Desenho de rosto de pessoa visto de perto

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Rev. Enferm. UFSM, v.13, e46, p.1-13, 2023

ISSN 2179-7692 •

Submissão: 29/04/2023 • Aprovação: 11/10/2023 • Publicação: 21/11/2023

Tela de computador com texto preto sobre fundo branco

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Introdução  3

Método  4

Resultados e discussão  5

Conclusão  11

Referências  12

 

Artigo de Reflexão                                                                                                                                                                      

Ensino remoto emergencial na pós-graduação stricto sensu durante a pandemia da covid-19: estudo de reflexão*

Emergency remote teaching in stricto sensu graduate courses during the covid-19 pandemic: a reflection study

Docencia remota de emergencia en posgrado stricto sensu durante la pandemia de covid-19: estudio de reflexión

 

Andressa Silva Torres dos SantosIÍcone

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Agostinho Antônio Cruz AraújoIIÍcone

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Rodrigo Mota de OliveiraIIIÍcone

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Lucila Castanheira NascimentoIVÍcone

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Silvia MatumotoVÍcone

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Adriana Katia CorrêaVIÍcone

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I Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil

 

 

*Desenvolvido a partir da participação na disciplina de Pós-Graduação ERE 5522: A Pós-Graduação e o Pós-Graduando: formação e pesquisa, da Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, no ano de 2021.

 

Resumo

Objetivo: refletir sobre o ensino remoto, utilizado na pandemia da covid-19, na pós-graduação stricto sensu no contexto da universidade. Método: estudo de reflexão, apoiado em levantamento bibliográfico que permitiu o reconhecimento do predomínio do enfoque técnico, analisado à luz de autores cujo referencial teórico articula a educação e a universidade às relações sociais. Resultados: a análise do ensino remoto demanda uma investigação acerca da sua relação com mudanças que vêm se processando na universidade no cenário neoliberal, valorizando projetos de educação e sociedade com foco mercadológico, influenciando a produção do conhecimento, a formação do pesquisador e do professor da educação superior. Conclusão: ultrapassar a dimensão técnica para a apropriação da dimensão ético-política presente no ensino remoto e nos seus possíveis desdobramentos pós-pandêmico é fundamental, pois o potencial do ato educativo, em termos do encontro entre professor e aluno e da apropriação do conhecimento, não é efetivamente alcançado no ensino remoto.

Descritores: COVID-19; Educação de Pós-Graduação; Ensino; Pandemias; Universidades

 

Abstract

Objective: to reflect on remote teaching, used during the covid-19 pandemic, in stricto sensu graduate studies in the university context. Method: this is a reflection study, supported by a bibliographical survey that allowed the recognition of the predominance of the technical focus, analyzed in the light of authors whose theoretical framework articulates education and university with social relations. Results: the analysis of remote teaching demands an investigation into its relationship with changes that have been taking place at universities in the neoliberal scenario, valuing education and society projects with a marketing focus, influencing knowledge production, researcher and professor training. Conclusion: going beyond the technical dimension to appropriating the ethical-political dimension present in remote teaching and its possible post-pandemic developments is fundamental, as the educational act’s potential, in terms of the meeting between professor and student and appropriation of knowledge, is not effectively achieved in remote teaching.

Descriptors: COVID-19; Education, Graduate; Teaching; Pandemics; Universities

 

Resumen

Objetivo: reflexionar sobre la enseñanza a distancia, utilizada durante la pandemia de covid-19, en los estudios de posgrado stricto sensu en el contexto universitario. Método: se trata de un estudio de reflexión, sustentado en un levantamiento bibliográfico que permitió reconocer el predominio del enfoque técnico, analizado a la luz de autores cuyo marco teórico articula la educación y la universidad con las relaciones sociales. Resultados: el análisis de la enseñanza a distancia exige una investigación sobre su relación con los cambios que se vienen produciendo en la universidad en el escenario neoliberal, valorar proyectos de educación y sociedad con enfoque de marketing, incidiendo en la producción de conocimiento, la formación de investigadores y docentes de educación superior. Conclusión: ir más allá de la dimensión técnica para apropiarse de la dimensión ético-política presente en la enseñanza a distancia y sus posibles desarrollos pospandemia es fundamental, ya que las potencialidades del acto educativo, en cuanto al encuentro entre docente y alumno y la apropiación del conocimiento, no se logra efectivamente en la enseñanza remota.

Descriptores: COVID-19; Educación de Postgrado; Enseñanza; Pandemias; Universidades

 

Introdução

Em 2020, no cenário global, a pandemia da covid-19 interrompeu as atividades presenciais de 91% dos estudantes. Em mais de 150 países, a adoção de medidas de proteção ocasionou a interrupção, provisória ou não, das atividades das instituições de ensino, como escolas, faculdades e universidades.1 Tal medida fundamentou-se em estatísticas científicas, que estimavam um período em torno de 90 dias de quarentena.2

No Brasil, o Ministério da Educação (MEC), sob a Portaria nº 343, de 17 de março de 2020, autorizou as atividades de ensino em meios digitais, em substituição às aulas presenciais, em virtude da realidade imediata imposta pela pandemia da covid-19.3 Assim, as Instituições de Ensino Superior (IES) mantiveram parte de suas atividades de forma remota, utilizando plataformas virtuais para dar continuidade ao ensino, inclusive no contexto da pós-graduação. Contudo, o sistema síncrono impõe dificuldades ao estudante e ao docente, principalmente no que diz respeito ao manejo dos recursos on-line, à qualidade dos aparelhos para acesso à internet e à dificuldade de usabilidade na interface de alguns aplicativos utilizados.4

Atualmente, nota-se que o processo educacional acompanha as inovações científicas e tecnológicas. Em contrapartida, se considerados o volume e as dimensões dessas ações, elas podem ocasionar um objetivo contrário, impedindo o avanço pedagógico.5-6 Desse modo, essas inovações permitiram o início do ensino remoto como uma mudança temporária e alternativa em cenário emergencial, de crise, valendo-se para tanto do uso de estratégias remotas para situações de ensino que seriam apresentadas de modo presencial.7

Apesar do fim do contexto pandêmico da covid-19, a experiência do ensino remoto poderá influenciar na manutenção, nos cursos de pós-graduação stricto sensu, foco deste estudo, de formas de organização didático-pedagógica semelhantes ao vivido no momento emergencial. Isso demanda reflexões acerca da intencionalidade do ato educativo se dirigir à formação de cidadãos, pesquisadores e professores, comprometidos com a produção de conhecimentos e com a formação de profissionais de modo a atender às necessidades sociais.

Cabe ressaltar que o chamado Ensino Remoto de Emergência (ERT) refere-se a uma mudança temporária para uma forma alternativa de ensino em cenário emergencial, de crise. Diante desse cenário, faz uso de estratégias remotas para situações de ensino que seriam apresentadas de modo presencial ou híbrido e, ao término da situação de crise ou emergencial, retornar-se-á à proposta de ensino anteriormente desenvolvida.7 A Educação à Distância é modalidade prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sendo regulada por decretos específicos.

Compreende-se que esses conceitos, do ponto de vista mais amplo, em termos de intencionalidade dos projetos educativos, podem dialogar entre si. Não está em pauta, neste texto, a oferta de pós-graduação stricto sensu à distância. O foco centra-se nas reflexões do ensino remoto, compreendendo que a sua utilização emergencial precisa ser analisada criticamente, pois poderá interferir em decisões futuras, envolvendo também o âmbito da pós-graduação stricto sensu.

Destaca-se que as preocupações com a qualidade educacional devem ser mantidas no cenário das IES, especificamente na formação de pós-graduandos stricto sensu, para a pesquisa e à docência. Este estudo teve como objetivo refletir sobre o ensino remoto, utilizado na pandemia da covid-19, na pós-graduação stricto sensu no contexto da universidade.

 

Método

Trata-se de um estudo de reflexão. Para subsidiar o alcance do objetivo, em um primeiro momento, realizou-se um levantamento bibliográfico a fim de identificar aspectos apresentados na literatura acerca da temática. Para a estratégia de busca, utilizou-se o acrônimo PCC (Paciente/Conceito/Contexto), respeitando-se a singularidade de cada recurso informacional, realizaram-se os cruzamentos a partir dos seguintes descritores e palavras-chave: P – “education, graduate/ Educação de Pós-Graduação” OR “Postgraduate” OR “master/mestrado” OR “Masters Degrees” OR “Doctoral Degrees” OR “doctorate/doutorado” OR “phd”; C – “teaching/ensino” OR “remote learning/ensino remoto” OR “elearning”; C – “COVID-19” OR “coronavirus infections/Infecções por Coronavirus”.

A busca foi realizada em seis bases de dados: National Library of Medicine National Institutes of Health (PubMed), Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature (CINAHL), Web of Science, Education Resources Information Center (Eric), Literatura Latino-Americana em Ciências de Saúde (LILACS) e Base de Dados de Enfermagem (BDENF). Foram incluídos estudos publicados entre os anos de 2020, quando foi deflagrada a pandemia da covid-19 no cenário global, até setembro de 2023, com resultados de pesquisa relacionadas ao propósito da pesquisa e em todos os idiomas. Manuscritos em duplicidade foram considerados apenas uma vez. Adicionalmente, foram conduzidas buscas manuais nas listas de referências dos estudos recuperados e incluídos, com o propósito de identificar referências não recuperadas nas bases de dados consultadas.

Os estudos identificados no levantamento bibliográfico8-16 serviram de base para elaboração comentários gerais, com a intenção realizar uma aproximação à forma predominante como o ensino remoto tem sido considerado no âmbito do ensino de pós-graduação no cenário global. Em seguida, são apresentadas reflexões, em perspectiva crítica, acerca do ensino remoto na pós-graduação stricto sensu, no cenário nacional, a partir de autores17-24 que estudam a educação e a universidade à luz de referencial teórico que articula a educação às relações sociais, permitindo, pois, entendimentos que extrapolam o âmbito técnico e incorporam os interesses presentes.

 

Resultados e discussão

 

O ensino remoto emergencial no cenário global: apontamentos da literatura

As referências consultadas apresentam, majoritariamente, aspectos operacionais/técnicos em relação às consequências do ensino remoto, sem um aprofundamento crítico acerca das suas implicações mais amplas para a educação.

Dentre essas consequências identificadas, com a mudança abrupta do ensino presencial para o remoto, destacam-se o sentimento de sobrecarga, que aumentou ligeiramente durante a pandemia, e os prejuízos à saúde mental dos estudantes, como dificuldade de concentração, falta de motivação e fadiga mental.8-12 Tal situação foi agravada diante das medidas de distanciamento social adotadas globalmente. Portanto, diante desse ambiente psicologicamente desfavorável, as IES deveriam oferecer apoio psicossocial ao seu corpo discente, o que, todavia, ainda não ocorre de maneira uniforme.10 Vale ressaltar, além disso, a constatação de recorrentes problemas físicos, como dores nas costas, pescoço, dores de cabeça e distúrbios oculares na vida dos pós-graduandos.9

Não obstante, durante o referido período o estudante ficou mais vulnerável a problemas técnicos que podem comprometer o uso das plataformas digitais como ambiente virtual de aprendizagem, incluindo falhas na conectividade com a internet e necessidade de domínio das plataformas utilizadas.9-10,11,13-14

Na perspectiva dos estudantes de pós-graduação, a aceitação do ensino remoto emergencial é conflituosa. Em relação às vantagens dessa modalidade de ensino, destaca-se, principalmente, a sua flexibilidade, uma vez que permite que o estudante possa rever um conteúdo gravado, com benefícios para o seu aprendizado, segundo sua perspectiva.8,10 Em contrapartida, os estudantes se mostram pouco satisfeitos com o processo de avaliação e há dificuldade, por parte dos docentes, de identificar artifícios utilizados como forma de obter melhor desempenho.14 Esses fatores contribuem para um distanciamento da prática, limitando-se à experiência virtual.10

A experiência de utilização dessa modalidade de ensino também é bem variável. Nota-se que a responsabilidade acadêmica é essencial durante a utilização de ambientes virtuais de aprendizagem, pois, caso o estudante realize uma leitura prévia do assunto que será abordado durante a aula, haverá maior rendimento em seu aprendizado.15 O fato de participar das atividades remotas em ambiente domiciliar também pode trazer maior comodidade,9-10,13 mas, por outro lado, foram acrescentadas atividades que não eram vistas no ensino presencial, como as atribuições domésticas9 e familiares.10

No que se refere à perspectiva futura, os estudantes, em geral, ainda preferem a educação presencial à remota. A exceção se mostrou, principalmente, para os alunos que possuem responsabilidades familiares ou de trabalho, e para eventos de desenvolvimento profissional. Neste caso, exclusivamente para as aulas teóricas, observa-se preferência por aulas on-line e gravadas, pela possibilidade de assisti-las a qualquer momento, notando, assim, um interesse futuro, no pós-pandemia, por um sistema de aprendizagem híbrido.8,10-11

Um relato de experiência sobre o ensino remoto emergencial, realizado a partir da observação direta e da participação nas atividades de componente curricular, fundamentado sob a ótica de Paulo Freire, mostrou que o resultado obtido na disciplina, oferecida em meio virtual, foi satisfatório, visto que propiciou o processo de ação-reflexão-ação no ensino-aprendizagem na prática docente, baseado em princípios teóricos sobre a docência em saúde. Tal resultado foi alcançado por meio da construção e reorganização dos planejamentos de ensino e planos de aulas, que oportunizaram esse tipo de processo, visando a atender ao cenário pós-pandêmico.16

Considerando o impacto do ensino remoto emergencial, é necessário discutir as suas implicações para além dos aspectos técnicos e psicológicos, questionando o teor adaptativo que, no geral, imprimem ao uso do remoto. Algumas discussões tendem a apoiar a permanência da essência dessa forma de ensinar, mesmo com o término da pandemia. Urge considerar o ensino remoto de modo ampliado, contextualizado no atual cenário da universidade, a fim de garantir a qualidade do ensino nos programas de pós-graduação.

 

Ensino remoto emergencial: um olhar crítico para o ensino na pós-graduação na universidade no cenário nacional

Entender implicações do ensino remoto emergencial na pós-graduação stricto sensu, principalmente no que se refere aos riscos da manutenção de modelos similares ao término da pandemia, demanda explicitar alguns aspectos da universidade pública brasileira que vêm demarcando as formas de gestão, o processo de trabalho docente e os projetos de formação.

Desde os anos 1990, as políticas de educação superior no Brasil são norteadas por organismos internacionais como o Banco Mundial, a Unesco e a Organização Mundial do Comércio, o que tem imprimido uma visão economicista sobre a educação e a produção do conhecimento. Para o Banco Mundial, o conhecimento produzido na universidade e a sua disseminação têm o potencial de aumentar a competitividade de cada país, no cenário da globalização.17

Considerando-se o contexto da Reforma Administrativa do Estado, nos anos 1990, mudanças na forma de gerir a universidade na fase do capitalismo regida pelo neoliberalismo explicitam que a universidade se transforma de instituição para organização social, o que implica instaurar a tecnocracia como prática que crê ser possível que a universidade seja dirigida segundo as normas e os critérios com os quais são geridas as empresas:18

A instituição tem a sociedade como seu princípio e referência normativa e valorativa enquanto a organização tem apenas a si mesma como referência, num processo de competição com outras que fixaram os mesmos objetivos particulares [...]18:187

Essa perspectiva acaba por inserir a universidade na lógica operacional. Assim, a sua histórica missão civilizacional e humanística vai se diluindo na medida em que essa instituição fica subserviente aos desígnios da economia globalizada, midiática e de mercado. Nessa direção, algumas tarefas relativas à formação e à ciência são priorizadas, como a expansão de oportunidades de novos tipos de empregos, a criação de novas áreas de aplicação tecnológica e outros produtos de inovação, com a intenção de otimizar processos e aumentar o consumo. Em contrapartida, questões fundamentais que se referem aos destinos humanos ficam esvaziadas ou esquecidas. Abrem-se espaços para a ditadura do produtivismo acadêmico em detrimento do questionamento, da análise crítica e das contestações, enfim, do trabalho intelectual focado nas questões essenciais da vida humana e da sociedade.19

Esse cenário da universidade se fortalece cada vez mais no Brasil e se articula à conjuntura político-econômica e social que, desde 2016, é marcada pela intensificação, em âmbito mais amplo, do baixo crescimento econômico nesse momento de crise. A combinação da instabilidade político-institucional com a crise econômico-social e sanitária foi permeada por uma falsa polêmica entre a garantia do isolamento/distanciamento social ou a manutenção das atividades econômicas, sendo que, por meio de uma oposição superficial e simplista entre economia e vida, a economia seguiu vitoriosa. A população, principalmente a mais pobre, ficou mais sujeita ao risco da contaminação e de morte pelo vírus.20

Nesse momento histórico, enfocando especificamente a universidade pública, algumas consequências do ajuste fiscal imposto são apontadas, entre elas: estancamento e diminuição da expansão de matrículas e cursos; desregulamentação e ataque aos direitos trabalhistas; ensino aligeirado voltado às demandas do mercado ou desenvolvido pela modalidade de Educação à Distância (EaD); e corte de recursos para o desenvolvimento de pesquisas, com avanço da lógica mercantil na determinação da produção do conhecimento.20

As decisões em relação ao ensino na universidade, incluindo a pós-graduação, no momento da pandemia fizeram, portanto, parte dessa conjuntura mais ampla. E, além disso, por mais que se trate de uma estratégia emergencial, é preciso que seja problematizada e analisada, pois as experiências com o ensino remoto, como já comentado, tendem a permanecer, adquirindo contornos cada vez mais fortalecedores de um projeto de educação e sociedade com foco mercadológico.

O ensino remoto na pandemia, muitas vezes, não foi suficientemente considerado de modo crítico, sendo enfocado sob o viés ideológico que caracteriza o progresso tecnológico no modo de produção capitalista, ou seja, sob o enfoque da neutralidade. Principalmente o setor privado celebrou a oportunidade oferecida pela pandemia para revolucionar as práticas de ensino. Problemas de fundo, como os relacionados às desigualdades dos estudantes brasileiros, à infraestrutura precária das escolas e às finalidades formativas, ficaram em segundo plano ou esquecidos nos momentos de debates e tomada de decisão.21

Além disso, faz-se presente uma concepção muito restrita de que o conhecimento esteja cada vez mais acessível nas redes para ser acessado, com ênfase na autonomia e no engajamento do aluno para a aprendizagem, por meio da iniciativa individual em detrimento da necessidade de infraestrutura escolar, políticas e do trabalho docente. E, há de se lembrar que o trabalho docente, considerando as experiências de EaD, pode ser marcado por divisões (professores, tutores, facilitadores), com formas contratuais diversas, além da presença do controle das atividades mediado por sistemas informatizados. Trata-se, pois, da precarização da força de trabalho e do esvaziamento da sua dimensão intelectual. A finalidade da educação fica muito mais dirigida à adaptação às demandas do mundo contemporâneo, distanciando-se da perspectiva de mudança da realidade social existente.21

O propósito da educação e por conseguinte da escola estão em jogo. A finalidade da escola é a socialização dos conhecimentos historicamente acumulados, permitindo a cada ser humano, como ser social, “humanizar-se”. Esse processo envolve o saber escolar – o que implica a seleção dos elementos culturais fundamentais promotores da humanização dos indivíduos – bem como condições objetivas e o trabalho pedagógico do professor.22-23 Ideias que também podem ser estendidas para a pós-graduação stricto sensu, entendendo-se que essa finalidade educacional, em uma visão ampla, mantém-se presente, mesmo nas especificidades da pós-graduação, como espaço formativo de pesquisadores e professores.

O ensino remoto comporta um empobrecimento não somente por conta de certa “frieza” presente nas relações entre os que participam, por exemplo, de uma atividade síncrona, considerando questões tecnológicas, mas também porque há limites na realização de um trabalho pedagógico que permita o aprofundamento dos conteúdos de ensino, tendo em vista as dificuldades para a diversificação de formas de abordagem de modo a possibilitar que professores e alunos estejam com os mesmos espaços, tempos e compartilhamentos que caracterizam a educação presencial.23

Assim, o ensino remoto precisa, de fato, ser entendido como estratégia que necessitou ser desenvolvida, representando uma realidade provisória. Contudo, ao responder aos interesses de ordem economicistas, pode deixar marcas na universidade, incluindo a organização didático-pedagógica nos cursos de pós-graduação. A referência a marcas, na perspectiva dos autores, significa a relação que a experiência do remoto pode vir a ter com a incorporação desmedida de tecnologias de ensino sem a devida estrutura e formação docente e, principalmente, sem a necessária discussão acerca dos interesses privatistas presentes que se distanciam da formação que favoreça a apropriação crítica de conhecimento. Além disso, cabe retomar os possíveis prejuízos físicos e mentais decorrentes da intensificação e precarização do trabalho.23 Nessa perspectiva, a tecnologia que poderia apoiar o ser humano a ter melhores condições para usufruir do seu tempo livre acaba por incrementar sobremaneira as horas de trabalho.

Outro aspecto que precisa ser ressaltado é que a publicização das experiências, diante do novo cenário vivenciado no mundo com a pandemia da covid-19, foi intensificada, tendo como viés o produtivismo acadêmico. Docentes e pesquisadores foram impulsionados a ampliar suas produções acadêmicas sobre o novo assunto, recém-descoberto, o que resultou na produção em massa, em um curto período, incluindo os processos avaliativos dos periódicos, do modelo chamado fast science. Mesmo os pesquisadores que seguem suas produções em outras temáticas foram compelidos à lógica produtivista que adquire, nesse momento de pandemia, contornos ainda mais destacados, tendo em vista a sobrecarga de trabalho imposta pelas atividades remotas no processo de trabalho do professor.24 Esse fato repercutiu e repercute diretamente nos pós-graduandos que, juntos a seus orientadores, são levados à produção, de forma incessante, de artigos científicos, participação em inúmeros eventos e reuniões diárias.

Portanto, ao pesquisador, independentemente de sua área específica de estudo, cabe a apropriação crítica sobre a produção do conhecimento na universidade, envolvendo as tensões entre o atendimento às necessidades sociais ou às demandas do mercado. Cabe, ainda considerar que, além da formação para a pesquisa, é tarefa da pós-graduação stricto sensu a formação do professor de IES, uma vez que oportunizam discussões fundamentadas teoricamente que promovem a análise crítica dos alunos em relação ao uso da estratégia remota, ajudando a compreendê-la nas relações sociais mais amplas. O pós-graduando, além de pesquisador, será o futuro professor das IES, razão pela qual precisa ter condições de análise crítica acerca dos rumos que a educação, em especial a educação superior, incluindo a pós-graduação stricto sensu, tem tomado no cenário das políticas neoliberais. A incorporação tecnológica dessa maneira precisa ser reconhecida como objeto de discussão em suas relações com a precarização do trabalho docente.

 

Conclusão

As experiências vividas com o ensino remoto como estratégia emergencial, durante a pandemia da covid-19, precisam ser contextualizadas no cenário político-econômico que marca a universidade atual como instituição afinada às finalidades mercadológicas.

Nesse cenário, a educação, incluindo a pós-graduação stricto sensu, foco deste estudo, tende a afastar-se da intenção de promover a apropriação sólida dos conhecimentos historicamente construídos, que são essenciais para a formação do pesquisador e do professor do ensino superior. Entende-se, ainda, que a base sólida de conhecimentos que permite a compreensão da própria área de conhecimentos inserida nas relações sociais mais amplas tem implicações na tomada de decisões, pelos futuros pesquisadores e professores, no enfrentamento das tensões entre o mercado e as necessidades sociais.

Compreende-se, a partir das reflexões fundamentadas nos autores que estudam a educação e a universidade, na perspectiva crítica, que é fundamental que docentes e gestores, envolvidos com a pós-graduação stricto sensu, ultrapassem a dimensão técnica para a apropriação da dimensão ético-política presente no ensino remoto e nos seus possíveis desdobramentos pós-pandêmicos.

Aos estudantes e professores cabe a análise crítica do momento vivido, com atenção para que não sejam simplesmente incorporadas formas similares ao ensino remoto no âmbito da pós-graduação stricto sensu, dadas as perdas que ocasionam tanto para a formação do pesquisador quanto do professor. Essas perdas, vale ressaltar, precisam ser cuidadas em processos coletivos e de orientação. Embora não se possa negar que, ao longo da pandemia, podem ter sido empreendidas tentativas para lidar com os limites indicados, é preciso ter clareza de que o potencial do ato educativo, em termos do encontro entre o professor e o aluno e da apropriação do conhecimento, não é efetivamente alcançado no ensino remoto.

Espera-se que as reflexões apontadas possam disparar novos olhares e apoiar a continuidade das discussões sobre o ensino na pós-graduação stricto sensu no que se refere às relações entre as escolhas didático-pedagógicas e as políticas vigentes, sem negar que se trata de uma aproximação ao tema, uma vez que o estudo foi gerado no conturbado período pandêmico, envolvendo as vivências dos alunos que iniciavam a pós-graduação. Nesse sentido, o afastamento da própria vivência para o alcance analítico é um processo gradativo.

Por fim, ressalta-se a necessidade de novas pesquisas que analisem criticamente e de forma aprofundada o ensino remoto, inclusive suas implicações políticas e pedagógicas, em especial na área da saúde e enfermagem, a fim de garantir a continuidade de um ensino de qualidade no cenário da universidade.

 

Referências

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24 Saviani D, Galvão AC. Educação na pandemia: a falácia do “ensino” remoto. Universidade e Sociedade [Internet]. 2021; [acesso 2021 dez 20];67:36-49. Disponível em: https://www.andes.org.br/img/midias/0e74d85d3ea4a065b283db72641d4ada_1609774477.pdf

25 Moura AC, Cruz AG. Ensino superior e produtividade acadêmica em tempos de pandemia. Revista Interinstitucional Artes de Educar [Internet]. 2020; [acesso 2021 dez 20];6:222-44. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/riae/article/view/5181

 

Contribuições de autoria

1 – Andressa Silva Torres dos Santos 

Autor Correspondente

Enfermeira, pós-graduada - torresandressa@hotmail.com

Concepção, desenvolvimento da pesquisa e redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

2 – Agostinho Antônio Cruz Araújo

Enfermeiro, mestre em ciências - agostinhocruz@usp.br

Concepção, desenvolvimento da pesquisa e redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

3 – Rodrigo Mota de Oliveira

Terapeuta ocupacional, mestre em ciências - rodrigoo@usp.br

Concepção, desenvolvimento da pesquisa e redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

4 – Lucila Castanheira Nascimento

Enfermeira, doutora em enfermagem - lucila@eerp.usp.br

Concepção, desenvolvimento da pesquisa e redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

5 – Silvia Matumoto

Enfermeira, doutora em enfermagem - smatumoto@eerp.usp.br

Concepção, desenvolvimento da pesquisa e redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

6 – Adriana Katia Corrêa

Enfermeira, doutora em enfermagem - adricor@eerp.usp.br

Concepção, desenvolvimento da pesquisa e redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

Editora Científica Chefe: Cristiane Cardoso de Paula

Editora Associada: Silviamar Camponogara

 

Como citar este artigo

Santos AST, Araújo AAC, Oliveira RM, Nascimento LC, Matumoto S, Corrêa AK. Emergency remote teaching in stricto sensu graduate courses during the covid-19 pandemic: a reflection study. Rev. Enferm. UFSM. 2023 [Access at: Year Month Day]; vol.13, e46:1-14. DOI: https://doi.org/10.5902/2179769284158