Desenho de rosto de pessoa visto de perto

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Rev. Enferm. UFSM, v.13, e25, p.1-19, 2023

ISSN 2179-7692 •  

Submissão: 14/02/2022 • Aprovação: 14/06/2023 • Publicação: 07/08/2023

Tela de computador com texto preto sobre fundo branco

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Introdução  1

Método  1

Resultados 1

Discussão  1

Conclusão  1

Referências  1

 

Artigo original                                                                                                                                

Desastre socioambiental: condições de saúde dos atingidos na perspectiva dos profissionais de saúde e gestores*

Socio-environmental disaster: the health conditions of those affected from the perspective of healthcare professionals and managers

Desastre socioambiental: condiciones de salud de los afectados desde la perspectiva de los profesionales y gestores sanitarios

 

Camila da Silveira SantosIÍcone

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Alexandra Dias MoreiraIÍcone

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Kênia Lara da SilvaIÍcone

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Francisco Carlos Félix LanaIÍcone

Descrição gerada automaticamente

 

I Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

 

*O manuscrito tem origem de dados preliminares da tese Desastre socioambiental de Mariana:  implicações nas condições de saúde da população atingida e no processo de trabalho dos serviços de saúde, que irá ser apresentado ao Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais. 

 

Resumo

Objetivo: analisar as condições de saúde da população atingida pelo rompimento da barragem de mineração na perspectiva dos profissionais de saúde e gestores. Método: estudo de caso qualitativo, realizado por meio de documentos de domínio público e entrevistas com profissionais de saúde e gestores, entre os meses de março a maio de 2022, totalizando 14 participantes. Os dados foram analisados segundo a estratégia de proposições teóricas à luz da Determinação Social da Saúde. Resultados: considera-se como piora nas condições de saúde em relação aos problemas respiratórios, gastroenterites, obesidade, arboviroses, intensificação do uso de álcool e drogas, e doenças mentais. Destaca-se a perda do trabalho, da casa, e do pertencimento comunitário dos atingidos. Conclusão: o desastre socioambiental foi condicionante para mudanças nas condições de saúde dos atingidos, expondo-os a novos cenários e sobreposição de riscos capazes de modificar a qualidade de vida e agravar as condições de saúde biopsicossociais.

Descritores: Processo Saúde-Doença; Condições Sociais; Determinação Social da Saúde; Desastres Provocados pelo Homem; Mineração

 

Abstract

Objective: to analyze the health conditions of the population affected by the mining dam collapse from the perspective of healthcare professionals and managers. Method: this is a qualitative case study, conducted using public domain documents and interviews with healthcare professionals and managers, from March to May 2022, totaling 14 participants. The data were analyzed according to the theoretical propositions strategy based on the Social Determinants of Health. Results: the health conditions of this population have worsened in terms of respiratory problems, gastroenteritis, obesity, arboviruses, increased use of alcohol and drugs, and mental illnesses. The loss of employment, home, and community belonging of those affected is highlighted. Conclusion: the socio-environmental disaster was a conditioning factor for changes in the health conditions of those affected, exposing them to new scenarios and overlapping risks capable of modifying their quality of life and aggravating their biopsychosocial health conditions.

Descriptors: Health-Disease Process; Social Conditions; Social Determination of Health; Man-Made Disasters; Mining

 

Resumen

Objetivo: analizar las condiciones de salud de la población afectada por el colapso de la presa minera desde la perspectiva de los profesionales y gestores sanitarios. Método: estudio de caso cualitativo, realizado por medio de documentos de dominio público y entrevistas a profesionales y gestores de salud, entre marzo y mayo de 2022, con un total de 14 participantes. Los datos fueron analizados según la estrategia de proposiciones teóricas a la luz de la Determinación Social de la Salud. Resultados: se considera el empeoramiento de las condiciones de salud en relación con los problemas respiratorios, la gastroenteritis, la obesidad, los arbovirus, la intensificación del consumo de alcohol y drogas, y las enfermedades mentales. Se destacan la pérdida del trabajo, del hogar, y de la pertenencia a la comunidad de los afectados. Conclusión: el desastre socioambiental fue un factor condicionante de alteraciones en las condiciones de salud de los afectados, exponiéndolos a nuevos escenarios y riesgos superpuestos capaces de modificar la calidad de vida y empeorar las condiciones de salud biopsicosocial.

Descriptores: Proceso Salud-Enfermedad; Condiciones Sociales; Determinación Social de la Salud; Desastres Provocados por el Hombre; Minería

 

Introdução

Ocorrido no dia 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão da empresa Samarco, em Mariana, no estado de Minas Gerais, liberou mais de 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério que desaguaram no Rio Doce e seus afluentes, alcançando o oceano Atlântico.1-2

Considerado o maior desastre de mineração do país em proporções de danos socioambientais, o rompimento da barragem provocou 19 óbitos, devastou totalmente as comunidades rurais de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, subdistritos de Mariana, e vários outros municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo.1-3 Seus impactos, ainda, em curso, deixam marcas na vida de centenas de famílias atingidas em Mariana, que buscam, ao longo dos anos, a recuperação de seus direitos violados.3-5

Os desastres são inerentemente produzidos pelas ações e práticas sociais, não se restringem a fenômenos naturais e devem ser considerados como risco sistêmico.6-7 Derivam do modo de viver e produzir em sociedade, influenciado pelo modelo de produção e consumo que consiste no capitalismo e no extrativismo minerário.5,7 O processo de produção enraizado pela mineração, caracterizado pela exploração exacerbada dos recursos naturais provoca danos ambientais, culturais, econômicos, situações de risco e de vulnerabilidade, e está intrinsicamente relacionado à determinação social da saúde.1,5

Os megaempreendimentos minerários e os efeitos do neoextrativismo mineral pregam o desenvolvimento e o progresso econômico acima de tudo, provocando um desmantelamento das questões de cunho social e ambiental.8 Nessa lógica, a rentabilidade do empreendimento, em contraponto ao baixo investimento nas infraestruturas das barragens, somado à pouca ou nenhuma fiscalização ambiental, é condicionante dos constantes rompimentos de barragens de mineração no país.7

O processo saúde-doença, à luz da determinação social, é um fenômeno em que as relações biológico e social, e sociedade e natureza estão interligadas de forma dialética.9 Ao articular as dimensões biológicas e sociais, propicia-se uma visão integral e ampla de cuidado da saúde na busca de explicar as relações entre modos de viver em sociedade e condições de saúde em contextos de desastres provocados pela mineração.

O crescimento acentuado dos danos socioambientais, em especial, os ocasionados por rompimento de barragem de rejeitos de mineração,8 tem provocado destruição excessiva no meio ambiente, com repercussões deletérias à saúde e modos de vida das populações atingidas. Nesse tocante, os desastres devem ser considerados grave problema de saúde pública que necessitam de ações de prevenção, resposta e recuperação da saúde dos atingidos.6 Nesse contexto de atuação, os profissionais de saúde e gestores são identificados como atores-chaves na gestão de risco e na recuperação das condições de vida e saúde das vítimas.

Considerar as múltiplas determinações e singularidades das implicações do rompimento de barragem de mineração que reverberam nas formas de adoecimento e sofrimento da população de Mariana, faz-se necessário, sobretudo, ao articular o biológico e o social como essência do processo saúde-doença, capaz de esboçar a multidimensionalidade do desastre. Tendo em vista que foram poucas as avaliações de risco à saúde humana realizadas em Mariana e/ou nos demais municípios atingidos, este estudo se justifica e torna relevante para a produção de conhecimento acerca desse fenômeno. Além disso, o contínuo monitoramento dos riscos e danos para a saúde dos indivíduos atingidos, não só a curto prazo, mas também por muitos anos após a ocorrência do evento deflagrador, são relevantes. Nesse sentido, o objetivo foi analisar as condições de saúde da população atingida pelo rompimento da barragem de mineração na perspectiva dos profissionais de saúde e gestores.

 

Método

Trata-se de estudo de caso de abordagem qualitativa, entendendo como estratégia adequada quando se trata de questões nas quais estão presentes fenômenos contemporâneos da realidade social que podem ser complementadas por outras inquietações de caráter exploratório e descritivo.10

Realizado no município de Mariana, cenário de um dos maiores desastres socioambientais envolvendo rompimento de barragem de mineração no mundo, ao considerar o volume de rejeitos liberado, e a distância percorrida pela lama, foram mais de 600 km até chegar à foz do Rio Doce no estado do Espírito Santo,1-2 conforme apresentado na Figura 1.

 

Mapa

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Figura 1 - Percurso da lama de Rejeitos de Minério da Barragem do Fundão- Mariana.

Fonte: Max Vasconcelos, 2017.

O estudo foi desenvolvido na Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e nas unidades de saúde públicas de Mariana, criadas no pós-desastre para prestarem assistência exclusiva à população diretamente atingida, sendo a Unidade Básica de Saúde (UBS) de Bento Rodrigues/Paracatu de Baixo e o dispositivo de Atenção Psicossocial chamado Conviver. As fontes de evidências foram obtidas por meio de documentos de domínio público e entrevistas com profissionais de saúde e gestores de Mariana.

Os documentos foram selecionados com base em seu conteúdo, relacionando-os com o objetivo previamente definido, buscando analisar as implicações do desastre socioambiental e sua determinação social na saúde e doença da população atingida. Designados pela letra D (documento) e por uma sequência numérica, são referentes a informações de saúde oficiais do município, contidas na Atualização do Plano Municipal de Planejamento e Gerenciamento de Ações de Recuperação em Saúde após o Rompimento da Barragem de Rejeito da Samarco em Bento Rodrigues, Mariana — D1; estudo de avaliação de risco à saúde humana em localidades atingidas pelo rompimento da barragem do Fundão — D2; e Pesquisa sobre a saúde mental das famílias atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão em Mariana — D3, bem como dados secundários de sistemas de vigilância em saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), tais como: Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica e Sistema de Informação Hospitalar.

As entrevistas foram realizadas entre os meses de março a maio de 2022 por meio de roteiro semiestruturado que seguiu a questão norteadora: Quais as implicações do desastre socioambiental de Mariana no processo saúde-doença da população atingida? A coleta de dados foi realizada pela pesquisadora principal previamente treinada, em locais privativos no ambiente de trabalho dos participantes, individualmente, com cada profissional após autorização e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foram gravadas em dois aparelhos eletrônicos digitais de áudio, transcritas na íntegra e com duração média de quarenta minutos.

A amostra foi definida de maneira intencional, com participação dos profissionais da UBS Bento Rodrigues/Paracatu de Baixo, e do dispositivo Conviver e dos gestores de saúde da SMS. Os critérios de inclusão foram: gestores de saúde que se constituíam como peças-chave no contexto de atuação ante o desastre; e profissionais que exercessem atividades assistenciais há, pelo menos, seis meses nas instituições de saúde que atendiam, exclusivamente, à população atingida.

Foram excluídos um profissional que estava de licença médica e três que não atendiam ao critério do tempo de atuação no serviço. Destaca-se que outros dois profissionais não quiseram participar da pesquisa por motivos pessoais, tendo em vista que ambos pertenciam à comunidade de Bento Rodrigues e não quiseram relembrar as situações vivenciadas no desastre. Totalizaram-se 14 participantes, dentre eles, três gestores, três médicos, dois terapeutas ocupacionais, dois psicólogos, um enfermeiro, um assistente social, um educador social e um agente comunitário de saúde.

Os dados do Sistema de Informação em Saúde, os documentos e as entrevistas utilizados como fonte de evidências foram analisados segundo a estratégia de proposições teóricas e técnica analítica cronológica10 à luz da Teoria de Determinação Social do Processo Saúde-Doença.9 A técnica de análise de séries temporais por meio da cronologia permite que o fenômeno seja rastreado ao longo do tempo, considerando a sequência dos eventos, a contingência, intervalo de tempo pré-determinado e períodos de tempos.10 Para tanto, os dados foram codificados, realizada apresentação estruturada por ordem cronológica e a análise propriamente dita, conduzida por analogia, com comparações com as fontes teóricas estabelecidas.

Todos os preceitos éticos regulamentadores de pesquisas envolvendo seres humanos foram mantidos, elaborados segundo as Resoluções N.º 466/2012 e N.º 580/2018 do Ministério da Saúde. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais sob parecer n.º 5.240.469 em 13 de fevereiro de 2022. O anonimato dos participantes foi contemplado com a utilização de código de identificação representado pelo nome de cidades atingidas pela lama de rejeitos de minério do desastre de Mariana, conforme listado na Figura 1.

 

Resultados

Por meio da análise dos dados documentais e das entrevistas com os profissionais de saúde e gestores de Mariana, percebe-se que os danos ocasionados desde o momento emergencial, e os que se prolongam a médio e longo prazos, têm se tornado um processo de sofrimento crônico da população atingida, que se estende por mais de sete anos do rompimento da barragem de rejeitos de minério.

No período emergencial, após a ocorrência do colapso da barragem, os danos sofridos pela população diretamente atingida foram decorrentes dos óbitos, dos traumas e lesões provocadas às vítimas levadas pela onda de lama de rejeitos.

Foram 19 vidas perdidas e dezenas de pessoas feridas foram levadas para atendimento no hospital da cidade. Os casos graves foram encaminhados diretamente à capital do estado. (D1) 

 

As condições de saúde foram deterioradas em virtude do contato direto com a lama da barragem de Fundão na ocasião do desastre, e a longo tempo por meio de contaminantes presentes no ar, água e solo, colocando em alerta a equipe de saúde quanto à possível intoxicação e seus agravos.

O contato com metais pesados foi uma questão que cobramos muito da secretaria de saúde, pois precisávamos entender as consequências para a saúde e quais os sinais e sintomas que as pessoas poderiam apresentar. Houve pessoas que tiveram contato direto com lama. Pessoas que engoliram lama. Será que isso não vai trazer um prejuízo lá no futuro? (Conselheiro Pena)

 

Queixas como tosse, coriza, rouquidão, sinusite, resfriado, coceira na pele e processo alérgico, foram comuns após o contato do indivíduo com a lama de rejeitos derivada do rompimento da barragem nas localidades atingidas. (D2)

 

Nos anos seguintes ao rompimento da barragem, o atendimento na atenção básica foi maior com relação aos casos de doenças respiratórias, assim como as internações hospitalares tiveram aumento em decorrência desses e de outros agravos, tais como: doenças dermatológicas, alterações clínicas e laboratoriais, conforme mostra a Figura 2.

Figura 2 - Atendimento Individual por Condições Avaliadas na Atenção Básica e Morbidade Hospitalar do SUS - Mariana.

Fonte: Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica – SISAB; Sistema de Informação Hospitalar – SIH/SUS, 2022

 

Outros agravos como gastroenterites, intoxicação e conjuntivite foram identificados com aumento nos anos posteriores ao desastre, configurando uma possível toxidade da lama de rejeitos que desencadeou a contaminação da água, solo e ar por metais pesados.

Em relação às arboviroses observa-se um boom de casos de dengue em 2016 e de febre amarela em 2018, conforme Figura 3. 

Figura 3 - Principais doenças identificadas no pós-desastre em Mariana.

Fonte: adaptado de Mariana, 2019.

A causa do aumento das arboviroses, segundo relato, está relacionada à devastação do meio ambiente em decorrência da onda de lama do rompimento da barragem, que provocou alterações dos ciclos de vetores, hospedeiros e reservatórios de doenças.

 

Com a lama o que mudou (não só na minha comunidade, mas na cidade), é que teve surto de febre amarela em 2018. Claro que foi por causa da lama, porque morreram sapos, peixes e o mosquito ficou em maior quantidade. Nós perdemos muita gente aqui! Foram impactos gravíssimos que aconteceram pós-rompimento. (Conselheiro Pena)

 

Vale destacar, também, como fator de alteração nas condições de saúde da população atingida, o ganho de peso.

Em Bento Rodrigues, o que eu percebi foi que as pessoas tiveram ganho de peso. (Conselheiro Pena)

 

[...] As pessoas também ficaram mais sedentárias. Nós percebemos que a grande maioria das pessoas engordaram. Muitos indivíduos acabaram desenvolvendo obesidade, porque não se exercitavam mais, ficavam só parados dentro de casa. (Bom Jesus do Galho)

 

Ao longo dos anos subsequentes ao desastre houve aumento dos atendimentos individuais relacionados à obesidade, diabetes e hipertensão arterial, segundo a Figura 4. Em decorrência das mudanças no estilo de vida impostas à população atingida houve alterações significativas no processo saúde-doença.

Figura 4 - Atendimento Individual por Condições Avaliadas na Atenção Básica – Mariana.

Fonte: Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica – SISAB, 2022.

 

Muitas pessoas falaram: “olha a minha alimentação mudou, porque antes eu plantava e colhia meu alimento. Era algo mais saudável! Eu não precisava comprar! Hoje eu tenho que comprar!” Muitas pessoas não tomavam medicação para a pressão arterial, ansiedade, colesterol alto e tantas outras enfermidades. Isso eu atribuo ao rompimento da barragem. As pessoas dormiam bem, hoje já não dormem tão bem. Tinham outra qualidade de vida! Então quando os atingidos vieram para Mariana, o processo de saúde sofreu uma alteração muito grande. (Rio Doce)

 

O derramamento de lama de rejeitos de minério comprometeu a saúde dos atingidos de diversas formas, para além das complicações da saúde biológica. Notam-se graves implicações que se fizeram presentes, em especial, nas condições de saúde psicossocial.

Houve um aumento na demanda pelos serviços de saúde mental, e, com isso, os casos de depressão, estresse pós-traumático e ansiedade estão entre os agravos mais prevalentes.  

Existem muitas demandas que circulam ao redor desse rompimento, então nós temos principalmente questões psicossociais [...], pessoas que têm transtornos de saúde mental por causa do rompimento da barragem, principalmente os transtornos ansiosos e transtornos depressivos. Destaque importante para a síndrome do pânico e estresse pós-traumático. (Bom Jesus do Galho)

 

Há uma prevalência maior de transtornos mentais nessa população, aumento de casos de depressão, de ansiedade, tentativa de autoextermínio, ideação suicida. Se for comparar com a população em geral, tem uma prevalência maior desses transtornos na população atingida. (Ipatinga)

 

Há uma prevalência de depressão entre os atingidos de 28,9%, esse percentual é cinco vezes maior que da população brasileira no ano de 2015. Já na população infanto-juvenil atingida pela barragem, a prevalência de depressão é 10 vezes maior que da população em geral na mesma faixa etária. (D3)

 

Além do perfil de usuários com demandas voltadas para depressão e aspectos de ansiedade, são comuns na população atingida os casos de estresse pós-traumático e casos extremos de violência autoprovocada, que desencadearam óbitos por suicídio após o rompimento da barragem (Figura 5).

 

Figura 5 - Notificação de Violência autoprovocada em Mariana.

Fonte: Painel Temático Portal da Vigilância em Saúde de Minas Gerais, 2022. 

 

A situação de saúde dos atingidos é permeada de multiplicidade e sobreposição de situações de exposições e riscos diante da recorrência de desastres socioambientais pelo país.

 

Percebemos que a cada tragédia, cada crime, cada coisa ruim que acontece, vem um impacto na saúde mental das pessoas atingidas. Eu já atendi pessoas que falaram: “Depois que aconteceu aquele rompimento em Brumadinho, eu entrei em depressão novamente e não consegui mais trabalhar!”. Isso não aconteceu com uma, ou duas pessoas, foram com  várias pessoas. E todo ano acontece uma coisa diferente. No início do ano houve uma enchente no Rio de Janeiro que trouxe lembranças para as pessoas daqui. (Raul Soares)

 

O uso de álcool e outras drogas intensificou no pós-desastre em consequência da maior facilidade do acesso a essas substâncias após a vinda da comunidade atingida para a área urbana da cidade.

O uso de drogas sempre existiu em qualquer lugar, mas após o rompimento eu acho que houve um aumento do uso de drogas, pois o acesso ficou facilitado por estarmos dentro da cidade de Mariana. (Conselheiro Pena)

 

Em consequência dos agravos psicossociais da população de Mariana, em especial, da população diretamente atingida, identificou o aumento considerável de dispensação de medicações psicotrópicas, conforme relato: 

Nós percebemos o aumento do uso de medicamentos psicotrópicos e os atendimentos psiquiátricos aumentaram muito. (Colatina)

 

O processo saúde-doença da população de Mariana sofreu alterações relevantes nas condições biopsíquicas após o desastre socioambiental em 2015, no entanto, ressalta-se para além da visão centrada na doença, o indivíduo e sua coletividade são cuidados pelos profissionais de saúde nas suas necessidades socioculturais, econômicas e de cunho simbólico.

O rompimento da barragem para mim traz sérias consequências, não só para a saúde, mas também para as questões de pertencimento e os vínculos (comunitários, sociais e familiares) [...]. A pessoa perdeu o trabalho, perdeu sua cultura e perdeu sua história. Tudo isso está envolvido no processo saúde doença! [...] É o trabalho, a renda, a alimentação, a escola, o lazer e a cultura, era uma comunidade que tudo isso foi atravessado. (Rio Doce)

 

A perda do trabalho, da casa, do vínculo e pertencimento comunitário, dentre outras perdas materiais e imateriais/simbólicas para a população atingida, revela impacto direto na qualidade de vida e no processo de adoecimento da população. 

 

Discussão

Os desastres, provocados pela ação do homem têm potencial de desencadear danos na saúde física e mental, trazendo consequências negativas para os atingidos e suas famílias.11 O rompimento da barragem de rejeitos de mineração ocorrido em Mariana provocou perda considerável na qualidade de vida dos atingidos pela lama, deixando-os expostos à proliferação de doenças, danos psicológicos, perdas das suas moradias, desemprego, ruptura com os laços comunitários, entre outros danos.1,12-13

O comprometimento da saúde dos atingidos no que se refere ao contato direto com a lama, ainda que em menor número para a população geral de Mariana, do que em comunidades que tiveram grande exposição ao rejeito de mineração, provocou problemas respiratórios e dermatológicos. O aumento da poluição atmosférica, proveniente da poeira gerada pela lama de rejeitos que secou, ocasionou intensificação das doenças respiratórias e casos de conjuntivite na região atingida, e em longo prazo, pode provocar casos de câncer e/ou outras doenças.14-15

Já os casos de diarreia e gastroenterites, assim como os de intoxicação exógena, observados em médio prazo período de meses após o desastre, podem ser associados à contaminação do solo e água, após o derramamento da lama tóxica de rejeitos de minério.15 Os metais pesados presentes no rejeito de mineração, são indicativos de intoxicação exógena na população atingida por meio da veiculação hídrica ou pelo contato com o solo e consumo de alimentos contaminados8,16-17 em diferentes territórios impactados pelos megaempreendimentos impostos pelas mineradoras.

O aumento de arboviroses após o rompimento da barragem de Fundão é perceptível e pode ser explicado pela destruição do meio ambiente. A invasão da lama, de forma súbita e devastadora, pelas florestas, rios e habitações ocasionou a diminuição dos predadores naturais do mosquito e a sua proliferação, contribuindo para o aumento dos casos de dengue, febre amarela e demais arboviroses.18

Como mencionado, a ação dos indivíduos no meio ambiente em que estão inseridos, a relação socioeconômica, o contexto histórico e os valores culturais que mantêm com o espaço, relacionam-se diretamente à situação de saúde da população. Dessa forma, o processo saúde-doença da comunidade está relacionado a como ela vem se apropriando e modificando a natureza ao seu redor. Portanto, no que tange ao rompimento de uma barragem de rejeitos de minério, e no potencial de devastação que esse empreendimento pode causar, com o desequilíbrio do ecossistema e, sobretudo, mudanças nas condições de saúde, considera-se intrínseco o aumento desses agravos para o desastre em Mariana.

Em relação ao ganho de peso e obesidade observados, a nova realidade de vida imposta aos atingidos após deslocamento forçado para outro território, desencadeou mudanças nos hábitos e costumes de uma antiga comunidade rural, alterando o estilo de vida, a alimentação, a atividade laboral e de lazer. Tais consequências se somam à situação de saúde provocada pela obesidade, além de complicações de doenças crônicas como hipertensão arterial e diabetes, diretamente relacionadas à ocorrência de desastres ambientais.19

No que tange aos transtornos mentais como depressão, ansiedade, estresse pós-traumático, ou agravamento desses casos já existentes, observa-se que a ocorrência de desastres de cunho socioambiental, como o ocorrido, em Mariana, e, posteriormente, em Brumadinho, ambos municípios mineiros que têm a mineração como principal fonte econômica, são condicionantes dessas psicopatologias.20-21

O aumento de lesões autoprovocadas e tentativas de suicídios são eminentemente evidenciadas em Mariana, assim como é observado em outros contextos traumáticos.21-23 A incidência de tentativas de autoextermínio, muitas vezes, é observada proporcionalmente ao tempo pós-desastre.22 A exposição a desastres naturais ou provocados pelo homem faz com que os indivíduos reajam de diferentes maneiras ao estresse e sofrimento. Os que sofrem perdas de entes queridos, com perda de emprego e/ou fonte de renda em decorrência de eventos dessa magnitude são mais susceptíveis ao uso indiscriminado de álcool e outras drogas.24

Com o acréscimo de atendimentos de saúde mental, a demanda por medicamentos para o tratamento de transtornos psíquicos agudos e crônicos foi consideravelmente maior em Mariana, e em situações semelhantes, o excesso de uso de psicofármacos pós-desastre, em especial, de antidepressivos, foram comuns na literatura nacional e internacional.25-27 Considera-se que a saúde mental não é apenas analisada na perspectiva da dimensão de ordem individual e biológica, mas, sobretudo, na coletividade, trazendo aspectos de ordem cultural, histórica, social, econômica, política e ambiental, tendo em vista que a desorganização econômica e social ocasionada por desastres resulta em impactos negativos no bem-estar e saúde dos atingidos.25

Os impactos na economia local e nos meios de sobrevivência, que dizem respeito à renda, emprego, bem como às perdas afetivas, de habitação, às rupturas das redes sociais, educação, saúde, estão intrinsecamente relacionados ao desastre e interferem nos processos de adoecimento da população.21,25 Com o rompimento da barragem de Fundão, houve ocorrência de queda na arrecadação financeira do município e no aumento substancial do desemprego, em virtude do fechamento da mineradora e retirada dos atingidos das suas comunidades.1,12

A violação dos direitos ao trabalho, à moradia, ao processo de ruptura com os laços comunitários, dentre outras questões interferem no processo saúde-doença de diferentes níveis e maneiras, intensificando as iniquidades da saúde e vulnerabilidades socioambientais da população.1,28 A centralidade do trabalho para o indivíduo perpassa por múltiplas variáveis, dentre elas, como meio de sustento e sobrevivência, fonte de identificação social, autoestima, sobretudo, possui caráter constituidor dos sujeitos, inclusive na dimensão psíquica, despertando emoções e sentimentos de pertencimento ou capazes de provocar o adoecimento.29

Semelhantemente ao entendimento do trabalho, os atingidos, vítimas de desastres trazem uma perspectiva do território para além do espaço geográfico que permeiam a comunidade, mas como um local de vínculos e pertencimento, em que as relações sociais, históricas e afetivas são essenciais para a constituição do sujeito.30 Por conseguinte, o deslocamento forçado do local onde viviam as comunidades atingidas consagra o sofrimento, o sentimento de despertencimento, perda das memórias e história de vida desses indivíduos, impactando assim no adoecimento.

Os sinais e sintomas psíquicos são, frequentemente, relacionados às mudanças abruptas vivenciadas pelas comunidades atingidas, como, a mudança de casa/localidade, por morarem distantes dos familiares e antigos vizinhos, pela separação dos seus animais de estimação, e pela constante preocupação com o futuro.15 Portanto, as reflexões quanto às condições de trabalho, de moradia, de renda e de vínculo social interferem e constituem essência do processo de saúde-doença, e que o resgate desses direitos básicos, do estilo de vida e da autonomia é essencial para a transformação do estado de saúde da população atingida, contribuindo para uma prática de saúde voltada para a integralidade do cuidado e de promoção da saúde. 

Como limitação desse estudo, destaca-se a ausência de análise temporal das condições de saúde antes da ocorrência do rompimento da barragem. Tendo em vista, que não foi possível, na perspectiva dos profissionais de saúde e gestores entrevistados, fazer uma comparação das condições de saúde da população atingida antes e após o evento deflagrador, sugere-se a realização de novos estudos.

A respeito das implicações para a prática na saúde pública, acredita-se que estes achados possam subsidiar o setor saúde no enfrentamento dos cenários de riscos futuros para desastres dessa magnitude, contribuindo para a compreensão dos danos ocasionados à saúde e permitindo o planejamento de ações voltadas ao cuidado integral da população atingida.

 

Conclusão

As implicações do desastre de mineração ocorridas, em Mariana, em 2015 provocaram mudanças no processo saúde-doença da população atingida. No período emergencial após o colapso da barragem, além das inúmeras vítimas fatais, dezenas de indivíduos foram soterrados pela lama de rejeitos de minério e intoxicados por agentes químicos. Com o passar dos meses, os agravos respiratórios, as doenças transmissíveis de veiculação hídrica, como as gastroenterites e intoxicação, e aumento das arboviroses foram perceptíveis e com impacto negativo na saúde.

Em médio e longo prazos, os casos depressivos e demais transtornos psicossociais intensificaram o sofrimento crônico dos atingidos. Nota-se a ampliação dos casos de estresse pós-traumáticos, ansiedade, abuso de álcool e outras drogas, uso de medicações psicotrópicas, e situações de violência autoprovocada.

O deslocamento forçado para a zona urbana da cidade provocou mudanças nos hábitos e costumes da antiga comunidade rural, com isso, o estilo de vida, a alimentação, o trabalho e o lazer foram alterados, houve ganho de peso, obesidade, bem como a intensificação das doenças crônicas, como diabetes e hipertensão. Destaca-se que as condições de saúde dos atingidos são determinadas, sobretudo, pela constante violação dos direitos à moradia, emprego, indenização justa e oportuna. Haja vista a situação em que se encontram as comunidades de Bento Rodrigues e de Paracatu de Baixo, que passados mais de sete anos do desastre, ainda, não foram reassentadas definitivamente nos novos territórios.

Os resultados sugerem que o desastre socioambiental provocado pelo rompimento da barragem de mineração em Mariana, foi condicionante da piora nas condições de saúde dos atingidos, expondo-os a novos cenários e sobreposição de risco capazes de modificar a qualidade de vida e agravar suas condições de saúde.

Tendo em vista que os desastres de mineração não se limitam ao momento do rompimento da barragem, mas perduram pelo tempo em que se mantêm o sofrimento das vítimas, é importante aprender com esses eventos e apontar caminhos de superação das atuais condições de vida e saúde desses territórios. Sobretudo, espera-se que os profissionais e gestores possam criar novas estratégias de apoio psicossocial com o fortalecimento dos vínculos sociais e das redes de apoio, para que o sofrimento dos atingidos seja mitigado, e não somente medicalizado, promovendo um cuidado capaz de suprir as necessidades de saúde dessa população.

 

Referências

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Fomento / Agradecimento: não possui

 

Contribuições de autoria

1 – Camila da Silveira Santos

Autor Correspondente

Enfermeira, Doutoranda em Enfermagem - camilasilveiraufsj@gmail.com

Concepção, desenvolvimento da pesquisa, redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

2 – Alexandra Dias Moreira

Enfermeira, doutora, Professora Adjunta - alexandradm84@gmail.com

Contribuições: redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

3 – Kênia Lara da Silva

Enfermeira, doutora, Professora Associada - kenialara17@gmail.com

Contribuições: redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

4 – Francisco Carlos Félix Lana

Enfermeiro, doutor, Professor Titular - xicolana@gmail.com

Contribuições: concepção, desenvolvimento da pesquisa, redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

 

Editora Científica Chefe: Cristiane Cardoso de Paula

Editor Associado: Darlisom Sousa Ferreira

 

Como citar este artigo

Santos CS, Moreiro AD, Silva KL, Lana FCF. Socio-environmental disaster: the health conditions of those affected from the perspective of healthcare professionals and managers. Rev. Enferm. UFSM. 2023 [Access at: Year Month Day]; vol.13, e25: 1-19. DOI: https://doi.org/10.5902/2179769274176