Desenho de rosto de pessoa visto de perto

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Rev. Enferm. UFSM, v.13, e8, p.1-18, 2023

ISSN 2179-7692 • Logotipo, Ícone

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Submissão: 07/10/2022 • Aprovação: 15/02/2023 • Publicação: 21/03/2023

Tela de computador com texto preto sobre fundo branco

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Introdução. 3

Método. 5

Resultados 7

Discussão. 11

Conclusão. 16

Referências 17

 

Artigo original                                                                                                                                                                              

Saúde mental na atenção básica: uma rede rizomática para infância e adolescência*

Mental health in Primary Care: A rhizomatic network for childhood and adolescence*

Salud mental en la atención primaria de la salud: una red rizomática para la infancia y la adolescencia

 

Cristiane Kenes NunesIÍcone

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Agnes OlschowskyIIÍcone

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Aline Basso da SilvaIIIÍcone

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Mariane da Silva XavierIIÍcone

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Fabrício Soares BragaIIÍcone

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I Prefeitura Municipal de Canoas, Canoas, Rio Grande do Sul, Brasil

II Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

III Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil

 

* Extraído da tese “Sobre cartografar a articulação entre o centro de atenção psicossocial infantojuvenil e a atenção básica: um percurso pelo cuidado em saúde mental”, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2019.

 

Resumo

Objetivo: cartografar o cuidado em saúde mental à criança e ao adolescente, seus fluxos, linhas e conexões a partir da articulação do Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi) e Atenção Básica (AB). Método: pesquisa qualitativa e cartográfica, realizada em   município do Rio Grande do Sul, de agosto a dezembro de 2017. Participaram do estudo profissionais do CAPSi e AB. Resultados: a experiência cartográfica com a rede rizoma permitiu acompanhar a articulação do CAPSi com serviços da AB; o planejamento e compartilhamento do cuidado segundo o agir coletivo dos trabalhadores, e também os “nós” e desafios da rede de saúde mental infantojuvenil. A insegurança para lidar com a demanda, com a falta de conhecimento e a necessidade de capacitação como forma de apoio são desafios mencionados pelos profissionais da AB para uma assistência em rede. Conclusão: arranjos assistenciais podem articular/compartilhar cuidados, evocando uma “rede rizomática” de conexões, fluxos e variadas linhas.

Descritores: Saúde Mental; Atenção Primária à Saúde; Política de saúde; Criança; Adolescente

 

Abstract

Objective: to map mental health care for children and adolescents, its flows, lines and connections based on the articulation of the Psychosocial Care Centers for Children and Adolescents (Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil, CAPSi) and Primary Health Care (PHC). Method: a qualitative and cartographic research study conducted between August and December 2017 in a municipality from Rio Grande do Sul. The study participants were CAPSi and PHC professionals. Results: the cartographic experience with the rhizomatic network made it possible to monitor CAPSi's articulation with PHC services; planning and sharing care according to workers' collective action, and also the “knots” and challenges of the child and youth mental health network. Insecurity to deal with the demand, lack of knowledge and the need for training as a support modality are challenges mentioned by PHC professionals for networked assistance. Conclusion: care-related arrangements can articulate/share the assistance provided, evoking a “rhizomatic network” of connections, flows and varied lines.

Descriptors: Mental Health; Primary Health Care; Health Policy; Child; Adolescent

 

Resumen

Objetivo: cartografiar la atención en salud mental para niños y adolescentes, sus flujos, líneas y conexiones a partir de la articulación de los Centros de Atención Psicosocial Infantojuvenil (CAPSi) y la Atención Primaria (AP). Método: investigación cualitativa y cartográfica realizada en un municipio de Rio Grande do Sul entre agosto y diciembre de 2017. Los participantes del estudio fueron profesionales del CAPSi y de AP. Resultados: la experiencia cartográfica con la red rizomática permitió monitorear la articulación del CAPSi con servicios de AP, la planificación y cooperación en la atención conforme a la acción colectiva de los trabajadores, y también los “nodos” y desafíos de la red de salud mental infanto-juvenil. La inseguridad para lidiar con la demanda, añadida a la falta de conocimiento y a la necesidad de capacitación como forma de apoyo, son desafíos mencionados por los profesionales de AP para brindar asistencia en red. Conclusión: implementar disposiciones asistenciales específicas puede ser útil para articular/compartir la atención provista, evocando una “red rizomática” de conexiones, flujos y líneas variadas.

Descriptores: Salud Mental; Atención Primaria de Salud; Política de Salud; Niño; Adolescente

 

 

Introdução

A Política de Saúde Mental orientada pelas diretrizes da Reforma Psiquiátrica recomenda que o cuidado à pessoa em sofrimento psíquico ocorra no território, com base em diferentes equipamentos de atenção à saúde. Compondo com os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os serviços de Atenção Básica (AB) são considerados importantes para incorporar o cuidado de saúde mental em suas ações e fortalecer a articulação com a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).1 A necessidade de articulação e construção de ações conjuntas está apoiada na prerrogativa de que a AB deve ser o contato preferencial dos usuários, a principal porta de entrada, e também de identificação e tratamento precoce de transtornos mentais, cabendo a ela ordenar a rede de cuidados, acolher e orientar sempre que necessário.2

Estudos consideram essa articulação um desafio para as políticas públicas de saúde, e recomendam, para a garantia da qualidade e efetividade do cuidado, que se  avalie  a articulação entre equipes e serviços de modo a garantir um cuidado ampliado, por meio da interação dialógica entre os diversos saberes.3-4 Isso propiciará à AB maior visibilidade do cuidado ao usuário no campo psicossocial, além de um espaço estratégico e oportuno para identificação, acesso, cuidado e acompanhamento longitudinal dessas demandas,5-6 com ações integradas, em caráter colaborativo, destacando-se os demais setores e a produção de ações intersetoriais.7-8

Assim, é consenso, nas diversas instâncias políticas, de que é necessário integrar os serviços e equipes, tanto no que se refere à consolidação da política e organização dos serviços quanto em relação ao trabalho colaborativo em saúde mental de crianças e adolescentes com os demais setores e equipamentos do território.9 Destaca-se, portanto, que o trabalho colaborativo permite não apenas equipes integradas para melhorar o acesso e a qualidade do cuidado, mas  equipes de um mesmo serviço que colaborem entre si  e com outros serviços, na lógica do trabalho em rede. Entende-se que esse envolvimento gera a corresponsabilização pelos casos de saúde mental, trabalho intersetorial e melhor qualidade no atendimento em saúde.10

A partir do exposto, apresenta-se a análise articulada com a ideia de rede rizoma. A ideia de rizoma tem inspiração na botânica, devido ao seu formato variável, com ramificação em qualquer ponto e crescimento horizontalizado. Sob essa lógica, pode-se aproximar o conceito de rede à figura do rizoma como uma proposta de pensamento não linear para discutir a práxis que abarca uma multiplicidade de conexões, atravessando todos os campos do saber, sem privilegiar este ou aquele conhecimento.11 No que se refere ao conceito de Rede, define-se como um sistema de organização formal e não formal, com compartilhamento e implicação de uma multiplicidade de atores envolvidos, trabalhadores e usuários, com corresponsabilização e pactuação, voltado não apenas para os serviços, mas, conectado às fragilidades e necessidades desses usuários nos seus territórios existenciais.12

Essa maneira de perceber as relações e a produção do cuidado psicossocial, numa rede rizoma diversa, que possui múltiplas conexões, possibilita entender que em uma rede que se pretende rizomática é possível haver rompimentos, rupturas. No entanto, isso não significa o fim, pois o rizoma sempre retoma seu crescimento com base em uma ou outra de suas linhas; e por ter múltiplas entradas, o rizoma está suscetível a modificações constantes.13 Esses movimentos rizomáticos, nos quais os profissionais operam seu processo de trabalho, estão em um emaranhado de linhas transversalizadas, as quais são mediadoras, limitadoras ou propulsoras dos fluxos por onde o usuário vai caminhar para solucionar seu problema de saúde. Essas linhas de força podem ser duras ou flexíveis, de fuga, horizontais, verticais e transversalizadas. No trabalho em rede é possível visualizar diferentes linhas de força que permeiam o território de cuidado, compor com elas, com seus nós críticos, seus deslocamentos inventivos, e criar novos modos de agir, produzir e transformar, que escapem à rigidez das linhas duras, para promover linhas flexíveis, colocando em movimento outras possibilidades.

O presente estudo, portanto, parte da premissa de que a articulação entre o Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi) e a AB facilita a construção de uma “rede rizoma”, a qual favorece a formação de fluxos conectivos e a potência do agir coletivo, e engendra agenciamentos singulares e relacionais para produzir o cuidado psicossocial preconizado pelas políticas dirigidas à infância e à adolescência. O agenciamento diz respeito a movimentos e pensamentos, e   ocorre somente se houver  dois ou mais corpos, porque ele é o próprio movimento, está no entre, na combinação ou ligação de elementos – sem qualquer hierarquia ou organização – tratando-se de fragmentos ou fluxos das mais variadas e diferentes naturezas, sejam elas  ideias, enunciados, coisas, pessoas, corpos, instituições.11 O agenciamento é sempre coletivo; ele liga, conecta, conjuga, compõe, combina, produz, fabrica, reveza, distribui, consome corpos e mentes, movimentos e pensamentos. Sob essa concepção, ao associar o cuidado em saúde mental a um agenciamento negativo de poder se obtém um cuidado fundamentado no modelo médico centrado. De outro modo, ao associá-lo a um agenciamento afirmativo de potência tem-se um cuidado articulado com o modelo psicossocial e a Reforma Psiquiátrica.

 Frente a isso, objetiva-se cartografar o cuidado em saúde mental à criança e ao adolescente, seus fluxos, linhas e conexões a partir da articulação entre o CAPSi e a AB. 

 

Método

Estudo qualitativo que utilizou a cartografia como estratégia teórico-metodológica para acompanhar os movimentos de cuidado no âmbito da atenção psicossocial à criança e ao adolescente. Essa modalidade de pesquisa permite mapear os caminhos percorridos pelos sujeitos e suas relações nas paisagens psicossociais – lugar de produção de vida, cuidado e afetos. Acompanhar a processualidade dos acontecimentos é acompanhar algo que acontece e que, por sua vez, não se reduz nem a coisas nem a proposições, mas só pode ser compreendido no instante que acontece. Compreender o acontecimento é participar dele acontecendo11 nas composições rizomáticas, no campo de força e singularidades, apontando linhas e protagonismos que se observa nos encontros entre pessoas e instituições.14

Para isso, o estudo está fundamentado em conceitos principais, como o de rizoma e suas linhas, as linhas flexíveis ou moleculares, as linhas duras ou molares e as linhas de fuga ou de desterritorialização. Estas três linhas são indissociáveis, isto é, não atuam isoladas, estão presentes no encontro entre os sujeitos e as ações. As linhas flexíveis são fluidas, apoiam-se nos movimentos alternativos e facilitam processos de subjetivação que podem vir a transformar as relações e produzir novas conexões entre as pessoas envolvidas no cuidado em saúde mental. As linhas duras representam o plano da normatização, da burocratização, dos processos institucionais, daquilo que já está estabelecido. E as linhas de fuga escapam às regulações tradicionais, se abrem para novas experimentações e permitem a passagem para novos modos de agir. Nessa perspectiva, houve a intenção de olhar para o campo do cuidado psicossocial da infância e da adolescência, e a partir da articulação entre o CAPSi e a AB   acompanhar as composições relacionais e assistenciais, além das modificações dessas paisagens. E nessa dinâmica, onde se encontram em ação atores e sentimentos, é que se buscou rastrear uma rede rizoma produtora de cuidado e outras singularidades.

O estudo foi desenvolvido em um município do interior do Rio Grande do Sul, nos seguintes cenários: CAPSi, serviços da Atenção Básica (equipes de Atenção Básica - eAB; equipes de Saúde da Família - eSF), Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-AB), serviço de Redução de Danos (RD). Participaram do estudo 40 profissionais, e, destes,  nove são trabalhadores do CAPSi, das áreas de Enfermagem, Psicologia, Serviço Social, Terapia Ocupacional, Pediatria, Acompanhante Terapêutico e Pedagogia; 23 são trabalhadores da eSF/eBS, das áreas da Enfermagem, Medicina, Odontologia e Agente Comunitário de Saúde; três são profissionais das áreas da Psicologia, Serviço Social e Nutrição do Nasf-AB; dois  são Redutores de Danos e três são gestores municipais com formação em Enfermagem e Psiquiatria. Contudo, neste artigo são apresentados os depoimentos dos profissionais que compõem os serviços CAPSi e AB.

Definiu-se como critérios de inclusão: possuir, no mínimo, três meses de trabalho no serviço; estar diretamente envolvido no processo das práticas de saúde. Esses critérios foram estabelecidos considerando-se a importância de os profissionais terem ampla visão das ações de saúde realizadas nos serviços, a fim de tornar as entrevistas mais fundamentadas. E foram excluídos da pesquisa os profissionais que estavam em férias ou em algum tipo de licença durante o período de produção dos dados.

A produção de dados ocorreu no período de agosto a dezembro de 2017, e as estratégias utilizadas foram observação participante, entrevistas semiestruturadas, registros em diário de campo e restituição do material para análise conjunta com as equipes envolvidas. A observação participante coloca o pesquisador ativamente em todo o processo, porque ele se mantém no campo, em contato direto com as pessoas, em que observador e observado tornam-se parceiros abertos ao plano dos afetos e dos territórios existenciais.15 Para adentrar nesse território de observação e acontecimentos aderiu-se a um roteiro que incluía as atividades diárias, visitas aos serviços, reuniões, processos de trabalho partilhados, situações cotidianas de cuidado, estranhamentos e contradições. Tais acontecimentos e sentimentos foram registrados em diário de campo, um instrumento utilizado para anotações das ações observadas e atividades das quais a pesquisadora participou. O diário de campo permite que se faça anotações acerca das impressões e afetos produzidos em cada experiência,15 além de transcrever as conversas captadas no cotidiano, e dar voz aos diversos sujeitos e saberes presentes no campo de estudo.

A entrevista na pesquisa cartográfica se aproxima de uma conversa e, como tal, acolhe as opiniões, as palavras de ordem que aparecem ao longo da entrevista, mas sem se fixar nelas, ficando à espreita, aproveitando os instantes de maior expressividade, variações e rupturas. É importante deixar-se levar,  tomando para si o assunto, deixando-se afetar por tudo o que ali está ocorrendo (fluxos de falas, ideias, entre outos),  e percorrer  com o entrevistado as diferentes linhas que estão sendo traçadas.16 As entrevistas foram realizadas no intuito de aprofundar aspectos não elucidados durante as observações, e nelas constavam questões sobre assistência à saúde mental infantojuvenil, demandas do território e a articulação com outros equipamentos da rede observados e que necessitavam de aprofundamento. As entrevistas tiveram a duração de 20 a 40 minutos, registradas em áudio, por meio de um gravador digital. Após, foi realizada uma análise prévia dos dados, de modo a organizar os resultados provisórios   e permitir aos participantes o acesso ao conjunto das informações coletadas, para que todos pudessem ter oportunidade de alterá-las ou garantir sua credibilidade.

Para a cartografia, o processo de restituição é inseparável da pesquisa, e seu sentido vai além da devolutiva quando a pesquisa é finalizada. A restituição possibilita a criação de um campo de análise coletivo, ao expor os dados coletados, pondo-os em debate, permitindo o posicionamento de cada participante em relação às situações-problema que vivenciam no cotidiano, propor críticas e novas ações.15 As entrevistas foram transcritas na íntegra para posterior análise, com o propósito de dialogar com as ferramentas-conceito desenvolvidas por Deleuze e Guattari11 os quais sustentam a proposta da pesquisa cartográfica e autores nacionais que trabalham nessa vertente e com a temática de saúde mental. 

O estudo foi conduzido de acordo com os padrões éticos exigidos nas Resoluções 466/2012, 510/2016 e 580/2018 do Ministério da Saúde, aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob o protocolo número 2.350.300, na seguinte data: 26 de outubro de 2017. Os participantes aceitaram participar da pesquisa, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em duas vias.

 

Resultados

Essa experiência cartográfica permitiu acompanhar, no âmbito da articulação do CAPSi com os serviços da AB, encontros e atravessamentos entre profissionais e serviços para pensar e fazer o cuidado à criança e ao adolescente em sofrimento psíquico. Para sistematizar esses achados, estabeleceram-se temáticas, nas quais foram identificados encontros no campo relacional dos trabalhadores que geram cuidados diferenciados, forças da ordem molar e instituinte que interferem, limitam ou mobilizam novas práticas de cuidado.

 

Rede rizoma: integração com serviços da atenção básica 

Uma rede rizoma se constrói onde há desejo ou vontade de cuidar, de criar possibilidades de encontros, apostando, de forma coletiva e solidária, na produção do cuidado conforme aparece nos excertos:

A gente consegue trabalhar junto, coisa que antes não acontecia, de uns tempos pra cá a gente definiu assim, cada trabalhador é referência de uma ESF ou UBS [...] Então o profissional se organiza da forma que achar melhor para estar em contato [...] no interior mesmo, demanda tu ter um transporte disponível, tem localidades bem longe aqui da cidade [...], eu fiquei referência no [interior], então eu liguei, me apresentei, disse que estaria aqui para qualquer coisa que elas quisessem conversar, elas poderiam também me ligar, ou da mesma forma eu, se eu tivesse algum usuário [em atendimento em comum] eu ligaria pra elas e a gente faria troca de informações, às vezes eu vou à reunião delas [...]. (PR CAPSi)

[...] A gente se reúne uma vez por mês, falamos por telefone, sentamos uma hora, uma vez por mês para discutir os casos de saúde mental lá na ponta, quer dizer, o CAPS sai de dentro do casulo e vai para a atenção básica conversar sobre aquele caso [...]. (PR CAPSi)

Temos a nossa reunião mensal de matriciamento [encontro com profissionais dos CAPS e eSF para discussão de casos], onde a gente encontra um profissional de referência de cada CAPS, infantil, CAPS AD, CAPS I, acho esse momento bem importante, pode fazer um ligamento dos pontos de determinados usuários. (PR AB)

 

Rede Rizoma: espaços-encontros para planejar e compartilhar o cuidado

Uma rede rizomática pressupõe a produção de um cuidado articulado, conectado a pessoas, ações e serviços. Nesse sentido, é possível perceber que os profissionais buscam espaços para planejar ações conjuntas e compartilhar a corresponsabilização pelo cuidado.

Eu vejo que já melhorou bastante, o contato com as equipes, as equipes também já nos procuram [...] penso que ainda pode ser melhor, talvez, quem sabe para o próximo ano ter reuniões mais sistemáticas. (PR CAPSi)

[...] tem várias coisas que melhoraram muito, porque anos atrás tinha coisa que funcionava bem mais lentamente, hoje evoluiu bastante, acho que principalmente a comunicação entre as unidades e o CAPS, eu acho que estão mais próximas e eu acho que também como a gente, tem as equipes que discutem os casos [matriciamento], então acho que isso também aproximou bastante [...]. (PR AB)

[...] quando a gente atende o usuário aqui e daqui a pouco o usuário falta os atendimentos com frequência, com psiquiatra ou com psicólogo, a gente faz busca ativa, nessa busca ativa a gente já envolve a ESF, liga para lá, fala com a enfermeira, fala com o próprio Agente de Saúde, e pede algum retorno [...]. (PR CAPSi)

[...] estamos sempre em contato por telefone, a gente se reuniu no início do ano com todos os representantes dos CAPS, vem um representante de cada CAPS, que fica [de referência] para determinada unidade e se conversa sobre todos os casos de usuários que estão em acompanhamento. (PR AB)

Não temos dificuldade em relação a fazer encaminhamento para rede, segue o protocolo normal que é o sistema de referência, mas nós gostamos, e eu acho que facilita mais, a conversa, mesmo tendo que seguir aquele encaminhamento formal, fizemos o contato verbal por telefone, “Olha nós estamos encaminhando uma criança assim, assim” procuramos relatar um pouco mais sobre o caso, o que a gente sabe sobre essa criança [...] a gente tem um acesso muito bom com o CAPSi [...]. (PR AB)

 

 

Rede rizoma: o agir coletivo e a dinâmica de trabalho

A forma com que os profissionais se organizam nas suas dinâmicas de trabalho e relacionam-se entre si para produzir esse cuidado permite um agir coletivo, com foco nas pessoas e suas necessidades de saúde, sendo percebida força pujante para a atenção psicossocial:

[...] o acolhimento é feito a qualquer momento, por qualquer profissional e durante a reunião da equipe a gente vê qual a necessidade [...]; às vezes chega aqui em sofrimento, criança, adulto, a gente acolhe, e vê durante a reunião de equipe, porque todo mundo tem contato, o Agente Comunitário tem mais vínculo do que a gente às vezes [...]. Então, qualquer coisa que uma pessoa fale daquela situação, família, pessoa em si ou de todo o contexto familiar, já muda a nossa linha; não vamos passar para a psicóloga, a médica diz: “deixa comigo que eu tenho um vínculo melhor”.  Todo mundo troca uma ideia para gente trabalhar melhor. (PR AB)

Quanto menos pacientes tiverem dentro do CAPS para nós é melhor, é sinal que estamos fazendo um trabalho bom aqui, de acolher essas situações. (PR AB)

A gente tem um mapa, de todos os pacientes em sofrimento [...] seja criança, ou adulto, ou dependente de álcool e drogas, a gente tem uns alfinetes coloridos no mapa e que a gente revisa com os Agentes Comunitários nas reuniões semanais de equipe [...] E no CAPSi, são poucos os casos,  assim eu posso te dizer o nome de quem eu mandei, eu sei os pacientes que estão em acompanhamento lá e sei o retorno [...], porque assim, meus pacientes, meu território, eu preciso saber o que está acontecendo, isso é uma leitura pessoal nossa, da nossa estratégia. (PR AB)

[...] no grupo mães e bebês, a mãe dizia que o filho de 4 anos estava muito agressivo, muito hiperativo, ela queria medicação para ele. Ai a gente conversou, que não é assim, não se dá medicação direto para criança, que às vezes falta para eles é atenção [...] então a gente conversou, fez um atendimento com o pai, com a criança e com a psicóloga do NASF, que continua atendendo ele aqui, não precisou encaminhar para o CAPSi, não precisou de medicações [...] a gente conseguiu identificar que a criança queria atenção e estava fazendo tudo aquilo por causa do bebê que antes não tinha e a atenção era voltada toda para ele. (PR AB)

Não se referência sem necessidade [...] a gente tenta primeiro o acompanhamento com o NASF, a psicóloga tentar intervir junto com a gente, caso seja mais complexo, faz o encaminhamento para o CAPSi, através do sistema de referência, eles fazem o atendimento [...] se necessário mantém o acompanhamento lá ou eles vão nos referenciar novamente. Temos uma boa articulação, se eu precisar ligar para eles para saber informações sobre o usuário é tranquilo [...] aqui no território tem adolescentes envolvidos com droga, tem pontos de droga, estamos trabalhando junto com o rapaz do Redução de Danos, tentando fazer um trabalho em conjunto. (PR AB)

 

 

Rede rizoma: o plano molar e os “nós” da rede

É possível notar também atravessamentos de força molares nos fluxos de assistência à população infantojuvenil:

Aqui não temos grupo específico para criança e adolescente em sofrimento psíquico, mas a gente faz o acompanhamento quando chega essa demanda [...]. Temos um vínculo bom com todos os usuários e faz o acolhimento, passa para a consulta com a médica e se há necessidade a gente encaminha para o CAPSi, se não, faz só acompanhamento por aqui, também com a ajuda da psicóloga do NASF. (PR AB)

Na nossa unidade não existe um projeto específico destinado somente a essa parte da infância, da adolescência direcionada à saúde mental. Aqui é a demanda espontânea e a demanda referenciada, agora um projeto específico isso não existe. (PR AB)

A gente não faz nenhum trabalho com essa faixa etária. A gente faz orientações sobre prevenção como qualquer outra estratégia. São cuidados de saúde bucal que a gente realiza nas escolas, e também nessa parte da adolescência a gente está bastante em cima da vacina do HPV. A gente tem um de nossos usuários encaminhados para a psicóloga [NASF], outros casos a gente não tem [...] e se vier a ter a gente vai encaminhar primeiro para a psicóloga e vai fazer atendimento, e se houver necessidade ela vai encaminhar para o atendimento especializado. (PR AB)

Tem acesso ao CAPS só através dos encaminhamentos, a gente não faz um trabalho junto ao CAPS. A gente vê o problema, o médico encaminha e se precisar medicação contínua, precisar de receita [...] não tem uma integração, é a mesma coisa se tu me perguntasse quem trabalha no CAPS, não sei, quem é o médico lá no CAPS, não sei quem é [...] então falta comunicação, acho que falta integração [...]. (PR AB)

Têm encaminhamentos desnecessários, a gente recebe muito encaminhamento de criança e adolescente das Unidades através do médico. (PR CAPSi)

[...] tem a dificuldade de deslocamento, como muitos precisam ir até o interior, acaba que realmente fica muito no burocrático, principalmente por telefone. O que acontece também, muitas vezes o teu trabalho, tem a tua agenda que tu não consegue se deslocar, e fica falho, fica uma certa lacuna. Eu acredito que pudesse ser aqui também, no nosso serviço, acho que seria uma boa, não só a gente ir até eles [ESF], mas eles também terem a chance de vir no nosso serviço, até mesmo para conhecer, para ver o que nós temos a oferecer, quais são as nossas condições também, eu acho que seria bastante válido. (PR CAPSi)


Rede Rizoma: o desejo como produção de potência para um agir psicossocial

Os profissionais reconhecem suas fragilidades, e esse reconhecimento pode ser um disparador do desejo como produção de potência para um agir psicossocial, provocando movimentos desterritorializantes nos modos de cuidar, e inventando novas maneiras de promover e produzir o cuidado:

A gente tem uma pessoa referência de cada CAPS que a gente procura [...]tem reuniões às vezes, vem um profissional de cada CAPS aqui na unidade, para gente discutir o caso e a comunicação por telefone. Mas eu acho pouco, falta ter um matriciamento aqui no interior, existe na cidade e no interior tem esse buraco, porque muitas coisas a gente não se sente capaz de resolver [...] têm assuntos que a gente prefere discutir numa reunião, com a presença dos outros profissionais, falta do matriciamento, essa questão dos encontros mesmo, para discussão de casos. (PR AB)

Eu me questiono muito, a quantidade de serviços especializados que nós temos hoje em dia, tem melhorado? Se de repente não seria o momento, repensar e capacitar mais as equipes dos serviços que a gente já tem e tentar melhorar cada vez mais essa articulação. Estar capacitado para a gente entender exatamente qual é o papel de cada um [...]. Eu acho que a capacitação é uma coisa fundamental, no momento que tu sabe o que tu tem que fazer e tu sabe como fazer, facilita bastante. (PR CAPSi)

Tem profissional que não trabalha com saúde mental, que é carente [de conhecimento], o NASF nos dá um apoio legal, mas eu acho que a gente precisava de mais apoio, e os médicos também precisam de apoio de um psiquiatra, os nossos médicos são quem mantém as receitas das medicações controladas, eu acredito que eles precisam também de apoio para esse manejo e isso nós não temos, um matriciamento em psiquiatria, eu acho que é importante. (PR AB)

[...] eu não sei fazer propaganda enganosa. Eu acho que a gente fica mais é na parte curativa mesmo, infelizmente, em minha opinião. (PR AB)

[...] será que o teu filho tem indicação de estar num serviço desses? Ou ele pode ser atendido pelo médico da família, pela equipe? [...] Ou o profissional está sobrecarregado de tarefas dentro do serviço e não tem tempo para fazer esse olhar? [...] não é crítica ao colega. A equipe está ajudando a pensar? [...] Eu acho que é muito grande esse não olhar de todos os serviços, não é desse, nem daquele, não é nem apontando, mas de todos. Onde é que estão até chegar uma criança no serviço especializado? (PR CAPSi)

 

Discussão

Todo rizoma compreende linhas duras ou molares, flexíveis ou moleculares e de fuga. As duras asseguram a homogeneização do rizoma, que é, em si, heterogêneo, compõem o plano de organização e também relações horizontais e verticais presentes entre as equipes e entre os setores dos quais fazem parte. Já as flexíveis são responsáveis pelos afetamentos que ocorrem nas relações, criando condições para estabelecer agenciamentos, constituindo-se ainda por uma conjugação de fluxos diversos e heterogêneos. E as identificadas como de fuga (são linhas potentes de desconstrução, transformação, implicadas em buscar alternativas, outras vias, novos modos de conectar, multiplicar, desejar) se formam nas brechas ou fissuras dessas outras linhas, dando passagem para inúmeras formas criativas e inventivas do cuidar, movimentos necessários para que a articulação se exerça e deslocamentos aconteçam.11,15

É possível perceber que, no processo de trabalho, os profissionais procuram integrar suas ações com os serviços da AB, se reconhecendo como parceiros no cuidado e apontando o avanço e qualificação nas relações, embora enfatizem que a qualificação está em permanente construção. Sobre as ações que desenvolvem em conjunto, esses profissionais mencionam a realização de reuniões mensais, um arranjo organizacional que prevê que cada profissional do CAPSi seja referência de determinada unidade de saúde da Atenção Básica. O propósito dos encontros foi promover a discussão e análise das práticas concernentes ao campo da saúde mental da criança e do adolescente na AB, proporcionando um espaço de troca de experiências, discussão de casos e situações de saúde da população atendida na AB, propiciando aos trabalhadores o questionamento de suas práticas e reflexões sobre novos modos de agir, demandas e necessidades.4 Do mesmo modo, valorizam a comunicação informal, via contato telefônico, como outra aliada para a resolutividade das ações de saúde mental.

Para que a rede funcione efetivamente, outro elemento apontado pelos participantes da pesquisa é a colaboração ativa de todos os profissionais. Essa   conexão relacional, constituída pelos vínculos que os profissionais possuem com os diversos serviços de saúde da cidade, costuma ocorrer com mais frequência via contato telefônico para estabelecer uma comunicação direta e informal, especialmente quando exige decisões rápidas, ou a necessidade urgente de algum atendimento, visando informar encaminhamentos, condutas e contrarreferência.

Esses espaços-encontros mencionados para  realizar  ações conjuntas foram pensados não apenas para resoluções pontuais, mas para priorizar um diálogo multiprofissional, troca de experiências e a promoção de cuidados singulares,17 incorporando, nos seus processos de trabalho, “conexões desejantes” que produzem vida e saúde.18 A comunicação informal, referida pelos profissionais como outra ferramenta de integração entre os serviços, é considerada uma aliada na organização do fluxo dos usuários entre os pontos da rede, na identificação da demanda e uma forma de colocar a rede e os sujeitos em movimento.17 Essa lógica rizomática de trabalho, idealizada para promover a atenção psicossocial no município estudado, atua de forma contrária ao que tem sido apontado na literatura, cujas ações articuladas entre CAPSi e AB são restritas e ocorrem meramente de maneira pontual.19

Os profissionais também enunciam práticas de atenção psicossocial ao mencionar modos de fazer e interagir com os usuários que fazem a diferença na organização da dinâmica do trabalho e produção de novos saberes/fazeres. Esse modo implicado que mobiliza e afeta os trabalhadores para possibilidades de experimentação singulares e formas múltiplas de cuidar frente a cada situação, é disparador de potência e uma maneira de construir novos modos de existência e novas formas de conviver (com) e viver o sofrimento mental.20

E os serviços de Atenção Básica, ao incluírem, dentre as suas práticas cotidianas, uma atenção em saúde mental construída na perspectiva do acolhimento, do fortalecimento de vínculos de afeto, de confiança e disponibilidade de escuta, além de efetivar a assistência, tecem redes de suporte não somente para os usuários dos serviços, mas também para os profissionais, valorizando variados saberes e contextos, ou seja, incluindo-os na corresponsabilização pelo cuidado.21 A articulação entre o CAPSi e a AB mostra-se promissora quando a realização de atividades em conjunto é visível. Em concomitância, a parceria com o serviço de RD e o Nasf-AB, a partir do matriciamento, é ressaltada pelos profissionais como um dispositivo de potência e cuidado em rede; uma possibilidade de interlocução e trabalho compartilhado.

Neste estudo, evidenciaram-se parcerias e articulações com outros serviços, como o Nasf-AB e o serviço de RD. Esses novos arranjos organizativos fortalecem a criação de redes vivas e constroem conexões que aumentam a potência para produzir o cuidado. O apoio matricial, enquanto Nasf-AB, foi relatado pelos participantes como um dispositivo de articulação que auxilia os profissionais da Atenção Básica a acolherem seus usuários, e também na condução e intervenção terapêutica nos casos considerados com menos complexidade em saúde mental, os quais não necessitariam de um tratamento especializado no CAPSi. Contudo, embora este apoio seja entendido como potencialmente positivo na construção do cuidado colaborativo e de resolutividade, requer que se amplie uma discussão para além do clínico-assistencial, e também na perspectiva técnico-pedagógica, em que esses profissionais também compartilham seus saberes e práticas com os demais profissionais de saúde,22 atentando para que esse serviço gere o protagonismo de profissionais da AB e não uma dependência.

Além do trabalho integrado com o Nasf-AB, observa-se que há a preocupação de se trabalhar em conjunto com o serviço de RD, em especial em casos que envolvem o público adolescente que faz uso de substâncias psicoativas. Nota-se que os profissionais do serviço passaram a reorganizar a dinâmica do trabalho para acolher o público adolescente, procurando efetivar redes e alianças entre os diversos serviços existentes, indicando entender que a clínica extrapola as paredes do consultório, e, às vezes, do próprio serviço.23

É possível identificar atravessamentos de força molares nos fluxos de assistência à população infantojuvenil, pois, ainda que haja relatos que contemplem ações que considerem as particularidades do cuidado em saúde mental ao público infantojuvenil, notou-se a inexistência de ações específicas para a faixa etária da infância e adolescência. Isto porque os atendimentos geralmente estão voltados para ações pontuais e de ordem clínica. Os profissionais da Atenção Básica relataram que não há práticas específicas para essa população, desenvolvendo-se apenas a oferta de grupos de mães e bebês, puericultura e cuidados no âmbito ginecológico, odontológico, e ações relacionadas a orientações de prevenção da gravidez e de infecções sexualmente transmissíveis, indo ao encontro de estudos existentes na literatura.24

Essa realidade demonstra que o processo de trabalho da AB ainda está ancorado no campo molar do saber clínico, centralizado em ações curativas, portanto, a construção de um modo de atenção passa a ser um desafio para esses trabalhadores. Outro atravessamento aprisionado pela lógica instituída e tomado por linhas duras da burocratização foi a realização de encaminhamento para a rede especializada. Os profissionais relataram que a demanda em sofrimento mental que chega à Atenção Básica é, na maioria das vezes, referenciada ao CAPSi sob a justificativa de que muitos profissionais não possuem capacitação para lidar com essas questões. Por esse motivo, solicitam, com frequência, avaliação, conduta e tratamento, transferindo o cuidado para o CAPSi. Há predominância da lógica do encaminhamento para o CAPSi, apoiada na noção ainda hegemônica de que problemas de saúde mental não fazem parte das ações da Atenção Básica, e que os profissionais não se consideram aptos ou responsáveis por essas situações.21 Contudo, o encaminhamento não os exime da responsabilização compartilhada, pois, encaminhamentos, às vezes, são necessários para outros serviços, especialmente quando a rede de Atenção Básica não consegue resolver as demandas do usuário, sendo necessária maior compreensão da forma com que  esse processo é concebido e realizado. Assim, o encaminhamento surge como resultado da saturação da capacidade resolutiva da AB, em que os profissionais entendem a necessidade da atuação de maior complexidade, visando manter a integralidade do cuidado, dessa forma, ativa-se o sistema de referência e contrarreferência, e direciona o usuário ao longo da rede, a outros serviços e níveis de atenção, a fim de responder as suas demandas de saúde de forma resolutiva e articulada.25

Outro aspecto apontado pelos profissionais diz respeito ao fato de as ações de cuidado em conjunto estarem restritas aos limites físicos do serviço, referindo dificuldades de acesso por falta de transporte e das agendas lotadas que tomam todo o tempo de trabalho. Nessas dinâmicas burocráticas do plano organizacional, que insistem em capturar novos modos de fazer cuidado, impedindo a desterritorialização do trabalhador, ou seja, de se recriar frente às demandas institucionais, tem-se, de um lado, os profissionais da AB, tomados por tais forças, e, do outro, os profissionais do CAPSi,  que dizem não integrar mais ações em conjunto com a AB devido à agenda lotada pela alta demanda e dificuldades de infraestrutura com transportes para locomoção nas unidades de saúde mais distantes. Assim, o processo de trabalho do CAPSi também é capturado pela rotina do serviço, ao se limitar às ações dos espaços institucionais, desconsiderando a potencialidade do território, visando ao cuidado em redes.26

Em ambos os cenários há um campo de forças que inviabiliza movimentos instituintes de mudanças e possíveis linhas de fuga, pois, de um lado, o encaminhamento desimplicado e instituído reforça ações pautadas nas especialidades, e, do outro, a clínica é absorvida pelas questões estruturais e agenda lotada. Essas configurações promovem fixidez na rede de cuidado, deixando-se capturar por uma estrutura enrijecida, preestabelecida por condutas isoladas, impedindo processos inventivos. No entanto, quando os profissionais reconhecem a necessidade de incluir-se na rede do outro, se permitem ser mais um colaborador nessa rede e um agenciador de conexões, podem desestabilizar formas determinadas e instituídas, desenvolver uma multiplicidade de agenciamentos e invenções no espaço psicossocial.27 

Em oposição às forças molares, uma perspectiva de ruptura com as formas instituídas do saber e a necessidade de processos de resistência e singularização foram identificadas nos profissionais, ao assumirem suas limitações e passividades para enfrentar o modelo médico centrado de cuidar. Além disso, há o entendimento de que o sofrimento psíquico demanda investimentos na formação e na reinvenção de saberes e práticas. Esses movimentos são experimentados por alguns profissionais quando falam sobre as suas limitações e passividade para romper com a clínica tradicional, baseada na sintomatologia dos transtornos de saúde mental, ao assumirem a necessidade de apoio no sentido de uma retaguarda especializada de assistência. Desse modo, evitam encaminhamentos desnecessários a outros níveis de atendimento e aumentam a capacidade resolutiva da equipe de referência,28 possibilitando-lhe um suporte técnico-pedagógico de maneira a potencializar o cuidado comunitário e a corresponsabilização dos casos existentes de saúde mental nos territórios.26

Percebe-se, nos relatos, que os profissionais reconhecem suas fragilidades quanto à realização de ações de cuidado e construção de novas práticas em saúde, deixando-se afetar pela vida dos usuários que se encontram em sofrimento psíquico, e inventando outras maneiras de promover e produzir o cuidado. Diante disso, reafirma-se que o sofrimento psíquico demanda investimentos na formação e na reinvenção de saberes e práticas. Essa falta de conhecimento pode ser o fio condutor na busca por mais (in)formação e (trans)formações nas suas produções de cuidado, em especial na área de saúde mental, ao confidenciarem essa fragilidade profissional, anunciam a ruptura de um saber rígido e estabelecido, pois algumas áreas estão restritas ao saber especializado.  E convocam a criação de outras linhas que possibilitam novos fluxos, agenciamentos e devires, no contexto da saúde mental infantojuvenil.

No que tange às limitações do estudo, destaca-se que a pesquisa apresenta um recorte cartográfico que acompanhou a dinâmica do processo de cuidado em saúde mental à criança e ao adolescente em uma cidade de pequeno porte, a articulações entre a saúde mental e a AB, seus percursos, conexões e atravessamentos em determinado período da sua história. Contudo, entende-se que a metodologia desenvolvida e os resultados contribuirão para o campo da saúde mental infantojuvenil, porque ainda são poucos os estudos que têm abordado o cuidado e a complexidade que é a atenção psicossocial para crianças e adolescentes em sofrimento psíquico em diferentes equipamentos da rede de saúde. Assim sendo, reforça-se o investimento em pesquisas que privilegiem o debate e a reflexão sobre o papel e as ações da AB, no cuidado a essa população. A realização da pesquisa, ao se utilizar o referencial da cartografia, permitiu lançar um olhar processual sobre o cuidado em saúde mental à população infantojuvenil, o que se configura como uma inovação na área da Enfermagem e saúde, necessitando de investimentos nesse campo ainda pouco explorado.

 

Conclusão

Esta pesquisa permitiu cartografar o espaço de cuidado em saúde mental infantojuvenil, os movimentos realizados pelos serviços para romper com seus modos de agir, e refletir sobre a importância de se produzir conexões/parcerias na perspectiva psicossocial a partir da articulação entre os serviços do CAPSi e da AB. Os resultados evidenciam a importância de as ações de saúde mental serem realizadas de forma compartilhada, favorecendo a abertura de novos agenciamentos do cuidado psicossocial à criança e ao adolescente. Esses novos arranjos têm sido construídos em reuniões mensais, no apoio matricial e com a parceria com outros serviços, seja para a discussão de caso sobre os usuários envolvendo a saúde mental, na construção de projetos terapêuticos compartilhados de cuidado, ou para maior aproximação dos serviços visando fluxos mais coletivos. 

Nesse território de cuidado também se observou atravessamentos no plano molar como os encaminhamentos, pois, os profissionais não se sentem capazes de lidar com a demanda de saúde mental que chega à AB, e também a inexistência de atividades em saúde mental específica para a população juvenil, restringindo as atividades a ações mais pontuais, de ordem clínica e odontológica. Essas configurações instituídas em linhas duras impedem processos inventivos, convocando os sujeitos a realizarem pontos de ruptura na perspectiva da atenção psicossocial. Essa falta de conhecimento, ou necessidade de apoio e capacitação revelada como fragilidade, pode ser também o fio condutor para a desterritorialização de práticas endurecidas e a possibilidade de criação de outras linhas que possibilitem novos fluxos, agenciamentos e devires, no contexto da saúde mental infantojuvenil.  

Portanto, é preciso que os profissionais compreendam que o CAPS não é o único espaço de cuidado em saúde mental. E entendam o lugar de potência que a AB ocupa em compor coletivamente modos de cuidar, e assim ampliem as possibilidades do trabalho em rede.

 

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Fomento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (CAPES).

 

Contribuições de autoria

1 – Cristiane Kenes Nunes

Autor correspondente

Enfermeira, Doutora em Enfermagem - criskenes@gmail.com

Colaborou na concepção e desenvolvimento da pesquisa, redação do manuscrito e na revisão e aprovação da versão final.

 

2 – Agnes Olschowsky

Professora, Doutora em Enfermagem - agnes@enf.ufrgs.br

Colaborou na concepção e desenvolvimento da pesquisa e na revisão e aprovação da versão final.

 

3 – Aline Basso da Silva

Professora, Doutora em Enfermagem - aline.basso.17@gmail.com

Colaborou na redação do manuscrito e na revisão e aprovação da versão final.

 

4 – Mariane da Silva Xavier

Enfermeira, Doutora em Enfermagem - marianexavierenfa@gmail.com

Colaborou na redação do manuscrito e na revisão e aprovação da versão final.

 

5 – Fabrício Soares Braga

Enfermeiro, Mestre em Enfermagem - fsbraga85@gmail.com

Colaborou na redação do manuscrito e na revisão e aprovação da versão final.

 

Editora Científica Chefe: Cristiane Cardoso de Paula

Editora Associada: Rosane Cordeiro Burla de Aguiar

 

 

Como citar este artigo

Nunes CK, Olschowsky A, Silva AB, Xavier MS, Braga FS. Saúde mental infantojuvenil na atenção básica. Rev. Enferm. UFSM. 2023 [Access at: Year Month Day]; vol.13, e8: 1-18. DOI: https://doi.org/10.5902/2179769271914