Desenho de rosto de pessoa visto de perto

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Rev. Enferm. UFSM, v.13, e54, p.1-14, 2023

ISSN 2179-7692 •

Submissão: 11/07/2023 • Aprovação: 13/11/2023 • Publicação: 15/12/2023

Tela de computador com texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Introdução  1

Método  1

Resultados 1

Discussão  1

Conclusão  1

Referências  1

 

Artigo original                                                                                                                                                                              

Violência no trabalho de policiais militares*

Violence in the work of military police officers

Violencia en el trabajo de policías militares

 

Letícia de Lima Trindade I-IIÍcone

Descrição gerada automaticamente

Andressa Lurdes FagundesIÍcone

Descrição gerada automaticamente

Mirian Vanessa GarczalIÍcone

Descrição gerada automaticamente

Samuel Spiegelberg ZugeIÍcone

Descrição gerada automaticamente

Maiara Daís SchoeningerIÍcone

Descrição gerada automaticamente

Júlia GraselIÍcone

Descrição gerada automaticamente

 

I Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ). Chapecó, SC, Brasil

II Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC, Chapecó, SC, Brasil

 

 

* Extraído do Trabalho de Conclusão de Curso “Violência no Trabalho da Polícia Militar”, graduação em Enfermagem, Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ), 2022.

 

 

Resumo

Objetivo: avaliar a violência no trabalho de policiais militares. Método: estudo quantitativo, transversal, realizado com 111 policiais militares de um município de Santa Catarina, Brasil. A coleta de dados utilizou questionário sociolaboral e Survey Questionnaire Workplace Violence. Os dados foram analisados por meio de estatística descritiva e inferencial. Resultados: a agressão verbal foi a mais frequente, seguida da violência física, do assédio moral e do assédio sexual. O assédio racial não emergiu. A violência física associou-se aos anos de trabalho (p=0,017); a agressão verbal com idade (p=0,028) e anos de trabalho (p=0,003), a intimidação/assédio moral com grau de satisfação com o trabalho (p=0,016), nível de reconhecimento pelo trabalho realizado (p=0,048) e nível de relacionamento interpessoal (p=0,016). Evidenciou-se preocupação com a violência e a falta de registro das violências. Conclusão: a violência no trabalho dos policiais requer melhor enfrentamento, sensibilização e ações de proteção laboral.

Descritores: Violência no Trabalho; Saúde Ocupacional; Polícia; Saúde Pública; Vigilância em Saúde do Trabalhador

 

Abstract

Objective: to evaluate violence in the work of military police officers. Method: a quantitative, cross-sectional study carried out with 111 military police officers from a municipality in Santa Catarina, Brazil. Data collection used a socio-occupational questionnaire and Survey Questionnaire Workplace Violence. Data were analyzed with descriptive and inferential statistics. Results: verbal aggression was the most frequent, followed by physical violence, bullying and sexual harassment. Racial harassment did not emerge. Physical violence was associated with years of work (p=0.017); verbal aggression with age (p=0.028) and years of work (p=0.003), bullying/moral harassment with degree of job satisfaction (p=0.016), level of recognition for the work performed (p=0.048) and level of interpersonal relationship (p=0.016). There was concern about violence and the lack of registration of violence. Conclusion: the violence at work of police officers requires better coping, awareness and labor protection actions.

Descriptors: Workplace Violence; Occupational Health; Police; Public Health; Surveillance of the Workers Health

 

Resumen

Objetivo: evaluar la violencia en el trabajo de policías militares. Método: estudio cuantitativo, transversal, realizado con 111 policías militares de un municipio de Santa Catarina, Brasil. Para la recolección de datos se utilizó un cuestionario socio-laboral y Survey Questionnaire Workplace Violence. Los datos fueron analizados mediante estadística descriptiva e inferencial. Resultados: la agresión verbal fue la más frecuente, seguida de la violencia física, el acoso moral y el acoso sexual. El acoso racial no surgió. La violencia física se asoció con los años de trabajo (p=0,017); agresión verbal con edad (p=0,028) y años de trabajo (p=0,003), intimidación/acoso moral con grado de satisfacción con el trabajo (p=0,016), nivel de reconocimiento por el trabajo realizado (p=0,048) y nivel de relaciones interpersonales (p=0,016). Hubo evidencia de preocupación por la violencia y la falta de registro de la violencia. Conclusión: la violencia en el trabajo entre agentes policiales requiere de mejores acciones de enfrentamiento, sensibilización y protección laboral.

Descriptores: Violencia Laboral; Salud Laboral; Policía; Salud pública; Vigilancia de la Salud del Trabajador

 

 

Introdução

Mundialmente, a violência no ambiente de trabalho é considerada um problema de saúde pública.1 Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência no trabalho é caracterizada pelo uso intencional de força física ou ameaça, que resulta ou pode resultar em lesão, morte ou danos. Ainda, a violência pode ser classificada em física e psicológica, a segunda subdividida em agressão verbal, assédio moral, assédio sexual e discriminação racial.2 A Organização Internacional do Trabalho (OIT) conceitua o fenômeno como comportamentos e práticas inaceitáveis que ocorrem uma única vez ou repetidamente e causam danos físicos, psicológicos e sexuais a um trabalhador ou grupo de trabalhadores.3

Estimativas mostram que a cada ano, em média, um milhão de pessoas perdem a vida ou sofrem em decorrência de ferimentos resultantes de agressões interpessoais, coletivas e até mesmo a autoagressão.4 Nesse sentido, a violência, nas suas mais variadas formas, trata-se de um problema que atualmente desafia o Estado e faz com que a população seja refém de uma situação5 para a qual há poucos dispositivos de enfrentamento no campo das políticas públicas. Ainda, nesse cenário social, destaca-se o policial militar, que é considerado um profissional fortemente suscetível a sofrer e vivenciar episódios de violência no trabalho.6

Em relação às suas atividades laborais, o policial militar realiza rondas ostensivas e preventivas de manutenção da segurança e ordem pública, condição que, por consequência, faz com que esse profissional, geralmente, seja o primeiro a chegar ao local da infração, furto ou ocorrências violentas.7 Nesse momento, sua função envolve adotar medidas para controle da situação, sendo expostos a inúmeros riscos, entre eles a ocorrência da violência física e das violências psicológicas (agressão verbal, intimidação/bullying, assédio sexual e assédio racial).8

Estudos9-10 enfatizam a importância do tema considerando ainda o papel desse trabalhador na segurança pública, o qual se expõe no processo de trabalho à violência real e também simbólica. Para muitos trabalhadores, não atender às demandas institucionais, sociais ou famíliares é sinônimo de fracasso, aumentando as frustrações e a autoculpabilização, diminuindo, assim, a sensação de realização e favorecendo adoecimentos no âmbito físico e psicológico.9 Nesse contexto, a falta de reconhecimento da sociedade se apresenta como o principal fator relacionado ao estresse no trabalho.10

Com o crescimento demográfico e consequente aumento da criminalização, a atuação na polícia militar é considerada uma das profissões mais perigosas no Brasil.11 Como reflexo disso, esse trabalhador fica vulnerável a diferentes situações de violência.12 Neste sentido, o diagnóstico situacional é essencial para a prevenção do fenômeno, bem como promoção de um ambiente de trabalho mais seguro e saudável.13 Assim sendo, objetivou-se avaliar a violência no trabalho de policiais militares.

 

Método

Realizou-se um estudo quantitativo, descrito, transversal, em um Batalhão de Polícia Militar localizado no Oeste de Santa Catarina, Brasil. Baseou-se nos guidelines do Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE).

Os participantes foram policiais militares, sendo utilizado como critério de inclusão atuar como policial militar, nos serviços operacional e/ou administrativo, por no mínimo 12 meses. Excluíram-se os profissionais afastados por qualquer motivo no período da coleta de dados.

 Na recolha dos dados, de agosto a outubro de 2021, estavam lotados no cenário de interesse 206 policiais militares, considerando-se intervalo de confiança de 95% e erro amostral de 6%. A amostra foi composta de 111 participantes. Contemplaram-se as orientações estatística da quantidade de trabalhadores da categoria e representatividade para atingir a confiabilidade nos resultados. Os policiais foram abordados durante a troca de turno mediante convite, aceite e agendamento prévio.

Em um local reservado, os participantes responderam a um questionário sociolaboral contendo: sexo; idade; cor da pele; possuir companheiro(a); uso de tabaco; uso de álcool; doenças crônicas; uso de medicações controladas; média de horas de sono; tempo de experiência na área de polícia militar; e possuir cargo de praça ou oficial. Além disso, aplicou-se a Survey Questionnaire Workplace Violence proposta pela OIT e de Serviços Públicos e Conselho Internacional de Enfermagem,2 traduzida para a língua portuguesa.14  Esse questionário contempla 29 questões, no qual se abordam dados gerais e a ocorrência de violência física e psicológica (agressão verbal, assédio moral, assédio sexual e discriminação racial) nos últimos 12 meses.14 Para cada tipo de violência, são questionados quem foram os agressores, as reações da vítima e os problemas vivenciados.

Após a coleta de dados, os dados foram digitados no software Epi Info 7.0, version windons, e posteriormente analisados no software Statiscal Package for the Social Sciences, versão 21.0. As variáveis quantitativas foram descritas por meio de medidas de tendência central. As variáveis categóricas foram apresentadas em frequências absolutas e relativas. Além disso, realizaram-se análises de associação com auxílio do teste de quiquadrado de Pearson, relacionando os tipos de violência e as características sociolaborais dos policiais militares.

A pesquisa respeitou os aspectos éticos da Resolução n. 466/2012, 510/2016, 580/2018, do Ministério da Saúde, sendo aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Comunitária da Região de Chapecó sob parecer 4.918.501, em 19 de agosto de 2021.

 

Resultados

Participaram do estudo 111 policiais militares, sendo 85,8% do sexo masculino, com idade média de 36,5 anos (± 6,8 anos), variando de 26 a 57 anos, de raça branca (75,2%), casados (59,5%) e com um a dois filhos (59,6%). Além disso, 6,3% eram tabagistas, 77,5% ingeriam bebida alcoólica, 30,6% apresentavam alguma doença crônica e 27,9% faziam a utilização de alguma medicação diária (Tabela 1).

 

Tabela 1 – Perfil dos policiais militares do município do Oeste de Santa Catarina, 2021 (n= 111)

Variáveis

n

%

Sexo (n=106)

     Masculino

Feminino

 

91

15

 

85,8

14,2

Idade (n=108)

      Menos de 31 anos

Dos 31 aos 40 anos

Dos 41 aos 50 anos

Mais de 50 anos

 

17

59

31

1

 

15,7

54,6

28,7

0,9

Raça (n=109)

Branca

Negra

Parda

 

82

2

25

 

75,2

1,8

22,9

Situação conjugal 

Casado

Solteiro/Separado/Divorciado

 

66

45

 

59,5

40,5

Número de Filhos (n=104)

Nenhum

Um a dois filhos

Mais de dois filhos

 

35

62

7

 

33,7

59,6

6,7

Tabagismo

Sim

Não

 

7

104

 

6,3

93,7

Ingestão de bebida alcoólica

Sim

Não

 

86

25

 

77,5

22,5

Apresenta alguma doença crônica

Sim

Não

 

34

77

 

30,6

69,4

Faz uso de alguma medicação de uso contínuo

Sim

Não

 

31

80

 

27,9

72,1

 

Com relação às características laborais dos policiais militares, destaca-se que 97,3% atuavam na função de praça, ou seja, atuantes nas ruas e no policiamento ostensivo e nas atividades de preservação da ordem e 35,1% estavam de 6 a 10 anos nessa profissão. Além disso, 70% apresentavam um elevado nível de satisfação pelo trabalho, 49,5% de reconhecimento institucional e 76,4% avaliaram positivamente o relacionamento com a equipe de trabalho (Tabela 2). 

 

 

 

Tabela 2 – Características laborais de policiais militares do município do Oeste de Santa Catarina. 2021 (n= 111)

Variáveis

n

%

Anos de trabalho como policial militar

1 a 5 anos

6 a 10 anos

11 a 20 anos

Mais de 20 anos

 

18

39

23

31

 

16,2

35,1

20,7

27,9

Função na instituição 

Praça

Oficial

 

108

3

 

97,3

2,7

Grau de satisfação com o trabalho (n=110)

Baixo

Moderado

Elevado

 

8

25

77

 

7,3

22,7

70

Nível de reconhecimento pelo trabalho realizado/institucional (n=109)

Baixo

Moderado

Elevado

 

26

29

54

 

23,8

26,6

49,5

Nível de relacionamento interpessoal no trabalho (n=110)

Baixo

Moderado

Elevado

 

7

19

84

 

6,4

17,3

76,4

 

Acerca dos aspectos gerais relacionados à violência no ambiente de trabalho, os policiais militares demonstraram um elevado nível de preocupação com a violência (40%) e destacaram que têm contato físico frequente com as vítimas nas ocorrências (51,4%).

Quanto ao relato da violência no ambiente de trabalho, 75% dos policiais militares informaram que existem procedimentos preconizados pela instituição para que, caso um policial militar sofra algum tipo de violência, ocorra sua documentação. No entanto, 67,3% dos participantes apontaram que não são estimulados a fazer o relato da violência.

Ao avaliar os tipos de violência, os policiais militares relataram que nos últimos 12 meses sofreram violência física (30,6%) e violência psicológica, como agressão verbal (41,4%), intimidação/assédio moral (24,3%) e assédio sexual (5,4%). O assédio racial não emergiu entre os participantes.

Dentre os problemas vivenciados em relação à violência física, os policiais militares apontaram que 35,5% se sentiram pouco incomodados em relação às memórias, pensamentos ou imagens perturbadoras da agressão; 32,3% sentiram-se moderadamente incomodados em pensar ou falar sobre a agressão; 35,5% sentiram-se extremamente incomodados, pois ficaram alertas, vigilantes, constantemente tensos após a agressão. Além disso, 29,0% manifestaram sentimento de que suas atividades passaram a ser penosas.

Os policiais militares que sofreram a agressão verbal (n=46) em algumas situações acabaram não a relatando, sendo que 43,5% não consideraram importante, 13,0% não sabiam a quem relatar e 10,9% consideraram que de qualquer forma não seriam tomadas providências.  O mesmo aconteceu com o relato da intimidação/assédio moral, em que 25,9% não consideraram importante; 7,4% sentiram-se envergonhados; 3,7% sentiram-se culpados; 14,8% não sabiam a quem relatar; 11,1% ficaram com medo de consequências negativas; e 11,1% consideraram que de qualquer forma não seriam tomadas providências.

Ao relacionar o perfil e as características laborais dos policiais militares com os tipos de violência, identificou-se uma associação significativa entre violência física e anos de trabalho como policial militar (p=0,017); violência psicológica: agressão verbal com idade (p=0,028) e anos de trabalho como policial militar (p=0,003); violência psicológica: intimidação/assédio moral com grau de satisfação com o trabalho (p=0,016), nível de reconhecimento pelo trabalho realizado (p=0,048) e nível de relacionamento interpessoal no trabalho (p=0,016). O assédio sexual não apresentou associação significativa com o perfil e as características laborais dos policiais militares.

 

Discussão

Por meio deste estudo, observou-se que os policiais militares são em sua maioria do sexo masculino, de 31 a 40 anos de idade, casados, autointitulados da raça branca, com um ou dois filhos e que fazem uso de bebida alcoólica, tendo como predomínio do público investigado os policiais que atuam como praças.

Os profissionais que atuam na função de praça têm por princípio atuar no serviço operacional, ou seja, manter a ordem pública em conformidade com a lei, enquanto os oficiais ficam responsáveis pelo trabalho interno, especificamente no gerenciamento da instituição.15 O policial militar definido como praça, por consequência do serviço que executa, fica exposto aos mais variados tipos de violência que, quando prolongada, pode desencadear doenças ocupacionais.16

 Pesquisa retoma que, com o crescimento da criminalização, o policial militar chegou a uma situação desfavorável, na qual sua exposição diária eleva o risco de perda da vida. Em resposta a esse cenário, tornam-se vulneráveis a comorbidades associadas ao estresse, disfunções físicas e transtornos mentais.12 Nesse sentido, pesquisa mostra que as jornadas excessivas de trabalho, o estresse cotidiano, o trabalho noturno sob forte tensão, o esforço físico elevado e a exposição às variações climáticas resultam em distúrbios físicos, como fadiga, sinusite, dores musculares e insônia. 9

No que se refere aos hábitos de vida, observou-se a prevalência do consumo de álcool entre essa classe. À medida que o uso dessa substância se torna recorrente o indivíduo passa a desenvolver tolerância aos seus efeitos, como a perda de reflexo e da memória, visto que ocorre uma adaptação do Sistema Nervoso Central e do organismo.17 Além disso, o uso do álcool pode comprometer a coordenação motora e prejudicar a capacidade de julgamento, bem como incorrer em deficit de equilibro e tremores dentre outros efeitos que o seu uso prolongado pode causar.18 Tais efeitos podem ter consequências graves no trabalho do policial militar, na sua família e também para a sociedade.19 Isso revela, ainda, uma tendência à tomada de medidas de enfrentamento somente individuais dos problemas no trabalho.

A pesquisa mostrou que, nos últimos 12 meses, 30,6% dos policiais foram vítimas de violência física no local de trabalho, 41,4% sofreram agressão verbal, 24,3% assédio moral/intimidação e 5,4% assédio sexual. Os achados reforçam que a sociedade vem sofrendo um crescente aumento de violência. Quanto à violência física, somente em 2021, 198 policiais foram assassinados durante o trabalho ou até mesmo no seu horário de folga.20 Ainda, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, as mortes estão relacionadas a homicídio doloso, latrocínio, acidentes automobilísticos e lesão corporal seguida de morte.20 Além disso, o risco de violência física ou lesão também é um fator que amplia demasiadamente o estresse. Esse tipo de violência e lesões corporais pode ocorrer também durante imobilizações, perseguições e superação de obstáculos.10

Em relação à violência psicológica, por ser de difícil identificação e comprovação, inúmeras vezes é naturalizada e banalizada. No entanto, esta causa impactos negativos à  saúde psíquica e física dos trabalhadores.21 Dados apontam que, em 2022, o aumento de suicídio entre policiais foi de 55,4% em comparação ao ano anterior, totalizando mais 121 vítimas,20 reforçando, assim, a importância de discutir acerca da saúde mental desses trabalhadores e suas condições de trabalho.

Nessa direção, a pesquisa mostrou que inúmeros são os problemas físicos e psicológicos vivenciados pelo profissional após a ocorrência da violência. O estudo mostrou que 75% dos policiais militares informaram que existem procedimentos de relato da violência, no entanto 67,3% dos participantes apontaram que não são estimulados a realizá-lo. Decorrente disso, torna-se impossível identificar e produzir relatórios sobre agravos à saúde dos policiais militares no país a partir dos sistemas de informação do Ministério da Saúde, inviabilizando, dessa forma, a construção de indicadores de saúde desses profissionais.22

O relato ou notificação é importante, visto que toda violência praticada contra um policial militar é considerada crime conforme o Código Penal.23 As consequências para os perpetradores das violências são detenção e/ou prisão. A detenção é aplicada para condenações mais leves, não admitindo que o início do cumprimento seja em regime fechado, podendo ser cumprida em regime semiaberto ou casa do albergado. A prisão é quando o suspeito é pego em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, podendo iniciar o cumprimento da pena em regime fechado.23 Para além da necessidade de condutas contra o perpetrador, é fundamental que medidas institucionais preparem continuamente os policiais para o enfrentamento da violência e que recebam suporte psicológico e orientação perante as vivências violentas.

Mesmo diante da elevada incidência dos diferentes tipos de violência entre os policiais militares, a pesquisa mostrou que 70% dos participantes apresentam um elevado nível de satisfação no trabalho. A satisfação no trabalho pode ser reconhecida como o estado emocional positivo e/ou agradável mediante o qual o trabalhador se sente realizado com suas atividades diárias.24 Ainda, estudo mostra que o profissional satisfeito tem maior facilidade para trabalhar em equipe e apresenta maior produtividade e menor exaustão física, psicológica e mental.25

Cabe salientar que o aumento de casos de violência, aliado à dificuldade de identificar seus reflexos e impactos na população trabalhadora, repercute no enfrentamento desqualificado do problema, gerando casos mais graves e fatais entre os trabalhadores.26

As consequências negativas da violência sobre a saúde dos indivíduos são cada vez mais frequentes nos mais variados locais, sejam intrafamiliares, comunitários ou no ambiente de trabalho.21 Logo, isso impacta a vida das pessoas, pois afeta o contexto de vida e saúde, podendo, quando relacionado às atividades laborais, impactar no número de afastamentos do ambiente de trabalho, no presenteísmo, na impossibilidade de praticar determinadas ações por conta de sequelas ou, ainda, acabar evoluindo para resultados de maior gravidade.2

A violência, nas suas mais variadas formas, trata-se de um problema que atualmente desafia o Estado e faz a população refém de uma situação que não encontra espaço e limites para sua ocorrência. Os trabalhadores da iniciativa e do setor público, especificamente policiais militares, convivem diariamente com esse problema, o que traz inúmeras consequências.5

Por muitas vezes, sem horários ou escalas de trabalho fixas, vivenciando diariamente ações violentas e arriscando suas vidas, os policiais militares são frequentemente expostos a fatores que podem contribuir para o adoecimento psíquico, resultando em episódios de estresse, transtornos de ansiedade e depressivos e, por inúmeras vezes, em casos mais graves, afastamentos das funções laborais e até mesmo suicídio.10,27 A partir dessa perspectiva, percebe-se que o afastamento do trabalho de policiais militares, em grande parte das vezes, ocorre em decorrência de situações resultantes de violência, evoluindo para problemas físicos e psicológicos, causando prejuízo às relações familiares e sociais e outras situações desconfortáveis.6

Por meio da Convenção 190/2019 da OIT reconheceu-se que a violência e o assédio no trabalho violam os direitos humanos e ameaçam a igualdade de oportunidade, sendo, dessa forma, incompatíveis com o trabalho decente. Como a violência e o assédio no ambiente de trabalho trazem tais prejuízos aos trabalhadores, é preciso combater esse tipo de eventos danosos.3,28

Outro dado é que 27% dos participantes são de outras raças que não a branca e 14,2% deles são do sexo feminino. Diante do exposto, torna-se indispensável buscar estratégias de inclusão, as quais passam por questões de gênero e raça dos contextos socioculturais, bem como de prevenção e enfrentamento da violência no ambiente laboral.29 A violência no local de trabalho da polícia militar precisa deixar de ser considerada como típica, frequente e corriqueira, para isso o fenômeno precisa de debates, evidências e estratégias de ação.

Entre as limitações do estudo, tem-se a impossibilidade de abordar trabalhadores afastados, os quais podem ter vivências de violência que contribuiriam para compreensão do tema, além do seu recorte transversal e sua amostragem por conveniência.

Entretanto, este estudo contribui para um diagnóstico situacional sobre a violência vivenciada pelos policiais militares e amplia a ótica do processo cíclico da violência.

Investigações com outros profissionais destacam que a análise de variáveis que se associam aos tipos específicos de violência permite determinar medidas e políticas institucionais que minimizem os atos violentos.30 O reconhecimento do fenômeno pode proporcionar formas eficientes de prevenção e enfrentamento, evitando consequências danosas e irreversíveis aos trabalhadores e à segurança pública. Ainda, esta pesquisa vai de encontro aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS - nº 8.8), os quais destacam a proteção dos direitos trabalhistas e a promoção de ambientes de trabalho seguros e protegidos para todos os trabalhadores.

 

Conclusão

O estudo identificou os tipos de violência predominantes entre os policiais militares, sendo, respectivamente, a agressão verbal, seguida por violência física, intimidação/assédio moral e violência sexual. Esses profissionais consideram essas situações como típicas, contudo demonstram elevado nível de preocupação, relatando ausência de incentivo de seus superiores para relatar o ocorrido. 

Os achados alertam para a necessidade de incentivo dos relatos e notificações da violência sofrida, evitando, assim, a banalização desses eventos.

Os desafios do mundo dinâmico, bem como as transformações dos contextos laborais, exigem alternativas reflexivas e eficazes de enfrentamento da violência laboral. Bancos de dados e/ou observatório sobre os tipos de violências vivenciadas por esses profissionais são ferramentas que permitem melhor diagnóstico do problema e acompanhamento, as quais podem orientar estratégias e ações de intervenções contínuas de modo intersetorial e multidisciplinar, bem como medidas institucionais como os grupos de apoio e suporte psicológico a esses trabalhadores.

Ainda, os achados contribuem como matéria para o desenvolvimento da Saúde do Trabalhador, na promoção da saúde e prevenção da violência no local de trabalho, e para a disseminação de conhecimentos nessas áreas.

 

Referências

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Contribuições de autoria

1 – Andressa Lurdes Fagundes

Enfermeira, graduação - andressafagundes@unochapeco.edu.br

Concepção, desenvolvimento da pesquisa e redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

2 – Mirian Vanessa Garczal

Enfermeira, graduação - mirianvanessa1@unochapeco.edu.br

Concepção, desenvolvimento da pesquisa e redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

3 – Letícia de Lima Trindade

Enfermeira e Docente - letrindade@hotmail.com

Concepção, desenvolvimento da pesquisa e redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

4 – Samuel Spiegelberg Zuge

Enfermeiro e Docente - samuel.zuge@unochapeco.edu.br

Concepção, desenvolvimento da pesquisa e redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

5 – Maiara Daís Schoeninger

Autor Correspondente

Enfermeira, Doutoranda - maia_schoeninger@hotmail.com

Redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

6 – Júlia Grasel

Fisioterapeuta, Doutoranda - julia_grasel@unochapeco.edu.br

 Redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

 

Editora Científica: Tânia Solange Bosi de Souza Magnago

Editora Associada: Rosângela Marion da Silva

 

 

Como citar este artigo

Fagundes AL, GarczalI MV, Trindade LL, Zuge SS, Schoeninger MD, Grasel J. Violence in the work of military police officers. Rev. Enferm. UFSM. 2023 [Access at: Year Month Day]; vol.13, e54:1-14. DOI: https://doi.org/10.5902/2179769284403