Rev. Enferm. UFSM - REUFSM

Santa Maria, RS, v. 11, e65, p. 1-16, 2021

DOI: 10.5902/2179769264899

ISSN 2179-7692

 

Submissão: 22/03/2021    Aprovação: 11/06/2021    Publicação: 26/08/2021

Relato de Experiência

 

Produção de aventais descartáveis em complexo prisional: ação de enfermagem no enfrentamento à COVID-19

Production of disposable gowns in a prison complex: nursing action in confronting COVID-19

Producción de batas desechables en complejo carcelario: acción de enfermería en el enfrentamiento a la COVID-19

 

 

George Oliveira SilvaI

Larissa Viana UesII

Carlos Gustavo Martins HoelzelIII

Heliny Carneiro Cunha NevesIV

Katiane Martins MendonçaV

Luana Cássia Miranda RibeiroVI

 

I Enfermeiro, Mestre em Enfermagem, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás, Brasil. E-mail: georgeoliveira.z9@gmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0001-9863-3161

II Enfermeira, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás, Brasil. E-mail:  larissaues1@gmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0003-2418-1355

III Desenhista Industrial, Doutorado em Engenharia de Produção, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás, Brasil. E-mail: carlos.gustavo.ufg@gmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0003-3136-7270

IV Enfermeira, Doutora em Enfermagem, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás, Brasil. E-mail: nynne_cunha@yahoo.com.br, Orcid: http://orcid.org/0000-0001-8240-1059

V Enfermeira, Doutora em Enfermagem, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás, Brasil. E-mail:  katiane.martins@ufg.br, Orcid: http://orcid.org/0000-0003-2266-6383

VI Enfermeira, Doutora em Enfermagem, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás, Brasil. E-mail:  luaufg@yahoo.com.br, Orcid:  http://orcid.org/0000-0002-4254-2030

 

Resumo: Objetivo: compartilhar a experiência relacionada à produção de aventais descartáveis conduzida pela enfermagem em complexo prisional no contexto da pandemia da COVID-19. Método: relato de experiência das ações de extensão de projeto de produção de equipamentos de proteção individual realizadas em complexo prisional da região Centro-Oeste do Brasil, no período de março a junho de 2020. Resultados: foram produzidos 6.000 aventais, adotando as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas. No processo, houve aprendizado das medidas de higiene e limpeza para prevenção da COVID-19, com destaque para a higienização das mãos, readequação de fluxo e do ambiente de produção. Conclusão: a experiência pautou-se no compromisso social da universidade pública e foi oportunidade ímpar de desenvolvimento de conhecimentos e habilidades, bem como de reeducação e ressocialização dessa população. Além disso, reforçou o papel da enfermagem no enfrentamento de agravos de saúde pública.

Descritores: Equipamento de Proteção Individual; Infecções por Coronavírus; Pandemias; Relações Comunidade-Instituição; Pessoas Privadas de Liberdade

 

Abstract: Objective: to share the experience related to the production of disposable gowns conducted by nursing staff in a prison complex in the context of the COVID-19 pandemic. Method: experience report of project extension actions for the production of personal protective equipment carried out in a prison complex in the Center-West region of Brazil, from March to June, 2020. Results: a total of 6,000 gowns were produced, adopting the standards of the Brazilian Association of Technical Standards. In the process, there was learning about hygiene and cleaning measures to prevent COVID-19, with emphasis on hand hygiene, readjustment of flow and of the production environment. Conclusion: the experience was based on the social commitment of the public university and was a unique opportunity to develop knowledge and skills, as well as of re-education and re-socialization of this population. In addition, it strengthened the nursing role in dealing with public health problems.

Descriptors: Personal Protective Equipment; Coronavirus Infections; Pandemics; Community-Institutional Relations; Prisoners

 

Resumen: Objetivo: compartir la experiencia de producción de batas desechables, manejada por la enfermería en complejo carcelario en el contexto de la pandemia de COVID-19. Método: relato de experiencia de las acciones de extensión de proyecto de producción de equipos de protección individual realizadas en complejo carcelario de la región Centro-Oeste de Brasil, en el período de marzo a junio de 2020. Resultados: fueron producidas 6.000 batas, adoptando las normas de la Asociación Brasileña de Normas Técnicas. Durante el proceso, hubo aprendizaje de las medidas de higiene y limpieza para prevención de la COVID-19, con destaque para la higienización de las manos, readecuación del flujo y del ambiente de producción. Conclusión: la experiencia se basó en el compromiso social de la universidad pública y fue una gran oportunidad de desarrollo de conocimientos y habilidades, además, fomentó la reeducación y resocialización de esa población. Por fin, reforzó el rol de la enfermería en el enfrentamiento de situaciones graves de salud pública.

Descriptores: Equipo de Protección Personal; Infecciones por Coronavirus; Pandemias; Relaciones Comunidad-Institución; Personas Privadas de Libertad

 

 

Introdução

O relato de uma série de casos de pneumonia de origem desconhecida em dezembro de 2019 na cidade de Wuhan, China, despertou atenção mundial. Em janeiro do ano seguinte o mapeamento genético do genoma viral do então intitulado SARS-CoV-2 revelou ao mundo um marco epidemiológico com o aumento de infecções por esse vírus e a consequente pandemia de Coronavirus Disease 2019 (COVID-19), deflagrada em março de 2020.1-2 Trata-se de uma síndrome respiratória transmitida por via direta – propagação pelo indivíduo contaminado de gotículas advindas de tosse ou espirro – ou indireta, contato com superfícies e objetos contaminados.2

Os sistemas de saúde do mundo todo, especialmente dos países em desenvolvimento, têm sido desafiados com o aumento exponencial do número de casos, potencializados por fatores sociais, econômicos e políticos, revelando-se uma das mais graves pandemias enfrentadas pela humanidade.3 A demanda de vagas em instituições hospitalares tem aumentado significativamente, o que implica em ocupação dos leitos gerais e de Unidades de Terapia Intensiva (UTI), uso de equipamentos tecnológicos e a atuação de profissionais de saúde.4

Diante da inexistência de tratamento medicamentoso eficaz, as formas mais efetivas de combate à COVID-19 consistem na vacina e na ruptura de sua cadeia de transmissão. Portanto, as medidas de prevenção embasadas em evidências científicas e orientadas à população no combate à doença têm sido, além da vacina, o distanciamento social, higiene de mãos, etiqueta respiratória e uso de Equipamento de Proteção Individual (EPI), principalmente o uso de máscaras.2

No contexto da atenção à saúde, os EPIs constituem barreiras de proteção que evitam a exposição da pele, vias aéreas, membranas mucosas e vestuário a agentes infecciosos.5 Portanto, são primordiais na prevenção da transmissão do SARS-CoV-2 e outros microrganismos, pois ao serem utilizados de forma combinada e associados às demais precauções-padrão conferem proteção ao profissional de saúde na assistência.5-6

Dada a alta demanda de atendimentos nos serviços de saúde e consequente aumento do uso de EPI, evidenciou-se a dificuldade da indústria em fornecer esses recursos em tempo hábil, com qualidade e eficiência necessárias,5,7 instituindo assim um alerta sobre a escassez mundial desses equipamentos de proteção. Adicionalmente, é evidente que tal agravo pode influenciar diretamente os profissionais de saúde, colocando-os em risco de infecção pelo SARS-CoV-2, dentre outros patógenos, além de impactar na segurança do paciente.8

Dessa forma, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem orientado o gerenciamento adequado do uso de EPI, por meio de ações como uso racional para cada procedimento e profissão, bem como monitoramento de seu quantitativo e controle de distribuição.5 Esse cenário é especialmente vivenciado em países em desenvolvimento, os quais ainda enfrentam desafios econômicos e sociais, dificultando a execução de medidas de prevenção e combate à COVID-19, somado à falta de infraestrutura dos serviços de saúde para o atendimento da população.3

No que diz respeito aos profissionais de saúde, o déficit global no fornecimento de EPI está diretamente associado à segurança ocupacional,3,9 sendo observadas altas taxas de infecção que variam de 3% a 29%.10 Assim, faz-se necessário preservar a segurança desses profissionais diante da alta carga de exposição e transmissibilidade do vírus.6-7

Em decorrência da nova demanda, o Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) promulgaram, de forma extraordinária e temporária, a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) nº 356 de 23 de março de 2020 que trata sobre as condições de fabricação e aquisição de produtos hospitalares para o uso das instituições de saúde durante o período da pandemia, permitindo a confecção de EPI, tais quais: máscaras cirúrgicas; óculos de proteção; protetores faciais; vestimentas hospitalares descartáveis; gorros e propés.11

A partir desse marco, diversas instituições públicas, privadas e organizações não lucrativas têm produzido EPI, com vistas a suprir as demandas dos serviços de saúde e evitar a escassez.12 Assim, este estudo teve como objetivo compartilhar a experiência relacionada à produção de aventais descartáveis conduzida pela enfermagem em complexo prisional no contexto da pandemia da COVID-19.

 

Método

Relato de experiência das ações de extensão do Projeto EPI-UFG realizadas em um complexo prisional da região de Goiânia, no período de março a junho de 2020, pela Universidade Federal de Goiás (UFG) em parceria com a Diretoria Geral de Administração Carcerária (DGAP) do Estado de Goiás. A partir de uma robusta estrutura com parcerias internas e externas à comunidade universitária para o combate à COVID-19, a UFG deu início ao projeto sob liderança da Reitoria da UFG e das unidades acadêmicas da Faculdade de Enfermagem e Faculdade de Artes Visuais.

O projeto consistiu na estruturação de um centro de produção e distribuição de máscaras e aventais descartáveis de tecido não tecido (TNT) para atender às demandas dos serviços de saúde do Estado de Goiás e de populações vulneráveis no período da pandemia. Além disso, dispôs de etapa de capacitação de voluntários (estudantes, professores, indivíduos da comunidade e reeducandos) em relação às medidas de higiene e segurança para a produção dos EPIs, em atendimento às condutas básicas preconizadas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) quanto à produção e especificações.13 Esse relato restringiu-se ao objetivo de produção de aventais descartáveis de uso hospitalar do Projeto EPI-UFG, o qual seguiu as especificações técnicas descritas no Quadro 1.

Quadro 1 – Especificações técnicas dos aventais de procedimentos. Goiânia, GO, Brasil, 2020.

Descrição do produto

Insumos

Item

Produto

Avental de procedimentos hospitalares em TNT* 50 g/m2 e 60 g/m2 (100% polipropileno), de corte reto, painel inteiriço ½ costas/frente/½ costas, com mangas longas, cinto e gola padre amarrada atrás. O avental é liso (fechado) na frente e transpassado 5,0 cm nas costas com amarração na altura da cintura e na gola. O punho é ajustado com elástico.

Tecido

TNT 40 g/m², cor branca, 2 m

Linhas

Fio de overlock POLLY PT05C 70 g para ponto corrente Classe 504, cor branca, 7,9 m

Linha para ponto corrente Classe 504 e ponto Classe 301, cor branca, 16,45 m

Aviamentos

15 cm de elástico de 5 mm para tamanho G, cor branca, para os punhos

13 cm de elástico de 5 mm para tamanho M, cor branca, para os punhos

Carimbo etiqueta de composição e de tamanho

Carimbo de etiqueta da marca UFG

*Tecido não tecido.

Fonte: Manual do projeto EPI-UFG [Ebook] (UFG, 2020).

 

Participaram dessa etapa do projeto: docentes do curso de Graduação em Enfermagem da UFG que elaboraram e implementaram o protocolo de biossegurança, além de terem garantido a adequação dos EPI às normas da ABNT (assessoria) e usabilidade (relação do EPI produzido com a atividade a ser executada); docentes dos cursos de Graduação em Design, Moda e Engenharia Têxtil da UFG que participaram das etapas de análise da matéria-prima, modelagem e organização do processo de produção; dois enfermeiros estudantes da pós-graduação stricto sensu que implementaram o protocolo de biossegurança e supervisionaram a produção in loco; além da equipe operacional, composta por 15 reeducandos do sexo masculino e do regime fechado, atuantes na indústria do complexo prisional, fornecidos pela DGAP, que participaram ativamente na confecção dos aventais. Não foram estabelecidos critérios de inclusão para participação nas ações do projeto.

A execução do projeto ocorreu de acordo com as seguintes etapas: 1. Estabelecimento da parceria com a DGAP para a produção de aventais; 2. Adaptação do protocolo de boas práticas e segurança à estrutura do local de produção no complexo; 3. Capacitação da equipe operacional acerca das medidas de segurança, protocolo e orientações quanto ao modelo e processo de costura; 4. Organização e limpeza do ambiente de trabalho realizada pelos reeducandos e supervisionada pela equipe do projeto; 5. Processo de produção; 6. Processo de dobradura e empacotamento; e 7. Processo de transporte e guarda dos aventais em área exclusiva.

Compreendendo o risco de contaminação pelo SARS-CoV-2 e a vulnerabilidade dos reeducandos no contexto prisional, foram adotadas as medidas de prevenção à COVID-19 preconizadas nacional e internacionalmente. Em todas as etapas houve supervisão de membros da equipe do projeto (professores e enfermeiros), tendo sido seguidos os protocolos definidos para a produção dos aventais.13

Os resultados do presente estudo estão vinculados às atividades das ações de extensão do Projeto EPI-UFG (PJ105-2020). Devido a se tratar de um relato de experiência, não houve necessidade de aprovação por Comitê de Ética em Pesquisa; no entanto, as instituições envolvidas e os estudantes foram resguardados em sua individualidade.

 

Resultados da experiência

A experiência no complexo prisional resultou na produção de 6.000 aventais, auxiliando no fornecimento de EPI para combate à COVID-19. Para tal, foi realizada inicialmente a análise da matéria-prima para a produção dos aventais e o modelo seguiu as normas da ABNT.14

Tais ações corroboram com estratégias internacionais adotadas diante da escassez de EPI vivenciada durante a pandemia.9,15 Assim, surgem novas alternativas à fabricação e distribuição de tais insumos para suprir as necessidades dos serviços de saúde com bom custo-benefício que podem ser implementadas especialmente em países em desenvolvimento.9,15-17

Nesse contexto, a Universidade tem promovido impactos positivos à sociedade por meio de divulgação científica, ações extensionistas diversas, desenvolvimento de tecnologias, intervenção direta na sociedade, difusão de informações, produção de estudos de alcance internacional e participação na rede de suprimentos,12,18 além de ações promovidas pela experiência relatada de importância para a manutenção da estrutura do sistema de saúde.

Capacitação da equipe operacional, organização, gestão do processo e ambiente de trabalho

A rápida mobilização para a implementação da proposta dada a alta demanda de EPI trouxe desafios inerentes ao ambiente prisional. Dentre os desafios vivenciados destacaram-se a infraestrutura da sala de confecção e a dificuldade em despertar nos reeducandos o conhecimento acerca da necessidade das medidas de prevenção, já esperados para uma realidade de produção diferente da habitual.7,9,15

Nesse sentido, uma das importantes demandas para implementação do projeto foi adaptar a sala de confecção disponibilizada às normas do protocolo de boas práticas para a produção de EPI. Considerando a necessidade de manter o processo limpo, a adoção de práticas padronizadas é fundamental para que o produto possua as especificações técnicas adequadas e atue como barreira de proteção.5,14

Ainda, dada a promulgação da RDC nº 356 de 2020, a fabricação de EPI em ambientes extraordinários implicou na necessidade de se manterem os padrões de adequação dos produtos, fato que fomentou a reestruturação do ambiente de produção no local fornecido. Apesar de desafiadora, essa ação garantiu a manutenção da produção, bem como forneceu segurança à equipe operacional em termos de distanciamento social.2,14

Dentro da estrutura industrial de confecção do complexo prisional foi fornecida para produção dos aventais uma sala de confecção com aproximadamente 20 máquinas de costura industriais. A sala foi remodelada para promover o distanciamento físico entre os reeducandos; assim, a produção funcionou com pouco mais da metade da capacidade máxima, tendo em vista a redução do risco de infecção. Além disso, a reestruturação permitiu a criação dos ambientes de preparo, dobradura, embalagem e armazenamento, além da instalação de uma barreira física na entrada da sala de produção e disposição de banners com orientações sobre a técnica de higienização das mãos e limpeza do ambiente (Figura 1).

Figura 1 – Estrutura física do polo de produção de aventais do Complexo Prisional antes e após o remodelamento.

A: Área de confecção; B: Área de preparo, dobradura e selagem; C: Área de armazenamento e distribuição; D: Entrada/Barreira física; 1: Máquinas de costura; 2: Bancadas para separação dos cortes (verde), preparo, dobradura e selagem (rosa); 3: Armário para armazenamento.

 

O processamento de produtos para a saúde implica na adoção de medidas para a manutenção do processo limpo, garantindo, por meio de infraestrutura adequada e etapas bem definidas, a redução do risco de infecção ao paciente. Ainda, falhas nesse processo resultam em comprometimento do material final.9,11,15

Considerando esses pressupostos, a impossibilidade de ter uma barreira física entre a área de preparo, dobradura e selagem e a área de armazenamento e distribuição implicou na necessidade de reduzir a circulação na sala e implementar um fluxo unidirecional de produção. Dessa forma, foi possível adequar a produção às limitações de infraestrutura, mas respeitando as normativas vigentes, dada a necessidade desses insumos para o combate à pandemia.9,11,13

Para além dos desafios impostos pelos recursos estruturais, a necessidade de trabalhar com paramentação adequada e adoção de medidas de higienização das mãos constantemente resultou em uma mudança na rotina de trabalho dos reeducandos. A partir da capacitação e do acompanhamento diário pelos pós-graduandos, houve adesão às medidas por parte da equipe a essas na rotina de trabalho.

Naturalmente, a medida de higienização das mãos era mais utilizada por profissionais e estudantes da área da saúde anteriormente à pandemia;19 entretanto, a alta transmissibilidade do SARS-CoV-2 suscitou a adoção dessa medida pela população, caracterizando uma das principais medidas de prevenção a fim de quebrar a cadeia de transmissão.20 Assim, tendo em vista a finalidade da produção, a adoção de boas práticas foi fundamental para a garantia do processo limpo e da segurança da equipe.

Com foco em capacitar os reeducandos para a execução da produção, respeitando as recomendações de condições adequadas de higiene e segurança no ambiente de trabalho,6 foi realizada atividade de educação em saúde. Esta envolveu o ensino da técnica correta de higienização das mãos, em que momentos elas deveriam ser realizadas durante as etapas de produção, distanciamento físico, a etiqueta respiratória a ser seguida durante a produção, paramentação e desparamentação adequadas, limpeza e desinfecção de superfícies na área de produção, manuseio correto do TNT e demais condutas a serem realizadas no preparo, dobradura, embalagem e armazenamento da produção. Tais ações foram desenvolvidas com foco em manter o processo limpo e evitar contaminação do material.21

Destaca-se nesse processo o papel formativo e social da ação em oportunizar aos reeducandos a possibilidade de conhecer as medidas de controle de infecção necessárias para a quebra da cadeia de transmissão do vírus, considerando a vulnerabilidade já imposta a essa população no ambiente prisional.2,22 Assim, com a finalidade de evitar a contaminação da matéria-prima e dos aventais durante a produção, foram adotadas medidas como limpeza diária da sala e forragem do piso com plástico antes do início da produção. Para evitar contato dos aventais com o chão durante o processo de costura, eles foram acondicionados em caixas de plástico rígido dispostas ao lado de cada máquina de costura; diariamente as caixas eram submetidas à limpeza e desinfecção com álcool 70%.

 

A rotina de trabalho dos reeducandos ocorreu de forma sistematizada de acordo com o apresentado na Figura 2.

Figura 2 – Sistematização da rotina de trabalho dos reeducandos na produção de EPI. Goiânia, GO, Brasil, 2020.

 

Ao final do processo o avental era dobrado, acondicionado em embalagens plásticas resistentes e transportado de forma segura em containers para uma área exclusiva de guarda e distribuição na Faculdade de Enfermagem. Devido ao pequeno espaço para armazenamento da produção, o transporte para o centro de distribuição era realizado a cada dois dias. Seguindo essa rotina de trabalho a produção média foi de 200 aventais/dia. No centro de distribuição eram realizadas as etapas de conferência do produto, empacotamento, rotulagem, armazenamento e distribuição para os hospitais públicos do Estado de Goiás, de acordo com as necessidades de cada instituição, além de fornecimento às populações vulneráveis.

O sentimento de pertencimento dos envolvidos associado à possibilidade de contribuir para salvar vidas no momento da pandemia da COVID-19 evidenciam o papel social do projeto, da universidade e da enfermagem ao promover a interlocução entre diferentes setores da sociedade.12,22

Papel da enfermagem no desenvolvimento das ações de enfrentamento à COVID-19 no complexo prisional

Considerando os objetivos almejados pela campanha Nursing Now para a enfermagem mundial e o marco histórico do bicentenário de Florence Nightingale, marcando 2020 como o ano da profissão,23 a inserção de enfermeiros em ações de combate à pandemia tem refletido o protagonismo da categoria nas diferentes esferas da saúde e, para além disso, tem evidenciado os anseios de valorização profissional apontados em sua importância para o enfrentamento da pandemia.22,24

Assim, corroborando com outras iniciativas,12,18 a participação de docentes, discentes e voluntários foi fundamental para a execução do projeto. A experiência relatada contou com a participação de enfermeiros, estudantes da pós-graduação stricto sensu que colaboraram na supervisão da produção, desde a capacitação dos reeducandos até a entrega do material produzido.

O impacto social das ações realizadas de forma integrada entre os diversos atores do projeto refletiu no fortalecimento da enfermagem como profissão dada a visibilidade, o alcance e a integração da ação de extensão para com as esferas da sociedade. Considerando a meta global de ofertar saúde a todos até 2030 e o importante déficit de profissionais de enfermagem nas Américas,25 ações como esta promovem o reconhecimento e fortalecimento da enfermagem, contribuindo para o alcance das metas da campanha Nursing Now de desenvolvimento profissional e em todos os níveis de liderança, atuação integral e disseminação das práticas de enfermagem efetivas e inovadoras.23

Além disso, a adoção de medidas de higiene e a implementação de protocolos para a produção de EPI, bem como a adoção das medidas de biossegurança quanto à COVID-19 corroboraram com a discussão levantada pelo bicentenário de Florence Nightingale acerca de seu papel na implementação de protocolos para a redução do risco de infecção, tão atuais ainda no século XXI.23

Desafios no desenvolvimento da experiência

Na perspectiva da experiência, os desafios enfrentados na implementação das medidas de biossegurança foram limitadores importantes. Devido ao espaço utilizado para a produção ter como finalidade primária a confecção de roupas, sua adaptação para atender às medidas de biossegurança implicou em dificuldades na delimitação de espaços individuais para cada etapa do processo.

Assim, a equipe ficou limitada ao mínimo necessário, tendo em vista o processo de produção e a implementação das medidas de prevenção e controle da COVID-19. Cabe ressaltar que não havia pia para higiene de mãos no espaço de produção nem espaço adequado para armazenamento de matéria-prima e produtos finalizados, o que demandou uma logística para entrega de matéria-prima e dispensação no centro de distribuição.

Já na perspectiva do desenho do estudo, o caráter de relato de experiência limitou a apresentação da percepção dos reeducandos envolvidos no projeto, que pode ser fonte de investigações futuras. Entretanto, é reconhecido pelos autores o papel social das atividades desempenhadas, com destaque para os atores envolvidos, e a importância da enfermagem na condução da ação de extensão.

 

Conclusão

         A experiência de produção de aventais descartáveis em complexo prisional para combate à COVID-19 destacou a contribuição da enfermagem na liderança de ações de saúde com importante impacto para a sociedade. Diante da necessidade da comunidade de produção de EPI para profissionais de saúde, a ação foi de grande relevância para os docentes, discentes e profissionais voluntários envolvidos no projeto. Além de ser uma oportunidade ímpar no contexto da pós-graduação, no desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e atitudes, quanto a gestão, liderança, comunicação, educação em saúde e trabalho em equipe.

Apesar dos desafios, foi possível compreender o papel de ressocialização do trabalho dentro do contexto prisional, reforçando essa atividade como essencial para a manutenção do sistema. O trabalho dos reeducandos aponta para uma janela de oportunidades no que diz respeito à articulação entre a universidade e esferas do Governo, bem como à possibilidade do comprometimento social daqueles que estão sendo reinseridos na sociedade. Vislumbra-se nessa alternativa a possibilidade da melhora da empregabilidade e retomada dos papéis de cidadão e atores ativos na sociedade.

É desafiador enfrentar um cenário de pandemia que interfira direta e indiretamente nos aspectos sociais, econômicos, políticos, pessoais e de saúde de toda a população. Contudo, é papel da universidade pública devolver à sociedade a confiança que lhe é investida a partir da resolução de questões cotidianas de forma a promover a beneficência, evitando a maleficência, reforçando o papel das relações comunidade-instituição.

Contribui para o trabalho da enfermagem no âmbito social ao promover a saúde e oportunidade de profissionalização, assim como crescimento da população privada de liberdade, e também ao reconhecer a habilidade da gestão da pandemia, diante da escassez de EPI para promover segurança e qualidade de vida aos profissionais de saúde que estavam na linha de frente, além de contribuir para a redução dos gargalos produzidos pela escassez de tais insumos no contexto pandêmico, fortalecendo a visão da profissão como liderança no combate aos agravos de saúde pública.

 

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Editora Científica: Tânia Solange Bosi de Souza Magnago

Editora associada: Alexa Pupiara Flores Coelho 

 

Fomento / Agradecimento: Não possui.

 

Autor correspondente

Luana Cássia Miranda Ribeiro

E-mail: luaufg@yahoo.com.br

Endereço: FEN - Faculdade de Enfermagem/UFG Rua 227 Qd. 68 s/n - Setor Universitário. Goiânia - Goiás - Brasil.

CEP: 74605-080

 

Contribuições de Autoria

 

1 – George Oliveira Silva

Concepção ou desenho do estudo/pesquisa, análise e/ou interpretação dos dados, revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito.

 

2 – Larissa Viana Ues

Concepção ou desenho do estudo/pesquisa; (2) análise e/ou interpretação dos dados (3) revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito).

 

3 Carlos Gustavo Martins Hoelzel

Concepção ou desenho do estudo/pesquisa, análise e/ou interpretação dos dados, revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito.

 

4 Heliny Carneiro Cunha Neves

Concepção ou desenho do estudo/pesquisa, análise e/ou interpretação dos dados, revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito.

 

5 Katiane Martins Mendonça

Concepção ou desenho do estudo/pesquisa, análise e/ou interpretação dos dados, revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito.

 

6 Luana Cássia Miranda Ribeiro

Concepção ou desenho do estudo/pesquisa, análise e/ou interpretação dos dados, revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito.

 

 

Como citar este artigo

Silva GO, Ues LV, Hoelzel CGM, Neves HCC, Mendonça KM, Ribeiro LCM. Production of disposable gowns in a prison complex: nursing action in confronting COVID-19. Rev. Enferm. UFSM. 2021 [Access: Year Month Day]; vol.11 e65: 1-16. DOI: https://doi.org/10.5902/2179769264899