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Rev. Enferm. UFSM, v.12, e32, p.1-14, 2022

https://doi.org/10.5902/2179769267733

ISSN 2179-7692

Submissão: 19/09/2021 • Aprovação: 08/02/2022 • Publicação: 02/08/2022

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Introdução. 3

Método. 4

Resultados. 8

Discussão. 10

Conclusão. 12

Referências. 13

 

Artigo Original

Repercussões da pandemia de COVID-19 na saúde das mulheres mães de crianças autistas

Repercussions of the COVID-19 pandemic on the health of women mothers of autistic children

Repercusiones de la pandemia de COVID-19 en la salud de las mujeres madres de niños autistas

 

 

Jeane Barros de SouzaIÍcone

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Tassiana PotrichIÍcone

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Erica de Brito PitilinIÍcone

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Maíra RossettoIÍcone

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Michelle Kuntz DurandIIÍcone

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Jane Kelly Oliveira FriestinoIÍcone

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I Universidade Federal da Fronteira Sul - UFFS campus Chapecó, Chapecó, Santa Catarina, Brasil

II Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.

 

 

Resumo

Objetivo: compreender as repercussões da pandemia de COVID-19 na saúde das mulheres que são mães de crianças autistas. Método: estudo qualitativo, tipo ação participante, fundamentado nos pressupostos teórico-metodológicos de Paulo Freire. Realizou-se um Círculo de Cultura virtual em janeiro de 2021. Participaram 12 mulheres mães de crianças autistas, membros de uma associação na região Sul do Brasil. A análise dos dados ocorreu com a participação de todos os envolvidos no Círculo de Cultura, conforme Itinerário Freireano. Resultados: as mulheres refletiram sobre a sua saúde física e mental; seu papel social enquanto mãe e esposa; e a conciliação das atividades domésticas com a educação formal do filho. Também emergiram os sentimentos: cansaço, desânimo, depressão, e medo de contrair COVID-19. Conclusão: a pandemia repercutiu na sobrecarga de mulheres mães de crianças autistas com diminuição do tempo para autocuidado e a necessidade de reprogramação dos seus ambientes de trabalho e rotina doméstica.

Descritores: Saúde da Mulher; COVID-19; Transtorno Autístico; Isolamento Social; Relações Mãe-Filho

 

Abstract

Objective: to understand the repercussions of the COVID-19 pandemic on the health of women who are mothers of autistic children. Method: qualitative study, participant action type, based on the theoretical and methodological assumptions of Paulo Freire. A virtual Culture Circle was held in January 2021. Participants were 12 women mothers of autistic children, members of an association in southern Brazil. Data analysis occurred with the participation of all those involved in the Circle of Culture, according to Freire's Itinerary. Results: women reflected on their physical and mental health; their social role as a mother and wife; and the reconciliation of domestic activities with the formal education of the child. Feelings also emerged: tiredness, discouragement, depression and fear of contracting COVID-19. Conclusion: the pandemic had an impact on the burden of women mothers of autistic children with a decrease in time for self-care and the need to reschedule their work environments and domestic routine.

Descriptors: Women’s Health; COVID-19; Autistic Disorder; Social Isolation; Mother-Child Relations

 

Resumen

Objetivo: comprender las repercusiones de la pandemia de COVID-19 en la salud de las mujeres madres de niños autistas. Método: estudio cualitativo, tipo de acción participante, basado en los supuestos teóricos y metodológicos de Paulo Freire. En enero de 2021 se celebró un Círculo Cultural virtual. Las participantes fueron 12 mujeres madres de niños autistas, miembros de una asociación en el sur de Brasil. El análisis de los datos se produjo con la participación de todos los involucrados en el Círculo de cultura, según el Itinerario de Freire. Resultados: las mujeres reflexionaron sobre su salud física y mental; su papel social como madre y esposa; y la conciliación de las actividades domésticas con la educación formal del niño. También surgieron sentimientos: cansancio, desánimo, depresión y miedo a contraer COVID-19. Conclusión: la pandemia tuvo un impacto en la carga de las mujeres madres de niños autistas con una disminución en el tiempo para el autocuidado y la necesidad de reprogramar sus entornos de trabajo y rutina doméstica.

Descriptores: Salud de la Mujer; COVID-19; Trastorno Autístico; Aislamiento Social; Relaciones Madre-Hijo

 

Introdução

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) se caracteriza por uma díade de sintomas e alterações na comunicação social quantitativa ou qualitativa, bem como nas alterações comportamentais restritas e repetitivas, definidas por critérios diagnósticos utilizados na atualidade, sendo considerado um transtorno global do desenvolvimento.1 Dados epidemiológicos recentes estimam a prevalência de TEA para 1 a cada 45 crianças.2 Nos países em desenvolvimento, como o Brasil, estudos que abordam a incidência do TEA são escassos, entretanto, pode-se observar um aumento significativo do diagnóstico entre crianças brasileiras. Um estudo desenvolvido na região metropolitana de Goiânia, Fortaleza, Belo Horizonte e Manaus, identificou uma prevalência de 1% de TEA, incluindo crianças e adolescente até 16 anos.3

Apesar do conhecimento acerca do número crescente de TEA pelos profissionais da saúde, ainda costuma ser um diagnóstico lento e necessita ser realizado a partir do olhar multiprofissional. Após o diagnóstico, as famílias se deparam com necessidades específicas de cuidado que são particulares e individualizadas, de acordo com grau de comprometimento e a necessidade de apoio que a criança necessita.3

Pais de crianças com diagnóstico de TAE normalmente experimentam níveis mais elevados de estresse, depressão, ansiedade e raiva do que outros pais.4 Há uma série de responsabilidades relacionadas ao TEA, e, estas contribuem para o estresse parental que incluem comportamentos problemáticos, entraves financeiros, maiores obstáculos no acesso à educação, como creches e atividades comunitárias, entre outros.5 É possível inferir que estes aspectos sejam vivenciados de maneira muito mais intensa em situação de pandemia, reflexo do cenário atual.

A COVID-19 emergiu como um grave problema de saúde pública global, que se espalhou rapidamente, a partir da China, para outras partes do mundo.6 Assim, impôs-se a necessidade de reorganização dos serviços de saúde, educação, comunicação e transporte para todas as pessoas, o que resultou no cancelamento e/ou adiamento de atividades indispensáveis no contexto da criança com TEA.

Tais modificações repercutiram na saúde física e mental de mães que passaram a conviver com demandas e comportamento de seus filhos frente à restrição social e o maior tempo de permanência em casa. Embora as mulheres compreendam a necessidade dessas medidas, pode não ser claro o impacto no desenvolvimento de seus filhos e em sua saúde, tendo em vista que em grande parte o cuidado recai sob responsabilidade da mulher.4,7-8

Considerando que a criança com TEA requer cuidados ou assistência ao longo da vida, torna-se premente compreender a vivência das mulheres, principais cuidadoras, no enfrentamento da pandemia de COVID-19 e buscar assisti-las neste período. Nessa conjuntura, em que as possibilidades virtuais de estabelecer relacionamentos sociais ganharam vulto, vislumbrou-se o uso de tecnologias digitais para aproximar estas mães e estimular a reflexão sobre a pandemia, o cuidado dos filhos e seus próprios. As tecnologias digitais proporcionam espaços de escuta e diálogo e são promotores de aprendizado e apoio. A Enfermagem vem se apropriando das tecnologias digitais e especialmente durante a pandemia, viu-se a oportunidade de qualificar os encontros de forma virtual, sendo assim, a proposta do encontro virtual à mulheres, mães de crianças, pode contribuir para que essas reflitam sobre seus desafios e consigam resolvê-los.9-10 Desse modo tem-se como objetivo do estudo foi compreender as repercussões da pandemia de COVID-19 na saúde das mulheres que são mães de crianças autistas.

 

Método

Trata-se de um estudo qualitativo, do tipo pesquisa ação participante,11 fundamentado nos pressupostos teórico-metodológicos de Paulo Freire. Utilizou-se o Itinerário de Pesquisa Freireano, que é composto por três etapas dialéticas e interligadas entre si: 1) Investigação Temática: diálogo que se estabelece inicialmente para identificar os temas geradores, os quais emergem de acordo com a realidade; 2) Codificação e Descodificação: momento em que se reflete acerca dos temas geradores, buscando representar as situações existenciais de maneira crítica sobre a realidade vivida pelos participantes; 3) Desvelamento Crítico: fase em que se evidencia os limites e as possibilidades, é a consciência crítica da situação existencial da realidade dos participantes.12-13

As fases do Itinerário de Pesquisa Freireano se desenvolvem no Círculo de Cultura, que é um espaço em que se promove o compartilhar de práticas e saberes, em busca da construção de conhecimento. Integra um grupo de pessoas que discutem temas em comum de maneira dialógica, participativa e horizontalizada, o que instiga o conhecimento de todos, em prol da transformação da realidade.13-14

Diante de restrições impostas pela pandemia tornou-se necessário realizar o Círculo de Cultura de modo virtual, utilizando a plataforma digital Webex®, com o apoio de câmera de celulares e computadores, o que possibilitou a interação e integração dos participantes. Realizou-se um Círculo de Cultura Virtual (CCV), com a participação de 12 mulheres mães de crianças autistas, residentes no litoral de Santa Catarina. Utilizou-se o método de amostragem Snowball,15 iniciando por duas mulheres, cujos filhos frequentavam uma associação beneficente e sem fins lucrativos, as quais foram contactadas pelas pesquisadoras, via telefone. Após aceite, estas convidaram outras dez mulheres com as mesmas características para participarem da pesquisa. Optou-se pela participação de 12 pessoas com vistas a favorecer o maior diálogo, interação e participação ativa durante o CCV. 

Como critérios de inclusão considerou-se as mulheres acima de 18 anos, que eram as cuidadoras principais de seus filhos. Como exclusão, foram consideradas as mulheres, mães de crianças autistas, que não possuíam acesso à internet e dispositivos eletrônicos para participar do CCV. Todas as convidadas aceitaram participar do estudo, não havendo recusas.

Na semana anterior a realização do CCV, foi organizado um grupo em um aplicativo de mensagens, a fim de facilitar a comunicação entre as participantes do estudo e as pesquisadoras. Nesse grupo foi agendado dia e horário do encontro para realização do CCV. Além disso, foi explicado acerca do objetivo da pesquisa e a necessidade de assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o qual foi encaminhado para as participantes do estudo, que o assinaram e o reencaminharam para as pesquisadoras.

Na tarde do dia nove de janeiro de 2021 foi desenvolvido o CCV, que foi gravado em dispositivo eletrônico, com duração de aproximadamente duas horas. Contou-se com a participação das 12 mulheres e da mediadora (enfermeira, doutora, com experiência na condução desse tipo de abordagem).

Para percorrer as fases do Itinerário de Pesquisa Freireano de maneira lúdica e integrativa, conforme a realidade das participantes, perguntou-se no grupo do aplicativo qual era a atividade que seus filhos mais apreciavam. As mães decidiram pela montagem de blocos. Assim, foi realizada uma analogia das etapas do Itinerário de Pesquisa com a brincadeira de montagem dos blocos de uma casa, representando a realidade pandêmica diante da necessidade de “ficar em casa” em isolamento, conforme ilustração da Figura 1.

Diagrama

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Figura 1: Itinerário de Pesquisa de Paulo Freire: analogia com montagem da casa de blocos

Fonte: elaborado pelas autoras a partir de https://pt.dreamstime.com/ilustra%C3%A7%C3%A3o-stock-blocos-de-apartamentos-do-beb%C3%AA-image45286382

 

Para instigar o diálogo e percorrer a primeira etapa do Itinerário de Pesquisa Freireano, a mediadora apresentou às participantes uma casa montada com blocos. A partir de então, destacou que foi necessário investigar a melhor maneira de construir a casa, com as peças ideais a serem inseridas em cada local. Refletiu-se que a casa foi o local em que as participantes do estudo, juntamente com suas famílias, permaneceram durante a pandemia, trazendo repercussões para suas vidas. Então, lançou o seguinte questionamento: quais as repercussões da pandemia de COVID-19 para a sua saúde?

Cada participante foi respondendo o questionamento, enquanto a mediadora foi escrevendo seus depoimentos, por meio de uma palavra-chave ou frase, na própria tela compartilhada do computador. Após todas as participantes se manifestarem, a mediadora leu todos os registros, incentivando-as a organizar seus depoimentos de acordo com as temáticas que foram surgindo. Assim, organizaram dois temas geradores para refletir no CCV: 1) Saúde da mulher e 2) Saúde da mãe e esposa.

Para a segunda fase do Itinerário Freireano, Codificação e Descodificação, a mediadora contextualizou que para montar a casa, foi necessário detalhar a porta, janela e telhado com cores e peças diferenciadas. De tal maneira, fazia-se necessário contextualizar os dois temas geradores, em que as questionou: Quais as repercussões da COVID-19 para a sua saúde enquanto mulher? Quais as repercussões da COVID-19 para a sua saúde enquanto esposa e mãe de um filho autista?

As mulheres dialogaram e refletiram de maneira abundante, tendo a oportunidade de compartilhar suas vivências. Foi registrado em termos ou frases os significados de suas vivências, que foram codificadas e descodificadas, conforme Figura 2.

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Figura 2: Representação da Codificação e Descodificação dos dois temas geradores

Fonte: elaborado pelas autoras a partir de https://pt.dreamstime.com/ilustra%C3%A7%C3%A3o-stock-blocos-de-apartamentos-do-beb%C3%AA-image45286382

 

Os registros foram lidos e validados com as participantes, buscando motivá-las a dar continuidade nas reflexões sobre as temáticas levantadas, a fim de selar o processo de ação-reflexão, instigando-as a compreender sua capacidade de enfrentar os desafios compartilhados e juntas visualizarem as possibilidades para transformar a sua realidade.14 

Para o Desvelamento Crítico, última fase do Itinerário Freireano, foi apontado que ao montar algo com os blocos, a criança desenvolve a sua criatividade, sendo que ao visualizar a montagem, significa a sua criação. Do mesmo modo, a participação no CCV trouxe significados para as mulheres. Nesse sentido, a mediadora convidou-as a refletirem sobre tudo que falaram e ouviram, com o intuito de desvelar as reais possibilidades para viver com saúde e superar os desafios impostos pela COVID-19, fortalecendo-as entre si. Neste momento, as participantes refletiram sobre tudo que já haviam dialogado e discutido, não inserindo novos debates, ocorrendo assim a saturação dos dados.16 Para findar, foi questionado sobre o significado de ter participado do CCV.

Cabe salientar que o processo de análise dos dados ocorreu durante o desenvolvimento de todas as etapas do Itinerário de Pesquisa de Paulo Freire, conforme os seus preceitos, que prevê o processo analítico.12,14 Portanto, desenvolveu-se continuamente, com a participação de todas as pessoas envolvidas no Círculo de Cultura. Após o término do CCV, os diálogos foram transcritos e organizados, de acordo com os dois temas geradores.

Foi explicado sobre a importância de manter a privacidade e sigilo das participantes, que ao darem-se conta de que estavam em 12, optaram por serem denominadas pelos meses do ano. O estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos de uma Universidade pública do Sul do Brasil, com o parecer número 4.068.387, e, CAAE 32239220.7.0000.5564, em 03 de junho de 2020.

 

Resultados

As doze participantes do estudo tinham idade entre 29 e 45 anos. Cinco delas trabalhavam fora de casa (quatro professoras e uma cabelereira), duas pediram demissão durante a pandemia, para poder se dedicar com maior qualidade aos cuidados do filho autista e cinco eram donas de casa. Quanto ao estado civil, nove eram casadas com homens e três eram divorciadas, sendo que oito mulheres tinham mais de um filho. Todos os filhos autistas das participantes eram do sexo masculino e tinham idade entre quatro e nove anos.

Ao dialogarem acerca do primeiro tema gerador, em que discutiram sobre a saúde da mulher, foi apontada a presença do cansaço, desânimo e depressão no enfrentamento da COVID-19. Somado a isso, evidenciaram medo de adquirir a doença na família:

Me sinto muito cansada e desanimada, como nunca antes. (Janeiro)

Nessa pandemia tive que ir ao médico e me vi depressiva, tendo que tomar medicamentos. Abalou minha saúde mental. (Abril)

Eu tenho muito medo de pegar COVID. Até agora permanecemos mais em casa e nos cuidados e ninguém da nossa família pegou. (Março)

 

Devido a pandemia, algumas mulheres tiveram a necessidade de pedir demissão de seus empregos, a fim de cuidar com maior qualidade de seus filhos autistas. Mas com toda a família dentro de casa, despontou o acúmulo de trabalho:

Eu tive que sair do meu emprego. Não tinha como deixar meu filho em casa sozinho durante a pandemia e pedi demissão. (Fevereiro)

Com a família dentro de casa, o meu trabalho só aumentou [...]. (Maio)

 

As participantes referiram pouco de tempo para cuidar de si, em que não conseguiram realizar exames de rotina, emergindo a carência que sentem em sair com amigas e de ir à igreja. Também lamentam a falta de realizar coisas diferentes no dia a dia, tendo que cancelar viagens de férias devido a pandemia:

A gente ficou sem tempo para cuidar de nós mesmas. Tudo tem sido muito corrido nessa pandemia. (Junho)

Esse ano nem consegui fazer meus exames anuais de rotina.  (Agosto)

Sinto falta de sair com minhas amigas e conversar, rir com elas. (Julho)

Tenho saudade de ir à igreja e passear à vontade. (Setembro)

Não tivemos férias, foi tudo cancelado devido a pandemia. (Outubro)

 

Diante da necessidade de distanciamento social, imposta pela pandemia, emergiu o sentimento de saudade dos familiares como dos seus pais e sogros, repercutindo na falta do apoio presencial no cuidado ao filho autista, pois eram eles quem mais as auxiliavam:

Sinto falta de estar com meus familiares, pais e sogros. (Dezembro)

Além da saudade que eu sinto dos meus pais, eram eles quem me ajudavam a cuidar do meu filho autista. E agora, nem esse apoio eu tenho devido a pandemia, que acabou nos afastando. (Novembro)

 

Durante a discussão do segundo tema gerador, saúde da mãe e esposa, as mulheres desvelaram que na pandemia tiveram que ser mãe, esposa, dona de casa e terapeuta. Dessa maneira, destacaram a falta de tempo para cuidar do companheiro e da casa:

Além de ser mulher, mãe, esposa e dona de casa, tive que também ser terapeuta nessa pandemia. (Abril)

Eu não tenho tempo para cuidar do meu marido e da minha casa, que vive tudo desorganizado. (Junho)

 

As mulheres revelaram sentirem-se presas dentro de suas próprias casas devido a COVID-19 e que o filho autista ficou mais nervoso. Demonstraram o sentimento de tristeza ao ver o filho sem terapia e regredindo na conjuntura pandêmica. Apontaram que o filho autista teve dificuldades de acompanhar as aulas online, tendo que se dedicar integralmente a ele, com muita paciência e resiliência para enfrentar todas essas situações:

Eu me sinto presa dentro da minha própria casa. Não dá para sair como antes e isso complica tudo quando se tem um filho autista. (Dezembro)

Meu filho ficou muito mais nervoso com a pandemia. (Fevereiro)

É muito triste ver meu filho sem poder fazer terapia presencialmente porque vejo ele regredindo a cada dia. (Março)

Meu filho não conseguiu acompanhar as aulas online. Isso foi muito ruim. Então tive que me dedicar ao meu filho de maneira integral. (Janeiro)

Todas essas mudanças devido a pandemia fizeram a gente ter que ter muito jogo de paciência e resiliência para seguir a vida. (Maio) 

 

Durante a conjuntura pandêmica, as mulheres reprogramaram algumas ações diárias, buscando promover a saúde da família com criatividade e ludicidade:

Lá em casa, tivemos que reprogramar algumas coisas: tempo de ficar na internet, ver o pôr de sol, conversar em família, leitura e jogos. (Setembro)

Como família, nos organizamos para manter a saúde de todos. (Novembro)

Com criatividade e brincadeiras lúdicas, a gente foi lidando com o nosso filho, elaborando diferentes programações para ele, dentro de casa. (Agosto)

 

As mulheres relataram que a utilização de momentos de lazer em família foi importante e positiva no manejo do isolamento social e manutenção da saúde de todos.

 

Discussão

As mulheres deste estudo tiveram a oportunidade de refletir sobre o aprendizado com a experiência do CCV e sobre o significado de vivenciar o enfrentamento da COVID-19 na gestão do autocuidado e do cuidado com seus filhos com TEA. A ocorrência da pandemia despontou diferentes sentimentos, sendo relatado por muitas o aumento do medo, da ansiedade, da angústia e da depressão.17 Estes podem estar relacionados a falta de conhecimento sobre a doença, à sobrecarga de informações e fake news, como também, a incerteza econômica, pois muitos cuidadores estão com a renda familiar comprometida.18-19

Considerando ser a COVID-19 uma situação nova no cenário mundial, com pesquisas sendo realizadas, muitas reflexões sobre seu enfrentamento são baseadas nas vivências e experiências pessoais. Todos estes aspectos podem influenciar na condução do contexto familiar e trazer ainda mais impactos para a saúde mental, não só das crianças com TEA, como também de seus cuidadores, representados majoritariamente pela figura da mulher.20

Enquanto mulher, o isolamento e distanciamento social tem dificultado a manutenção da qualidade de vida e do controle regular da saúde, seja por causa das mudanças na dinâmica do contexto familiar, seja pela incerteza quanto à segurança em buscar atendimento. Ainda que não se possa mensurar os efeitos da crise sanitária na saúde das mulheres, sabe-se que houve mudança na rede de serviços eletivos, essenciais e de emergência.14 Essa dificuldade de acesso aos serviços, associada a necessidade de isolamento social, pode gerar um complexo quadro de dificuldades de autocuidado e de restrição de direitos já conquistados, limitando sua busca por melhores condições de saúde.21

Nesse contexto, as mulheres têm ocupado cada vez mais espaços de trabalho e de prestígio na sociedade, embora tal fato não tem diminuído sua carga de trabalho em casa, incluindo cuidados aos familiares.21 A ocorrência da pandemia agravou uma situação que já era evidente nas jornadas duplas e triplas de trabalho e que reflete as desigualdades de gênero no Brasil.22 A responsabilidade pelo trabalho doméstico formal ou não, ainda é exclusivamente destinada às mulheres, resultado da cultura enraizada machista prevalente no Brasil, que reflete na desigualdade entre os gêneros.23

Tal situação fica mais evidente quando a mulher assume o papel de cuidadora diante de um diagnóstico de TEA de algum membro da família, em especial um filho(a). Socialmente e culturalmente, elas representam 70% da força de trabalho em saúde e são a maioria na linha de frente da responsabilidade pelos cuidados, sejam domésticos ou institucionais.9

A necessidade de manutenção do distanciamento social devido à COVID-19 também ocasionou jornadas cansativas de cuidado dos filhos, bem como da dinâmica familiar. A mulheres, mãe e esposa, presentes neste estudo, apresentaram fragilidades na condução do cuidado neste contexto. Em especial na organização das atividades com o filho com diagnóstico TEA, que se tornou um desafio para auxiliar na manutenção do aprendizado com aulas remotas, durante o fechamento das escolas. Tal situação acarretou mudanças nas rotinas familiares, com repercussões acentuadas no comportamento da criança.24 Ademais, torna-se importante refletir sobre o papel de cada sujeito dentro de casa, sendo fundamental compartilhar obrigações e tarefas, revendo a dinâmica familiar para além do cuidado.7

A alteração repentina no processo de aprendizado da criança com TEA acarreta estagnação e/ou involução do desenvolvimento intelectual, motor e de convivências, impactando diretamente no bem-estar e na qualidade de vida de toda a família.24 Ainda, a suspensão das práticas terapêuticas pode resultar na piora do comportamento agressivo e perda de habilidades básicas previamente adquiridas para estas crianças.8

Tais demandas específicas das crianças com TEA, associadas às atividades laborais, domiciliares e a atenção aos demais familiares requer da mulher/mãe/esposa, além de tempo, paciência, resiliência e reorganização do cenário familiar e das necessidades advindas de todos as envolvidas. Para as mulheres deste estudo, a vivência e convivência no contexto pandêmico tem sido desafiadora e limitante, uma vez que apresentam dificuldades na mediação destes comportamentos, na oferta de estímulos adequados para cada criança em casa, incluindo a conciliação das atividades domésticas.

Reinventar o cotidiano e o modo de relacionar-se dentro de casa tornou-se necessário para a preservação da sanidade mental, física e social, principalmente em tempos de pandemia.25 Ocorreram sucessivos deslocamentos entre as famílias e o uso das tecnologias, com a escola e na relação com as crianças, sendo necessário criatividade para repensar o dia a dia.26 Deste modo, torna-se necessário refletir sobre os impactos do isolamento a longo prazo e como as crianças com TEA estão se adaptando a esses processos de mudanças na sociedade no enfrentamento da pandemia e também no cenário pós COVID-19.

Como limitação do estudo, cita-se o desafio de conciliar um horário na agenda das participantes para a realização do CCV, visto o acúmulo de atividades que as mulheres possuíam, principalmente diante do cuidado do filho com TEA. Além disso, o acesso a tecnologias de comunicação, como o computador e a própria rede de internet, constituiu outro fator limitante para replicação desta experiência com alguns grupos de mães.

A realização do CCV possibilitou um encontro para partilhar experiências, com escuta qualificada e aprendizado mútuo, sendo uma oportunidade potente para o cuidado em saúde. A utilização desse instrumento metodológico no campo da pesquisa é inovadora, sobretudo para a Enfermagem, e pode propiciar o desenvolvimento de diversas atividades durante a pandemia de modo acolhedor, criativo e humano, sem ofertar riscos de transmissão para os profissionais, quanto para as participantes.

 

Conclusão

O estudo revelou como a pandemia da COVID-19 está influenciando a saúde das mulheres mães de crianças com TEA, que desvelaram a presença do cansaço, desânimo e depressão, bem como o medo de adquirir a doença na família durante esse período. As participantes compartilharam que na pandemia tiveram que ser mãe, esposa, dona de casa e terapeuta, referindo tristeza em evidenciar a regressão do filho sem as terapias presenciais, com aumento da carga de trabalho, falta de tempo para cuidar de si e conciliar as ações educativas de aprendizado dos filhos especiais com as atividades domésticas.

Ressalta-se que o CCV, mediado por profissional enfermeiro, possibilitou além da partilha de vivências congruentes e motivações entre os pares, o cuidado de forma coletiva, reforçando o papel da enfermagem também nesse espaço de mediação e resiliência. Com isso, desvela-se a necessidade de um fortalecido suporte às mulheres, mães de crianças com TEA, destacando a relevância de imperativa participação da enfermagem com diálogo e escuta atenta, incluindo ações no ambiente virtual.

 

Referências

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Contribuições de autoria

 

1 – Jeane Barros de Souza

Autor Correspondente

Enfermeira. Doutora em Ciências - E-mail: jeane.souza@uffs.edu.br

Concepção e/ou desenvolvimento da pesquisa e/ou redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

2 – Tassiana Potrich

Enfermeira. Doutora e Mestre em Enfermagem - E-mail: tassiana.potrich@uffs.edu.br

Concepção e/ou desenvolvimento da pesquisa e/ou redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

3 – Érica de Brito Pitilin

Enfermeira. Doutora em Ciências - E-mail: erica.pitilin@uffs.edu.br

Concepção e/ou desenvolvimento da pesquisa e/ou redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

4 – Maíra Rossetto

Enfermeira. Doutora e Mestre em Enfermagem - E-mail: maira.rossetto@uffs.edu.br

Concepção e/ou desenvolvimento da pesquisa e/ou redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

5 – Michelle Kuntz Durand

Enfermeira. Doutora e Mestre em Enfermagem  - E-mail: michakd@hotmail.com

Concepção e/ou desenvolvimento da pesquisa e/ou redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

6 – Jane Kelly Oliveira Friestino

Enfermeira. Doutora em Saúde Coletiva área Epidemiologia - E-mail: jane.friestino@uffs.br

Concepção e/ou desenvolvimento da pesquisa e/ou redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

 

Editora Científica Chefe: Cristiane Cardoso de Paula

Editora Associada: Aline Cammarano Ribeiro

 

 

Como citar este artigo

Souza JB, Potrich T, Pitilin EB, Rossetto M, Durand MK, Friestino JKO. Repercussions of the COVID-19 pandemic on the health of women mothers of autistic children. Rev. Enferm. UFSM. 2022 [Access in: Year Month Day]; vol.12 e32: 1-14. DOI: https://doi.org/10.5902/2179769267733