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Rev. Enferm. UFSM, v.12, e33, p.1-13, 2022

https://doi.org/10.5902/2179769267675

ISSN 2179-7692

Submissão: 14/09/2021 • Aprovação: 20/06/2022 • Publicação: 03/08/2022

Tela de computador com texto preto sobre fundo branco

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Introdução. 1

Método. 1

Conclusão. 1

Referências. 1

 

Reflexão

Reflexões das heranças da idade média no enfrentamento da pandemia da COVID-19*

Reflections on the legacies of the Middle Ages in coping with the COVID-19 pandemic

Reflexiones acerca del legado de la Edad Media para afrontar la pandemia de COVID-19

 

Adaiana Fátima AlmeidaIÍcone

Descrição gerada automaticamente

Isadora Ferrante Boscoli de Oliveira AlvesIÍcone

Descrição gerada automaticamente

Graziele Gorete Portella da FonsecaIÍcone

Descrição gerada automaticamente

Rosilei Teresinha Weiss BaadeIÍcone

Descrição gerada automaticamente

Evangelia Kotzias Atherino dos SantosIÍcone

Descrição gerada automaticamente

Soraia Dornelles SchoellerIÍcone

Descrição gerada automaticamente

 

I Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil

 

*Derivado do trabalho final da disciplina “Filosofia da Ciência da Enfermagem e Saúde”, do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina, 2021-1.

 

 

Resumo

Objetivo: refletir acerca das heranças da Idade Média no contexto da pandemia da Covid-19. Método: estudo de reflexão sobre aspectos teórico-filosóficos relacionados às heranças da Idade Média e a pandemia da Covid-19, elaborado durante a disciplina em um programa de pós-graduação em enfermagem de uma universidade pública, de setembro a dezembro de 2021. Resultados: a humanidade passou por inúmeras transformações ao longo dos séculos, essas mudanças foram fruto de diversos desafios que as populações precisaram enfrentar, como guerras, epidemias, bem como crises econômicas. Tais adversidades estavam interligadas com causa-consequência. A área da saúde precisou desenvolver-se para o enfrentamento desses obstáculos e para que as pessoas pudessem retomar suas vidas com menos impactos possíveis. Conclusão: a idade média foi precursora no enfrentamento de pandemias, deixando referências utilizadas atualmente frente a Covid-19, como: ações de higiene, utilização de equipamentos de proteção individual e isolamento social, além de comportamentos negacionistas reportando-nos à Idade das Trevas.

Descritores: COVID-19; Pandemias; História Medieval; Ciência, Tecnologia e Sociedade; Filosofia

 

Abstract

Objective: to reflect on the legacies of the Middle Ages during the COVID-19 pandemic. Method: a reflection study on theoretical-philosophical aspects related to legacies of the Middle Ages and to the COVID-19 pandemic and was developed during an academic discipline in a graduate program in Nursing from a public university between September and December 2021. Results: humanity experienced countless changes over the centuries, resulting from several challenges that the populations had to face: wars, epidemics and even economic crises. These adversities were interconnected with cause-consequence. The health area had to advance to cope with these obstacles and allow people to resume their lives with the fewest possible impacts. Conclusion: the Middle Ages was a pioneer era in facing pandemics and left references currently used against COVID-19, such as hygiene measures, use of Personal Protective Equipment and social isolation, in addition to denial behaviors reminding us of the Dark Ages.

Descriptors: COVID-19; Pandemics; History, Medieval; Science, Technology and Society; Philosophy

 

Resumen

Objetivo: reflexionar acerca del legado de la Edad Media en el contexto del COVID-19. Método: estudio de reflexión sobre aspectos teórico-filosóficos asociados al legado de la Edad Media y a la pandemia, realizado durante una asignatura en un programa de postgrado en Enfermería de una universidad pública entre septiembre y diciembre de 2021. Resultados: la humanidad sufrió innumerables transformaciones en su historia, consecuencia de diversos desafíos que debieron afrontar las poblaciones: guerras, epidemias, e incluso crisis económicas. Dichas adversidades estuvieron interconectadas con causa-consecuencia. El área de salud tuvo que desarrollarse para afrontar estos obstáculos y para que las personas retomaran sus vidas con la menor cantidad posible de repercusiones. Conclusión: la Edad Media fue precursora en afrontar pandemias y dejó referencias utilizadas actualmente contra el COVID-19: medidas de higiene, utilización de Equipos de Protección Personal y aislamiento social, además de conductas negacionistas que nos remiten a los Años Oscuros.

Descriptores: COVID-19; Pandemias; Historia Medieval; Ciencia, Tecnología y Sociedad; Filosofía

 

Introdução

 As epidemias causadas por doenças infecciosas e transmissíveis estão presentes em toda a trajetória do desenvolvimento humano e deixam marcas que transcendem seus limites de espaço e tempo. Esse fato foi comprovado por cientistas que identificaram sequelas da praga de Atenas em cadáveres, antes de os registros históricos da doença terem sido encontrados na Grécia antiga, denunciando os rastros de uma batalha as quais as cicatrizes ainda perduram.1-3

As pandemias são marcos históricos que, geralmente, estão fortemente interligadas ao desenvolvimento social e a globalização. No passado, muitas epidemias coincidiram com a ocorrência de guerras, nas quais os soldados precisavam locomoverem-se por diversas regiões e assim disseminaram agentes patogênicos ao longo do percurso. Na Idade Média, a aglomeração da população, associada à falta de saneamento adequado e o intenso fluxo da rota comercial, favoreceram a explosão da chamada Peste Negra, em meados de 1340, vitimando milhares de pessoas.1-2,4

Com a globalização, o intenso deslocamento de pessoas pelo mundo, e as facilidades tecnológicas de locomoção (trens, aviões, entre outros), propiciaram a rápida disseminação de doenças entre os países, os quais geram insegurança. Entretanto, achava-se que enfrentar uma pandemia em pleno século XXI seria menos desafiador, visto que tantas outras já haviam sido superadas.3-4

No entanto, os detalhes da ação do vírus sobre o organismo humano eram desconhecidos, impossibilitando ações eficientes de prevenção, transmissão e combate eficaz a doença.4 O fato do convívio entre hospedeiros e agentes infecciosos ser determinado por múltiplos fatores e condições, incluindo a suscetibilidade dos indivíduos à contaminação e sua resposta ao processo infecção-doença, tornou a realidade da Covid-19 um desafio para a área da saúde, por sua rápida disseminação e gravidade.3

 Esses fatores contribuíram para a superlotação dos serviços de saúde, e sem a possibilidade física e/ou de recursos humanos para acrescer quaisquer espaços ou ações, os profissionais viram-se reféns de um vírus desconhecido, necessitando desenvolver e adotar medidas preventivas para minimizar a situação. Com o objetivo de reduzir a propagação da doença, foi instituído distanciamento social, quarentena, uso de máscaras e barreiras em todos os ambientes de convivência. Consequentemente, houve alterações drásticas no cotidiano de toda a população, pois em sua maioria ainda não haviam vivenciado um período rigoroso de restrição; e os profissionais da saúde, que se encontravam diariamente com o risco de infecção e morte.2,4-5

A pandemia causada pela Covid-19 evidenciou a importância de alguns cuidados básicos de biossegurança e controle de doenças infectocontagiosas, como a lavagem das mãos e o distanciamento social. Assim, promoveram-se campanhas educativas por instituições de saúde para estimular a adoção de práticas salutares, individuais e coletivas, que contribuíssem com a redução de infectados e mortos.5 Entretanto, algumas medidas repercutiram de forma negativa na saúde física e mental das populações, especialmente dos mais vulneráveis, ao potencializar a desigualdade econômica entre as diferentes classes sociais, além de impactar diretamente os vínculos pessoais causados pelo isolamento social.4

Essas mudanças nos leva a reflexão sobre o contexto que estamos inseridos, e nos instiga a buscar conhecimento em outras épocas, nas quais a população enfrentou desafios parecidos e com menos recursos. As epidemias mais significativas são estudadas a título de curiosidade nas universidades, mas experienciar o impacto de uma, no presente momento, demonstrou a fragilidade e o despreparo da população em geral para enfrentá-la, demandando a realização de novas pesquisas.2 Ao mesmo tempo, percebeu-se que as descobertas feitas ao longo da história são cruciais para adotar medidas de biossegurança imediatas diante de uma ameaça à saúde pública, como no caso do novo coronavírus.6

Considerando as fragilidades mencionadas, a história da idade média se mostra relevante para o campo da saúde atual, tendo visto que representa o período em que foram instituídas as primeiras medidas de enfrentamento coletivo durante a propagação de uma doença mortal. A criação e adaptação de Equipamentos de Proteção Individuais (EPIs) e o início das quarentenas, por exemplo, fazem parte do legado dessa época sendo utilizadas no enfrentamento de diversas doenças, como no surto da varíola, gripe espanhola, Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), Influenza (H1N1), dentre outras.5-8

 Após imersão na temática durante a disciplina de “Filosofia da ciência da enfermagem e saúde”, de um curso de doutorado em enfermagem do sul do Brasil, notou-se que a história da Idade Média está presente em diversos contextos da atualidade, tanto nos fundamentos, quanto nas ações de prevenção e combate às epidemias. Logo, os conhecimentos advindos dessa época se mostram ferramentas valiosas para a superação das adversidades do presente. Para tanto, este artigo propõe refletir acerca das heranças da Idade Média no contexto da pandemia da Covid-19.

 

Método

A elaboração do estudo deu-se após algumas discussões entre discentes de um Programa de Doutorado Acadêmico em Enfermagem de uma Universidade Pública do Sul do Brasil, acerca dos aspectos teórico-filosóficos da saúde, ciência e filosofia durante a Idade Média e seus paralelos com o panorama da pandemia da Covid-19. As discussões ocorreram durante a disciplina de Filosofia da Ciência da Enfermagem e da Saúde, que estava fundamentada nas bases ontológicas e epistemológicas da ciência, da enfermagem e das disciplinas da saúde. Além de realizar uma análise histórica do pensamento filosófico e a contribuição para o campo da saúde e da enfermagem. A referida disciplina foi constituída de três créditos, com a realização de 11 encontros a distância, devido a pandemia. Teve como responsáveis por ministrá-la duas docentes enfermeiras, com formação complementar vinculadas a filosofia. O quantitativo de discentes foi de aproximadamente 30 pessoas, com o trabalho sendo realizado em grupos de quatro ou cinco componentes, os quais eram responsáveis pela leitura, buscas e aprofundamento sobre o tema escolhido e por discorrer o assunto durante o encontro, e assim, provocar reflexões e discussões com os demais colegas.

 

Filosofia e ciência: as bases do pensamento medieval

Para iniciar a discussão referente às heranças da idade média na atualidade, se faz necessário compreender o seu contexto; os fenômenos envolvidos na sua forma de pensar o mundo; a compreensão que tinham de saúde e como lidavam com ela.

O tema central de discussão entre filosofia e ciência nessa época, está relacionado a Fé, a Razão, a Filosofia e a Teologia. É importante lembrarmos que a ciência se desenvolveu por meio da filosofia, não existindo a dicotomia contemporânea, em que se entende fé e ciência como assuntos distintos, sendo o ensino vinculado às diversas áreas de conhecimento inter-relacionadas. A ciência conhecida hoje, surgiu a partir da Idade Moderna, desse modo, é importante o entendimento da Idade Média, período em que ocorreu tais mudança.9-10

Com a queda do Império Romano as cidades diminuíram em volume e importância e muitas escolas fecharam. Aproximadamente no ano de 800 d. C. o Imperador Carlos Magno retomou a abertura de todas as escolas, as quais eram vinculadas a mosteiros, catedrais ou tribunais nobres. O conhecimento aos poucos fortaleceu-se, estando sempre ligado à Igreja, e no período de 1.100 a 1.200 d.C. surgiram as primeiras universidades.

Como o conhecimento na época voltava-se às questões filosóficas e divinas, as ciências naturais possuíam pouca razão para se desenvolverem, apenas para a resolução de problemas de ordem prática, como o tempo adequado de rezar, que estava vinculado ao movimento das estrelas; e a época propícia para a comemoração da Páscoa, determinada pela matemática do movimento lunar e terrestre.10-11

O conhecimento era reproduzido por meio dos “copiadores” e dos tradutores, pois os escritos gregos originais foram perdidos na Europa, restando poucas obras. Parte destes escritos foram para o mundo árabe (Império Bizantino que sobreviveu a queda do Império Romano) e redescoberto pelos europeus a partir das Cruzadas. Logo, era comum nessa época, as traduções ocorrerem dos comentários de seus tradutores.10

O período séc. I ao séc. VI (final do Império Romano e início da Idade Média), foi denominado de Filosofia Patrística (proveniente dos padres/sacerdotes). Caracterizou-se pelo movimento de expansão do cristianismo, no qual apóstolos e posteriormente padres, procuram conciliar fundamentos do pensamento filosófico grego com a fé, por meio de argumentos racionais, iniciando as argumentações sobre Fé e Razão.9

Nesta época, surgiram os Dogmas, os quais são verdades atribuídas a Deus, que não podiam ser questionadas. Os principais pensadores desta época são Boécio (480-524 d.C.) aristocrata romano, tradutor e comentador de obras gregas, que também escreveu obras reveladoras da íntima relação entre filosofia e teologia. Santo Agostinho (354-430 d.C.), relacionava seus estudos com a obra de Platão, no qual o Mundo Sensível e o Mundo das Ideias cederam lugar ao Mundo Divino. Assim, desenvolveu-se a sua Teoria da Iluminação na qual Deus dá o conhecimento das Verdades Eternas e ilumina a Razão, assim, somente por meio de Deus seria possível conhecer a Verdade, pela vinculação com o Divino.9-10,12

A partir do século IX até o XV, a Igreja consolidou seu poder político, econômico e cultural por meio dos princípios morais e na crença irrestrita de verdades reveladas por Deus. Este período denomina-se escolástica, que significa ser proveniente, pertencer a uma escola. Além disso, o surgimento das universidades deu maior poder a este sistema sociopolítico.9-10,13 Com isso, forneceu-lhe não só o veículo difusor, mas também as ideias a serem difundidas e que cimentariam a universalidade da sociedade cristã, consolidando o tripé de autoridade entre os papas, reis ou imperadores e a universidade. Em outras palavras a ciência, o chamado studium.13

O principal pensador deste período foi Santo Tomás de Aquino (1.225-1.274 d. C), que era professor da Universidade de Paris e fundamentou seus escritos no pensamento grego de Aristóteles para sistematizar a doutrina cristã. Ainda, as investigações científicas e filosóficas não poderiam contrariar a fé, considerando o conhecimento como uma revelação divina, ou seja, tanto a razão humana como o ensinamento religioso provêm de Deus, por isso não podiam se contradizer.12

Paralelamente a isso, suas obras foram relevantes para a Igreja, sendo vários de seus escritos, vinculados aos seus fundamentos. De suas obras, a Suma Teológica, possui papel principal, pois fundamenta a existência de Deus como a explicação do todo. Para o movimento do mundo, para as causas de todas as causas sucessivamente, para a existência perene de algo, para o parâmetro de perfeição, bem como, afirmava que a natureza possui um propósito, pelo qual se conhece a Deus, pois ela é a sua criação.10

Já, na Idade Média tardia, a partir do descobrimento de antigos escritos gregos que estavam com os árabes, houve a expansão do conhecimento sobre a filosofia natural, que foram essenciais para a formação de diversos pensadores da época e das subsequentes. A partir do século XV houve investimento em novos estudos científicos e pensadores, contribuindo dessa maneira para o avanço do conhecimento ao longo da história, principalmente para os estudos das ciências naturais e da medicina.10-11

 

Concepções históricas e de assistência à saúde em tempos de pandemia

A relação entre filosofia e teologia também influenciava como a sociedade compreendia os estados de saúde/doença no medievo, uma vez que o corpo representava um elemento de caráter moral dentro da lógica de salvação cristã. Para o olhar da época, a corporeidade humana era fruto do pecado original e as doenças que afligiam sua carne denunciava os desvios de conduta cometidos pelo enfermo.14 Assim, cabia as ordens religiosas a responsabilidade de cuidar dos doentes e ajudá-los a se redimirem, com o objetivo do milagre da cura. Se morresse, estava carregando consigo o fardo dos seus pecados, em um ato de caridade que garantiria a salvação de sua alma e entrada no reino dos céus.14-15  

A maneira como a população compreendia os estados de saúde se baseava em um modelo relacional de pensar, no qual a doença indicava uma ruptura entre o indivíduo e a sociedade a qual pertencia, ou seja, resultava do descumprimento dos valores e das leis divinas vigentes. Consequentemente, as doenças em grande escala representavam desvios de caráter em massa, que implicavam em punições coletivas.16

 Embora os milagres e visões proféticas fizessem parte da cultura mítica europeia, tudo que era realizado fora do domínio da igreja, independentemente de ser uma prática de cura, era considerado satanismo. Deste modo, a adoção de qualquer conduta que não fosse a determinada pela Igreja ou religião, era considerada uma desonra aos ensinamentos de Cristo despertando a ira dos céus. Aqueles que assim o faziam eram considerados maleficus, servidores do diabo, pessoas que ameaçavam a sociedade e traziam o mal para dentro dos lares da população.16-18

A partir das especulações sobre as forças corruptíveis da sociedade a caça às bruxas e os inquéritos da santa inquisição foram iniciados, bem como as leis e métodos "científicos" para determinar a punição daqueles que cometiam tais crimes.17 Para alguns autores, a Inquisição foi um dos primeiros exemplos históricos a caracterizar práticas 'profissionais' de cura e a promover intervenções contra os 'não profissionais' que desejavam se ocupar do cuidado dos menos favorecidos.4,18

Entretanto, quando a peste negra se alastrou pelo continente europeu matando milhares de pessoas, muitos cidadãos buscaram proteção nas receitas caseiras e nas misturas de ervas para evitar serem contaminados pelo “miasma” da doença. Essas combinações, mais tarde, foram incorporadas nas vestes dos médicos da peste, que trajavam roupas de couro embebidas em banha de porco; máscaras pontudas com essências de flores e olhos de vidro, os primeiros “equipamentos” de segurança criados para a assistência à saúde.14,19-20

Outra medida importante envolvendo a biossegurança adotada no final do século XIV foram as punições para quem despejasse dejetos, como urina e fezes nas ruas, já que os mesmos, frequentemente eram jogados pela janela, contaminando todo o ambiente. Após a implementação das novas normativas, houve uma relativa melhora das condições higiênicas das cidades europeias, diminuindo a proliferação de ratos e outros animais que contribuíram para o surgimento de inúmeras doenças.8

Hoje sabe-se que a peste negra é transmitida de um hospedeiro para outro por meio de picadas de pulgas infectadas e que suas manifestações resultam no aumento dos nódulos linfáticos, chamados bubões, os quais causam muita dor aos indivíduos. No estado mais avançado da enfermidade, sua transmissão ocorre por meio de gotículas de saliva causando então a chamada peste pneumônica.20 Porém, devido à falta de informação e recursos medicamentosos na época, a única medida de combate que mostrou eficácia contra a doença foram as quarentenas e o isolamento social.19,21

É interessante identificar que com a evolução e tecnologia, são os recursos medievais que perduram. Mais curioso é notar que seus rastros não estão apenas nas medidas de combate à Covid-19 e nas roupas de proteção da equipe de saúde, mas também nas atitudes da população como um todo. Observa-se muitas vezes a busca por proteção em forças religiosas; justificativas extrafísicas para a presença da doença; receitas caseiras e confecção de roupas artesanais para repeli-la. Nota-se atos extremos de negação a fatos consolidados; julgamentos coletivos e até punições violentas contra semelhantes, seja por um ato de xenofobia ou por um espirro dado na hora e/ou no lugar errado. Vemos o repúdio cego perante o questionamento à ordem estabelecida, ao ponto do “melhor” para todos ser motivo para inquisições e mortes. Portanto, será que a idade das trevas está tão distante?  

É fato que o estado de saúde mental da população tem sofrido agravo após a pandemia de Covid-19. Problemas como ansiedade, depressão, distúrbios do sono, ou o exacerbamento de outras doenças crônicas preexistentes afetaram significativamente a qualidade de vida da população.22 Além disso, há aqueles em situação de maior vulnerabilidade social, que tendem a ser mais suscetíveis a esses agravamentos.23 Nesse quesito, vale ressaltar os profissionais da saúde como um dos grupos mais afetados durante a pandemia, devido à sobrecarga de trabalho, as incertezas frente a nova doença, a gravidade dos casos, morte de colegas, medo do próprio adoecimento e da possibilidade de contaminação de seus familiares.24

Considerando a evolução do conhecimento, do século XV ao XIX, o desenvolvimento dos estudos científicos demonstra claramente a ocorrência da pandemia devido a um vírus, com grande capacidade de replicação e infectividade. Conhecemos acerca de sua causa, não mais atribuiu-se à miasmas, mas, permaneceram incertezas por tratar-se de um microrganismo novo. Desse modo, encontrou-se dificuldades para o estabelecimento das medidas preventivas e de contenção da epidemia, baseados em prioridades econômicas, negacionismo científico, falta de coordenação política e falta de valorização de todas as vidas humanas.13,16,19,21

A organização das instituições de saúde se aprimorou ao longo dos séculos, mas exige articulação política e social para que possam desenvolver adequadamente suas atribuições e proporcionar condições de trabalho dignas e seguras para os profissionais. Observa-se falas sobre castigo divino, sacrifício e doação dos profissionais de saúde na linha de frente dentro do atual contexto. Cumpre-se destacar a relevância e sobrecarga do setor saúde, como peça-chave na preservação da vida em cenários como o da pandemia da Covid-19.25

É notória a necessidade de fortalecer a vigilância, melhorar a preparação e resposta frente a emergências de saúde pública nos países, bem como o compromisso de fornecer informações com qualidade e transparência que colaborem com as investigações dos surtos epidêmicos.25 Do mesmo modo, evidencia-se a importância de conhecer sobre as concepções históricas e da assistência à saúde em tempos de pandemias para melhorar a resposta para novas ocorrências.

Mesmo com o avanço tecnológico disponível, ainda estamos à mercê de situações graves e desconhecidas, no que se refere às melhores práticas vinculadas ao enfrentamento de agravos à saúde. A comunidade científica e as autoridades não foram capazes de articular ações para evitar o acontecimento e minimizar a dimensão desta pandemia, que além das mortes, tem sequelas na saúde física e mental, no campo social e econômico, sem que possamos mensurar a sua completa extensão.

Neste cenário, tem-se como desafio a reorganização do viver em sociedade, individual e coletivamente. Lições do passado são relevantes para o presente e futuro. Mesmo que séculos tenham se passado, certas conquistas, ações e consequências se reafirmam no presente. A história nos aponta mudanças significativas após eventos impactantes.

Quanto as contribuições desta reflexão para a área, enfatiza-se a importância de pesquisas para aprofundar a discussão sobre os impactos e semelhanças entre o contexto atual e a realidade da Idade Média, para auxiliar o desenvolvimento de estratégias em saúde, no contexto individual ou coletivo. Ainda, considerando a temporalidade da produção do conhecimento científico em saúde e enfermagem, o presente estudo pode contribuir para o registro histórico acerca da pandemia de Covid-19.

 

Conclusão

Este estudo permitiu refletir acerca das heranças da idade média no atual contexto da pandemia da Covid-19. O destaque refere-se ao surgimento e aprimoramento dos equipamentos de proteção individual, das medidas de isolamento social e de higiene, no relevante papel das universidades na construção do conhecimento, do questionamento sobre o conhecimento científico, mas também do negacionismo e de discursos relacionados ao castigo divino, em como as epidemias afetam diretamente os mais vulneráveis social e economicamente, gerando a perda de milhões de vidas.

Espera-se que as lições aprendidas com a experiência atual possam contribuir para o avanço do conhecimento, bem como, para o aperfeiçoamento de ações e práticas no enfrentamento de futuras pandemias. Vislumbra-se, que na ocorrência de uma nova doença dessa magnitude, as evidências científicas e as condutas passadas possam balizar as descobertas da ciência para a prevenção e com atitudes mais assertivas em relação a gestão de crises epidêmicas.

 

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Fomento: O presente trabalho contou com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

 

Contribuições de Autoria

1 – Adaiana Fátima Almeida

Autor Correspondente

Enfermeira, Doutoranda em Enfermagem - E-mail: adaiana.f.almeida@gmail.com

Concepção e/ou desenvolvimento da pesquisa e/ou redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

2 – Isadora Ferrante Boscoli de Oliveira Alves

Naturóloga, Doutoranda em Enfermagem - E-mail: isa.fboa@gmail.com

Concepção e/ou desenvolvimento da pesquisa e/ou redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

3 – Graziele Gorete Portella da Fonseca

Enfermeira, Doutoranda em Enfermagem - E-mail: grazieleportelladafonseca@gmail.com

Concepção e/ou desenvolvimento da pesquisa e/ou redação do manuscrito; revisão e aprovação da versão final.

 

4 – Rosilei Teresinha Weiss Baade

Enfermeira, Doutoranda em Enfermagem - E-mail: rosileiweiss@uol.com.br

Concepção e/ou desenvolvimento da pesquisa e/ou redação do manuscrito, revisão e aprovação da versão final.

 

5 – Evangelia Kotzias Atherino dos Santos

Enfermeira, Professora Doutora em Enfermagem - E-mail: evanguelia.ufsc@gmail.com

Revisão e aprovação da versão final.

 

6 – Soraia Dornelles Schoeller

Enfermeira, Professora Doutora em Enfermagem - E-mail: soraia.dornelles@ufsc.br

Revisão e aprovação da versão final.

 

Editora Científica Chefe: Cristiane Cardoso de Paula

Editora Associada: Rosângela Marion da Silva

 

Como citar este artigo

Almeida AF, Alves IFBO, Fonseca GGP, Baade RTW, Santos EKA, Schoeller SD. Reflections on the legacies of the Middle Ages in coping with the COVID-19 pandemic. Rev. Enferm. UFSM. 2022 [Accessed on: Year Month Day]; vol.12 e33: 1-13. DOI: https://doi.org/10.5902/2179769267675