Mediação pedagógica na relação com universitários com
deficiência[1]
Pedagogical mediation in the disabled college students
relationship
Tania Mara Zancanaro Pieczkowski
Universidade Comunitária
da Região de Chapecó - Unochapecó
Recebido em 05 de agosto de 2017
Aprovado em 27 de março de 2018
Publicado em 10 de maio de 2019
ISSN:
1984-6444 | http://dx.doi.org/10.5902/1984644428452
RESUMO
Este artigo é resultado de
um estudo que objetivou investigar o processo de mediação pedagógica entre docentes
e estudantes com deficiência na aula universitária. Está vinculado a uma
pesquisa mais ampla, cujo objetivo foi tensionar o processo de inclusão de
estudantes com deficiência na educação superior e compreender os seus efeitos
na docência. O material empírico, gerado por meio de entrevistas narrativas
realizadas com dez professores de estudantes com deficiência em diferentes
cursos de graduação, foi examinado pela perspectiva da análise do discurso,
amparada em referenciais foucaultianos. O texto evidencia o empenho docente em
promover a inclusão e aprendizagem e constituir-se como professor mediador. O
estudo aponta que os professores são subjetivados pelos discursos da inclusão,
o que resulta em posturas amorosas e solidárias. A complexidade do processo
torna-se explícita quando os professores vivenciam esse desafio e necessitam
reestruturar suas práticas pedagógicas. Exercer a docência com “o diferente” é
uma possibilidade para que o profissional de distintas áreas do conhecimento
atuante na educação superior descubra que mesmo que domine o conteúdo
específico e acumule títulos acadêmicos isso não basta, pois a docência é outra
profissão, é o encontro com o novo, com o imprevisível.
Palavras-chave: Inclusão
na educação superior; Estudantes com deficiência; Mediação pedagógica.
ABSTRACT
This article is result of a research that aimed to investigate the
process of pedagogical mediation between professors and disabled students in
college classes. Linked to broader research, which aimed to cause tension in
the policy of inclusion of students with disabilities in higher education as
well as understanding the effects of this process in the teaching. The
empirical material, collected through narrative interviews with ten professors
of disabled students in different undergraduate courses, was examined by the
perspective of discourse analysis, supported by Foucauldian references. The
text highlights the commitment of professors to promote inclusion and learning,
as also to establish themselves as mediators. The study points out that
professors are subjected to the inclusion discourses, which result in loving
and supportive behaviors. The complexity of the process becomes explicit when
professors experience this challenge and need to restructure their pedagogical
practices. Teaching the
"different" is a chance for the distinct areas of professional active
in the higher education knowledge find out that even dominating the specific
content and earning academic degrees is not enough, since teaching is another
profession, it is the meeting with the new, with the unpredictable.
Keywords: Inclusion in
college education; Disabled students; Pedagogical mediation.
Introdução
O processo de expansão da educação superior no Brasil
cria novas demandas às universidades e aos docentes, dentre elas, a adequação
necessária para incluir estudantes com deficiência, cuja presença na educação
superior tem aumentado significativamente nas últimas duas décadas. A presença
desse público reverbera em mudanças na docência universitária, na forma de ser
docente, nas práticas pedagógicas e na forma de conceber a docência.
Atuando como gestora
universitária e também na condição de pesquisadora estabeleci contato com
professores que buscam apoio pedagógico e, nesses encontros, observei que os
estudantes com deficiência, frequentemente, são narrados pelos docentes como
“sujeitos com problemas e causadores de problemas”. A busca docente se dá na expectativa
de que lhes sejam indicadas práticas “normalizadoras” ou lhes digam como fazer
para que a diferença seja anulada. Thoma (2006, p. 15) salienta que a
modernidade dividiu e fragmentou o mundo, estabeleceu binarismos, “como normal
versus anormal, bom versus ruim, belo versus feio, etc., localizando de um lado
os ‘melhores’ e de outro os ‘piores’. Nessa lógica binária identidades sociais
têm sido posicionadas em lugares de exclusão [...]”.
Para Silva, a
identidade é aquilo que se é: “‘sou brasileiro’, ‘sou negro’, ‘sou
heterossexual’, ‘sou jovem’, ‘sou homem’. A identidade assim concebida parece
ser uma positividade (‘aquilo que sou’). [...] a identidade só tem como
referência a si própria” (2014, p. 74). Por sua vez, a diferença, segundo
Silva, é aquilo que o outro é:
[...]
ela é italiana’, ‘ela é branca’, ‘ela é homossexual’, ‘ela é velha’, ‘ela é
mulher’. Da mesma forma que a identidade, a diferença é, nesta perspectiva,
concebida como autorreferenciada, como algo que remete a si própria. A
diferença, tal como a identidade, simplesmente existe (2014, p. 74).
Camillo diz que a
diferença caiu na cilada do marketing, servindo como mote para belos e
sedutores discursos políticos, “ao se explanar uma plataforma de governo,
prometendo-se acabar com as ‘diferenças’ sociais, ou no discurso escolar,
quando se diz que a escola e a educação são para todos, onde os excluídos serão
incluídos e as ‘diferenças’ serão eliminadas, solucionadas [...]” (CAMILLO,
2008, p. 67). É nesse contexto que me sinto instigada a compreender a
complexidade da inclusão, especialmente no que se refere à acessibilidade
atitudinal e metodológica. Atribuo importância à mediação pedagógica, entendida
como a possibilidade de intermediar, de se constituir em um elo entre o
conhecimento e o estudante. A mediação é especialmente relevante na educação
especial, na qual a singularidade dos sujeitos pode demandar um olhar mais
solidário e interativo.
Este artigo,
inspirado numa das perguntas de estudo de uma pesquisa mais ampla, aborda a
mediação pedagógica no contexto de inclusão de estudantes com deficiência na
aula universitária. Embora a pesquisa, na íntegra tenha revelado várias
fragilidades no processo de inclusão educacional na universidade, este texto
atende ao propósito de evidenciar posturas mediadoras identificadas nas
narrativas docentes.
Percurso metodológico
O estudo desenvolvido
analisou os discursos de dez docentes universitários atuantes com estudantes
surdos; cegos; com baixa visão; com deficiência física ou deficiência
intelectual em diferentes cursos de graduação, em duas universidades de Santa
Catarina, uma pública federal e uma comunitária. A pesquisa evidenciou
estudantes com deficiência, ou seja, não contemplou quem apresenta altas
habilidades, transtorno global do desenvolvimento ou Transtorno do Espectro
Autista (TEA), os quais também constituem o público da educação especial.
O critério de seleção
dos entrevistados, definidos mediante convite, a partir da indicação dos
setores responsáveis pelas políticas de acessibilidade em cada instituição, foi
a existência de estudantes com deficiência matriculados nas turmas nas quais
atuavam. Trata-se de professores com caminhadas na docência entre dois anos e
meio até 25 anos, com formação acadêmica em diferentes áreas do conhecimento e
atuantes em vários cursos de graduação. Embora cada participante da pesquisa
seja identificado como “Docente”, seguido do número que representa a ordem
sequencial crescente dos nossos encontros, foram entrevistadas seis professoras
e quatro professores. Optei por generalizar, sem diferenciação de gênero em
cada intervenção, para preservar os entrevistados e simplificar a escrita.
Neste texto, são apresentados fragmentos das narrativas de apenas quatro dos
dez docentes entrevistados, (duas professoras e dois professores) identificados
como Docente 1, Docente 4, Docente 6 e Docente 10[2], porém, as falas destacadas representam concepções e
posicionamentos docentes identificados na amplitude da pesquisa, ou seja, foram
selecionadas pela recorrência, assim como pela relevância.
Após a aprovação do
projeto de investigação pelo Comitê de Ética em pesquisa envolvendo seres
humano[3], a participação dos sujeitos da pesquisa aconteceu por
meio de entrevistas narrativas, gravadas e posteriormente transcritas. A
entrevista narrativa, para Andrade (2012, p. 173), “[...] é uma possibilidade
de pesquisa ressignificada no campo de pesquisa pós-estruturalista em uma
perspectiva etnográfica”. A autora afirma, ainda, que “[...] as narrativas são
constituídas a partir da conexão entre discursos que se articulam, que se
sobrepõem, que se somam ou, ainda, que diferem ou contemporizam” (ANDRADE,
2012, p. 179).
Larrosa (2002, p. 21)
escreve que quando fazemos coisas com as palavras “[...] damos sentido ao que
somos e ao que nos acontece”. Segue o autor afirmando que
nomear
o que fazemos, em educação ou em qualquer outro lugar, como técnica aplicada,
como práxis reflexiva ou como experiência dotada de sentido, não é somente uma
questão terminológica. As palavras com que nomeamos o que somos, o que fazemos,
o que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos são mais do que simplesmente
palavras. E, por isso, as lutas pelas palavras, pelo significado e pelo
controle das palavras, pela imposição de certas palavras e pelo silenciamento
ou desativação de outras palavras são lutas em que se joga algo mais do que
simplesmente palavras, algo mais que somente palavras (LARROSA, 2002, p. 21).
Nesse sentido, Andrade (2012,
p. 179) destaca que “[...] as narrativas são posicionadas como uma produção
cultural, social, política e histórica, e não como um dado fixo, estável, igual
a todos os outros e ancorado em práticas sociais e culturais que se querem mais
ou menos precisas e iguais”.
A pesquisa, por tratar com
narrativas, exigiu a consciência dos limites de conhecer o outro, pois a
interpretação é sempre parcial. Ao narrar, lidamos com o saber da experiência,
que para Larrosa (2002, p. 27) “[...] é um saber particular, subjetivo, relativo,
contingente, pessoal. Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos
acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a
mesma experiência”.
O material empírico, resultado
das entrevistas narrativas, foi organizado em agrupamentos temáticos levando em
consideração a relevância e recorrência dos discursos. Concomitantemente, foram
revisitadas as tendências e movimentos da educação especial e da educação
superior, aspectos da pedagogia universitária, do fazer-se docente e das
políticas educacionais inclusivas, no intuito de estabelecer uma tecitura entre
esses campos. Como fio condutor teórico presente na trajetória da pesquisa
estão as contribuições de Foucault e outros autores que se amparam nas lentes
foucaultianas para fazer suas analíticas, os quais me auxiliam a tensionar a
lógica classificatória e categorizante que a modernidade tomou como verdade na
produção do conhecimento.
Em consonância com a
perspectiva foucaultiana, não há a pretensão de julgar práticas docentes, mas
evidenciar os efeitos de verdade produzidos em cada tempo. Para Fischer (2001),
pesquisar seguindo a perspectiva foucaultiana de discurso é
[...]
dar conta de como nos tornamos sujeitos de certos discursos, de como certas
verdades se tornam naturais, hegemônicas, especialmente de como certas verdades
se transformam em verdades para cada sujeito, a partir de práticas mínimas, de
ínfimos enunciados, de cotidianas e institucionalizadas regras, normas e
exercícios. Pesquisar a partir desses pressupostos históricos e filosóficos
significa também, e finalmente, dar conta de possíveis linhas de fuga, daquilo
que escapa aos saberes e aos poderes, por mais bem montados e estruturados que
eles se façam aos indivíduos e aos grupos sociais [...] (FISCHER, 2001, p.
385-386).
Para
Foucault, ao analisarmos discursos, devemos estar atentos, pois estes podem
“[...] admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo
tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de
resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta” (FOUCAULT, 2005, p.
96).
A mediação pedagógica
na relação professor e universitário com deficiência
A docência na educação superior é um cenário de intensos
desafios, mas mesmo assim, muitos professores universitários assumem a
profissão sem uma preparação prévia que lhes possibilite apropriar-se da
complexidade dessa seara. Em tempos em que as políticas de inclusão têm ocupado
crescente espaço nos debates educacionais, em que o aumento de estudantes com
deficiência frequentando a educação superior é uma realidade, o convívio com a
diferença é uma demanda docente e, mais do que meramente conviver, é necessário
reconhecer o outro na sua diferença e reinventar a docência.
Cunha et al. (2005, p. 6), afirmam que atendendo à
expectativa da sociedade, ao longo da história, o professor assumiu a ideia de
que “a sua função era ensinar um corpo de conhecimentos estabelecidos e
legitimados pela ciência e pela cultura, especialmente pelo valor intrínseco
que os mesmos representavam”. Prosseguem afirmando que
os
instrumentos principais, usados pelos professores para desenvolverem seu
ofício, enfocavam a palavra escrita e falada. Esta continha os elementos de
verdade, pois representava o discurso oficial da ciência e da cultura. A
escola, além de tudo, tinha praticamente o monopólio da transmissão do
conhecimento e da informação (CUNHA et al., 2005, p. 6).
O paradigma educacional passou por grandes mudanças nas
últimas décadas, com o advento das novas tecnologias de comunicação e
informação e a demanda social de um profissional que, ao concluir seu curso de
graduação, seja capaz de se inserir num contexto que requer a colaboração, a resolução de problemas, o
trabalho em redes, o protagonismo, o conhecimento técnico e conduta ética. O
ensino é cada vez menos um processo de transmissão de conhecimentos e cada vez
mais um processo de apropriação, de compreensão, de investigação e de
descoberta.
Nesse cenário dinâmico, a
trajetória da docência vai se formando na singularidade, na imprevisibilidade,
nas possibilidades e impossibilidades dos encontros que o professor estabelece
com seus pares. Isaia e Bolzan (2009, p. 165) afirmam que a formação e desenvolvimento profissional “entrelaçam-se em
um intrincado processo, a partir do qual a professoralidade vai se construindo
pouco a pouco. O saber-saber e o saber-fazer da profissão não são dados a priori,
mas arduamente conquistados ao longo da carreira docente” (ISAIA; BOLZAN, 2009,
p. 165).
Para
Pieczkowski (2014), o estudante com deficiência, integrante das turmas de
graduação, altera algumas convicções docentes e a lógica que o professor ensina
e o aluno aprende fica abalada, pois o docente pode precisar apropriar-se de
alguns conhecimentos específicos antes de ensinar. A autora menciona alguns
exemplos de aprendizagens necessárias ao professor como “a aquisição da língua
de sinais; o uso de tecnologias assistivas como programas computacionais
adequados às pessoas cegas ou com baixa visão; a apropriação de recursos de
acessibilidade ao computador para pessoas com deficiência motora” (PIECZKOWSKI,
2014, p. 184). A autora questiona como o docente pode avaliar adequadamente a
produção escrita de um estudante surdo, por exemplo, se não conhece a estrutura
diferenciada na forma de pensamento e, consequentemente, de escrita desse
público e das suas possibilidades construídas pelas experiências visuais. A
história evidencia que, em decorrência do desconhecimento acerca da identidade
surda e das singularidades dos estudantes surdos, eles foram considerados
deficientes, foram medicalizados, corrigidos, e seu potencial cognitivo nem
sempre teve credibilidade.
Lopes
(2006) afirma que olhando para os sentidos dicionarizados do verbo ensinar,
percebemos o quanto o termo está “impregnado de saberes que colocam quem ensina
em uma condição de conhecedor e de guia daquele que aprende. Olhando para a
escola, quem ensina – o professor e a professora – é quem sabe como deve ser
aprendido o que deve ser ensinado” (LOPES, 2006, p. 37). Contudo, a presença de
um estudante com deficiência pode redimensionar as práticas, provocando
reflexões acerca do papel docente, da universidade e do processo de inclusão.
Vale
destacar o conceito de pessoas com deficiência, previsto no Decreto 6.949
(2009), que promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de
março de 2007, no Art. 1º:
[...]
são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de
condições com as demais pessoas (BRASIL, 2009).
O
foco da deficiência deixa de ser o sujeito, individualmente, havendo uma
interdependência com o contexto mais amplo. É nesse cenário que a mediação
pedagógica ganha destaque.
Cunha
e Isaia, na Enciclopédia de Pedagogia Universitária,
organizaram diferentes verbetes e, dentre eles, o que define mediação
pedagógica, nas palavras de Maciel e Siluk:
Processo
no qual o participante é imerso em um ambiente construtivista capaz de oferecer
condições de interatividade produtiva e aprendizagem colaborativa, sendo
mediado e mediando em um processo continuado. Esse processo desenvolve zonas de
possibilidades que vão emergindo no processo interativo, situando-as em
contexto virtual similar ao ideal de uma comunidade acadêmica que partilha seus
saberes e (re)constrói suas práticas. É, portanto, o tear em que se vislumbram
as possibilidades de um ambiente virtual como espaço formativo do professor
universitário, colocando-se na base da ruptura com modelos de uma Pedagogia
Universitária tradicional e na direção das inovações da Educação Superior como
organização aprendente, em que os sujeitos do processo interatuam como
interlocutores, acessando os recursos tecnológicos como elementos de mediação
entre os saberes, as pessoas e as práticas sociais, estabelecendo relações
ampliadas, complexas, multiculturais e multirreferenciais, instituindo novas
significações (CUNHA; ISAIA, 2003, p. 374).
Salientando
a ideia, Alves afirma que mediação
pedagógica se caracteriza como “instrumento através do qual a práxis
pedagógica se interpõe entre o sujeito e o objeto do conhecimento e se coloca
com uma intencionalidade clara” [...]. (ALVES, 2012, p. 178). Nesse sentido,
considero que Galvão, Câmara e Jordão (2012), operam com esse conceito ao
afirmar que:
[...] o
professor é considerado um ponto essencial no contexto de aprendizagem. Cabe a
ele ou a ela coordenar o processo educativo, incluindo estratégias de ensino e
de avaliação fundamentadas na metacognição e na autorregulação. Assim, uma das
tarefas educativas do professor é a construção de ambientes de aprendizagem
profundos (ativos e motivadores), onde é dada ao estudante a oportunidade de
aprender a pensar, criticar, raciocinar e questionar certezas, incluindo a
metacerteza das verdades garantidas pelo acesso a métodos científicos (GALVÃO;
CÂMARA; JORDÃO, 2012, p. 633-634).
A
mediação com estudantes com deficiência pode requerer novas formas de abordagem
dos conteúdos, de organização dos espaços físicos e novas metodologias. Essa
constatação me reporta a uma experiência no curso de Pedagogia, em uma turma na
qual fui docente, composta por uma estudante cega. Desconhecendo
antecipadamente sua presença no grupo, na primeira aula do semestre planejei
atividades que previam a exploração de imagens. Um dos momentos da aula seria
uma vivência na qual cada estudante receberia uma tarja com a inscrição de um
rótulo que, indistintamente, deveria ser fixado na testa de um colega. A
atividade seria silenciosa, sem diálogo, acompanhada de expressões faciais e
corporais de forma que, por alguns momentos, cada estudante incorporasse aquele
papel. O intuito era refletirmos sobre o aspecto social da deficiência.
Identifiquei
a estudante cega logo ao ingressar na sala e, momentaneamente, fiquei sem saber
como conduziria a aula. Minha prudência docente faz com que eu sempre reserve
outras opções para as aulas, as quais denomino de “cartas na manga”. Por isso
não tive grandes dificuldades em mudar os encaminhamentos, porém, pensei nos
docentes ingressantes na profissão, ou que nunca atuaram com pessoas com
deficiência e que encontram dificuldades em reorganizar as atividades quando a
estratégia pedagógica pensada não se mostra eficiente. Entendo que algumas rupturas são propiciadas
pelo encontro entre o docente e o estudante que difere dos padrões que a
universidade e a escola em geral convencionou chamar de “normal”, o que demanda
a reorganização de metodologias ou de formas tradicionalmente adotadas para
conduzir a aula.
A
mediação pedagógica requer que seja assegurada a acessibilidade, que em muitas
situações, é condição para a aprendizagem e é compreendida como “possibilidade
e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços,
mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e
comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias [...]” (BRASIL, 2015, art.
2º).
Destaco, a seguir, algumas narrativas docentes
que permitem identificar a temática “mediação pedagógica”. Os docentes revelam
o empenho na aproximação com o estudante com deficiência, ao dedicar um tempo
maior nesse empreendimento, ao revelar atitudes de solidariedade, ancoradas nas
políticas de inclusão tomadas como uma verdade dos nossos tempos e uma
necessidade inquestionável, com amparo em um conjunto de dispositivos
legais.
O
Docente 4, graduado em Desenho Industrial e mestre em Educação, diante do
desafio de ensinar duas estudantes, uma surda e uma com deficiência física,
relata esse encontro como uma oportunidade de qualificar sua prática docente e
desenvolver a solidariedade diante de pessoas que, na sua concepção, são
desafiadas o tempo inteiro e precisam de mais cuidado e atenção. A ideia de confronto e aprendizagem mútua,
princípios da inclusão, estão nos relatos que seguem, primeiramente
referindo-se à estudante surda:
A gente acha que vamos dar um texto e ela vai entender, não
é. Então, você tem que dar vários exemplos, várias explicações práticas,
faladas, oralizadas e por meio de texto porque ela tem dificuldade também
textual. Então, eu tive que sair daquele modelinho: vou dar um texto e vamos
debater. Não dá, para essa aluna eu percebi que é muito forte a dificuldade com
o texto. Eu tenho outra aluna hoje, que tem dificuldade nas aulas de
fotografia. Ela tem paralisia parcial. Ela tem atrofia dos membros superiores.
Ela não consegue segurar uma câmera fotográfica ou um telefone celular (Docente
4).
Prossegui
o diálogo com o Docente 4, para compreender como acontece a aula de desenho com
a aluna com deficiência física apresentada no depoimento antecedente, que cursa
Design Visual. O professor revelou seu papel mediador na relação da estudante
com deficiência e a turma e seu empenho em encontrar outros caminhos para que
as atividades aconteçam, a exemplo de um aparato eletrônico que disponibiliza
para a estudante desenhar. Declara, o professor, que os colegas seguram a
câmera e ela faz o “click”, mas que já pensou em fazer um dispositivo que
segure a câmera na frente dela. Relata,
também, o desafio de ensinar fotografia à estudante surda que realiza leitura labial,
mas não domina a Língua Brasileira de Sinais (Libras) dizendo: “[...] em
conversa com a mãe, separado, depois com o pai, eu mostrei, de todas as formas,
mostrei os espaços de fotografia, mostrei que eu dou aula no escuro, e que é
impossível ela, sem intérprete, ler os meus lábios” (Docente 4).
Afirma
que busca convencer a própria aluna da necessidade de intérprete. Questiono,
porém, o quanto o intérprete é a solução para uma estudante que pouco conhece
Libras, que não se identifica com a língua de sinais, a ponto de precisar ser
convencida, inclusive com a mediação dos pais, acerca da necessidade de aderir
a esta modalidade de comunicação, ainda mais em ocasiões em que a aula acontece
no escuro, como em Fotografia. Observo que embora haja o empenho em apoiar o
estudante, existem desconhecimentos acerca da especificidade da identidade
surda. A história da educação dos surdos evidencia como esse público foi pensado predominantemente por educadores
ouvintes, embora em alguns tempos e espaços os surdos tenham se expressado com
veemência, questionando a submissão e práticas de normalização. A sociedade, de
forma geral, desconhece a cultura surda, que é representada pelo mundo visual e
por desconhecê-la, submete o surdo à cultura do colonizador, no caso, o ouvinte.
Veiga-Neto
e Lopes, apoiados em referenciais foucaultianos, adotam o termo governamento
para designar as ações de poder “[...] que objetivam conduzir (governar)
deliberadamente a própria conduta ou a conduta dos outros. [...] o conjunto das
ações – dispersadas, disseminadas e microfísicas do poder – que objetivam
conduzir ou estruturar as ações” (VEIGA-NETO; LOPES, 2007, p. 952). Os autores
prosseguem afirmando que,
Ao
passo que o poder é entendido como uma ação sobre ações possíveis – uma ação
sempre escorada em saberes –, o governamento manifesta-se quase como um
resultado dessa ação; na medida em que alguém coloca em funcionamento o poder
sobre outrem, esse alguém pode governar esse outrem. Pode-se dizer então que,
de certa maneira, o governamento é a manifestação ‘visível’, ‘material’, do
poder (VEIGA-NETO; LOPES, 2007, p. 952-953).
Por
sua vez, o Docente 1, graduado e Pedagogia, com especialização em Educação
Especial, Mestrado e Doutorado em Educação, expressa que, mesmo tendo formação
na área, sente-se “desinstalado” ao se deparar com alunos com deficiência nas
classes, o que demanda mudanças no planejamento das aulas. Relata que organiza
o processo pedagógico de forma a atender a turma como um todo.
Entretanto, eu preciso ter claro que com os estudantes com
deficiência os processos são bem diferentes. Os outros também são diferentes
entre si, mas essas diferenças não são tão explícitas. No caso uma pessoa cega,
uma pessoa surda ou com uma deficiência mental leve, que hoje a gente tem
sentido muito a presença deles na universidade [...] é gritante a diferença que
você tem (Docente 1).
O
Docente 1 revela conflitos entre o papel da educação superior, de atender ao
perfil profissional previsto nos Projetos Pedagógicos de Cursos de Graduação e
estudantes que fogem a esse padrão.
Na
lógica da inclusão, com a produção de subjetividades que atendam a esse
imperativo, passa-se a operar com o sujeito desejável às regras do
neoliberalismo, que é aquele passível de transformação, de autoinvestimento, o
sujeito empreendedor e consumidor. A subjetividade inclusiva determina que
quando o sujeito é limitado na construção desses atributos por si próprio,
deverá ser assumido pelo outro, no caso, pela universidade e pelo docente. Mas
como ser inclusivo numa sociedade competitiva? Concordo com Estrela quando
afirma que esses princípios contraditórios podem abalar a identidade das
universidades e dos docentes e criam dilemas éticos, sobretudo no campo da
avaliação, de como manter os padrões habituais de exigência e flexibilização
movidos pelos efeitos de uma subjetividade inclusiva. “É, pois, o possível
conflito entre justiça como equidade e justiça como igualdade que agudiza as
oposições entre rigor e objectividade da avaliação versus benevolência e subjectividade” (ESTRELA, 2010, p. 23).
Nesse
sentido, também Menezes se manifesta afirmando que a governamentalidade
neoliberal pressupõe relações de concorrência resultando na percepção do outro
como potencial competidor. “E então, considerando que uma das características
das subjetividades que eu nomeio como inclusivas é exatamente desejar ocupar-se
com o outro, como pensar em subjetividades que precisam ser inclusivas na
lógica da concorrência?” (MENEZES, 2011, p. 175). A autora afirma que procurou
entender acontecimentos escolares e que, ao fazê-lo, partiu da compreensão de
que,
[...]
o sujeito Moderno, produto das práticas escolares institucionalizadas e
obrigatórias, é condição de possibilidade para as ações inclusivas
contemporâneas. Esse sujeito consciente de si, subjetivado para
responsabilizar-se por sua autocondução de acordo com os princípios vigentes em
determinada época, é o sujeito que hoje precisa assumir para si os princípios
da governamentalidade neoliberal e que procura ocupar-se com o outro porque foi
subjetivado para esse fim, não por uma intencionalidade econômica, mas pela
compreensão de que assim estará fazendo o bem (a todos e a si próprio)
(MENEZES, 2011, p. 137).
Quem
faz a mediação entre o docente e os desafios por ele vivenciados ao deparar com
a diferença/deficiência? É possível conviver com o paradigma do poder docente,
historicamente naturalizado e até mesmo utilizado de forma exacerbada, diante
do apelo de ocupar-se do outro?
Menezes
afirma que as relações entre o Estado e a escola “passam a ser mediadas pelo
mercado, e assim vemos termos como flexibilidade, diferença, autonomia,
inclusão, empreendedorismo, habilidades e competências cognitivas, entre outros,
adentrando o espaço escolar” (MENEZES, 2011, p. 138).
Como
acontece a mediação pedagógica num contexto em que a inclusão escolar é tomada
como uma necessidade, que o estudante precisa ser incluído e a sociedade também
deve ser inclusiva? A inclusão, como sinônimo de acesso, é comemorada pelas
estatísticas educacionais. Contudo, a inclusão pelo prisma da aprendizagem está
em grande parte sob a responsabilidade dos docentes. O reconhecimento da
competência docente passa pela capacidade de trazer o “anormal” para a
normalidade. Nesse sentido, como respeitar o princípio da temporalidade
própria, tão precioso à educação especial, num contexto que determina tempos e
espaços iguais a estudantes diferentes? O que é concebido como inclusão e o que
pode ser compreendido como protecionismo e descompromisso com a educação? Que
apoio encontra o docente para constituir-se professor de estudantes com
deficiência?
Saliento
a afirmação e Estrela, no sentido que os docentes vivem um dilema, e são
pressionados por “[...] um ensino cada vez mais assente em valores de
eficiência e competitividade [...], pois nem sempre os métodos de ensino que
asseguram uma eficácia imediata são aqueles que são mais formativos sob o ponto
de vista intelectual e moral” (ESTRELA, 2010, p. 19).
Destaco,
na sequência a narrativa do Docente 6, graduado em Ciência da Computação -
Processamento de Dados, que possui uma trajetória de 25 anos na docência e
manifesta inquietação, mas também disposição para assumir o desafio de ensinar
e aprender com um estudante surdo:
[...]
às vezes, muitas vezes, é preciso dedicar meia hora explicando e desenhando no
quadro e atendendo, porque ele vem me procurar [...]. Então, eu conversei com o
pai dele, para ele ficar comigo aqui nessa salinha ao lado neste semestre, para
que eu possa retomar aquela minha disciplina, de coisas que eu sei que ele foi
para frente mas que ele precisa de um reforço [...]. Com um aluno que tem uma diferença mais acentuada, a gente também
aprende né, no sentido de fazer estas trocas, que é um lado mais humano mesmo.
E na hora de planejar a aula para esta turma que tem um aluno com deficiência,
isso exige de você pensar diferenciado [...]. (Docente 6).
O
Docente 2, graduado em Jornalismo e mestre em Comunicação Midiática, menciona
uma experiência peculiar no curso de Jornalismo, que é a presença de um
estudante cego cursando o componente curricular Fotografia.
Eu
precisava sempre me antecipar com um período razoável em relação aos textos. Em
relação aos materiais, como fotografias [...] para explicar perspectiva, eles
têm impressão em relevo. Então, eles conseguem com nem tanta dificuldade,
explicar algumas coisas, porque o aluno toca e o professor, vai explicando e
dando alguns direcionamentos conceituais sobre fotografia. [...] O que a gente
fez, foi dar uma atenção maior, explicando em outros horários, fazendo
atividades em que um aluno, um colega sentasse junto ou, que ele fosse tocando
enquanto eu fosse explicando o material, a câmera, para explicar o que é uma
objetiva, porque em geral a gente projeta isso né, no slide, e ele não tem
acesso a essas informações. Então, em relação a essa preparação, foi bastante,
foi maior, assim, exigiu um tempo maior e encontrar alternativas. [...] Eu precisei
buscar outras coisas, outras maneiras de dizer, de falar. Então, [...] acho que
a gente aprende mais do que leva, do que ensina. Pelo menos é como eu vejo a
docência, agora. (Docente 2).
O
protagonismo docente no processo de ensino e aprendizagem, bem como na
superação de barreiras atitudinais, procedimentais, comunicacionais,
metodológicas, entre outras é um elemento relevante para que a ação educacional
tenha êxito. Porém, essa é uma tarefa a ser compartilhada com a instituição. É
essencial que as universidades concebam o estudante com deficiência como um
sujeito com direito à acessibilidade, à aprendizagem, ou seja, mais do que um
número a comemorar nas estatísticas de pessoas com deficiência incluídas.
Gallo
questiona-se se Foucault teria algo a nos dizer sobre a escola enquanto
perspectiva de futuro e acena positivamente acerca desse seu questionamento,
expectativa da qual compartilho. Acredita que,
Se
a escola tem sido, assim como o exército, um dispositivo disciplinador, ela é
também um espaço social onde se exercem contrapoderes. Ele mostra-nos que na
relação pedagógica o aluno não é um mero paciente, mas é também um agente de
poder, o que deve levar-nos a repensar todo o ‘estrategismo pedagógico’ do qual
algumas vezes somos vítimas, outras vezes somos sujeitos (GALLO, 2004, p. 94).
Segundo
Gallo (2015, p. 442), Foucault nos convida “a pensar de outros modos: a
possibilidade de fazer uma escola outra na escola estabelecida” e nos provoca a
pensar acerca da “função inquietante das heterotopias versus função
‘acomodante’ das utopias” (GALLO, 2015, p. 437). Para Foucault (2007, p. XIII).
As
utopias consolam: é que, se elas não têm lugar real, desabrocham, contudo, num
espaço maravilhoso e lindo; abrem cidades com vastas avenidas, jardins bem
plantados, regiões fáceis, ainda que o acesso a elas seja quimérico. As
heterotopias inquietam, sem dúvida porque solapam secretamente a linguagem,
porque impedem de nomear isto e aquilo, porque fracionam os nomes comuns ou os
emaranham [...].
Foucault
nos ensina a tensionar, a desnaturalizar o que está posto, o que pensamos e
fazemos, e criar novas alternativas para a ação. Nos ajuda a compreender a
complexidade do processo de inclusão e de mediação pedagógica com estudantes
com deficiência. Nesse processo, os professores são desafiados a aprender com a
diferença, apropriar-se de conhecimentos relativos às tecnologias assistivas e
recursos didático-pedagógicos específicos à aprendizagem das diferentes
deficiências, criar novas possibilidades de organização de espaços e tempos,
repensar o que é ser professor, desenvolver nova percepção da escola, das
formas de aprender, de ensinar e de ser docente. Descobrem a pluralidade da
inclusão, passando a compreendê-la como uma palavra de múltiplos significados,
que provoca tensionamentos, angústias, desassossegos, mas também gera
mobilidade, apropriação do novo e desconstrução de olhares padronizados.
Deparar com a diferença provoca a ruptura com formas mecânicas de pensar, ser e
fazer, ao constatar que mesmo que o estudante seja colocado em categorias
(deficiência auditiva, deficiência física, deficiência intelectual, deficiência
visual, deficiência múltipla, etc...) é único e possui demandas particulares.
Em
que pese a ambivalência da inclusão, a expansão do acesso à educação superior
merece ser comemorada, apesar de suas diferentes faces e desafios. Os aspectos
legais não dão conta desse processo, mas mobilizam a sociedade para deparar com
cenários que já foram escondidos, negados, maquiados. As pessoas com
deficiência saíram dos muros dos hospícios, dos mosteiros, da Nave dos Loucos – Narrenschiff (relatada
por Foucault), das instituições especializadas. Esses movimentos são “verdades”
de cada tempo. Hoje, a verdade difundida pelos discursos da legislação, das
políticas, das mídias, acerca das pessoas com deficiência diz respeito à
inclusão. O encontro com os estudantes com deficiência permite que o
professor reflita sobre os discursos inclusivos reproduzidos mecanicamente,
como se fosse algo inquestionável, como se estivesse em curso um processo
natural de evolução. Contudo, é fato que a presença de estudantes com deficiência na
universidade, reverbera em políticas institucionais de inclusão, mobiliza a
comunidade acadêmica, desestabiliza o sistema
padronizado da universidade, e produz efeitos nas práticas docentes, na forma
de planejar, de conduzir a aula universitária e de avaliar a aprendizagem dos
estudantes. Para que a mediação pedagógica aconteça o professor universitário
poderá necessitar apropriar-se da tecnologia assistiva[4] que possibilite a
acessibilidade. O contato com a
diferença, provoca o tensionamento acerca da estrutura rígida da universidade,
revela a complexidade da proposta de inclusão e desnaturaliza o discurso
generalista da educação como um direito de todos, como algo romanceado ou fato
consolidado.
Os
docentes, por meio de algumas narrativas apresentadas, embora se manifestem
favoráveis à inclusão e dispostos a empenhar-se para o êxito da proposta,
revelam desconforto, inquietação, ao perceber o descompasso entre uma proposta
inclusiva e uma sociedade pouco generosa, pouco benevolente, que se organiza a
partir de critérios classificatórios e padronizadores. A lógica cristalizada do
professor que ensina, e o aluno que aprende, pode se romper a partir do
encontro com o estudante com deficiência, e o docente pode assumir o papel de
quem precisa aprender para poder ensinar e avaliar.
Considerações finais
Amparo-me
nas palavras de Gallo (2015, p. 447), para finalizar...
eu
diria que produzir heterotopias na escola em nossos dias é praticar uma
educação orientada para a vida, que não ponha acento exclusivo no saber. Uma
educação para além da vigilância e da disciplina, que seja capaz de transformar
o espaço panóptipo em um espaço de criação e de formação, um lugar de
experimentação em que seja possível conhecer-se a si mesmo e aprender a
inquietar-se consigo, a ‘converter o olhar para si mesmo’, como afirmou
Foucault, para que seja possível cuidar de si. Uma escola que se coloque para
além do assujeitamento, em que cada um possa ser capaz de pensar por si mesmo e
de aprender a viver por si mesmo, constituindo-se como sujeito neste processo.
A
pesquisa possibilitou a constatação do quanto a educação de pessoas com
deficiência requer sensibilidade para valorizar conquistas que podem não estar
explícitas nos currículos definidos previamente. A inclusão comemorada como estratégia de
socialização alterou uma cultura naturalizada da segregação, da separação.
Porém, atualmente, é necessário dar passos mais ousados e garantir o direito de
aprendizagem de todas as pessoas, e não apenas o direito de “estar”.
A educação inclusiva em qualquer nível de ensino é
um dos desafios educacionais, sociais e políticos de nosso tempo e pressupõe assegurar aos estudantes a igualdade de
oportunidades educacionais. A presença de estudantes com deficiência na
educação superior nos mostra que precisamos “do outro”, nos mostra a
incompletude que não está necessariamente nos sujeitos denominados deficientes,
mas na condição humana. A avaliação da aprendizagem que muitas vezes é adotada como uma
estratégia de controle, submissão e disciplinamento precisa dar lugar à
avaliação que diagnostica a contribui para a aprendizagem e o desenvolvimento.
Narrativas
dos docentes sujeitos deste estudo explicitam que uma das indagações e
desconfortos causados são relativos ao papel da universidade diante do
estudante que não se apropria das aprendizagens previstas no projeto do curso,
seja por lacunas na atuação docente e deficiências da própria universidade,
seja pelas fragilidades apresentadas pelo estudante na sua trajetória
estudantil ou próprias da deficiência. Como um exemplo, está a presença, na
educação superior, de estudantes com deficiência intelectual, que pouco se
apropriaram de habilidades como leitura, escrita, interpretação, entre outras,
consideradas essenciais a profissionais graduados.
A presença de estudantes com deficiência na
universidade é recente e, se considerarmos o público com deficiência
intelectual, que também adensa os números de ingressos na universidade, é
praticamente inédita. Resta saber se a universidade irá redimensionar seus
currículos para que este público também tenha lugar.
O
exercício da docência com “o diferente” é uma possibilidade para que o
profissional de distintas áreas do conhecimento, atuante na educação superior,
descubra que mesmo que domine o conteúdo específico e acumule títulos
acadêmicos isso não basta, pois a docência é outra profissão, é o encontro com
o novo, com a diferença. Para que a inclusão não seja apenas o direito de
presença, mas também o direito de aprendizagem, a mediação docente se torna
essencial.
A inclusão de forma genérica, muitas vezes
romanceada, merece ser tensionada para que o sujeito da inclusão, suas
necessidade e singularidades ganhem o espaço necessário, desobrigando-o da
classificação, da categorização, da normatização e da normalização. Tensionar a inclusão é refletir acerca de processos que
nos subjetivam e governam, que nos fazem assumir como verdades pressupostos que
nos causaram, ou causarão estranhamento em algum tempo.
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Correspondência
Tania
Mara Zancanaro Pieczkowski – Professora doutora da Universidade
Comunitária da Região de Chapecó, Chapecó, Santa Catarina, Brasil.
Universidade Comunitária da Região de Chapecó. Avenida
Senador Atílio Fontana, 591 E. Efapi. CEP: 89809000. Chapecó, Santa Catarina,
Brasil.
ORCID
iD: http://orcid.org/0000-0002-5257-7747
E-mail: taniazp@unochapeco.edu.br
This work is licensed under a Creative Commons
Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)
[1] Este texto, originalmente, foi
aprovado numa das reuniões da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em Educação - ANPED, para apresentação e publicação. Para esta versão, passou
por alterações.
[2] Os entrevistados para a pesquisa que
resultou na tese de doutorado receberam numeração de 1 a 10, de acordo com a
sequência em que as entrevistas aconteceram. Neste texto mantive a numeração
original da totalidade dos entrevistados.
[3] As abordagens e os instrumentos
metodológicos utilizados obedeceram aos procedimentos éticos estabelecidos para
a pesquisa científica em Ciências Humanas.
[4] Tecnologia Assistiva é
uma área do conhecimento, de característica interdisciplinar, que engloba
produtos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que
objetivam promover a funcionalidade, relacionada à atividade e participação, de
pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade reduzida, visando sua
autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social. (BRASIL, 2009,
p. 26).