser possam apresentar diferenças e críticas, percebemos que há muitos pontos em que dialogam, principalmente no que concerne às respostas pelas lutas por reconhecimento social em diversos contextos. Portanto, podemos considerar, para efeitos deste estudo, que há complementaridade entre as duas visões sobre o reconhecimento e, para a análise das realidades docentes, uma proposta soma-se à outra.

O reconhecimento social docente: um recorte da realidade riograndense - ofício/ sujeito-professor/ imagem

Buscando esboçar um panorama da experiência docente em termos dos enunciados indicadores da presença ou ausência de reconhecimento, no Rio Grande do Sul, debruçamo-nos sobre os discursos docentes publicados na coluna “Palavra de Professor”[3] do jornal Extra Classe, do Sindicato dos Professores Particulares do Rio Grande do Sul (SINPRO – RS), de 2006 – 2015, disponíveis on-line. Fizemos esse recorte pensando em um fator agregador para os trechos selecionados, a fim de que se pudesse ter uma ideia mais consistente sobre o que pensam os professores sobre a presença ou a ausência de reconhecimento por eles vivida.

O jornal foi lançado em março de 1996, com uma tiragem de 25 mil exemplares ao mês. Diferentemente do periódico, que no ano de 2016 completou duas décadas, a seção que serviu como corpus desta pesquisa não tem a mesma idade do periódico, uma vez que, há aproximadamente 17 anos, substituiu uma coluna chamada “Coisa de Mestre”. De acordo com César Fraga, redator-chefe do jornal, em conversa informal, a “Palavra de Professor” era uma coluna solitária e bem pequena, mas sempre representou uma oportunidade de manifestação da demanda reflexiva de cada sujeito que se utilizou do espaço para manifestar seu pensamento. Em termos de diagramação, os textos estão limitados a no mínimo 1800 e no máximo 2200 caracteres com espaço simples, enviados à redação do jornal até o dia 15 de cada mês. O corpus da pesquisa foi constituído a partir de consulta à página do jornal, que disponibiliza os exemplares on-line, tendo sido selecionados os 29 textos publicados entre 2006 e 2015, dos quais foram extraídos 36 trechos que carregavam indicadores de presença ou ausência de reconhecimento, finalmente reduzidos a 23 excertos, após supressão das repetições.

Foram pensados, como fatores vinculantes desses 23 trechos selecionados na pesquisa, os marcadores de presença ou de ausência de reconhecimento social docente. Do ponto de vista operacional, encontramos na Análise de Conteúdo os princípios que conversaram de forma plena com o estudo. Essa levou-nos a procedimentos que relacionam estruturas semânticas (significantes) com estruturas sociológicas (significados). Desse modo, enquadrou-se os enunciados em uma filtragem que servisse para mostrar os efeitos de sentido que estavam ancorados no texto ou fora dele, permitindo-nos interpretar a situação de reconhecimento e de status buscada. Na revisão da pesquisa, para compor este artigo, escolhemos os quatro trechos em que, a nosso ver, ficam mais evidentes a presença, exemplificados com as duas primeiras sequências discursivas, e a ausência de reconhecimento, exemplificadas nas duas outras sequências discursivas, como se verá a seguir.

As vinte e três sequências selecionadas da pesquisa mais ampla foram organizadas em três blocos. O primeiro abarca ofício/ sujeito-professor/ imagem, criado conforme os elementos inerentes que aparecem em dezessete trechos selecionados. Esses foram os indicadores a posteriori, relacionados ao contexto intersubjetivo e/ou ao contexto subjetivo, em referência àquelas esferas de reconhecimento descritas por Honneth (2009) – já delineados como indicadores a priori –,  e ao sentido de status e redistribuição, relativos ao modelo de Fraser (2001). Assim, essa categoria do primeiro grupo está constituída em virtude de os excertos nela enquadrados terem uma característica de remessa ou de referência expressa à figura do professor, seja como sujeito, seja como profissional. Ademais, esse agrupamento traz uma assimetria de dados em comparação aos trechos das duas outras categorias criadas. No segundo grupo, formação e qualidade do ensino apresentam-se como característica a formação acadêmica de cada docente e a consequente qualidade de sua atividade. No terceiro grupo, políticas voltadas à docência apresenta-se a preocupação dos sujeitos-enunciadores com a existência ou a falta de políticas voltadas à docência.

Por conseguinte, no recorte dos dados realizado para este trabalho, identificou-se as formas de trabalho com as sequências discursivas transcritas, extraindo quatro excertos do corpus da pesquisa original. A partir delas, fez-se uma breve varredura sobre a polissemia do termo reconhecimento ou seus derivados, buscando encontrar a fonte do sentido que se podia vislumbrar. Em seguida, identificou-se e caracterizou-se o produtor de cada texto, o contexto de produção e o assunto da coluna selecionada. Por fim, fez-se o exercício de análise mais atenta de cada recorte, explorando os efeitos de sentido que se pôde inferir de cada trecho, a partir da análise de seu conteúdo. Vejamos, a seguir.

 

Sequência Discursiva 1

A profissão de professor é conhecida há muito tempo (...) é uma profissão imprescindível

 

Para atingir a atenção do leitor, o recorte mostrado busca dar conta do que se pretende dizer, mas se sabe impossível, já que o discurso surge como uma categoria que evidencia o ofício, o sujeito professor e a sua imagem. Assim, na sequência discursiva selecionada[4], o efeito de sentido suscita uma reflexão sobre o valor da profissão de professor na sociedade, mas também leva à identificação que podemos fazer do docente que é desvalorizado inúmeras vezes, lutando por sua identidade profissional e pessoal, em especial o professor de computação, o qual ainda está fazendo o seu espaço de ação na educação, dentro de um contexto relacional preconceituoso em relação ao seu papel.

Assim, o enunciado, através do qual o sujeito é exposto, fornece uma realidade não apenas de Santa Cruz do Sul, mas de todo um sistema de evidências da educação brasileira, onde a ideologia da enunciadora se reconhece. Nela, é necessário acabar com o “Brasil off-line”, título dado a esse primeiro texto em análise. Nesse espaço discursivo, o contexto dessa sequência situa o sujeito-enunciador como uma professora, que teve o seu texto divulgado no mês de outubro de 2006, descrevendo o espaço do professor de computação frente a um concurso público, em que nem todos os docentes dessa disciplina tinham ainda sido incorporados em algum emprego. Conforme palavras da autora “a formação específica para trabalho com computação está começando agora a ser disseminada e lentamente absorvida pelo mercado de trabalho”.

Em uma segunda recepção dessa sequência discursiva, podemos pensar no implícito que se encontra no adjetivo “imprescindível”, isto é, no seu antagonismo “dispensável”. A imagem feita sobre esse termo resulta de uma interpretação individual sobre o mundo da escola, a qual poderá trazer efeitos de acordo com a experiência e o olhar de cada leitor.

            Em relação ao referencial linguístico, o adjetivo “imprescindível”, especificado, causa a força do discurso e a postura do sujeito envolvido no trecho. Temos, então, recorrendo ao Pequeno Dicionário Houaiss (2015, p.528), o significado de “o que não se pode dispensar; indispensável” o qual é contextualizado como a característica da profissão de professor. No entanto, o efeito de sentido leva-nos a agregar uma pergunta filosófica: “o que contribui para o reconhecimento da profissão docente como imprescindível?”, a qual nos remete à peculiaridade da matriz social exposta por Axel Honneth: a estima social leva-nos a identificar o professor com sua força de inclusão social e com o respeito mútuo que lhe cabe, conforme o sujeito-enunciador.

            Com as categorias estruturais de Honneth (2009), podemos identificar o reconhecimento em sua configuração de três distintos padrões para a autorrealização do sujeito: sociabilidade, intersubjetividade e moral. Depreende-se daqui que a imagem do docente está impressa como positiva por tudo o que ela nos acessa em sua constituição, fazendo emergir o autorrespeito e a autoestima que a compõe.

Encadeando o termo salientado no trecho com as esferas de reconhecimento da teoria de Honneth, podemos inferir que os elementos inerentes que se sobressaem são tanto pertencentes ao contexto intersubjetivo quanto ao contexto subjetivo. Dessa forma, o trecho demonstra a busca pelo reconhecimento do papel de qualquer docente de computação, com a pretensa identidade pessoal definida.

Somando-se à teoria de Fraser, compreendemos que ela pode acrescentar as discussões do contexto escolar, favorecendo e oportunizando entender a falta de um status social ao docente em pauta, assim como de outros docentes. Ao se sentir “dispensável”, a condição de paridade que possibilitaria aos membros desse grupo profissional interagirem de forma semelhante é perdida. Dessa maneira, os professores de computação não se veem reconhecidos, tendo em vista a sua subordinação a um padrão social e cultural que os coloca em um patamar de informalidade do seu ofício. No entanto, o sujeito-enunciador divulga pesquisas que demonstram a urgência desse profissional em uma sociedade que tem as tecnologias da informação e da informática emergentes, o que é inegável.

Por conseguinte, a chave de guinada retirada dos estudos de Fraser está na ideia de paridade de participação desses professores como quaisquer outros licenciados, a fim de que possam diminuir certas resistências socioculturais e possam encontrar igualdade de oportunidades. Isso favoreceria o status social desses docentes.

 

Sequência Discursiva 2

(...) ser professor era uma possibilidade de realização sob todos os aspectos, além do status de uma bela profissão

 

Com uma bela retrospectiva de como era ser professor, de como a docência possibilitava realização e status da profissão docente, o enunciador consegue atingir o leitor com a força de sua realização pessoal na profissão escolhida, quando, em seus primeiros 20 anos de atuação, colocava em prática toda a sua motivação, em seus feitos pessoais e profissionais. Em seguida, ele demarca bem o prestígio que sentia em sua função de professor, motivo pelo qual considerava uma bela profissão, com a admiração cultivada por outros indivíduos em seu entorno, por sua atuação lucrativa e, principalmente, pelo elevado valor moral que ser professor suscitava. Ademais, ele reforça que fez uma escolha pela profissão que ainda exerce e conseguia se aprimorar, sentindo-se satisfeito e vencedor.

            As esferas do reconhecimento frente a esse depoimento levam-nos a evidenciar nesse enunciador o respeito mútuo e a força que ele sentia e nutria por sua profissão: ser professor. Surtem efeito também, em seu discurso, a sociabilidade e a moral que ele deixa transparecer no final do enunciado selecionado “status de bela profissão”, o que Fraser (2001) estabelece calcada na ideia weberiana, com o indivíduo vendo-se como parceiro por completo na interação social. Essas características são formadoras, portanto, de identidade desse professor, vista com sua constituição intersubjetiva de autoestima e de autorrespeito, esferas do reconhecimento de Honneth (2009) que demonstrava, também, a inserção do indivíduo com sua imagem valorizada pessoal e socialmente.

            A partir do título do texto[5], entendemos que a posição do sujeito é de um professor, o qual explicitou em seu discurso as atribuições, a realização e o cansaço advindos de sua profissão em abril de 2008. São essas três etapas, respectivamente, que encontramos na narrativa dessa coluna. Percebe-se, assim, toda uma retrospectiva de um professor que trabalha há 34 anos. Iniciou com todo o entusiasmo e encantamento os primeiros anos de docência, mas sente a sua missão inconclusa devido às mudanças que foram surgindo.

Também se infere que a profissão de professor, com os contornos que o produtor do texto utiliza, é a causa da motivação e/ou da frustração no contexto e produz o sentido esperado de memória de um tempo já-vivido e que quer resgatar o reconhecimento e o espaço alcançados em anos anteriores. Dessa forma, o sujeito narra, de forma idealizada, como era a vida de um professor: com dois contratos de 20 horas em uma escola pública estadual, com os quais podia comprar um carro popular, em seguida, o apartamento e, posteriormente, poderia casar.

Nessa representação docente, conseguir uma complementação financeira surgia com o emprego em alguma escola particular, comum na trajetória de sucesso em qualquer nível de ensino. Com estas condições, ser professor era uma possibilidade de realização sob todos os aspectos, inclusive era comum muitos docentes continuarem sua formação ingressando em cursos de pós-graduação, em especializações, mestrados e doutorados. Havia condições financeiras para comprar livros e usufruir de eventos culturais, como cinema e teatro. Portanto, o professor conseguia ter sua autoestima e o autorrespeito como parte de seu cotidiano e de sua força de inclusão social, bem como levava seus filhos a valorizarem a profissão docente.

            No entanto, mudanças foram surgindo na sociedade e o cansaço, devido às exigências das instituições de ensino, foi aumentando, em função de novas e cada vez mais numerosas demandas na jornada de trabalho de cada professor. Resumidamente, a frustração começou a emergir, acarretando em perda de estima social e de respeito na comunidade da prática de sua profissão.

            Assim, na sequência discursiva em foco, encontramos quatro termos que servirão para analisar esse discurso. A primeira envolve o substantivo “realização”, o qual encontra-se com a definição de “1 o que se consegue pôr em prática; 2 feito, ato de heroísmo”, segundo o Pequeno Dicionário Houaiss (2015, p. 799). Essa é demonstrada pelo sujeito-enunciador: um professor com 34 anos de docência.

            O segundo termo no recorte da sequência discursiva é o estrangeirismo “status”, que surge como “1 situação, estado ou qualidade de uma pessoa ou coisa em determinado momento; condição; 2 p.ext. prestígio social ou funcional” (HOUAISS, 2015, p. 883), com o qual se revigora a posição do professor que faz uma retrospectiva da profissão em que atua.

            Com os dois últimos vocábulos, encontro o adjetivo “bela” somado à “profissão”, os quais surgem no Pequeno Dicionário Houaiss (2015, p. 130), respectivamente, “belo: 1 que tem formas e proporções harmônicas; 2 que causa admiração; 3 harmonioso, lucrativo; 4 de elevado valor moral”, entre as principais definições. Quanto ao substantivo “profissão”, encontro “1 atividade para a qual um indivíduo se preparou e que exerce ou não; 2 trabalho que uma pessoa faz para obter o necessário para sua subsistência e à de seus dependentes; ocupação, ofício”, restringindo os significados ao contexto do discurso.

            Com os termos evidenciados, nota-se a força de inclusão social desse professor, com sua carga emocional e todo o reconhecimento que ele demonstra da importância de sua atuação e de sua formação na sociedade. Encadeando com as esferas de reconhecimento de Honneth (2009), voltamos a frisar o direito respeitado e o valor moral dado a ele, com a estima social que levou o sujeito-enunciador a sentir o respeito mútuo, com os devidos contextos de autorrespeito e autoestima sendo salientados.

            No discurso em foco, é mobilizado um encontro entre o contexto intersubjetivo atrelado a uma escuta discursiva em que podem estar vigentes os contextos cultural, social e profissional desse sujeito que deseja ser ouvido por outros sujeitos que detenham a mesma trajetória. Entende-se, então, que a ideologia no discurso é da ordem do mundo e o resultado dessa formação é uma imagem de um sujeito que também deseja dar sentido e status novamente a sua profissão e, para tanto, deseja que outros sujeitos assumam e respeitem também o seu lugar social que ele ainda ocupa.

 

Sequência Discursiva 3

Atividades marcadas pelo desrespeito através de tratamentos truculentos, humilhação, assédio moral e, finalmente, o atraso no pagamento de salários. Essa trajetória intensificou-se nesse período, porém, sempre existiu na relação da Ulbra com seus trabalhadores.

 

Honneth (2009) estabelece o reconhecimento jurídico de cada indivíduo em um contexto intersubjetivo, com o qual cada sujeito reconhece-se reciprocamente como dotado de igualdade entre os demais. Com essa categoria, o autorrespeito é a possibilidade de referência positiva para si mesmo, em um contexto subjetivo. Não obstante, na sequência discursiva em pauta[6], depreende-se que há uma negativa para essa referência. Somado a isso, para Fraser (2007a), a justiça requer redistribuição e reconhecimento, com ênfase nas questões econômicas para a estruturação de conflitos emancipatórios e para a construção de uma sociedade mais justa.

            Sob o olhar dessas duas teorias, o sujeito-enunciador está inserido em uma coletividade em que lhe é negado o direito ao salário, em que não se espelham características de uma continuidade do reconhecimento recíproco. Ao contrário, surge a negação de suas horas trabalhadas, das demandas de sua pesquisa, do tempo de orientação. Em suma, encontram-se violadas as premissas para a relação de estima social pelos docentes e demais funcionários de uma universidade, os quais perderam a sua autoconfiança, o seu autorrespeito e a sua autoestima, bem como busca-se a superação de uma subordinação a uma realidade quase escravagista na luta por reconhecimento dos docentes universitários, do valor de seu ofício e de sua imagem.

Assim, após longos nove meses de trabalho sem o recebimento de sua remuneração na ULBRA[7], um professor dessa universidade lança seu desabafo através de um texto cheio de metáforas e de ricas analogias que permeiam o literário. Nesse texto da coluna de junho de 2009, encontram-se expressões que demonstram o quanto cada docente, assim como o que foi o sujeito-enunciador, pensava a sua perda de direitos como pessoas, como profissionais, como pesquisadores, como professores.

Entre as expressões mais relevantes expostas ao longo do texto, salientamos aquelas que demarcam bem uma luta pelo respeito perdido, pelo reconhecimento: “1. espírito docente em um camelo a serviço desse formato de gestão medieval; 2. espíritos camelos que suportavam pesados fardos; 3. deserto da falta de salários; 4. dezenas de leões docentes que tinham de enfrentar o dragão que dava ordens: tu deves dar aula de graça; tu deves pesquisar sem receber bolsa; tu deves orientar 12 horas-aula e receber o equivalente a meia hora-aula; 5. Lá estávamos num número crescente de leões com narizes de palhaços e apitos.”

            Com cada uma das sentenças manifestas pelo docente, explicitou-se o que era a crise institucional vivida por aquela universidade e pôde-se perceber que os professores queriam se libertar da tirania de um empregador cruel que os sugava em suas competências e produtividades, mas não lhes dava os retornos financeiro e emocional tão esperados. Em consequência, passados 36 anos de gestão intimidatória, o reitor não resistiu à luta dos docentes e pediu para sair do cargo. Por conseguinte, um novo ânimo surgiu nos grupos docentes, discentes, dos funcionários administrativos e da saúde, pois houve uma nova perspectiva de retomada das atividades e de uma gestão que organizasse os salários de todos, como chave de paridade de participação entre os atores envolvidos na educação da universidade mencionada.

            Emblematicamente, o autor lança como última frase “E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música”, dando-lhe a autoria de Nietzsche. Nela pesa toda a sua euforia após a saída do dragão que os escravizava (o reitor da época) e emergia uma nova energia para tentar vislumbrar um futuro melhor, com a justiça e o respeito aos seus direitos tão sonhados.

            Voltando o foco para o referencial linguístico, tomamos o vocábulo “desrespeito” como termo para o presente estudo, o qual surge como antônimo do indicador “respeito”, já evidenciado anteriormente. Com ele, encontra-se o substantivo masculino que denota “falta de respeito, de consideração” (HOUAISS, 2015, p. 328), cujos significados repercutem na matriz da crítica do enunciador desse texto. Uma crítica ainda atual na perspectiva dessa análise.

            Como a necessidade de reconhecimento é universal, essencial e inerente à integração social, o sujeito-enunciador demonstra todo o trajeto de perdas vivido por ele e por seus colegas, além de salientar a sua frustração frente ao quadro que foi se configurando em anos de vínculo com a universidade. Portanto, salienta-se, também, a sua condição de indivíduo ultrajado, o que pode trazer a disposição de perda da dignidade do profissional no seu meio de atuação, buscando a redistribuição econômica perdida em anos de trabalho na mesma instituição.

 

Sequência Discursiva 4

Que professor sou ou serei importa muito para mim e para muitos outros professores. Importa, especialmente, não ser um professor papel em branco, pois, assim como os estudantes com os quais trocamos experiências e saberes vida a fora, também temos leitura social extraclasse. (...) Também somos humanos e rimos, choramos, amamos... Também rasgamos quando não cuidados e não valorizados.

 

Em dois longos parágrafos, o sujeito-enunciador da coluna Palavra de Professor de novembro de 2013[8] mostra que dos professores esperam-se múltiplas tarefas e a escola dá o nome de “papel” para essas funções ou capacidades que são cobradas de cada docente. Por conseguinte, o autor vai traçando, metaforicamente, comparações com o papel artesanal, feito à mão, ou o papel autocopiativo, de alto valor agregado.

Assim, atingidos anualmente com novas mudanças nas escolas em relação a vários aspectos pedagógicos e/ou administrativos, os professores sentem-se diminuídos em relação à sua atuação. Frente a isso, o sujeito-enunciador desse discurso nos mostra que os docentes não querem que sua ação seja vista como desnecessária, como de alguém “papel em branco”, sem relevância. 

            Para as relações de dedicação emotiva, mais do que apenas as profissionais, os docentes são o exemplo marcante dessa realidade, pois criam vínculos com os estudantes a quem atendem, com o corpo docente no qual se incorporam, com a instituição em que escolheram e foram escolhidos para atuar. Não há como desvincular, então, as esferas de reconhecimento do âmbito intersubjetivo: o amor, pois ele surge com as relações humanas diárias e com o sentimento pelo seu trabalho, com a estima ao que se faz; o direito, com garantias iguais entre os demais membros da escola; e a estima social, com a valorização da atuação em sala de aula, por parte de alunos, pais e grupo escolar.

Sob esse viés, o autor questiona o interlocutor sobre a possibilidade de cada professor se construir sozinho, com base nas reflexões de leituras e práticas educativas. E pergunta-nos, como leitores, se essas leituras já não nos levariam a deixarmos nossas convicções, de sermos nós mesmos, o que revela a mistura das posições dos docentes em suas multitarefas nas instituições em que atuam.

Em seguida, ele compara cada tipo de papel com os vários tipos de professores, a exemplo do professor papel bíblia, o qual seria finíssimo, quase transparente; porém, teria suas palavras perenes. Ou o professor papel seda, finíssimo e transparente, como um professor de bons modos, educado, cortês, mas que talvez se esconda por trás das muitas invisibilidades que as escolas e outras instituições sociais impedem que produzam maior conhecimento; ou que é aquele que claro em suas posições e formas de trabalhar é solidário no seu avaliar e questionar.

Importa muito ao sujeito-enunciador o tipo de professor que ele é ou será. Importa, principalmente, ele não ser um professor papel em branco, pois ele tem uma leitura social extraclasse a qual preza, visto que é um professor universitário de Ciências Sociais. Também ele e outros colegas que admira têm trajetórias de vida. Também eles são humanos: riem, choram, amam, rasgam quando não cuidados e não valorizados.

            Para evidenciar a ausência de reconhecimento docente, em relação ao que sublinhamos no trecho em análise, buscamos o significado dos vocábulos “papel”, “branco”, “rasgamos”, “cuidados” e “valorizados”, os quais surgem figuradamente na sequência discursiva. Com o primeiro, fez-se o recorte em que surge “3 personagem que cada ator ou atriz representa numa obra dramática. 4 dever, função, obrigação (HOUAISS, 2015, p. 702). Com o segundo, encontra-se de forma figurada a locução “em branco”, a qual significa “que não está preenchido”. Com a terceira, descobre-se o verbo “partir(-se) em pedaços irregulares. 2 golpear, ferindo muito; dilacerar. 3 fig. afligir-se, atormentar-se” (HOUAISS, 2015, 796). Com a quarta palavra, recortam-se os sentidos de quem não tem “2 atenção especial; cautela. 3 desvelo que se dedica a algo ou alguém” (HOUAISS, 2015, p. 276). E, com o quinto vocábulo, evidencia-se a negação para “1 a que se deu valor ou cujo valor foi reconhecido. 2 que teve o seu valor aumentado; encarecido” (HOUAISS, 2015, p. 957). Com cada um, encontramos o rumor das palavras, as quais gritam uma crítica sobre o personagem que tem seu papel desmerecido ou negado.

            Entendemos que, quando não cuidados, não valorizados e não reconhecidos em seu trabalho, os docentes sentem-se desprezados, sua força de inclusão social é afetada, o respeito mútuo desaparece. Portanto, metaforicamente, “rasgamos quando não cuidados e não valorizados”, como um frágil papel. Nesse processo identitário de autoestima, de autorrespeito e de autoconfiança, o professor encontra a experiência de ser um ser humano fragilizado em relação às esferas de reconhecimento no âmbito subjetivo, alvo de conflitos pessoais e profissionais que podem desestabilizá-lo, acarretando os prejuízos nas categorias do âmbito intersubjetivo que Honneth (2009) delineou. Por isso, acredita-se que a educação é reflexo da sociedade. Ambas estão efetivamente vinculadas, mas precisam ser organizadas. Por conseguinte, com a redistribuição, poder-se-ia diminuir certas diferenças de cada grupo social, tendo em vista uma distribuição maior e um equilíbrio entre os recursos econômicos, culturais, intelectuais e sociais que embasam a Educação.

Considerações finais

Abusando da metáfora, podemos dizer que o elo perdido para que o reconhecido se reconheça parece ser o processo de construção dos discursos docentes, tendo alguns sido evidenciados neste artigo. Ao conhecê-los e mostrá-los aos colegas de profissão e à sociedade, evidencia-se o lugar do professor dentro dos marcos indicados nos textos impressos na coluna “Palavra de Professor”, além de permitir uma análise sobre como cada docente se vê e se coloca no processo de reconhecimento social.

Este estudo pode ser tomado como um ensaio a respeito das evidências da implicação daquelas esferas de reconhecimento, no contexto intersubjetivo, através dos excertos dos escritos de professores do ensino privado na coluna do jornal do Sindicato dos Professores do Rio Grande do Sul (SINPRO/RS), de 2006 a 2015, somados ao modelo de status e redistribuição, inspirado em Fraser (2001), bem como ao contexto subjetivo em que os discursos docentes foram produzidos. Com esses achados da pesquisa, foi possível verificar, em certa medida, como pode se dar ou como se perder o reconhecimento social docente em nosso Estado, considerado o universo restrito dos professores da rede privada de ensino.

Verificou-se que o reconhecimento surge, em sua configuração, sob três distintos padrões para a autorrealização do sujeito: sociabilidade, intersubjetividade e moral, que, consequentemente, explicitam o respeito mútuo, a estima do profissional e o negado status desse agente na Educação. Eventualmente, isso recai no contexto subjetivo de cada um, este sim prejudicado, em muitos momentos, devido aos fatos que constituem os docentes em seu cotidiano. Observa-se, pois, uma relativa ambivalência a partir de indícios de que os docentes continuam sendo indivíduos que amam o que fazem, prezam pela sua escolha profissional. Eles procuram salientar isso a partir de suas reflexões, transcritas em poucas linhas, mas igualmente sentem-se frustrados com as mudanças que, paulatinamente, têm desconstituído o lugar do professor, a sua autonomia e os seus direitos trabalhistas.

Infere-se que cada sujeito-enunciador pode se colocar como um indivíduo desrespeitado e, por conseguinte, ver-se desprezado em vários momentos, porém buscando demonstrar o seu amor pelo ofício exercido. Evidencia-se que foram perdidos alguns direitos dos docentes, notadamente aqueles que se fazem alicerçantes, no processo educativo, para a segurança do profissional em sua atuação, para uma redistribuição e reconhecimento dos sujeitos inseridos na escola, e para o desejo de permanência nesse ofício.

Em relação à intersubjetividade, podemos afirmar que o professor, às vezes, é o mediador fragilizado entre o aluno e a instituição que lhe dita as regras do jogo. Essa postura, sob certo aspecto, depõe contra a docência no sentido de caracterizá-la como uma atividade de mercado, uma vez que cada profissional da Educação tem se tornado mais e mais “um vendedor de conhecimentos” (Adorno, 1972, p. 69), cada vez mais desqualificado pela sociedade por não poder reverter para si os lucros prováveis desta negociação. Tais evidências criam um tensionamento entre o docente, os discentes, as famílias e a instituição com que mantêm um vínculo empregatício.

O grave, nesse quadro que tem se delineado, é que, enquanto agentes de formação cultural, os professores se percebem em processo de prejuízo de seus ideais, de seus anseios, de seus valores de formação. Por conseguinte, entender quem é o sujeito em cada texto analisado demandou também entender a marca de nossa contemporaneidade, na qual emerge um campo de indefinições, de mistura de posições, dependentes das demandas e da contingência de cada indivíduo envolvido. Assim, as configurações desses sujeitos-professores, ao mesmo tempo que se mostram, também se escondem, através da materialidade e da manifestação ideológica de cada um.

Na fala de uma parcela da indústria cultural e da mídia nacional, é possível perceber a natureza contraditória de nossa sociedade. Inseridas nela ainda soam as vozes dos sujeitos-enunciadores que colocam seu cotidiano escolar como espaço de resistência e de mudança. Exemplo típico pode ser retomado com o professor universitário que narrou, com sua trajetória pela ULBRA[9], o descaso daquela universidade em um processo de desmonte da instituição, vivido na década passada. Seu escrito dá evidência à sua luta e dos demais colegas para que fossem respeitados como pessoas, como profissionais, como pesquisadores e como professores. Com certa facilidade, podemos identificar, aí, as três esferas do reconhecimento delineadas pela teoria de Honneth (2009). A matriz social do filósofo alemão permite-nos perceber que o lugar social e o lugar discursivo se constituem de forma complementar, estabelecendo o vínculo do sujeito em si mesmo e no mundo em que atua.

Com relação às evidências da implicação das esferas de reconhecimento no contexto intersubjetivo, muito ainda há de inferências, de ideias novas, de outros recortes sociais, históricos, ideológicos e temporais, tomando-se o conjunto de escritos analisado na pesquisa. O termo “reconhecimento”, e seus derivados, estão presentes ou ausentes, conforme a visão de mundo de quem quis dividir com outros interlocutores a sua experiência docente e os seus sentimentos frente a essa atividade. Isso, pois, pode significar um indício da revalorização das identidades desrespeitadas, como sugere Fraser (2001).

Ou seja, podemos considerar que um ambiente propício ao reconhecimento social docente, em seu sentido pleno, ainda não existe. Os discursos lidos e trazidos aqui neste trabalho contribuem para mostrar que existem empecilhos de muitas naturezas para que isso se efetive em nosso contexto regional. Contribuir para a construção desse sentimento entre todos os envolvidos com o ensino é tarefa árdua, que exige a valorização da narrativa de tantas e tantos sujeitos que assumem e defendem a profissão de professor. Oxalá possamos olhar para um futuro que permita assegurar, com mais vigor, o reconhecimento social docente.

Referências

ADORNO, Theodor W. Consignas. Buenos Aires: Amorrortu, 1972.

CUTY, Jerusa Alves. A Presença e a Ausência do Reconhecimento Social: os discursos docentes na coluna “Palavra de Professor” (Jornal Extra Classe, SINPRO/RS, 2006 – 2015). 2017, 144f. Dissertação, Mestrado em Educação, PUCRS, Porto Alegre, 2017.

JORNAL EXTRA CLASSE. Palavra de Professor. SINPRO/RS. Porto Alegre. Disponível em: https://www.extraclasse.org.br/opiniao/ Acesso em 28 out. 2017.

FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In: Souza, Jessé. (org.). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: UNB, 2001.

FRASER, Nancy. Mapeando a imaginação feminista: Da redistribuição ao reconhecimento e à representação. Estudos feministas, n. 15, 2007a.

FRASER, Nancy. Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado. Lua Nova. São Paulo, n. 77, p. 11-39, 2009. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ln/n77/a01n77.pdf.  Acesso em 20 abr. 2018.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2009

HOUAISS, Antônio. Pequeno dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Moderna, 2015.

HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

MENDONÇA. Ricardo Fabrino. Reconhecimento em debate: os modelos de Honneth e Fraser em sua relação com o legado habermasiano. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, n. 29, p. 169-185, nov. 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rscocp/n29/a12n29.pdf Acesso em 12 abr. 2018.

PINTO, Celi Regina Jardim. Nota sobre a controvérsia Fraser-Honneth informada pelo cenário brasileiro. Lua Nova. São Paulo, n.74, p. 35-58, 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ln/n74/03.pdf

Correspondência

Jerusa Alves Cuty — Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) — Av. Ipiranga, 6681, Partenon, CEP 90619-900, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.

 

Notas



[1] Filósofa norte-americana filiada ao pensamento da Teoria Crítica. Membro titular da cátedra Henry A. and Louise Loeb de Ciências Políticas e Sociais da New School University, em Nova Iorque.

[2] Professor da Universidade de Frankfurt e diretor, desde 2001, do Instituto de Pesquisa Social sediado na mesma cidade, Axel Honneth é um dos principais pensadores alemães da atualidade. Foi assistente de Jürgen Habermas e estabeleceu uma posição singular no interior da Teoria Crítica.

[3] https://www.extraclasse.org.br/tag/palavra-de-professor-2/

[4] Brasil off-line (Extra Classe, out. 2006)

[5] Professor: atribuições, realização e cansaço... (Extra Classe, abr. 2008)

[6] Humildes na esperança (Extra Classe, jun. 2009)

[7] Universidade Luterana do Brasil (ULBRA)

[8] Professor de papel (Extra Classe, nov. 2013)

[9] Humildes na esperança (Extra Classe, jun. 2009). Excerto de texto de um professor da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).