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Rev. Enferm. UFSM, v.12, e11, p.1-13, 2022

https://doi.org/10.5902/2179769267928

ISSN 2179-7692

Submissão: 07/10/2021 • Aprovação: 10/02/2022 • Publicação: 22/03/2022

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Introdução. 3

Método. 4

Resultados e discussão. 4

Conclusão. 12

Referências. 12

 

Artigo de Reflexão

 

Força de trabalho de enfermagem: cenário e tendências

Nursing workforce: scenario and trends

Recursos Humanos de enfermería: escenario y tendencias

 

Mariana MendesIÍcone

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Marisa da Silva MartinsIÍcone

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Indiana AcordiIÍcone

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Flávia Regina Souza RamosIÍcone

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Laura Cavalcanti de Farias BrehmerIÍcone

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Denise Elvira Pires de PiresIÍcone

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I Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Enfermagem. Florianópolis, SC, Brasil

 

 

 

Resumo

Objetivo: refletir sobre o panorama atual e tendências da força de trabalho de enfermagem no Brasil e no mundo. Método: ensaio teórico-reflexivo elaborado com base em dados de relatórios de organizações internacionais e nacionais de saúde e enfermagem, disponíveis em sites oficiais, entre fevereiro e setembro de 2021. Resultados: o cenário atual da força de trabalho da enfermagem aponta para escassez global de profissionais, alertando para um contingente de pessoas que não terá suas necessidades de saúde atendidas. O Brasil dispõe de quantitativo de profissionais de enfermagem semelhante ao dos países desenvolvidos, mas com distribuição desigual e percentual pequeno de enfermeiros na composição da força de trabalho. Conclusão: mesmo com esforços globais para reduzir a escassez da força de trabalho de enfermagem, o cenário permanece crítico. Trata-se de um trabalho fundamental para alcançar saúde para todos, o que requer investimento em número, qualificação e condições de trabalho adequadas.

Descritores: Atenção à Saúde; Condições de Trabalho; Enfermagem; Força de Trabalho; Profissionais de Enfermagem

 

Abstract

Objective: reflect on the current panorama and trends of the nursing workforce in Brazil and in the world. Method: theoretical-reflective essay based on data from reports from international and national health and nursing organizations, available on official websites, between February and September 2021. Results: the current scenario of the nursing workforce points to a global shortage of professionals, alerting to a contingent of people who will not have their health needs met. Brazil has a similar number of nursing professionals to developed countries, but with an unequal distribution and a small percentage of nurses in the composition of the workforce. Conclusion: even with global efforts to reduce nursing workforce shortages, the picture remains critical. It is fundamental work to achieve health for all, which requires investment in numbers, qualifications, and adequate working conditions.

Descriptors: Delivery of Health Care; Working Conditions; Nursing; Workforce; Nurse Practitioners

 

Resumen

Objetivo: reflejar sobre el panorama actual y tendencias de recursos humanos de enfermería en Brasil y en el mundo. Método: ensayo teórico-reflexivo elaborado con base en datos de informes de organizaciones internacionales y nacionales de salud y enfermería, disponibles en sitios oficiales, entre febrero y septiembre de 2021. Resultados: el escenario actual de recursos humanos de la enfermería apunta para escasez global de profesionales, alertando para un contingente de personas que no tendrán sus necesidades de salud atendidas. Brasil dispone de cuantitativo de profesionales de enfermería semejante a de los países desarrollados, pero con distribución desigual y porcentual pequeño de enfermeros en la composición de recursos humanos. Conclusión: mismo con esfuerzos globales para reducir la escasez de recursos humanos de enfermería, el escenario permanece crítico. Se trata de un trabajo fundamental para alcanzar salud para todos, lo que requiere inversión en número, calificación y condiciones de trabajo adecuadas.

Descriptores: Atención a la Salud; Condiciones de Trabajo; Enfermería; Fuerza de Trabajo; Enfermeras Practicantes

 

 

Introdução

O trabalho humano compreende um processo de transformação orientado para satisfazer às necessidades dos grupos sociais. Nesse processo, os elementos constituintes são: força de trabalho, objeto, instrumental e a própria ação transformadora. Nesse conjunto articulado de elementos, a força (capital humano) é quem executa o trabalho.1

A saúde integra o setor de serviços com profissionais que atuam de modo individual ou coletivo. O produto do trabalho em saúde e da assistência à saúde pertence à esfera não material, sendo consumido ao mesmo tempo que é produzido.2 Considerando a simultaneidade entre produção e consumo e a forte dependência da força de trabalho, predominante no campo da saúde, o olhar para quem o realiza assume maior relevância.

A crise global de profissionais da saúde tem sido amplamente debatida por diversos países e organizações de saúde e de enfermagem devido à preocupação com a disponibilidade de força de trabalho em quantidade e qualidade suficientes para atender às necessidades de saúde das populações nos próximos anos.3-4

Em 2020, a projeção divulgada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) estimava a disponibilidade de 36 milhões de profissionais da saúde até 2030, representando uma redução de apenas 17% na escassez da força de trabalho em comparação aos dados de 2013.3-4 Essa realidade se mostra ainda mais grave com os efeitos da pandemia de COVID-19, em especial sobre a força de trabalho de enfermagem.5

Para minimizar a escassez desses profissionais, o número total de graduados na enfermagem teria que aumentar em média 8% ao ano, o que reforça a preocupação urgente com o planejamento adequado da força de trabalho da profissão.4 Nessa perspectiva, emerge o questionamento: “Qual o atual cenário e tendências da disponibilidade de força de trabalho da enfermagem?”. Diante desse questionamento, propõe-se refletir sobre o panorama atual e tendências da força de trabalho de enfermagem no Brasil e no mundo.

 

Método

Trata-se de um ensaio teórico-reflexivo sobre o cenário e tendências da força de trabalho de enfermagem, elaborado com base em dados de relatórios de organizações internacionais e nacionais de saúde e enfermagem, disponíveis em sites oficiais, entre fevereiro e setembro de 2021. As fontes consultadas foram The World Health Organization (WHO), The Pan American Health Organization (PAHO), The International Council of Nurses (ICN) e o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), buscando publicações atuais que tratassem da situação e tendências na disponibilidade de força de trabalho de enfermagem. Incluíram-se documentos que utilizaram dados dos últimos dez anos.

Após leitura exaustiva dos documentos, os achados foram organizados em quatro subitens para discussão: Cenário da força de trabalho da enfermagem no mundo; Cenário da força de trabalho da enfermagem brasileira; A mobilidade da força de trabalho de enfermagem: tendências que acentuam a escassez; e Atração e retenção da força de trabalho de enfermagem no Brasil: desafios e tendências.

Tendo como referência de base a teorização de processo de trabalho1 e sua aplicação na saúde e enfermagem,2 o processo de interpretação e reflexão buscou problematizar diferentes aspectos que se inter-relacionam à escassez e distribuição desigual dos profissionais de enfermagem no mundo e no Brasil. Considerou o cenário político, econômico, social e sanitário para entender a disponibilidade e tendências da força de trabalho, dialogando com textos escolhidos por tratarem da temática e terem sido publicados nos últimos cinco anos. Portanto, as reflexões estabelecidas neste estudo surgem como ponderações das autoras acerca da força de trabalho de enfermagem e emergem também como estratégia de sensibilização sobre o tema.

 

Resultados e discussão

Cenário da força de trabalho da enfermagem no mundo

Os dados divulgados pela OMS apontam para um déficit de 5,7 milhões de profissionais de enfermagem até 2030, alertando para um enorme contingente de pessoas que não terá suas necessidades de saúde atendidas devido à escassez da força de trabalho em saúde e enfermagem. As projeções também revelam a persistente dificuldade dos países em atrair e reter profissionais para atuar nos serviços de saúde em todo o mundo.3-4

 Os efeitos decorrentes da escassez da força de trabalho em saúde e enfermagem têm sido amplamente discutidos em razão do enfrentamento da pandemia de COVID-19, desencadeada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) e instalada em 2019. A referida pandemia elevou drasticamente a demanda por assistência à saúde, reforçando a necessidade urgente de um quantitativo maior de profissionais para atuar em postos de trabalho recém‑criados ou ampliados, assim como para suprir déficits gerados por adoecimento, aposentadoria e morte de profissionais de enfermagem.5

A enfermagem constitui o maior grupo ocupacional do setor saúde, com aproximadamente 59% da força de trabalho mundial. Entretanto, a distribuição desses profissionais no mundo é desproporcional ao que é necessário para alcançar a cobertura universal de saúde e as metas globais do desenvolvimento sustentável até 2030. As maiores diferenças se concentram em países da África, Sudeste Asiático, Mediterrâneo Oriental e em alguns países da América Latina. Na região das Américas, o déficit é menor, contando com cerca de 30% dos profissionais de enfermagem do mundo e com densidade de 83,4 profissionais por 10 mil habitantes, sendo que a média global é de 36,9. O contraste se revela ao perceber que, em países como Haiti, Bolívia e República Dominicana, a densidade média é menor que 10 por 10 mil habitantes.4

O envelhecimento da força de trabalho de enfermagem também tem sido considerado preocupante, tendo em vista que cerca de 30% dos profissionais tem 55 anos ou mais, e espera-se que quase um quarto desses profissionais se aposente nos próximos dez anos. O estoque atual para suprir os afastamentos decorrentes de aposentadoria é de aproximadamente 1,2 milhões de profissionais de enfermagem, entretanto, em longo prazo, por causa do crescimento populacional e do cenário pós-pandemia de COVID-19, esse quantitativo será insuficiente.4

Para cobrir essa lacuna até 2030, a OMS recomenda que os países aumentem substancialmente os investimentos para incrementar o crescimento do quantitativo da força de trabalho, objetivando prover cuidados essenciais às suas populações. Os acordos de cooperação internacional são fundamentais nesse aspecto, visto que fortalecem os sistemas de saúde mais frágeis por meio do compartilhamento de experiências, capacidades técnicas e recursos financeiros, auxiliando-os na captação e formação da força de trabalho de enfermagem.4-6

Nesse sentido, o Conselho Internacional de Enfermeiras (Internacional Council of Nurses - ICN) tem lutado pela implementação de políticas públicas de saúde que estabeleçam padrões mínimos de segurança para as equipes de enfermagem e, consequentemente, assegurem a qualidade do trabalho em âmbito global.7 Estudo recente aponta que a disponibilidade de força de trabalho numericamente adequada às demandas de saúde resulta em bons desfechos clínicos para a população assistida e gera um bom retorno financeiro para a instituição provedora do cuidado.8

O relatório produzido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e OMS, intitulado “Health Employment and Economic Growth: A Five-Year Action Plan (2017–21)”, destaca a preocupação de longa data com os investimentos em educação e criação de empregos nos setores de saúde. Investimentos na força de trabalho em saúde articulados com políticas públicas protetivas ao trabalhador têm potencial para ampliar os ganhos socioeconômicos e gerar um crescimento econômico inclusivo.9

Grande parte dos investimentos para provimento de força de trabalho em saúde e enfermagem têm sido empregados no desenvolvimento de intervenções mais imediatas. Porém, são essenciais investimentos e estratégias eficazes para enfrentamento de desafios em longo prazo, como a formação em quantidade e qualidade suficientes para atender às populações.9-10

No período de 1990 a 2016, apenas 7% dos recursos investidos na área da saúde foram voltados especificamente à força de trabalho em saúde.10 Essa realidade corrobora a fragilidade identificada nas estratégias que vêm sendo adotadas pelos países ao longo de décadas e que acabaram por contribuir para a escassez global dos profissionais da saúde, incluindo a enfermagem.

Apesar do reconhecimento, por organizações multilaterais, da importância da saúde na vida humana e para o desenvolvimento sustentável,3-4,7,9 é necessário considerar as determinações do modo de produção hegemônico1 e sua influência no mercado de trabalho em saúde e nos modos sociais de financiar e prover serviços de saúde.2 Questões macroeconômicas têm influência na orientação de políticas públicas e nas maneiras utilizadas pelo setor privado para obtenção de lucro. Nesse sentido, o direito universal à saúde como valor moral é permanentemente tensionado pela lógica da acumulação capitalista, influenciando o cenário e tendências no mercado de trabalho em saúde e enfermagem.9

 

Cenário da força de trabalho da enfermagem brasileira

A enfermagem representa cerca de 70% da força de trabalho em saúde no Brasil, e as estimativas realizadas no ano de 2020 indicam um crescimento de 51% no contingente desses profissionais para 2030.11 Atualmente, estão registrados 2.432.079 profissionais no Conselho Federal de Enfermagem (COFEN), dos quais 1.408.185 são técnicos de enfermagem; 429.183, auxiliares de enfermagem; e 594.408, enfermeiros.12

O país conta com contingente elevado de profissionais de enfermagem, todavia as desigualdades na distribuição são preocupantes.13 A Região Sudeste detém maior concentração desses profissionais, enquanto o Norte e o Nordeste são os mais prejudicados pela distribuição desigual.13 Em 2018, a proporção era de 101,4 profissionais de enfermagem por 10 mil habitantes no país, com maior concentração no Distrito Federal (163,60) e menor no estado de Alagoas (73,69).

O problema de desigualdade na distribuição fica ainda mais visível ao se analisar o pequeno percentual de enfermeiro na composição da força de trabalho da enfermagem brasileira, perfazendo a média geral de 24,54 enfermeiros por 10 mil habitantes - sendo que no Distrito Federal os enfermeiros perfazem 43,39 por 10 mil habitantes, contrastando com o estado do Pará, onde correspondem a 14,13.11

A força de trabalho da enfermagem se concentra especialmente nos grandes centros urbanos e nas capitais,14 dificultando o atendimento das necessidades territoriais e de densidade demográfica de cada estado ou região. Entende-se que a distribuição desigual de trabalhadores de enfermagem é de ordem multifatorial e multidimensional e que fatores como a busca por melhores condições de trabalho, salário e moradia podem influenciar fortemente os profissionais no momento de escolha pelo local/região de labor.

 Além disso, regiões que oferecem condições de trabalho deficitárias podem ter menor potencial de atração da força de trabalho em saúde, como infraestrutura inadequada e dificuldade de acesso a serviços de média e alta complexidade, desfavorecendo a escolha por esses espaços. A busca constante pelo aprimoramento profissional e melhor qualidade de vida pessoal e familiar também pode motivar os profissionais a buscarem por empregos nos grandes centros.

Um diagnóstico detalhado, realizado em 2013, acerca da situação dos enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem atuantes no Brasil constatou que a força de trabalho da enfermagem brasileira é majoritariamente nascida neste país (98%), feminina (85%), possui até 40 anos de idade (61,7%) e reside tanto nas capitais do país (56,8%) quanto no interior (40,9%). 15

A distribuição geográfica da formação dos enfermeiros é liderada pela Região Sudeste (48,2%), seguida pelas Regiões Nordeste (23,5%), Sul (12,8%), Centro-Oeste (6,8%) e Norte (5,6%). Similarmente, a distribuição da formação de técnicos e auxiliares de enfermagem é liderada pela Região Sudeste (46,5%), seguida pelas Regiões Nordeste (21,1%), Sul (13,1%), Norte (7,8%) e Centro-Oeste (6,3%).15

Em relação à empregabilidade, o setor público é considerado o maior empregador da enfermagem, somando 58,9%. É seguido do setor privado, que emprega 31,6% da força de trabalho; e do filantrópico, responsável por empregar 15,4% desse contingente.15 A perda de profissionais qualificados para o mercado de trabalho internacional pode contribuir para a vulnerabilidade no desenvolvimento do sistema de saúde brasileiro. Dos participantes da Pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil, 66,7% relataram dificuldade em encontrar um emprego, e 16% dos que trabalham no setor de ensino apontaram o desejo de trabalhar no exterior.15

Embora o Brasil disponha de um quantitativo de profissionais de enfermagem semelhante aos países desenvolvidos, necessita desenvolver estratégias para o enfrentamento da distribuição desigual nas diferentes regiões do país e para o incremento do percentual de enfermeiros(as) na composição da força de trabalho. Para tanto, recomenda-se ampliar os investimentos na formação, atração e fixação dos profissionais nas regiões mais desassistidas, visando garantir remuneração justa, condições e ambientes de trabalho saudáveis.

 

A mobilidade da força de trabalho de enfermagem: tendências que acentuam a escassez

A mobilidade da força de trabalho de enfermagem está em ascensão, consistindo em um problema quase universal. Os dados de 2020 informam que um em cada oito profissionais de enfermagem trabalha em um país diferente de seu nascimento ou formação.4 Além disso, muitos países de alta renda em diferentes regiões parecem depender excessivamente da mobilidade internacional desses profissionais devido ao baixo número de profissionais graduados ou à sua escassez em relação ao número de empregos disponíveis.

Nesse contexto, alguns aspectos podem atuar como motivadores para o fenômeno de movimentação desses profissionais de um lugar para outro. Em geral, profissionais de saúde e da enfermagem migram para países de alta renda na busca por melhorar a remuneração, a satisfação no trabalho e as oportunidades de carreira ou capacitação/treinamento. Outros se afastam da instabilidade política, da guerra e de ambientes de trabalho violentos.6-16

Na tentativa de explicar os fluxos migratórios, têm-se utilizado os termos push factors (fatores de expulsão), tais como elevados índices de violência, custo de vida elevado quando relacionado aos salários defasados, desemprego e dificuldades de se colocar no mercado de trabalho, entre outros; e pull factors (fatores de atração), como melhores salários, condições de vida e oportunidades de trabalho, acesso a bens e serviços, dentre outros.17 Com base nisso, pode-se observar que os fatores individuais combinados às condições socioeconômicas e políticas entre países, regiões de um mesmo país e até dentro de uma mesma região podem se constituir como potenciais motivadores dos fluxos migratórios da enfermagem.

Contudo, os fatores de expulsão e atração parecem não dar conta de explicar isoladamente a concepção de determinação social da migração,16 em especial dos trabalhadores. Ao considerar a centralidade do trabalho nas sociedades, um estudo ancora-se nos pressupostos teóricos de Karl Marx18 para propor o conceito de mobilidade do trabalho, o qual agrega importantes elementos na explicação do fenômeno migratório relacionando-o às exigências do capitalismo.

A mobilidade do trabalho envolve a produção, utilização e circulação da força de trabalho e o modo pelo qual esta se mobiliza em termos espaciais, setoriais e profissionais para atender aos interesses capitalistas, ou seja, como o capital a produz e controla.18 Numa perspectiva Marxista1 de se olhar para o processo de trabalho humano, a mercadoria “força de trabalho” é vendida ao dono dos meios de produção, o capitalista. Para garantir sua subsistência e reprodução, os trabalhadores são submetidos aos interesses do capitalismo. No setor público, que emprega grande contingente de trabalhadores da saúde, como é o caso do Brasil e outros países, não há acumulação privada de capital, mas a lógica capitalista de organização da sociedade influencia os modos como o Estado disponibiliza esses serviços à população.

Nessa perspectiva, reflete-se que o trabalhador da enfermagem pode se deslocar em diferentes espaços geográficos para vender sua força de trabalho, especialmente para países ou regiões em que as ofertas de emprego sejam mais atrativas e com melhores remunerações. A migração de profissionais de enfermagem é um fenômeno complexo e envolve diversos elementos que a potencializam.

O legado histórico da profissão, as transformações do mundo do trabalho e seus desdobramentos no setor de saúde são fatores que se articulam com os processos migratórios dos profissionais, podendo estar associados aos déficits de reconhecimento, em diversos países, da importância da profissão de enfermagem para a saúde e assistência da população, bem como para a economia.19

Num estudo no Brasil,20 observou-se prevalentemente três fluxos de migração de enfermeiros: a migração nacional orientada pelo processo de formação com alto índice de entradas e saídas em estados que concentram número de cursos e vagas na graduação e pós‑graduação; a migração nacional motivada por oportunidade de empregos, em especial em regiões de expansão econômica do país; e a migração internacional.

Outra situação igualmente importante e que possui interfaces com o panorama migratório e escassez da força de trabalho em saúde e enfermagem é a fuga de capital humano. O fenômeno chamado de “fuga de cérebros” ocorre quando profissionais de saúde qualificados deixam seus países de origem e migram para outros que demonstram ser capazes de oferecer melhores condições de vida, trabalho e progressão na carreira.16

Os países de origem acabam perdendo pessoas qualificadas, comprometidas e resolutivas, o que impacta fortemente a cobertura de saúde e o desenvolvimento técnico, tecnológico e científico dos sistemas de saúde. Já os países receptores enfrentam dificuldades no sentido de regulamentação para exercício profissional e número elevado de imigrantes, e isso interfere na oferta e demanda dos postos de trabalho para os profissionais nativos. Contudo, na inter-relação entre países exportadores e importadores de força de trabalho, os benefícios da migração ainda parecem ser maiores para os países receptores.

Na tentativa conjunta de regular o fluxo migratório, criou-se, em 2010, o Código de prática global da OMS sobre o recrutamento de pessoal de saúde, com objetivo de alcançar um equilíbrio entre os interesses dos profissionais de saúde, países de origem e países de destino.21 Nesse sentido, para alcançar a cobertura universal de saúde, é necessário reter esses profissionais em seu país de origem e atraí-los para as áreas mais remotas a fim de se obter uma distribuição geográfica adequada.

 

Atração e retenção da força de trabalho de enfermagem no Brasil: desafios e tendências

 

As discussões apresentadas até o momento oferecem importantes reflexões acerca dos desafios globais enfrentados para suprir a escassez da força de trabalho da enfermagem visando atender às necessidades de saúde das populações. No Brasil, mais especificamente no Sistema Único de Saúde (SUS), não é diferente. Atrair e reter a força de trabalho de enfermagem tem constituído um enorme desafio para os gestores de saúde, tendo em vista que a rotatividade e/ou ausência de profissionais implica a fragmentação do cuidado e dificuldades de construir vínculo com os usuários.

Os profissionais de enfermagem atuam na atenção primária, secundária e terciária, na assistência direta ou em posições de gestão, tanto em instituições públicas quanto privadas.13 Essa característica possibilitou a expansão dos espaços para sua atuação, em especial no âmbito do SUS e na Atenção Primária à Saúde (APS). Ao se considerar a amplitude de espaços em que a enfermagem se insere e suas contribuições para melhoria do acesso e qualidade da atenção à saúde, é imprescindível planejar adequadamente a força de trabalho, de modo a suprir as demandas por profissionais em quantidade e qualidade suficientes para atender às populações.13

Superar a rotatividade e escassez da enfermagem também envolve debate profundo e permanente. Essa discussão deve incluir o Estado, gestores dos serviços de saúde, instituições de formação profissional, entidades representativas e organizações multilaterais, tendo em vista que tal desafio não é superável apenas com programas ou estratégias isoladas.

Investir em estratégias de valorização e políticas que assegurem a manutenção da força de trabalho de enfermagem em locais rurais e distantes de grandes centros contribui significativamente para a satisfação e retenção de profissionais em locais onde a densidade dessa força de trabalho esteja abaixo da média nacional. Os fatores considerados importantes nesse processo envolvem a comunicação assertiva entre gestão e trabalhadores, reconhecimento do trabalho desempenhado, incentivos financeiros aos mais qualificados, ambientes de prática saudáveis, políticas protetivas ao trabalhador e regulação profissional.21 Além disso, deve haver dimensionamento de pessoal para minimizar o desgaste e sobrecarga, de modo que a produtividade aumente e os serviços de enfermagem melhorem.²²

Para atrair e reter os profissionais de enfermagem, as políticas governamentais precisam garantir segurança no emprego, carga de trabalho gerenciável, supervisão de apoio e gestão organizacional, educação continuada e desenvolvimento profissional, subsídios para moradia e educação, além de disponibilização de recursos materiais e estruturais. Ainda, é preciso garantir ambiente de trabalho livre de qualquer tipo de violência, discriminação e assédio, haja vista que a execução de rotinas desgastantes influencia a qualidade de vida do profissional da enfermagem.17-22

Ao se considerar a desigualdade na distribuição geográfica da força de trabalho, em especial no tocante aos dados apresentados pela enfermagem brasileira, urge repensar as estratégias de retenção desses profissionais nos diferentes níveis de assistência e em todo o país. Sendo assim, é necessário combinar incentivos financeiros e não financeiros que garantam os direitos trabalhistas.

Estudo sobre a migração de enfermeiros no Sul do Brasil sugere algumas proposições políticas de migração da enfermagem no estado e instituições transnacionais. Destacam-se: avaliação da política de criação e distribuição dos cursos de enfermagem por área geográfica e suas respectivas habilitações ou especialidades; inclusão de um subsistema de registro de emigrantes e imigrantes da enfermagem no sistema Cofen/Coren, em articulação com o Sistema Consular Brasileiro para orientação e assistência dos profissionais; proposição de fomento a pesquisas sobre migração e política migratória no contexto da enfermagem e sua relação com os processos econômicos dos países; realização de pesquisas multicêntricas acerca dessa temática; criação de mecanismos de apoio aos migrantes; entre outras.19

Portanto, o Brasil necessita caminhar em direção à garantia de condições e ambientes de trabalho dignos, remuneração justa, formação de qualidade e em consonância com os pressupostos do SUS e estruturas organizacionais que possibilitem o desenvolvimento pleno do trabalho em saúde. Nesse sentido, no Brasil e no mundo, as intervenções para atrair e reter esses profissionais nas áreas mais necessitadas devem considerar o aumento de investimentos no setor saúde e na educação, para ampliar a contratação e qualificação da força de trabalho, como alicerce para garantir o acesso universal à saúde. A existência de um número suficiente de profissionais capacitados e valorizados, com normativas regulatórias definidas e respeitadas, pode ser considerada pedra angular para superação da escassez da força de trabalho de enfermagem e em saúde.

As limitações do estudo dizem respeito às dificuldades na disponibilidade de dados que possibilitem certa comparabilidade. As informações são insuficientes, as regulações profissionais são distintas nos diversos países; e, embora, a pandemia de COVID-19 indique potencial para alterações na oferta e demanda atual de profissionais de enfermagem no âmbito nacional e global, ainda faltam dados para prognósticos mais fundamentados.

A respeito das contribuições deste estudo para a área, destaca-se o alerta para escassez e distribuição desigual da força de trabalho de enfermagem, no Brasil e no mundo, e a consequente necessidade de realização de pesquisas que busquem elucidar suas razões e possibilidades de redução, objetivando melhorias na assistência à saúde nos diferentes cenários mundiais.

 

Conclusão

Apesar dos esforços globais na tentativa de reduzir a escassez da força de trabalho da enfermagem, o cenário permanece crítico. Alcançar saúde para todos dependerá da formação de qualidade de um maior contingente de profissionais e das condições de trabalho adequadas para a oferta dos cuidados.

Assim, para que a relevante atuação da força de trabalho de enfermagem se efetive na quantidade e qualidade necessárias, são exigidas políticas apropriadas no âmbito da formação e valorização profissional. Essas políticas, alinhadas entre si e com as necessidades emergenciais das populações e dos sistemas de saúde, precisam considerar e viabilizar melhores salários e ambientes favoráveis ao trabalho para todos os profissionais.

O campo da saúde é, por um lado, determinado pela esfera macrossocial, mas, por outro, é determinante dela. Ou seja, condicionantes histórico-estruturais delimitam cenários para ação dos sujeitos sociais, no entanto, coletivos conscientes lutam por direitos e constroem a história.

 

Referências

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Contribuições de autoria

 

1 – Mariana Mendes

Autor correspondente

Enfermeira. Doutoranda em Enfermagem - E-mail: mariana.mendes@unochapeco.edu.br

Concepção, desenvolvimento da pesquisa, redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

2 – Marisa da Silva Martins

Enfermeira. Doutoranda em Enfermagem - E-mail: marisa.mpenf@gmail.com

Concepção, desenvolvimento da pesquisa, redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

3 – Indiana Acordi

Enfermeira. Mestranda em Enfermagem - E-mail: indianacordi@gmail.com

Concepção, desenvolvimento da pesquisa, redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

4 – Flávia Regina Souza Ramos

Enfermeira. Professora - E-mail: flareginaramos@gmail.com

Concepção, desenvolvimento da pesquisa, redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

5 – Laura Cavalcanti de Farias Brehmer

Enfermeira. Professora - E-mail: laura.brehmer@ufsc.br

Concepção, desenvolvimento da pesquisa, redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

6 – Denise Elvira Pires de Pires

Enfermeira. Professora - E-mail: piresdp@yahoo.com

Concepção, desenvolvimento da pesquisa, redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

Editora Científica: Tânia Solange Bosi de Souza Magnago

Editora Associada: Silviamar Camponogara

 

 

Como citar este artigo

Mendes M, Martins MS, Acordi I, Ramos FRS, Brehmer LCF, Pires DEP. Nursing workforce: scenario and trends. Rev. Enferm. UFSM. 2022 [Accesso at: Year Month Day]; vol.12 e11: 1-13. DOI: https://doi.org/10.5902/2179769267928