Rev. Enferm. UFSM, v.12, e55, p.1-23, 2022
https://doi.org/10.5902/2179769270726
ISSN 2179-7692
Submissão: 18/06/2022 • Aprovação: 25/10/2022 • Publicação: 06/12/2022
Artigo original
A Historical-documentary Study of the Journal Annaes de Enfermagem (1932–1988): Mapping Productions and Scientific Knowledge of Nursing
Estudio histórico-documental de la revista Annaes de Enfermagem (1932-1988): mapeando producciones y conocimientos científicos de enfermería
I Universidade Católica Dom Bosco. Campo Grande, MS, Brasil
Objetivo: descrever e analisar produções de enfermagem, no Brasil, que circularam na revista Annaes de Enfermagem, entre 1932 e 1988. Método: pesquisa historiográfica de cunho bibliométrico, cujas fontes primárias foram textos da referida revista, analisados de maneira mista: quantitativa e qualitativamente. Resultados: as análises indicaram número expressivo de publicações por autores anônimos; predominância de autoria feminina; relativa conexão entre as carreiras e as atuações das autoras e suas relações com a produção circulante nos Annaes; espaço exclusivo para enfermeiras diplomadas socializarem suas produções; e um esforço de definição da profissão, redefinindo-a como “moderna e científica”. Conclusão: as produções que circularam, no periódico, focalizavam qualificar a formação da enfermeira e institucionalizar leis que garantissem a defesa da classe profissional e de seus interesses socioeconômicos. As discussões representaram preocupações do coletivo de pensamento, ao eleger os “problemas de enfermagem” que conformavam sua profissionalização.
Descritores: História da Enfermagem; Educação em Enfermagem; Escolas de Enfermagem; Enfermagem em Saúde Pública; Enfermagem
Abstract
Objective: To describe and analyze nursing productions published in the journal Annaes de Enfermagem between 1932 and 1988 in Brazil. Method: A bibliometric and historiographic study, where primary sources were texts from the cited journal, analyzed quantitatively and qualitatively. Results: The analysis indicated a significant number of publications by anonymous authors, predominant female authorship, connections between the careers and activities of the authors and their relationships with the productions published in the Annaes de Enfermagem, an exclusive space for graduate nurses to socialize their production and an effort to define the profession, redefining it as "modern and scientific." Conclusion: The productions published in the journal focused on qualifying the nurse's education and institutionalizing laws that would defend the nursing profession and its socioeconomic interests. The discussions represent concerns of the collective thought by electing the "nursing problems" that shaped its professionalization.
Descriptors: History of Nursing; Education, Nursing; Schools, Nursing; Public Health Nursing; Nursing
Resumen
Objetivo: describir y analizar las producciones escritas en enfermería, en Brasil, que circularon en la revista Annaes de Enfermagem, entre 1932 y 1988. Método: investigación historiográfica de carácter bibliométrico, cuyas fuentes primarias fueron textos de la revista, analizados de forma mixta: cuantitativa y cualitativamente. Resultados: los análisis indicaron un número significativo de publicaciones de autores anónimos; predominio de autoría femenina; conexión relativa entre las carreras y actividades de los autores y su relación con la producción escrita que circulaba en los Annaes; espacio exclusivo para que los enfermeros graduados socialicen sus escritos; y un esfuerzo por definir la profesión, redefiniéndola como "moderna y científica". Conclusión: las producciones escritas que circularon en la revista se centraron en la cualificación de la formación de la enfermera y en la institucionalización de leyes que aseguraran la defensa de la clase profesional y de sus intereses socioeconómicos. Las discusiones representaban preocupaciones del colectivo de pensamiento, al elegir los "problemas de enfermería" que conformaban su profesionalización.
Descriptores: Historia de la enfermería; Educación en Enfermería; Facultades de Enfermería; Enfermería en salud pública; Enfermería
Mapear produções e conhecimentos de enfermagem contribui para conhecer a história da institucionalização e conformação da profissão no país, revestindo-se de relevância quando se busca compreender as atuais concepções de formação e os valores estruturantes do profissional nessa área, além de desvelar o que tais produções esclarecem sobre aquele coletivo. Atualmente, a profissão de Enfermagem no Brasil é regulamentada pela Lei nº 7.498/1986. Do ponto de vista historiográfico, diversos autores têm discutido sobre a história da formação em Enfermagem, bem como seu sistema oficial de ensino.1-3
É consenso entre historiadores que o marco da institucionalização da Enfermagem considerada oficial no Brasil foi a década de 1920, no bojo da Reforma Sanitária, com participação ativa da Fundação Rockefeller, operacionalizadas com a criação de uma Escola de Enfermagem nos moldes do padrão estadunidense.2,4 A escola, criada em 1923, denominou-se, inicialmente, Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP). Em 1926, passou a se chamar Escola Anna Nery e, posteriormente, Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).2
Com a preocupação em manter o modelo de ensino e perfil profissional da escola oficial, no ano de 1923 foi criado, pelo corpo de professoras, uma associação de alunas denominada Associação do Governo Interno das Alunas (AGIA), da qual, após a formatura da primeira turma da Escola de Enfermagem do DNSP (1923/1925), emergiu a Associação Nacional de Enfermeiras Diplomadas (ANED), criada em 1926. Em 1929, foi acrescido o gentílico “brasileiras”, tornando-se a Associação Nacional de Enfermeiras Diplomadas Brasileiras (ANEDB). Posteriormente, em 1944, a ANEDB passou a ser denominada Associação Brasileira de Enfermeiras Diplomadas (ABED) e, desde 1954, constitui a Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn).
Em 1932, foi criada a revista Annaes de Enfermagem, com a finalidade ser o veículo oficial de comunicação da ANEDB com suas associadas; e de divulgação das produções de enfermagem no Brasil. A partir de meados da década de 1940, a ABEn se expandiu com seções nos demais estados brasileiros, e.g., em 1945, foi criada a seção da ABEn de São Paulo e, no ano de 1946, a seção do Distrito Federal (DF).5 Em face do exposto, diversos autores têm discutido sobre os movimentos organizados pela ABEn e sobre seu papel e influência na conformação da Enfermagem brasileira, alinhada às políticas de Estado vigentes.5-6
Nessa direção, a conformação da Enfermagem moderna, no Brasil, passou por um processo, à luz do modelo de saúde pública brasileiro, que teve como regulamentações: (i) o Decreto nº 19.402/1930, que criava o Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública, em 1937, denominado Ministério da Educação e Saúde; (ii) a Lei nº 1.920/1953, que dividiu os ministérios em Ministério da Saúde e Ministério da Educação (MEC); e (iii) a Constituição Federal, de 1988, que determinou ser dever do Estado garantir saúde a toda a população, criando o Sistema Único de Saúde (SUS) e, sobretudo, instituiu mudanças nas profissões da saúde. Diante disso, o estudo tem como objetivo descrever e analisar produções de Enfermagem, no Brasil, que circularam na revista Annaes de Enfermagem, entre o período de 1932 e 1988.
Essa é uma pesquisa historiográfica que se apropria de estratégias bibliométricas7 e de análise documental,8 que se insere no campo da História das Ciências. As fontes primárias foram os textos publicados na revista Annaes de Enfermagem entre 1932 e 1988. A definição do recorte temporal, entre 1932 e 1988, refere-se ao (i) ano da criação do periódico até o (ii) ano da criação do SUS, embora se reconheça que sua regulamentação só ocorreu em 1990, a partir das Leis nº 8.090 e 8.142. Desse modo, a análise compreende um período no qual foi veiculado o primeiro fascículo da revista, logo após a regulamentação do Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública e anterior à Constituição Federal de 1988 e ao SUS.
A natureza das fontes foi o critério principal de definição dos recursos metodológicos pois, ao serem documentos serializáveis, poderiam ser analisadas a partir de estratégias bibliométricas. Como seu conteúdo também era passível de leitura crítico-reflexiva,9 elas poderiam ser analisadas documentalmente. A análise das fontes teve como foco principal duas questões: (i) Quem eram aquelas pessoas que publicavam no periódico? e (ii) Quais eram as temáticas de interesse ali presentes?
A investigação apoiou-se nos textos de Flech,10 fundamentada nos conceitos de Coletivo de Pensamento e Estilo de Pensamento. O primeiro conceito designa a unidade social da comunidade de cientistas de uma disciplina e, o segundo, os pressupostos de pensamento sobre os quais o coletivo constrói seu edifício do saber.10:16 Nessa direção, as respostas àquelas questões compõem os resultados desta pesquisa e nos sugerem que a circulação de produções e conhecimentos em Enfermagem estava ligada a interesses por reconhecimento e valorização da profissão.
Definição do periódico
O periódico foi escolhido por ser o primeiro nesse estilo, no país, vinculado especificamente à Enfermagem e ter sido o veículo oficial de publicação da, então, ANEDB, atual ABEn, desde 1954. Ele foi criado em 1932, como um meio de comunicação dirigido à comunidade de enfermagem, com a finalidade de divulgar a produção científica das diferentes áreas do saber que fossem do interesse da enfermagem, incluindo as que expressassem o projeto político da ANEDB.7 O periódico mantém suas publicações, com apenas uma interrupção entre os anos de 1942-1945. Entretanto, seu nome sofreu três modificações: Annaes de Enfermagem, veiculado de 1932 a 1942; Anais de Enfermagem, de 1946 a 1954; e Revista Brasileira de Enfermagem (REBEn), em circulação desde 1955. Foi utilizado o título Annaes de Enfermagem em todo o texto por ser o primeiro nome divulgado, quando da sua criação.
Definição do corpus documental
Entre 1932 e 1988, a revista publicou um total de 209 fascículos. À exceção dos primeiros dois anos, com o lançamento de um fascículo anual, houve uma variação entre três e cinco fascículos, publicados entre 1934 e 1938. O periódico não publicou nos anos de 1939 e 1940 e lançou um fascículo no ano de 1941. Ela interrompeu as publicações entre 1942 e 1945, retomando em 1946, com quatro fascículos anuais, até 1960; seis fascículos anuais entre 1961 e 1973; e quatro fascículos anuais, entre 1974 e 1988. As fontes que compreendem os anos de 1932 a 1962 encontram-se impressas e foram acessadas, manualmente, na biblioteca da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). As fontes de 1963 em diante foram acessadas na biblioteca on-line da REBEn. Entre os 209 fascículos publicados, foram identificadas um total de 2805 entradas, cujas categorias foram sumarizadas no Quadro 1.
Quadro 1 - Categoria e descrição daquilo que se compreendia nos Annaes de Enfermagem (1932-1988).
Categorias |
Descrição |
Homenagem, In memoriam |
Contemplava textos que tratavam de reconhecer, celebrar e informar sobre uma pessoa e seus serviços prestados. |
Editorial |
Compreendia os textos escritos, editoriais, das editoras do periódico. |
Interesse Geral |
Englobava textos com temáticas variadas, resultados decorrentes de pesquisas seguindo o mesmo padrão, hoje referentes aos artigos científicos e textos com diferentes temas, variadas propostas e objetivos diversificados. Diferentemente dos artigos, não eram oriundos de pesquisas. |
Serviço |
Contemplava textos com temáticas direcionadas a técnicas, procedimentos médicos e de enfermagem. |
Educação |
Compreendia textos relacionados ao tema educação. |
Página do Estudante |
Contemplava textos com abordagens direcionadas aos estudantes de Enfermagem. |
Legislação |
Veiculava, na íntegra, leis de interesse da Enfermagem. |
Notícias e Comentários |
Noticiavam fatos e acontecimentos pertinentes à Enfermagem. |
ABEn |
Veiculavam informações e endereços da ABEn. |
Diversos |
Categoria criada para incluir textos diversos, que não apareciam em todos os números da revista, como: resenhas de livros e textos oriundos de congressos, com síntese sobre participação em conferências, entre outros. |
Procedimentos e instrumentos
Todas as 2805 entradas foram tabuladas em uma planilha do Microsoft Excel. Na tabulação, foram compiladas as seguintes informações: (i) identificador do manuscrito; (ii) ano de publicação; (iii) volume do periódico; (iv) número da edição; (v) título do texto; (vi) categoria; e (vii) nome dos autores. As informações foram inseridas, manualmente, na referida planilha, a partir das fontes impressas acessadas na USP, bem como nos arquivos Portable Document Format (PDF) que estavam no site do periódico, primeiramente, a partir dos sumários (e.g., título do texto, autor, ano de publicação, volume, dentre outros.). Aquelas informações que não puderam ser computadas pelo acesso ao sumário foram extraídas, quando possível, com verificação do conteúdo dos textos.
Os títulos dos manuscritos foram traduzidos do idioma em que apareciam para o inglês, caso já não estivessem nesse idioma. A tradução foi necessária para que parte das informações – incluindo os títulos – fosse exportada para o EndNote, programa de gerenciamento bibliográfico. Nesse programa, os nomes ambíguos dos autores foram corrigidos, manualmente, pela equipe responsável pela pesquisa. Elucidando: (i) os nomes que tinham grafias diferentes, mas referiam-se à mesma pessoa – e.g., Bertha Pullem e Bertha Pullen; e (ii) as iniciais e siglas que condiziam com nomes de autores que, em outro momento, haviam sido grafados de forma completa – e.g., Z. C. Vidal e Zaira Cintra Vidal.
Procedimentos de análise
Os dados extraídos do corpus documental foram analisados de maneira mista. Quantitativamente, eles foram analisados por meio de estatística descritiva, i.e., a frequência de algumas ocorrências, a partir da tabulação no Microsoft Excel. Além disso, as informações exportadas para o EndNote permitiram sua utilização no programa Biblioshiny: for bibliometrix R program.11 Assim, foi possível analisar uma matriz de dados sobre as características da produção veiculada nos Annaes de Enfermagem, bem como os seus trend topics, i.e., os assuntos mais tratados, no recorte temporal. Qualitativamente, alguns dos textos foram lidos segundo as técnicas de leitura seletiva e leitura reflexiva,9 com a finalidade de auxiliarem na interpretação do contexto de produção daqueles documentos. Essa seleção ocorreu de forma aleatória, conforme conveniência dos investigadores, para a interpretação do material. Considerando a natureza das fontes documentais, os cuidados éticos ficaram circunscritos em não estabelecer a figura de heroína às personagens desveladas pela investigação. Para tanto, foram inseridas essas autoras, suas instituições e interesses no regime de historicidade.
A produção e seus autores
As 2805 entradas, referentes aos 209 fascículos, foram produzidas por 981 autores. Quanto ao padrão de escrita, nota-se 99,4% (n=976) com autoria singular, em detrimento de documentos com autoria múltipla 0,5% (n=5). Ainda no que se refere à autoria, há um número expressivo de publicações 41,2% (n=1156) sem identificação, i.e., os documentos não foram assinados. Do total de 2805 entradas, 1649 continham o nome de seus respectivos autores, ou seja, aqueles 981 identificados se referem aos tais 1649 textos. Os resultados indicaram que as mulheres estiveram em maior número: 82,5% (n=1361) são textos de autoria exclusivamente feminina e, inclusive, 100% dos 19 autores mais produtivos eram mulheres (ver Figura 1).
Figura 1 - Autores mais produtivos.
Nota: Lista dos 19 autores mais produtivos, extraídos da produção total dos Annaes de Enfermagem, 1932-1988.
A Figura 1 indica as 19 autoras mais produtivas, a saber: Amália Côrrea de Carvalho (CARVALHO AC), Haydée Guanais Dourado (Dourado HG), Glete de Alcantara (Alcantara G), Ermengarda de Faria Alvin (Alvin EF), Marina de Andrade Resende (Resende MA), Marina de Vergueiro Forjaz (Forjaz MV), Ieda Barreira e Castro (Castro IB), Rosaly Rodrigues Taborda (Taborda RR), Taka Oguisso (Oguisso T), Edith de Souza (Souza ED), Zaira Cintra Vidal (Vidal ZC), Wanda de Aguiar Horta (Horta WA), Izaura Barbosa Lima (Lima IB), Maria Ivete Ribeiro de Oliveira (Oliveira MIR), Waleska Paixão (Paixão W), Bertha L. Pullem (Pullem BL), Ruth Borges Teixeira (Teixeira RB), Judith Feitosa de Carvalho (Carvalho JF), Circe de Melo Ribeiro (Ribeiro CM).
Figura 2 - Autores mais frequentes e sua produção ao longo do tempo.
Nota: A dimensão do nó implica na quantidade de produções por ano, enquanto a linha mostra a continuidade entre a primeira e a última publicação, nos Annaes de Enfermagem, 1932-1988.
Ainda no que se refere à autoria, há a conformação de cinco grandes grupos, apresentados na Figura 2. Destaca-se uma autora que publicou por quarenta ou mais anos (n=1), a saber: Haydée Guanais Dourado. Houve um grupo que publicou por trinta a trinta e nove anos (n=5), composto por: Amália Côrrea de Carvalho, Ieda Barreira e Castro, Edith de Souza, Izaura Barbosa Lima e Maria Ivete Ribeiro de Oliveira. Distingue-se outro grupo que publicou por vinte a vinte sete anos (n=7): Glete de Alcantara, Marina de Andrade Resende, Rosaly Rodrigues Taborda, Waleska Paixão, Judith Feitosa de Carvalho e Circe de Melo Ribeiro. Contempla-se mais um grupo que publicou entre dez e dezenove anos (n=4): Ermengarda de Faria Alvin, Marina de Vergueiro Forjaz, Taka Oguisso e Ruth Borges Teixeira. Por fim, nota-se um grupo que publicou entre quatro e nove anos (n=2): Wanda de Aguiar Horta e Bertha L. Pullem.
É interessante observar que ser mais frequente não pareceu ter relação direta com a dispersão das publicações ao longo do tempo. A título de exemplo: no segundo grupo de autoras que publicaram entre trinta e trinta nove anos, vê-se Maria Ivete Ribeiro de Oliveira, que publicou, nos Annaes de Enfermagem, por trinta e seis anos e foi a 13º mais frequente. Simultaneamente, constata-se a dispersão dos nós entre os textos sem identificação (ver Figura 2), notando que há um aumento na dimensão do nó entre os anos de 1948 e 1968. Os textos sem identificação foram, na maioria, textos institucionais, ou seja, aqueles que esclarecem o caráter informativo do periódico, a exemplo de leis, atas, discursos de instalação de congressos, comissões de congressos, comunicados e editoriais, entre outros. As produções e suas temáticas: trend topics.
Figura 3 - Mapa temático, indicando densidade e centralidade das co-ocorrências de termos no corpus documental dos Annaes de Enfermagem, 1932-1988.
A análise das temáticas e tópicos mais recorrentes para uma análise de co-ocorrência, ou seja, os termos que aparecem conjuntamente, mostrou a relação entre a densidade – quantidade de vezes em que o termo aparece – em sua relação com a centralidade –, o lugar que ocupa (ver Figura 3). Uma análise do mapa temático, representado na Figura 3, identificou que o periódico teve como tema-motor – o tema central e frequente – a enfermagem na sua relação com a saúde, sendo saúde um tema básico sobre o qual ele alude e educação parece ser o conector desse debate. Essa análise justifica-se, pois educação aparece com densidade mediana, mas com centralidade alta; enfermagem aparece com alta densidade e mediana centralidade, bem como saúde, que é pouco central e relativamente densa.
A análise do corpus documental sugere que grande parte das produções que circularam, nos Annaes de Enfermagem tinha relação direta com a frequência de alguns tipos de publicação, a exemplo de editorial, notícias acadêmicas, homenagens, discursos de instalação de congressos, legislações e bibliografia, entre outros, cuja autoria não implicava em uma propriedade intelectual a ser reconhecida. Infere-se que uma das finalidades do periódico era a exposição de notícias, como uma espécie de boletim informativo, coexistente com as finalidades de publicação de artigos científicos. Tal intento vai ao encontro do que se pretendia ao ser criado o periódico, i.e., ser porta-voz da ABEn entre as enfermeiras diplomadas, especialmente as associadas. O acesso à revista ocorria pelo sistema de assinaturas, cujo valor estava incluso na anuidade dos sócios, prática que perdurou de 1962 a 1991.12 Além disso, nota-se que o conteúdo dos editoriais era elaborado pela presidência da ABEn ou pela Editora da revista, personagem autorizada a enunciar um discurso em nome da associação aos leitores e associados.6
A concentração desse tipo de publicação parece ter relação com vários eventos, acontecendo, legalmente, na conformação científico-profissional da enfermagem brasileira, nesse período que seria de interesse daquele coletivo de pensamento. Como exemplo: (i) a promulgação da primeira lei federal regulando o ensino de Enfermagem no Brasil. A Lei nº 775/1949 definiu dois níveis básicos para o ensino de Enfermagem: o curso de Graduação em Enfermagem, que deveria ser de 36 meses, e o curso de Auxiliar de Enfermagem, a ser realizado em 18 meses. A partir dessa lei, as escolas de enfermagem passaram a ser reconhecidas e, não mais, equiparadas para poderem funcionar; (ii) a promulgação da Lei nº 2.604/1955, que regulou o exercício da Enfermagem profissional no país, revogada, posteriormente, pela Lei nº 7.498/1986; (iii) a aprovação do Código de Ética, em 1958, da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn – novo nome da ABED, desde 1954); (iv) a criação dos cursos técnicos de enfermagem (1966), previstos em virtude da Lei nº 4.024/1961, das Diretrizes e Bases da Educação Nacional; (v) os congressos brasileiros realizados anualmente, desde 1947, somando um total de 37 nacionais, até 1985, quando passaram a compor números completos do periódico; e, além disso, (vi) no final da década de 1950, a ABEn criou a “Comissão de Seguimento do Levantamento”, que funcionou na Escola de Enfermagem São José, em São Paulo, até 1964, quando foi transformada em comissão permanente da ABEn, com o nome de “Comissão de Documentação e Estudos”. Em 1971, foi transformada no “Centro de Estudos e Pesquisas de Enfermagem” (CEPEn). Nessa vertente, o CEPEn passou a contribuir substancialmente para a produção de conhecimento na enfermagem e se materializou com a realização do I Seminário Nacional de Pesquisa em Enfermagem (SENPE), em 1979, na Escola de Enfermagem da USP,5em Ribeirão Preto.
A forte presença feminina na organização e na publicação de artigos na Revista corrobora com o que a literatura, na história da enfermagem, sinaliza, i.e., sua participação e influência na conformação científico-profissional da Enfermagem no Brasil.1 Nessa direção, hipotetiza-se que, como a revista estava vinculada à ABEn e circulava textos de suas associadas, a entidade foi quase exclusivamente feminina, ou seja, a Revista da Associação teria perfil de autoria similar ao das associadas, mas essa inferência precisaria ser investigada em novos estudos. O que sugere uma relação com um contexto geral da profissão da Enfermagem moderna por ter sido construída, historicamente, por mulheres. Segundo as fontes pesquisadas, tal característica fazia parte da conformação da profissão de Enfermagem no país. Exemplificando: o requisito para ingressar na primeira escola de enfermeiras do país, a Escola de Enfermeiras Anna Nery, inaugurada em fevereiro de 1923, era ser mulher, ter entre 18 e 35 anos, apresentar idoneidade moral e instrução secundária de 4 (quatro) anos, após um exame de admissão. Inclusive, nas fontes, lê-se: “É profissão essencialmente feminina, aquela em que a mulher se encontra no seu elemento, trazendo margem a um desenvolvimento e aperfeiçoamento contínuos quer moral, mental e intelectual, fazendo ressaltar as suas melhores qualidades”.13:8 Para melhor compreensão dessa feminilização da profissão, faz-se importante localizar, no tempo, o momento histórico em que se denominou a “enfermagem moderna”.
Aquela que ficou conhecida como a primeira escola de enfermagem, no Brasil, foi criada em setembro de 1890, pelo Marechal Deodoro da Fonseca, no Hospício Nacional de Alienados e denominada Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras (EPEE).1 Inicialmente, essa escola seguia o modelo francês de ensino. Com a criação, em 1923, da Escola Padrão Ana Nery para a formação oficial de enfermeiras brasileiras, a EPEE, da mesma maneira que as demais escolas de ensino de enfermagem, à época, passou por modificações visando à equiparação a uma escola padrão. Assim previa o Decreto Federal nº 20.109/1931, que regulava o exercício da enfermagem no Brasil e fixava as condições para a equiparação das escolas de enfermagem.
Em 1942, a EPEE recebeu o nome de Escola de Enfermagem Alfredo Pinto, hoje pertencente à Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Por sua vez, a Escola Ana Nery, instituída sob a direção de enfermeiras estadunidenses, adotou o sistema inglês proposto por Florence Nightingale (1820-1910). Ao implantarem a enfermagem dita profissional, para o Brasil, as enfermeiras estadunidenses sustentaram o arquétipo da enfermeira moderna na sociedade brasileira. De acordo com as fontes pesquisadas, isso implicava em manter os princípios organizadores propostos por Florence Nightingale, i.e., a disciplina, um rigoroso ensino de base técnico-científica e a construção da imagem de um profissional solidamente preparado. Atendendo aos requisitos, a seleção era composta por candidatas mulheres, jovens, brancas e de elevada posição social.13
A historiografia dominante indica as várias contribuições de Nightingale para a reforma do ensino e da assistência de enfermagem,1 no entanto, não cabe aqui detalhar tais contribuições. Vale ressaltar, porém, que a repercussão desse modelo de ensino, denominado enfermagem científica ou moderna, constituiu o que ficou conhecido como modelo angloamericano de enfermagem, o qual refletiu na configuração do perfil da enfermagem brasileira até os dias atuais.
A análise da participação das autoras (ver Figura 1) apontou que Amália Côrrea de Carvalho (Carvalho AC) foi a mais produtiva, seguida por Haydée Guanais Dourado (Dourado HG), Glete de Alcantara (Alcantara GD) e Ermengarda de Faria Alvin (Alvin EF). Um primeiro aspecto a ser observado é a frequência de aparição de Amália Côrrea de Carvalho. Essa autora atuou em duas das maiores entidades da enfermagem no país: a ABEn e o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), contribuindo para a elaboração do Código de Deontologia de Enfermagem.14 Além disso, fez parte do corpo docente da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP) entre os anos de 1947 e 1980, além de diretora responsável pelo periódico, a partir do ano de 1969.
Outra autora de destaque foi Haydée Guanais Dourado. Ela foi docente na Escola de Enfermagem da USP e ocupou um cargo na Divisão de Organização Sanitária do Departamento Nacional de Saúde. Foi a primeira diretora da Escola de Enfermagem da Universidade da Bahia. Além disso, participou da gestão da ABEn entre 1944 e 1986 e também da construção dos fundamentos jurídicos que resguardaram e ampliaram as áreas do exercício profissional da enfermagem, no Brasil.15 Diversos estudos6,15 têm se debruçado sobre a personagem e discutindo o seu papel na conformação da enfermagem brasileira, dentre eles a função de editorialista e articulista da revista Annaes de Enfermagem, especialmente entre as décadas de 1970 e 1980, período no qual os editoriais, embora personalizados pela autora, vão ao encontro da história ora produzida, i.e., reproduziram o coletivo de pensamento dominante à época da ABEn.
Glete de Alcantara, durante os 30 anos de sua carreira de enfermeira, dedicou-se a várias atividades, entre as quais se destacaram: professora de enfermagem na Universidade de Toronto (Canadá); organizadora e diretora da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da USP, entre 1952-1971, onde permaneceu, como docente, após deixar o cargo de diretora. Ela foi a primeira enfermeira a alcançar o título de Professor Catedrático na América Latina. Exerceu, por duas vezes, o cargo de Presidente da ABEn: a primeira vez, de 1952 a 1954 e, a segunda, de 1971 a 1974. Ocupou, ainda, o cargo de editora da revista Anais de Enfermagem, de 1947 a 1953.16
Chamam a atenção as conexões que parece haver entre as carreiras e as atuações das autoras e suas relações com a produção, e.g., (i) docência na Escola de Enfermagem da USP; (ii) participar/contribuir com a conformação da legislação do exercício profissional da enfermagem no país; (iii) direção/participação nos órgãos reguladores da enfermagem brasileira (e. g., ABEn, Cofen); e (iv) compor a equipe editorial da revista. Tais conexões vão ao encontro do que pretendia o projeto político, à criação do periódico, que seria o de divulgar produções científicas que fossem do interesse da Enfermagem, especialmente as que expressassem o projeto político da ABEn. Nessa direção, conforme apontou uma de nossas personagens,
A presença de Edith Fraenkel na chefia de delegação brasileira ao Congresso de 1929, no Canadá, representou fator decisivo na criação da Revista Brasileira de Enfermagem. Imbuída da convicção de que “para uma profissão progredir é preciso que tenha uma associação e uma revista”, Edith Fraenkel trouxe desse Congresso Internacional a sugestão e os planos para a criação de uma revista de enfermagem.17:8
Para compreensão dessas conexões, foram resgatadas informações, sobre a participação de Edith Magalhães Fraenkel (1889-1969) nesse cenário. A personagem, que atuava no DNSP na década de 1920, foi a primeira brasileira a cursar o nível superior de enfermagem, com bolsa de estudos da Fundação Rockefeller, no Hospital Geral da Filadélfia.18 Ao retornar, em outubro de 1925, foi designada para substituir uma das instrutoras estadunidenses na, então, Escola de Enfermeiras do DNSP que, à época, era composta pelas instrutoras vindas dos Estados Unidos da América (EUA). Ela foi uma das idealizadoras e criadoras da ANEDB, em 12 de agosto de 1926, tornando-se a primeira presidente eleita da Associação, entre 1927 e 1938. Além disso, foi uma das idealizadoras e criadoras da revista Annaes de Enfermagem, da qual foi editora, de 1932 a 1938.19
Ainda na década de 1930, Fraenkel atuava, também, no DNSP, na qualidade de enfermeira-chefe. Em 1939, devido a modificações nos ministérios, passou a exercer o cargo de Superintendente do Serviço de Enfermagem do Ministério da Educação e Saúde, quando foi convidada a assumir a direção da Escola de Enfermagem a ser criada, em São Paulo, anexa à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, atual Escola de Enfermagem da USP. Com isso, mudou-se para São Paulo e, junto, levou a ABED e a revista Anais de Enfermagem.20
Cabe lembrar que, assim como a EEAN, a Escola de Enfermagem anexa à Faculdade de Medicina da USP não constituíam escolas de nível superior. Os cursos de graduação existentes e regulamentados, no país, eram Direito, Engenharia, Medicina, Farmácia e Odontologia. Em 1963, a Escola de Enfermagem foi desanexada da Faculdade de Medicina, por meio do Decreto nº 42.809/1963, que transformou a Escola de Enfermagem de São Paulo em estabelecimento de ensino superior, passando a se chamar Escola de Enfermagem da USP.
Nesse sentido, os dois eventos – (i) a criação da associação de classe; e (ii) a criação do primeiro periódico específico do campo –, embora distintos, guardavam uma relação entre si e conectavam-se à Escola de Enfermagem da USP. Em seus dez primeiros anos de existência, as publicações que circularam no periódico foram provenientes de trabalhos redigidos pelas diplomadas e docentes da EEAN. Entre os anos de 1946 e 1956, a colaboração distinguiu-se na Escola de Enfermagem da USP por suas docentes e diplomadas. Nos anos posteriores a 1953, houve contribuição das Seções do Distrito Federal (DF), de São Paulo e da Bahia e, posteriormente, pelos outros estados, em proporções variáveis, evoluindo gradativamente a partir da Reforma Universitária de 1968.5,17 No entanto, conforme indicado nas fontes, a ênfase das publicações recaiu sobre a Escola de Enfermagem da USP.
Além disso, uma preocupação e um interesse que se mantiveram constantes, desde a formação da primeira turma de enfermeiras diplomadas pela Escola Ana Nery, em 1925, era o progresso da profissão, protegida pela legislação do ensino e do exercício profissional. Partindo desse pressuposto, fazem sentido as conexões entre as autoras mais produtivas, i.e., no decorrer de suas carreiras, elas (i) fizeram parte do corpo docente das escolas de enfermagem; (ii) foram editoras e/ou colaboradoras da revista; e (iii) ocuparam cargos de presidente e/ou colaboradora da associação de enfermagem. Isto é, as autoras mais produtivas mantinham relações diretas com o periódico.
Infere-se, portanto, que publicar nos Annaes de Enfermagem era como ser um “porta-voz” para os trabalhos desenvolvidos por aquele coletivo. Outrossim, era um espaço exclusivo para enfermeiras diplomadas compartilharem suas produções, o que as colocava como detentoras do saber e dos conhecimentos científicos. Elas estavam, portanto, redefinindo a Enfermagem, colocando-a como uma profissão moderna e científica e, consequentemente, agregando prestígio à profissão.
No final da década de 1940, a editora do periódico, Edith Magalhães Fraenkel, convocou enfermeiras diplomadas, em todo o país, a submeterem trabalhos científicos na revista, com o intuito de divulgar os “problemas” inerentes à profissão, no Brasil,
Inicia-se, com este número de janeiro de 1948 volume I e n. 1, nova fase para os ANAIS DE ENFERMAGEM. Ao dar essa explicação, que julgamos necessária, solicitamos, encarecidamente, a colaboração de todas as Enfermeiras para que nos enviem trabalhos científicos de caráter teórico, prático e sugestões. Embora publicada em S. Paulo, a redação dos ANAIS DE ENFERMAGEM é composta de Enfermeiras doutros Estados, e, justamente para que a revista possa apresentar problemas de Enfermagem relativos a todo o país é que essa contribuição se torna imprescindível. É preciso, pois, que todas compreendam que, sem esse espírito de cooperação, não haverá desenvolvimento da Enfermagem; não poderemos ir para diante, e ficaremos simplesmente marcando passos inúteis.21:2
Em seu primeiro número, no ano de 1948, a redação da revista procurou explicar que a publicação passava para uma nova fase e, em tom de “súplica”, solicitou, “encarecidamente”, a colaboração de todas as enfermeiras do país no envio de trabalhos científicos para o periódico. Existia a tentativa de incutir, nas egressas das escolas de enfermagem, a necessidade daquele coletivo se unir em prol do desenvolvimento da profissionalização da enfermagem, no Brasil, o que ainda era incipiente.
Esse fato pode ser observado em relação à organização dos Congressos Brasileiros de Enfermagem, com participação exclusiva das enfermeiras diplomadas e sócias da ABED, que por ocasião contava com a presidente, Zaira Cintra Vidal (1903-1997), conforme lê-se no editorial n. 22, vol. XVI de 1947, pela então editora Edith Magalhães Fraenkel:
Organizou a Associação Brasileira de Enfermeira Diplomadas este primeiro Congresso Nacional de Enfermagem a fim de que pugnassem as Enfermeiras pela realização de um objetivo: Elaborar, em conjunto, um programa eficiente de Enfermagem, visando o [sic] desenvolvimento da profissão num plano elevado.22:3
As argumentações tecidas à organização do primeiro Congresso Nacional de Enfermagem operacionalizavam-se em torno de um estilo de pensamento no qual aquele coletivo estava inserido. Ou seja, os tópicos de interesse, conceitos e teorias que compunham aquele grupo de enfermeiras, i.e., os “problemas de enfermagem” discutidos por elas, compartilhavam, entre si, um estilo de pensamento.
Nesse sentido, a maneira como aquele público enxergava seu objeto – “os problemas de enfermagem” – formaria o coletivo de pensamento que seria pauta das pesquisas e discussões futuras. Um exemplo disso são os trabalhos apresentados nos congressos de enfermagem, que passaram a compor os números completos da revista, em edições subsequentes. Novos estudos poderiam debruçar-se sobre a correlação entre as participantes dos Congressos e as publicações veiculadas nos Annaes de Enfermagem, considerando o papel que os congressos e suas produções têm na conformação das comunidades de cientistas.23 Isso auxiliaria a compor, mais claramente, as conexões naquele coletivo de pensamento.
Ainda nessa direção, a relação entre tais temáticas mais frequentes e o conteúdo das publicações de cada autora, ao longo do tempo, apontou as conexões existentes entre suas carreiras de atuação com as temáticas de suas produções. As principais áreas de atuação, entre essas autoras, foram: (i) docentes das escolas de enfermagem; (ii) integrantes da equipe editorial da revista; e (iii) compor a diretoria da ABEn. Nesse contexto, segundo Haydée Guanais Dourado, a segunda autora mais frequente,
A preocupação com os problemas educacionais e com a regulamentação da prática profissional constituiu sempre uma constante para as Enfermeiras que dirigiam os serviços de Enfermagem e a Escola Ana Nery, mesmo antes da criação da ABEn. A Associação assumiu grande parte das responsabilidades de zelar pelo desenvolvimento do ensino e pela defesa da classe.17:8
As autoras centralizaram suas discussões em temas operacionais “urgentes”, relacionados aos “problemas de enfermagem”, à época, com relação direta com o cargo que ocupavam ou sua área de atuação, como forma de defesa e conformação da profissão, tais como: escolas de enfermagem, ensino de enfermagem, congressos, trabalho da ABEn, entre outros. Tomando-se as considerações de Fleck,10 nota-se que as argumentações tecidas por cada autora se operacionalizavam em pressupostos de pensamentos sobre os quais aquele coletivo construía seu edifício do saber. Vale ressaltar que muitas dessas autoras participaram ativamente do processo de conformação e institucionalização da profissão de enfermagem no Brasil e foram tidas como “heroínas”, na constituição da profissão, no país. Um exemplo foi a concessão do título de sócio honorário da ABEn, em 1977, à autora que foi identificada como a mais frequente: Amália Corrêa de Carvalho.24 Cabe destacar que, de acordo com o estatuto da ABEn, 1976, o título de sócio honorário seria concedido àqueles que, “Art. 13 - São membros honorários aqueles que tenham prestado contribuição relevante à causa da enfermagem nacional, aos quais a AD, por proposta da Diretoria, resolver render esse tributo”.25:206
Infere-se que, de maneira geral, a discussão do periódico transitava em torno da formação da enfermeira e da formação em saúde, as quais moldaram e deram existência à enfermagem nacional. Um dos exemplos com a preocupação com a educação e a formação da enfermeira estampou parte da capa do periódico, entre os anos de 1932 e 1954. Em um artigo publicado nos Annaes de Enfermagem, uma das personagens apresentou o Triângulo da Enfermeira, que era composto por três pilares: ciência, arte e ideal. Nas palavras de Vidal,
Determinada a figura geométrica, procurou denominar os seus lados com as 3 palavras que, resumidas, deveriam glorificar a Enfermeira: Ideal – Ciência e Arte. Três palavras apenas, porém, tão complexas, que só por si, reúnem todos os atributos da nobre profissão “[...] portanto os atributos da Enfermeira Moderna”.26:11
Traduzindo tais palavras, ideal seria o alicerce; o espírito de satisfação íntima; o amor à profissão, considerada uma nobre missão; uma força interna capaz de vencer as barreiras para amparar aqueles que necessitassem, e.g., os ideais que moveram as “heroínas” pioneiras da enfermagem moderna, Anna Nery (1814-1880) e Florence Nightingale (1820-1910).
A ciência, por sua vez, foi considerada a segunda qualidade necessária à enfermeira, constituída pelo estudo das ciências tais como Anatomia, Microbiologia, Matéria Médica, Obstetrícia, entre outras. Nessa direção lê-se nas fontes,
Como poderia então uma Enfermeira conhecer a ação de um medicamento se não estudou Matéria Médica? Como poderia ela, ainda, cuidar eficientemente de um caso de D.C., senão conhece a etiologia e a profilaxia da doença? E ainda a ciência que nos distingue das atendentes. É ela que eleva o padrão da nossa profissão. De que nos valeria a prática, sem o estudo científico?26:12
Além disso, por um lado, toda enfermeira formada no modelo Nightingale deveria ter seu curso científico, o que as diferenciaria da enfermagem prática e elevaria o padrão da profissão. Por outro lado, considerava-se que os conhecimentos práticos eram indispensáveis; portanto, o terceiro atributo da enfermeira moderna era a Arte, que representava a aplicação prática dos conhecimentos científicos e essa habilidade executiva determinaria a capacidade profissional da enfermeira.
Nesse sentido, uma das preocupações, à época, era com a formação prática das alunas, o que seria resolvido por meio da unificação do conhecimento teórico com o conhecimento prático, com o auxílio do empenho das enfermeiras já formadas. Ademais, tendo em vista os requisitos necessários para ser uma enfermeira qualificada, as discussões que circularam no periódico versavam sobre o ensino de enfermagem, as escolas de formação em enfermagem, o papel das enfermeiras e seus espaços de atuação (e.g., assistência, organização, hospital público, serviço, administração etc.). Esses seriam, também, “os problemas da enfermagem” para adquirir prestígio, valorização, reconhecimento e se consolidar como profissão moderna, no Brasil.21
Diante desse cenário, infere-se que a ABEn, atenta aos problemas que considerava ligados à formação do pessoal de enfermagem e alinhada as políticas de Estado vigentes, representou o coletivo de pensamento da enfermagem brasileira na construção da identidade profissional da enfermeira. No entanto, a partir da década de 1970, a criação do Cofen e dos Conselhos Regionais de Enfermagem (COREN) promoveram mudanças nas atribuições e funções da ABEn, passando para os Conselhos de Enfermagem fiscalizar e regular a movimentação da Enfermagem brasileira. Além disso, surgiu, a partir da década de 1980, uma movimentação em oposição à política desenvolvida pela direção da ABEn, então conhecida como Movimento Participação, com críticas à entidade. Esse movimento venceu as eleições na ABEn e assumiu a entidade, a partir do ano de 1986, confluindo com novas práticas na conformação da profissão.27
Como limitações do estudo, houve a utilização de um único periódico que, embora vinculado à ABEn, não permitiu generalizar os resultados para toda a comunidade de enfermagem atuante, no Brasil, à época. Em segundo lugar, o critério de seleção e análise das fontes primárias pode ter conduzido à exclusão de materiais que permitiriam uma compreensão mais acurada de como circularam as produções e os conhecimentos de Enfermagem. Assim, outros estudos poderão ser elaborados, a fim de construir uma historiografia com maior detalhamento sobre o desenvolvimento da profissão, entretanto, as limitações não parecem prejudicar as conclusões que ora se apresentam.
As contribuições para a área situam-se no fato de que esse estudo convida a refletir sobre uma parcela do processo de socialização do campo de conhecimento da Enfermagem brasileira e a maneira como sua conformação foi concebida e produzida por aquelas enfermeiras. Os Annaes de Enfermagem, assim, tiveram papel relevante na institucionalização do debate da enfermagem brasileira e sobre ela. Dessa maneira, contribui para a compreensão contemporânea das concepções de formação da profissão, especialmente na busca pelo reconhecimento e pela valorização profissional, operacionalizados nos atuais projetos de lei para definição do piso salarial e carga horária de trabalho.
Esse estudo objetivou descrever e analisar produções e conhecimentos de enfermagem, no Brasil, que circularam na revista Annaes de Enfermagem, entre o período de 1932 e 1988. Sua análise apontou para elementos que ajudaram a responder às duas questões que o direcionaram: (i) Quem eram aquelas pessoas que publicavam, no periódico? e (ii) Quais eram as temáticas de interesse, ali presentes?
Os resultados indicaram que houve uma predominância do gênero feminino, refletindo a influência das primeiras escolas de enfermagem, as quais tinham, como requisitos para seleção das candidatas serem mulheres, jovens, brancas e de elevada posição social. Observa-se que essa predominância perdurou, mesmo após a Reforma Universitária de 1968, que permitiu o ingresso de homens e mulheres nas escolas de enfermagem e rompeu com a exclusão por etnia e gênero.
Além disso, até a década de 1980, a ABEn seguiu as políticas de Estado vigentes, nas quais influenciaram o processo de conformação e identidade da profissão no Brasil. A investigação também mostrou que a ABEn e os Annaes de Enfermagem, embora distintos, guardavam relação entre si e, em face dessas condições, as autoras mais produtivas mantinham conexões com o periódico, seja por comporem a equipe editorial da revista, a diretoria ou comissões da ABEn, ou ainda fazerem parte do corpo docente das escolas de enfermagem, especialmente a USP, sede do periódico por um determinado período. Ou seja, a ABEn e, consequentemente, os Annaes de Enfermagem, foram conduzidos por docentes das escolas e não por outros profissionais, i.e., o periódico era porta-voz da educação da Enfermagem brasileira.
Foi possível identificar que o periódico foi o meio para que as enfermeiras diplomadas pudessem socializar suas produções e serviu de porta-voz para os problemas de Enfermagem, que precisavam ganhar visibilidade. Um exemplo disso foi a predominância de publicações sem identificação que, em grande maioria, foram textos de caráter informativo do periódico (leis, atas, discursos de instalação de congressos, comissões de congressos, comunicados, editoriais, dentre outros). A recorrência de tais textos nos sugere que aquele tipo de informação era importante para aquele coletivo, para a equipe editorial e a diretoria da ABEn.
A análise das temáticas indicou a prevalência dos tópicos enfermagem, saúde, enfermeira, congresso, ensino, assistência, relatório, serviço, pública e escola. Analisando-se a ocorrência desses termos, nota-se que todas as produções cumpriam uma função principal, ou seja, “elevar o nível da profissão”, ou ainda, romper com a antiga enfermagem (sem técnicas científicas, exercida por leigos ou pessoas não enfermeiras), agregar prestígio, sobretudo por intermédio de uma legislação que garantisse a defesa da classe e de seus interesses socioeconômicos.
Além disso, a principal questão discutida pelo periódico foi a importância da formação da enfermeira nos moldes das escolas-padrão estadunidenses. Para isso, circularam textos tratando da relevância de uma legislação que definisse o ensino e a assistência de Enfermagem. Os escritos versavam sobre a qualidade do ensino, sobre o papel da enfermeira, nos seus diversos campos de atuação – e.g., saúde pública e assistência hospitalar –, além de textos indicando os procedimentos e as técnicas de enfermagem, entre outros.
Assim, pode-se afirmar que tais discussões representaram o coletivo de pensamento dessa comunidade científica que, ao eleger os “problemas de Enfermagem”, estava interessada em articular um determinado tipo de Enfermagem, considerada moderna, confluindo com reconhecimento e valorização da profissão.
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Fomento / Agradecimento: Universidade Católica Dom Bosco – UCDB (bolsa colaborador; bolsa doutorado). Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq – (bolsista produtividade).
Contribuições de autoria
1 – Kely Cristina Garcia Vilena
Autor correspondente
Docente, mestre -E-mail: kelyvilhena@yahoo.com.br
Concepção e/ou desenvolvimento da pesquisa e/ou redação do manuscrito.
2 – Rodrigo Lopes Miranda
Docente, doutor - E-mail: rlmiranda@ucdb.br
Concepção e/ou desenvolvimento da pesquisa e/ou redação do manuscrito, revisão e aprovação final.
Editora Científica Chefe: Cristiane Cardoso de Paula
Editora Científica: Tânia Solange Bosi de Souza Magnago
Como citar este artigo
Vilena KCG, Miranda RL. Historical-documentary study of the journal Annaes de Enfermagem (1932-1988). Rev. Enferm. UFSM. 2022 [Access at: Year Month Day]; vol.12, e55: 1-23. DOI: https://doi.org/10.5902/2179769270726