Desenho de rosto de pessoa visto de perto

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Rev. Enferm. UFSM, v.13, e5, p.1-18, 2022

ISSN 2179-7692 • Logotipo, Ícone

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Submissão: 04/08/2022 • Aprovação: 26/01/2023 • Publicação: 16/02/2023

Tela de computador com texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Introdução. 1

Método. 1

Resultados 1

Discussão. 1

Conclusão. 1

Referências. 1

 

Artigo original                                                                                                                                                                             

Percepções de pacientes adultos acerca da vivência da internação em centro de tratamento de queimados*

Perceptions of adult patients about the experience of hospitalization in a burn treatment center

Percepciones de pacientes adultos acerca de la vivencia de la internación en centro de tratamiento de quemados

 

Isabella Xavier BeitumIÍcone

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Juliana Helena MontezeliIÍcone

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Carolina Rodrigues MilhoriniIIÍcone

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Andréia Bendine GastaldiIÍcone

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Cristiano CaveiãoIIIÍcone

Descrição gerada automaticamente

Ana Paula HeyIVÍcone

Descrição gerada automaticamente

 

I Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, Paraná, Brasil

II Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil

III Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Paraná, Brasil

IV Universidade Tuiuti do Paraná (UTP), Curitiba, Paraná, Brasil

 

* Extraído do trabalho de conclusão de curso: “Percepções de pacientes adultos acerca da vivência da internação em um centro de tratamento de queimados”, Universidade Estadual de Londrina, 2022.

 

 

Resumo

Objetivo: analisar as percepções de adultos vítimas de queimaduras acerca da internação em um centro de referência. Método: pesquisa qualitativa desenvolvida de dezembro de 2021 a março de 2022, em um Centro de Tratamento de Queimados no Norte do Estado do Paraná, Brasil. Corpus composto a partir de 16 depoimentos coletados por meio de entrevista semiestruturada individual em profundidade, cujos dados foram transcritos e submetidos à análise do Discurso do Sujeito Coletivo. Resultados: houve a emersão de quatro categorias: “As relações interpessoais e a internação prolongada”; “A dor durante o itinerário da internação”; “A queimadura para além dos aspectos físicos” e “Estratégias de coping durante a internação”. Conclusão: o cuidado integral e humanizado, a presença de rede de apoio, a inclusão do paciente no processo de recuperação e a fé foram considerados fatores amenizadores das angústias do queimado e promotores de perspectivas pós-internação positivas e de esperança. 

Descritores: Queimaduras; Unidades de Queimados; Hospitalização; Pesquisa Qualitativa; Entrevista

 

Abstract

Objective: to analyze the perceptions of adult burn victims about hospitalization in a referral center. Method: qualitative research developed from December 2021 to March 2022, in a Burn Treatment Center in the North of the State of Paraná, Brazil. Corpus composed from 16 testimonials collected through individual semi-structured interview in depth, whose data were transcribed and submitted to the analysis of the Collective Subject Discourse. Results: there were four categories: “Interpersonal relationships and prolonged hospitalization”; “Pain during the hospitalization itinerary”; “Burn beyond the physical aspects” and “Coping strategies during hospitalization”. Conclusion: the integral and humanized care, the presence of a support network, the inclusion of the patient in the recovery process and the faith were considered as factors that alleviate the anguish of the burn and promoters of positive post-hospitalization perspectives and hope.

Descriptors: Burns; Burn Units; Hospitalization; Qualitative Research; Interview

 

Resumen

Objetivo: analizar las percepciones de adultos víctimas de quemaduras acerca de la internación en un centro de referencia. Método: investigación cualitativa desarrollada de diciembre de 2021 a marzo de 2022, en un Centro de Tratamiento de Quemados en el Norte del Estado de Paraná, Brasil. Corpus compuesto a partir de 16 testimonios recogidos por medio de entrevista semiestructurada individual en profundidad, cuyos datos fueron transcritos y sometidos al análisis del Discurso del Sujeto Colectivo. Resultados: surgieron cuatro categorías: “Las relaciones interpersonales y la internación prolongada”; “El dolor durante el itinerario de la internación”; “La quemadura más allá de los aspectos físicos” y “Estrategias de coping durante la internación”. Conclusión: el cuidado integral y humanizado, la presencia de red de apoyo, la inclusión del paciente en el proceso de recuperación y la fe fueron considerados factores amenizadores de las angustias del quemado y promotores de perspectivas post-internación positivas y de esperanza.

Descriptores: Quemaduras; Unidades de Quemados; Hospitalización; Investigación Cualitativa; Entrevista

 

 

Introdução

Queimaduras são o resultado do contato entre agentes externos com a pele, podendo ser de natureza térmica, química, elétrica, radiante ou, ainda, biológica, capazes de acarretar tanto a lesão do tecido de revestimento, quanto dos sistemas muscular e ósseo, conforme a extensão do ferimento. As consequências desse trauma podem ser várias, como a dor, o risco de infecção, bem como possível comprometimento da funcionalidade de segmentos corporais e a depleção de volume, o qual pode gerar choque hipovolêmico e morte. Por isso, geralmente demandam longos períodos de internação e cuidados integrais, quadro que constitui significativo problema à saúde pública.1

O Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS) revela que, no Brasil, ocorreram 49.439 internações por queimaduras no período de janeiro de 2021 a setembro de 2022, dos quais 4.520 foram no Estado do Paraná.2 Apesar do coeficiente elevado, é pertinente considerar também as subnotificações que, inevitavelmente, ocorrem.1

Nesse contexto, o paciente institucionalizado em decorrência de queimaduras vivencia momentos dolorosos até nas situações habituais, como exemplo, o banho, que passa a requerer técnica específica somada ao uso de analgésicos, à troca de curativos e às indicações recorrentes de procedimentos cirúrgicos.3

A perda da autonomia, mesmo que em atividades corriqueiras, integra as contrariedades que o paciente queimado precisa enfrentar. Aliado a isso, pode surgir a sensação de solidão, bem como aflições quanto à sua vida fora do espaço hospitalar, seu emprego, suas obrigações e sua família, o que pode incitar sentimentos de angústia, de ansiedade e de impotência.3 Contudo, muitas vezes persiste a negligência do sofrimento emocional pela equipe de cuidado, seja de modo deliberado ou não. Assim, é essencial que se valide essa experiência complexa, pois, se não administrada de forma multidisciplinar, poderá ser marcada pela falta de voz e, principalmente, pela falta de esperança.4-5

Necessário considerar que  a pele cumpre múltiplas atribuições fisiológicas, tais quais a termorregulação, a função de barreira de proteção contra elementos externos, a regulação do fluxo sanguíneo e a mediação das funções sensoriais, além de conceder estética corporal ao indivíduo.6 Nesse sentido, quando danificada pela queimadura, o paciente pode vivenciar um processo de luto do antigo corpo, o que abrange o conflito entre um passado recente e o presente, situação que pode ensejar questionamentos relacionados à sua autoimagem e ao seu valor, assim como amargura diante de lembranças e comparações, perturbando sua autoestima. Ademais, o longo tempo de internação fortalece tais sentimentos, os quais terão impacto direto na resiliência e na disposição durante tratamento.1

Ainda que os dados oficiais demonstrem alta morbidade advinda das queimaduras, o Brasil possui apenas 56 centros de tratamentos especializados nessas injúrias, com distribuição heterogênea no território.7 Porém, essa clientela pode permanecer em tratamento em diferentes instituições até que haja vaga no serviço especializado. Diante disso, os profissionais das instituições de origem precisam ofertar assistência qualificada, abrangendo todas as esferas do ser humano e não somente a parte técnica do tratamento da queimadura.

Desse modo, conhecer as percepções dessa clientela permite que os profissionais envolvidos no seu cuidado ampliem o planejamento de sua assistência para além dos danos físicos ocasionados pelas queimaduras. Isso pode contribuir para a elaboração de estratégias que contemplem abordagens terapêuticas multidisciplinares e humanizadas, que colaborem com a reinserção social do paciente, de modo a minimizar as sequelas emocionais que um trauma de tal natureza pode causar. 

Portanto, esta pesquisa é alicerçada na seguinte indagação: como o adulto vítima de queimaduras percebe a internação em um centro de tratamento de referência? Com o propósito de elucidar tal questionamento, foi concebido como objetivo: analisar as percepções de adultos vítimas de queimaduras acerca da internação em um centro de referência.

 

Método

A presente pesquisa possui abordagem qualitativa e ocorreu no Centro de Tratamento de Queimados (CTQ) de um hospital universitário de grande porte, localizado no Brasil, ao Norte do Estado do Paraná. A instituição corresponde a um centro de atenção terciária que acolhe pacientes de mais de 100 municípios de outros Estados, além de cerca de 250 cidades paranaenses. Foi inaugurada em agosto de 2007 e é referência em assistência a queimados, comportando, atualmente, 16 leitos, dos quais seis são designados à terapia intensiva e 10 para enfermarias, bem como duas salas cirúrgicas exclusivas e ambulatório próprio.

Foram convidados a participar deste estudo os pacientes que estiveram internados no referido setor durante os meses de dezembro de 2021 a março de 2022. Para inclusão dos participantes foram utilizados os critérios: ter idade maior ou igual a 18 anos e estar internado nas enfermarias do CTQ há sete dias ou mais. Quando, no ato da entrevista, ocorria o caso de convergência com algum procedimento (troca de curativos no leito, balneoterapia, cirurgias ou exames), essa era suspensa e nova abordagem providenciada posteriormente. Foram excluídas as pessoas com limitação de comunicação (emissão, decodificação e resposta) em virtude do processo de recuperação após procedimento na face ou uso de algum dispositivo específico, como curativos a vácuo. O lapso temporal proposto - sete dias ou mais de internação - justifica-se pela maior probabilidade de submissão a diversas balneoterapias e ao menos um procedimento cirúrgico, quando indicado, contexto que amplia as vivências terapêuticas no tratamento da queimadura.

A coleta das informações foi feita pela pesquisadora principal, em formato de entrevista individual em profundidade, semiestruturada, audiogravada e consentida pelo participante por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As interlocuções aconteceram nas dependências do CTQ e tiveram duração mínima de 12 e máxima de 20 minutos, tempo estabelecido para não obstaculizar o atendimento assistencial ao paciente.

Os participantes que podiam deambular foram entrevistados na sala de estudos do setor. Já aqueles que se encontravam acamados e que não estavam em companhia de outro paciente na enfermaria foram entrevistados em seu próprio leito. Porém, a fim de preservar o participante, em casos de enfermarias cujo leito vizinho estava ocupado por outro paciente, optou-se por abordar o respondente aproveitando os momentos de ausência do companheiro, quando este passava por cirurgia, por exemplo.

O instrumento norteador foi composto por questões de caracterização do participante, dados relacionados à injúria/internação e quatro questões abertas: 1) Como você percebe este período de internação desde que aconteceu a queimadura até hoje? 2) Conte-me sobre seus sentimentos durante este período. 3) Houve mudança em algum aspecto interno/subjetivo seu desde que aconteceu a queimadura? Se sim, explique. 4) Conte-me sobre seus planos após receber alta hospitalar.

Como não houve um número pré-estabelecido de pacientes pesquisados, as entrevistas foram encerradas quando os dados apresentaram qualidade suficiente para responder ao objetivo do estudo.  Tal parâmetro foi proposto mediante seleção criteriosa e intencional, a qual privilegiou dois aspectos: que a fonte de informação da condição estudada fosse composta por aqueles considerados atores sociais mais relevantes (stakeholders) e corpus constituído por perfis diversificados.8

Dos 131 pacientes internados durante o período de coleta de dados, 86 eram adultos, dos quais 54 permaneceram internados por sete dias ou mais. Destes 35 atenderam também aos demais critérios, sendo que 15 se recusaram a participar da entrevista. Desse modo, dos 20 participantes em potencial, 04 foram excluídos do estudo pois a entrevista foi interrompida para realização de exame ou procedimentos invasivos e, ao proceder tentativa posterior de abordagem foi constatada a alta hospitalar.

A partir da décima terceira entrevista evidenciou-se a repetição de falas, bem como padrão de respostas às questões norteadoras, sem a presença de novos elementos significativos ao objetivo deste estudo. Assim, com base nessa recorrência, persistiu-se na coleta de dados até o décimo sexto participante.

Após a coleta, as entrevistas foram transcritas considerando estritamente os aspectos verbais, sendo mantida a linguagem própria dos indivíduos, porém foram desconsideradas pausas durante a fala expressões corporais ou sinais comportamentais.  Esses dados foram tratados por meio da mobilização da Análise do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), técnica de processamento de dados cujo propósito é resgatar modos coletivos de pensar dos mais diferentes grupos. Em outras palavras, na DSC, os dados verbais são processados com vistas à emersão das opiniões coletivas.8

Uma análise preliminar das transcrições das falas permitiu a identificação das expressões-chave e, na sequência, da ideia central expressa por elas, a qual pode ser compreendida como um nome ou uma expressão linguística que descreve, de maneira sintética e precisa, o(s) sentido(s) dos discursos analisados. Em seguida, as expressões-chave e as ideias centrais (IC) elencadas foram categorizadas e, na sequência, foram organizados os respectivos DSC, redigidos sumariamente na primeira pessoa do singular.8

De maneira mais detalhada, a análise, bem como a organização dos dados coletados, ocorreu da seguinte forma: a) elaborou-se uma planilha com seis colunas no Microsoft Excel; b) na primeira coluna foram inseridas as falas de cada participante, transcritas na íntegra; c) a segunda coluna abrigou as expressões-chave copiadas, as quais foram identificadas após repetidas leituras das transcrições; d) na sequência, cada expressão-chave foi analisada em separado, identificando-se a ideia central expressa em cada uma delas. Das expressões-chave emergiram 26 ideias centrais, dispostas na terceira coluna e identificadas como IC1 a IC26; e) em seguida, conforme a similaridade, efetivou-se o agrupamento das ideias centrais em categorias e subcategorias, respectivamente na quarta e na quinta coluna; e f) por fim, na sexta coluna, organizaram-se os DSC, cuja redação foi composta pela união das expressões-chave que faziam parte das IC pertencentes a cada categoria.

Os aspectos éticos seguiram o preconizado pela Resolução nº. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, com aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da instituição, sob parecer n°. 4.416.099 e CAAE 40087520.7.0000.5231, em 23 de novembro de 2020.9

 

Resultados

O estudo foi composto por 16 participantes, dos quais 11 eram homens e cinco eram mulheres, com idades entre 69 e 20 anos, majoritariamente negros ou pardos autodeclarados, casados ou em união estável. Quanto ao grau de instrução, os respondentes estavam assim distribuídos: um com ensino superior completo, um com ensino superior incompleto, seis com ensino médio completo, três com ensino médio incompleto, quatro com ensino fundamental completo e um com ensino fundamental incompleto. Quanto ao tipo de lesão, seis tinham sofrido queimaduras em acidentes domésticos, um em acidente de trânsito e nove acometidos durante suas atividades laborais.

No tocante à etiologia das queimaduras, dois casos foram de natureza elétrica e os demais de caráter térmico. A porcentagem de superfície corporal queimada oscilou entre 5 e 50%, todas com profundidade mista de 2º a 3º grau, predominantemente abrangendo áreas de membros superiores e inferiores, tronco e pescoço. Todos os entrevistados já haviam passado por balneoterapia, curativos e desbridamento. Quanto ao enxerto autólogo de pele, dois pacientes ainda não o tinham feito até o momento da entrevista. Submetidos a oxigenoterapia hiperbárica foram três indivíduos. 

A análise das entrevistas permitiu a emersão de 26 ideias centrais que foram agrupadas em quatro categorias empíricas, a categoria 1 e a categoria 3 apresentaram subcategorias (Quadro 1). Na sequência, foram construídos os respectivos DSC, considerando as expressões-chave que originaram as ideias centrais, demonstradas nas seções subsequentes.

 

Quadro 1 – Composição das categorias empíricas. Londrina, PR, Brasil, 2022.

Categorias

Subcategorias

Ideias centrais

1) As relações interpessoais e a internação prolongada 

A) Polaridades na relação e comunicação com a equipe multidisciplinar

Tratamento adequado com incentivo, positividade, bom humor e zelo da equipe multidisciplinar.

A escuta da enfermagem como fortalecedor no processo de cuidar.

A escassez de informações gerando insegurança e ansiedade.

B) Relação com outros pacientes versus presença de um acompanhante

Relações sociais construídas com outros pacientes queimados como apoio na recuperação.

Internação prolongada como ponto negativo e a expectativa de voltar para casa.

Solidão e isolamento como dificultadores na internação. 

O suporte e o conforto promovidos pela presença de acompanhante.

2) A dor durante o itinerário da internação

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Não valorização da dor do paciente e demora no atendimento de queixas álgicas pela equipe.

A dor como ponto negativo.

Manejo inadequado da dor vivenciado fora de um serviço especializado.

3) A queimadura para além dos aspectos físicos

A) Sentimentos positivos

Satisfação e felicidade pela resolutividade do quadro.

A gratidão e o florescer do altruísmo.

A felicidade despertada pela preocupação dos entes queridos.

B) Sentimentos negativos

A internação pela queimadura como precursor de implicações emocionais.

Reflexões iniciais após a institucionalização.

Despertar de sentimento de frustração e de impotência e preocupação com as responsabilidades exteriores. 

C) Ressignificações e mudanças no pensamento

Enfrentamento positivo na perspectiva do aprendizado e do recomeço.

A compreensão da gravidade da queimadura e o reconhecimento da finitude humana.

Despertar de uma consciência alerta e cautelosa em razão da queimadura.

A ampliação de perspectivas e fomento de novos pensamentos. 

A internação como meio de exercitar a paciência.

4) Estratégias de coping durante a internação

-----

O valor da fé, da disciplina e do otimismo para a recuperação do paciente queimado.

A presença da espiritualidade e a intenção de cultivá-la.

 

As relações interpessoais e a internação prolongada

Esta categoria foi composta por um total de sete ideias centrais dispostas em duas subcategorias e os respectivos DSC, que podem ser conferidos no Quadro 2.

 

Quadro 2 – Discursos da categoria 1 em suas respectivas subcategorias. Londrina, PR, Brasil, 2022.

Subcategoria A) Polaridades na relação e na comunicação com a equipe multidisciplinar

Eu fui muito bem tratado aqui na maioria das vezes e, quando recebemos um bom tratamento, a recuperação tende a ser mais rápida. A equipe não me permite ficar ‘para baixo’ e, quando os profissionais percebem que estou desanimado, me incentivam, dão ânimo para melhorar, tratam com positividade. Quando converso com a equipe de enfermagem, eles escutam o que estou precisando, coisa que eu não tinha no serviço em que fiquei internado antes de ser transferido para cá, pois lá eu não tinha autonomia para opinar sobre meu tratamento. Quando eu estava lá, só queria que isso acabasse logo para eu ir embora. Já neste setor, todos me tratam com educação, bom humor e com sinceridade no trabalho, tentando levantar minha autoestima e me valorizando como ser humano, o que dá um conforto enorme e muita confiança. Percebo que há empatia por parte dos profissionais, mesmo com todas essas coisas boas, há alguns deles que são intolerantes, não aptos a trabalhar com o público e isso não pode se tornar habitual neste serviço. Um outro ponto negativo que observei foi a falta de comunicação, mais especificamente sobre informações referentes aos procedimentos que ia fazer, ao que estava acontecendo comigo, principalmente informações passadas pelo médico. Sinto falta de o médico passar e dar uma palavra. Além disso, quando eu questionava, cada um me passava uma informação diferente e eu acabei ficando meio perdido nos acontecimentos. Quando fico sabendo o que de fato está ocorrendo no tratamento consigo dormir tranquilo. [DSC]

Subcategoria B) Relação com outros pacientes versus presença de um acompanhante

Eu fiz boas amizades aqui dentro, boas companheiras e companheiros e foi a força de vontade deles somada à minha que tem contribuído para eu me reabilitar. Mesmo assim, faz falta um familiar ao meu lado. Eu sei que não estou sozinho em um quarto, mas, para mim, é como se estivesse, pois eu sou acostumado a ficar perto da família. Um profissional vai fazer o máximo para te ajudar aqui, mas sempre há um desconforto e, havendo um familiar junto, sinto-me mais confortável, principalmente para as necessidades fisiológicas. Então, se um familiar puder ficar me acompanhando, pelo menos durante o dia, me ajudaria bastante na recuperação. Somado a isso, tem o longo período de internação, porque uma queimadura é algo doloroso, ela não é como uma fratura, que tem um tempo de recuperação certo na maioria dos casos; a queimadura é mais demorada. Desde que aconteceu comigo, eu fiquei bem apreensivo, com medo de ficar longe da minha família; eu comecei a pensar muito na minha família [...] e tem dia que não me sinto bem, é um tipo de desespero e eu sozinho aqui, sem ninguém ao meu lado, vai que acontece alguma coisa. [DSC]

 

A dor durante o itinerário da internação

A segunda categoria foi estruturada a partir de três ideias centrais e o discurso construído foi o seguinte:

A queimadura causa uma dor insuportável e a dor é um ponto forte. Ela te desanima, ela acaba com você, é horrível! Eu não desejo a ninguém essa dor, pois ela torna tudo mais difícil até para fazer as necessidades. No hospital em que fiquei internado anteriormente eles não me medicavam adequadamente; a limpeza das feridas era feita sem anestesia e eu sentia muita dor. Aqui neste serviço isso melhorou, pois durante a balneoterapia e os curativos eu sou anestesiado e eu achei bem melhor. Mas houve uma situação em que eu acordei às cinco horas da manhã com muita dor no braço, avisei a enfermagem sobre isso e a pessoa responsável demorou muito tempo para me atender; faltou amor pelo próximo! [DSC]

 

A queimadura para além dos aspectos físicos

Esta terceira categoria foi constituída de 11 ideias centrais e o Quadro 3 dimensiona suas três subcategorias e os respectivos DSC.

 

Quadro 3 – Discursos da categoria 3 em suas respectivas subcategorias. Londrina, PR, Brasil, 2022.

Subcategoria A) Sentimentos positivos

Pouco tempo após ter sido admitido neste serviço, minhas lesões já estavam evoluindo bem e eu me sinto muito feliz pelas minhas áreas de enxerto estarem dando certo. Quando soube do sucesso do enxerto fiquei empolgado igual a uma criança; pode ser uma coisa bem simples para quem trabalha nessa área, mas, para mim, foi uma vitória muito grande a minha recuperação e poder voltar a andar. Logo após a cirurgia senti muita dor, mas depois de controlada, percebi que foi bem realizada, percebi o quanto essa instituição é boa e tive um sentimento muito bom de que tudo está dando certo. Um sentimento de gratidão a Deus, por eu ter sobrevivido; a aqueles que cuidaram de mim aqui no hospital, lembrando que essas pessoas devem ser valorizadas pelo trabalho que fazem; a todos que oraram por mim, amigos e familiares. A partir de agora quero ser cada vez mais grato, humilde, solidário, me doar mais e poder ajudar as pessoas, pois antes eu era muito egoísta, só pensava em mim e na minha família, sem me importar com os demais. Aqui no hospital tive a chance de meditar, de me reconhecer como ser humano e de perceber que há mais humanos do lado de fora, que preciso ajudar mais o próximo. Com tudo isso, sinto meu peito aberto e feliz por perceber que tantos se importam comigo. A oração e a preocupação dos entes queridos contribuem muito para meu ânimo a ponto de me emocionar. É uma alegria inexplicável! [DSC]

Subcategoria B) Sentimentos negativos

Isso que aconteceu comigo foi tudo muito rápido e eu jamais imaginei que aconteceria. Passei um tempo tentando compreender como isso ocorreu comigo e fiquei bem desapontado comigo mesmo, porque eu acho que foi uma bobeira minha, um descuido. Sinto-me frustrado por isso ter ocorrido porque tenho muita coisa para fazer fora do hospital. Desde que eu me queimei passei muito medo, principalmente de ter sequelas. No início do tratamento eu me preocupei muito, questionando: ‘será que vou voltar a ser normal? Será que vou poder voltar a trabalhar ou não?’ A queimadura me deixou muito mal emocionalmente também, mais sensível frágil e choro com frequência quando fico me lembrando do acidente. Já fiquei tão assustado que tive sonhos com isso. Inicialmente, no primeiro atendimento aqui, pensei que ia embora após a consulta, que não era nada tão grave, que iria embora em breve. No entanto, a minha vida parou porque eu estou aqui internado e a minha família está lá fora. Então, é muito negativo não estar trabalhando, não estar com a minha família, não estar fazendo o que eu precisava estar fazendo. [DSC]

Subcategoria C) Ressignificações e mudanças no pensamento

A queimadura me ensinou muito, será lembrada sempre e vai ‘queimar’ durante toda a minha vida, na alma, no olhar, nas coisas que vou falar. Ela acendeu um alerta para mim e acho que daqui para frente eu vou ser uma pessoa diferente, menos estressado e mais paciente. Sempre fui muito agitado e ‘estourado, contudo, durante a internação, minhas perspectivas mudaram e eu mudei meus pensamentos, deu tempo de eu pensar, coisa que eu não tinha. Antes, eu pensava só em trabalhar, não pensava que os outros ao redor de mim existiam e passarei a valorizar mais as pessoas agora. Aprendi que a gente tem que amar o próximo intensamente enquanto a gente está aqui na Terra. Eu pude parar e ver a vida, sentir a vida, então, é vida nova, um novo nascimento. Eu acho que a experiência da queimadura me fará tomar mais cuidado para fazer as coisas, pois podemos estar falando e, dali a alguns minutos, pode-se morrer se não tivermos cuidado. Eu vi tanta gente pior que eu, um monte de gente mais queimada que eu, um monte de gente lutando e cheguei a ver uma pessoa que internou aqui e estava até conseguindo se alimentar sozinha, mas, após complicações, faleceu. Então eu não estou levando mágoa nem remorso da queimadura. Este processo contribuiu para a mudança de pensamento também de alguns familiares/amigos, eu pude sentir a preocupação deles e esse amor também foi fonte importante para eu me recuperar. [DSC]

 

Estratégias de coping durante a internação

A quarta e categoria foi edificada com base em duas ideias centrais, que originaram o DSC a seguir.

A queimadura é muito perigosa e, para sua cura, é necessário ter disciplina e manutenção da calma, além de seguir as orientações da equipe de saúde. Se a pessoa se entregar e não fizer o que os profissionais orientam, não consegue sucesso no tratamento. É preciso acreditar na recuperação, ter fé e perseverança. Aqui no hospital há pessoas da capela que vêm fazer visita e oração conosco e isso é muito positivo. Eu sempre acreditei em Deus, mas, depois desse período aqui internado, muita coisa vai mudar no meu cotidiano, na parte religiosa, em casa, na vida toda. Pretendo procurar mais Deus, agradecendo-o, independentemente da religião, pois Ele foi maravilhoso comigo. Vou sempre rezar para que isso não aconteça mais comigo nem com outras pessoas. Se Ele está me dando mais uma oportunidade para viver, é porque há um plano para mim e eu vou buscar esse plano sendo mais religioso e amoroso. [DSC]

 

Discussão

Os resultados da primeira categoria revelaram considerações sobre a relevância das relações interpessoais durante o longo processo de recuperação da vítima de queimadura. Na subcategoria A, o discurso foi respaldado pelas percepções a respeito da postura da equipe multidisciplinar durante a internação, qualificando-a com base em critérios como a comunicação efetiva e a natureza da relação médico-paciente. Ao refletir acerca do discurso, nota-se que ele coaduna com o dito na literatura, a qual enfatiza a assistência humanizada. Esta é traduzida pelo emprego das tecnologias leves no cuidado, de maneira que o paciente reconhece que seus sentimentos são legitimados e que a sua dignidade é preservada, gerando repercussões benéficas no seu estado emocional e na disposição para avançar no tratamento.10

A comunicação foi reputada como matriz para a prosperidade dos vínculos, apresentando maior profundidade diante das atitudes de empatia e da escuta ativa por parte da equipe. Importante ressaltar que as relações interpessoais entre profissionais e pacientes são construídas por meio de processos comunicacionais, inclusive sobre o andamento do tratamento. Quando a comunicação não é efetiva, tais relações tornam-se incipientes e podem proporcionar sentimentos como insegurança e ansiedade. Em convergência com os dados, uma revisão integrativa dos estudos evidenciou que dispor informações ao paciente valida seu papel como participante no processo terapêutico e, além de incentivar o autocuidado e garantir sua segurança, possibilita quietude ao estado de espírito do queimado.10  

Ainda na categoria inicial, o discurso associado à subcategoria B denotou como as relações sociais, assim como a sua falta, impactam na manutenção do estado mental e na perseverança do paciente. A internação prolongada promove ruptura no círculo de relações do indivíduo, retirando-o bruscamente de seu convívio social cotidiano e fazendo com que essa situação permaneça por longo período. Nesse ínterim, o paciente se depara com uma rotina restritiva e fica afastado do conforto oferecido pelo convívio familiar, o que pode despertar sentimentos de isolamento e de solidão, aspectos que, aliados aos demais fatores estressantes da internação, podem provocar desordens psíquicas.10

Visto que o afastamento de seus entes pode provocar ao paciente dificuldades em sua readaptação na sociedade e que uma rede de apoio estável sustenta a adesão ao tratamento, é importante que os profissionais ampliem sua perspectiva do processo saúde-doença para além da esfera curativa e que reconheçam os efeitos benéficos do acompanhante e das relações sociais na capacidade de enfrentamento do paciente. Ademais, o enfermeiro, como personalidade constante na convivência do paciente, é essencial na identificação e na mediação de tais adversidades, o que ocorre por meio do processo de enfermagem e pela aplicação das tecnologias leves.4 

A segunda categoria evidenciou um dos principais desconfortos que permeiam o contexto de recuperação do paciente queimado: a dor. Em determinada pesquisa, os relatos apresentados coincidem com o discurso dessa categoria, visto que as narrativas de ambos possuem como intersecção a dor como incômodo persistente, de forma que seja indesejada para qualquer ser humano. 11

A dor é um conceito abstrato e relativo, sendo seu limiar sujeito a características afetivo-emocionais de experiências prévias, assim como culturais. Valoriza-se aqui a atuação da psicologia no enfrentamento das aflições da queimadura, dentre elas a dor, uma vez que provoca marcas físicas e emocionais, entretanto as de cunho emocional não podem ser reparadas por meio da praticidade das cirurgias.11 

Autores argumentam que o queimado perpassa quatro padrões da dor: 1) a dor de fundo, de caráter constante e independente de manipulação, até o momento da reepitelização completa; 2) a dor disruptiva, que está majoritariamente atrelada à manipulação e aos movimentos e possui natureza aguda e repentina; 3) a dor no procedimento, que está relacionada à execução de intervenções médicas e, apesar de ser aguda, pode ressoar por horas e até dias  depois; 4) a dor pós-operatória, que configura uma das dores de maior intensidade.12 

A dor, como estressor físico e psicológico contínuo no processo de recuperação do paciente, nem sempre é valorizada como deveria pelos prestadores de cuidado,11-13 conforme mencionado no DSC. Ao ter em mente a predominância do modelo biomédico, trabalhadores da área da saúde podem confundir seu objetivo estritamente com o ato de comprovar a presença do quadro álgico, quantificá-lo e julgar, por si, se é merecedora de intervenções. 13

Ainda é possível que, da mesma forma que alguns profissionais se sensibilizem ao serem expostos ao sofrimento repetidamente, outros, naturalizem essa demanda como uma estratégia de enfrentamento. Portanto, é imprescindível que os cuidadores sejam capacitados para atuar de forma humanizada, reconhecendo as reivindicações do paciente e primando a ética, sem projetar juízos de valor próprio, além de oferecer assistência planejada e organizada.13

A terceira categoria emersa dos dados evidencia o impacto da queimadura nas vítimas, perpassando a lesão física propriamente dita. Em sua primeira subcategoria, o DSC sinaliza sentimentos positivos vivenciados durante a internação, sendo o contentamento pela evolução do quadro clínico um dos ângulos trazidos. Durante a hospitalização, o paciente se encontra em déficit de autonomia, situação que o sujeita, mesmo quando se trata dos cuidados mais básicos, à disponibilidade de outrem. Somado a isso, podem surgir incertezas quanto à possibilidade de sequelas e à retomada de suas capacidades prévias.1 

Tal quadro pode ser motivado por valores culturais, calcados no entendimento de que   os ofícios são o sustentáculo de uma vida socialmente aceita como natural. Assim, o ser humano, com sua tendência de modificar o ambiente à sua volta para prover recursos e fazer-se evidente na comunidade, atrela sua essência e valor a eles.1 Nesse sentido, os internados apresentam potencial para relacionar seu bem-estar à  restauração de sua performance anterior ao ocorrido, experienciando aflição ao considerar a chance de ter que assumir uma nova posição social, caracterizada pela dependência permanente.4 Essa relação emerge no  discurso quando o paciente expressa felicidade intensa ao recobrar suas habilidades, mesmo as mais básicas. 

Além disso, as relações interpessoais, mais especificamente as conexões familiares mais significativas para o paciente, interferem beneficamente no processo de internação. A dimensão do apoio social é diretamente proporcional ao bem-estar do indivíduo, refreando sentimentos de angústia e estimulando a adesão ao tratamento. Dessa forma, o apoio familiar demonstra-se como importante artifício de enfrentamento, contribuindo para evitar o surgimento de perturbações emocionais e para facilitar a aceitação de sua atual condição.4 

Ao se deparar com ameaças à sua longevidade, é despertada no indivíduo a iminência de doar-se intensamente aos seus relacionamentos e aos seus princípios, condição manifestada pela vontade de resolver pendências e expressar sentimentos que antes eram reprimidos. Nesse contexto, a experiência gerada pela queimadura desencadeia meditações acerca da existência e, combinada à exposição prolongada não só ao próprio, mas também ao sofrimento alheio, é plausível que o paciente reconheça sua vulnerabilidade, recém-descoberta nas pessoas à sua volta. Tal quadro permite que ele admita o valor da assistência que lhe foi oferecida nesse momento tão conturbado, ansiando por ajudar também,14 como mencionado no discurso.

Em contraponto, o eixo temático abordado na subcategoria B enfatiza as emoções negativas, principalmente no tocante à frustração, à invalidez e à preocupação. O trauma é uma experiência subjetiva que possui significados e mecanismos de enfrentamento influenciados por valores, juízos, crenças e perspectivas prévias. Tendo em vista o fato de que a queimadura origina mais do que alterações físicas, o paciente pode ser tragado por uma série de emoções atordoantes, as quais podem acompanhar toda sua trajetória. Essa conjuntura pode gerar dificuldade de assimilação pelo paciente, sendo as duas eventualidades indício da instabilidade emocional.15 

Para além da questão de saúde física e psicológica, a queimadura revela um aspecto socioeconômico, visto que, ao ser institucionalizado e retirado de seu cenário, o paciente é compelido a deixar suas atribuições provisoriamente, sejam elas financeiramente dispensáveis ou não. Nos casos em que o queimado ocupa posição de provedor, ele experiencia preocupação com seus dependentes e com a possibilidade de não retomar suas antigas habilidades, o que pode afetar a adesão ao plano terapêutico. A frustração e a impotência são sensações que podem incitar no paciente uma ótica baseada na crença de suspensão de crescimento, enquanto os demais ao seu redor prosseguem com suas vidas.15 

A subcategoria C foi delineada com base na concepção de que a queimadura faz com que o indivíduo repense suas convicções. No decurso do processo da internação, paira sobre o paciente a perspectiva da morte, sentida em experiência própria ou observada nos demais internados.1 Assim, a proximidade com a morte está acompanhada pelo medo e pelo luto causados pela percepção de perda dos próprios sonhos, dos objetivos e dos entes queridos. Naturalmente, o ser humano inclina-se a ignorar sua finitude, devido à falta de controle sobre esse fenômeno, o qual muitas vezes não permite planejamento.15 Por estarem prolongadamente em um ambiente que fomenta ponderações a respeito da essência da vida e o que há após ela, o indivíduo pode contemplar dilemas éticos e morais que reverberam em aspectos comportamentais e de identidade.16 

Essa possibilidade pode ser autenticada pelas afirmações no discurso acerca das mudanças na peculiaridade do paciente, relativas ao maior exercício da paciência, a comportamentos mais cautelosos e ao desejo de expressar seus sentimentos mais abertamente. As adversidades enfrentadas podem ser percebidas de formas diferentes a depender do indivíduo, mas é plausível, considerando o discurso construído, que o paciente é capaz de transformar o significado da experiência traumática, principalmente se receber recursos que abarcam toda a esfera biopsicossocial.15 

Por sua vez, o discurso correspondente à quarta categoria versa sobre os métodos de enfrentamento utilizados pelo paciente, os quais foram julgados como impreteríveis para defrontar a internação pela queimadura. A institucionalização pode ocasionar repercussões emocionais capazes de abalar a resiliência do indivíduo e, em busca de restabelecer seu equilíbrio, ele elabora táticas que convêm aos seus princípios.1 É nesse contexto que o paciente exercita autorreflexão, obtém novas perspectivas ou reforça as anteriores. Um dos destaques da narrativa apresentada é a percepção do paciente quanto à importância da sua determinação e disciplina para cumprir o plano terapêutico desenvolvido pela equipe de saúde, exemplificando os benefícios de se reconhecer como participante no processo de recuperação e do cuidado fundamentado na transparência.

Equitativamente a demais estudos,1,15 esse discurso alude à estima da perseverança, da dedicação e principalmente da fé no cotidiano do paciente, manifestada pelo sentimento de gratidão a Deus. A presença da espiritualidade no dia a dia do setor de tratamento de queimaduras operou como alicerce no restabelecimento do indivíduo, produzindo sensação de tranquilidade. Os sentimentos de tristeza, de solidão e de temor pela vida são indícios do anseio pela dimensão da religiosidade, e a fé torna-se um dos escassos confortos em um contexto em que todos os vínculos de afeto foram interrompidos abrupta e temporariamente. Nesse sentido, a fé possui ofício de apaziguar a ansiedade gerada pelas diversas incertezas da internação e o paciente, muitas vezes, se apega à percepção de que o ocorrido é uma pequena peça de um plano maior arquitetado por forças como o destino e Deus, possivelmente pela sensação de impotência e pela falta de controle sobre sua própria vida.1

Tendo em vista as conjunturas mencionadas, os profissionais do cuidado podem intervir por meio da oferta de atividades lúdicas, que ofereçam distração e bem-estar. A aplicação dessas atividades pode proporcionar ao paciente alívio da negatividade e efeitos de relaxamento, além de uma compreensão mais amena de suas atuais circunstâncias.1 

Ainda que os resultados deste estudo e suas discussões possam fornecer subsídios para ampliar o conhecimento sobre vítimas de queimaduras, deve-se mencionar como limitação que os dados refletem as percepções durante a internação, pois não houve verificação após a alta hospitalar. Dessa forma, sugere-se que outras investigações apreendam como tais percepções ocorrem em um cenário de retorno à sociedade, o que pode modificar as concepções acerca do período inicial de tratamento da queimadura.

A contribuição deste trabalho reside no fato de que, ao dar voz às experiências do queimado durante a internação, esforços possam ser empregados para que o processo de cuidar possa ser entendido como algo multifacetado, propondo um olhar que ultrapasse os acometimentos biológicos proporcionados por essa injúria. Espera-se que os resultados desta investigação possam fomentar reflexões nas equipes multidisciplinares que lidam com a clientela em questão, para que busquem, cada vez mais, alicerçar suas práticas não apenas valorizando o tratamento dos aspectos fisiopatológicos da queimadura, mas também considerando o indivíduo em sua totalidade, o que abarca acometimentos psíquicos e sociais somados ao comprometimento físico.

 

Conclusão

O cuidado integral e humanizado, a presença de rede de apoio, a inclusão do paciente no processo de recuperação e a fé foram considerados amenizadores das angústias do queimado e promotores de perspectivas futuras esperançosas. Assim, os pontos de suporte identificados possuem repercussões pertinentes à esfera socioemocional e agem apaziguando os sentimentos negativos, tais como a solidão, a impotência e a angústia. 

 

Referências

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2. Ministério da Saúde (BR). DATASUS. Informações de Saúde [Internet]. 2022 [acesso em 2022 mar 04]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sih/cnv/niuf.def 

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4. Moraes LP, Echevarría-Guanilo ME, Martins CL, Longaray TM, Nascimento L, Braz DL, et al. Apoio social e qualidade de vida na perspectiva de pessoas que sofreram queimaduras. Rev Bras Queimaduras [Internet]. 2016 [acesso em 2021 fev 27];15(3):142-7. Disponível em: http://www.rbqueimaduras.com.br/details/309/pt-BR/apoio-social-e-qualidade-de-vida-na-perspectiva-de-pessoas-que-sofreram-queimaduras

5. Costa ACSM, Santos DL, Silva JLN. Análise das variáveis dor e equilíbrio em pacientes admitidos em uma unidade de tratamento de queimados. Rev Bras Queimaduras [Internet]. 2017 [acesso em 2021 mar 06];16(1):18-22. Disponível em: http://rbqueimaduras.org.br/how-to-cite/342/pt-BR

6. Matoso LML. Assistência de enfermagem com pacientes queimados: um estudo bibliométrico. Rev Saúde [Internet]. 2018 [acesso em 2021 mar 06];12(1):62-7. Disponível em: http://revistas.ung.br/index.php/saude/article/download/3349/2548

7. Meschial WC, Santos DF, Gavioli A, Lima MF, Castro VC, Oliveira MLF. Internação e mortalidade hospitalar de vítimas de queimaduras no Brasil. Rev Enferm Atual In Derme. 2020 set [acesso em 2022 nov 10];93(31):e-020036. doi: 10.31011/reaid-2020-v.93-n.31-art.804

8. Lefévre F. Discurso do sujeito coletivo: nossos modos de pensar, nosso eu coletivo. São Paulo: Andreoli; 2017.

9. BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf. Acesso em: 10 nov. 2022.

10. Silva PN, Ferreira LA. Percepção dos pacientes sobre a internação hospitalar em diferentes clínicas: uma revisão integrativa. Rev Fam Ciclos Vida Saúde Contexto Soc. 2021;9 Supl 1:312-23. doi: 10.18554/refacs.v9i0.4315

11. Nogueira AD, Almeida JLBB, Lima DMA. “Quem sabe a dor da queimadura e quem está queimado”: experiências de pacientes queimados à luz da Gestalt-Terapia. IGT Rede [Internet]. 2018 [acesso em 2022 abr 24];15(29):242-64. Disponível em: http://igt.psc.br/ojs3/index.php/IGTnaRede/article/view/554

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15. Luz RMD, Oliveira ARC, Moreno TES, Barbosa DAM, Silva IL, Simoneti RAAO. Aspectos psicológicos de pacientes pós queimaduras: uma revisão da literatura. Braz J Dev. 2021;7(6):60538-55. doi: 10.34117/bjdv7n6-436

16. Cavalcanti AN, Pinto KDC, Oliveira LCB, Maia EMC, Maia RS. Morte na perspectiva do paciente e família na Unidade de Terapia Intensiva. Rev Gest Saúde (Brasília). 2018;9(2):283-306. doi: 10.18673/gs.v9i2.24206

   

Fomento / Agradecimento:  “Não possui”  

 

Contribuições de autoria

 

1 – Isabella Xavier Beitum

Autor Correspondente

Enfermeira graduada - isabellaxavier2015@gmail.com

Concepção ou desenho do estudo/pesquisa, análise e/ou interpretação dos dados, revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito

 

2 – Juliana Helena Montezeli

Enfermeira, Doutora em Enfermagem - jhmontezeli@hotmail.com

Concepção ou desenho do estudo/pesquisa, análise e/ou interpretação dos dados, revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito

 

3 – Carolina Rodrigues Milhorini

Enfermeira, mestranda em Enfermagem - crmilhorini@gmail.com

Revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito

 

4 – Andréia Bendine Gastaldi

Enfermeira, Doutora em Saúde Coletiva - abgastaldi@gmail.com

Revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito

 

5 – Cristiano Caveião

Enfermeiro, Doutor em Enfermagem - caveiao@ufpr.br

Revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito

 

6 – Ana Paula Hey

Enfermeira, Mestre em Cirurgia - anapaulahey@hotmail.com

Revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito

 

 

      Editora Científica Chefe: Cristiane Cardoso de Paula

Editora Associada:  Alexa Pupiara Flores Coelho Centenaro

 

Como citar este artigo

Beitum IX, Montezeli JH, Milhorini CR, Gastaldi AB, Caveião C, Hey AP. Perceptions of adult patients in a burn treatment center. Rev. Enferm. UFSM. 2023 [Access at: Year Month Day]; vol.13, e5: 1-18. DOI: https://doi.org/10.5902/2179769271232