Rev. Enferm. UFSM - REUFSM

Santa Maria, RS, v. 11, e39, p. 1-15, 2021

DOI: 10.5902/2179769253157

ISSN 2179-7692

 

Submissão: 13/08/2020    Aprovação: 27/11/2020    Publicação: 06/05/2021

Artigo Original

 

Prevalência e fatores associados ao diagnóstico de morte encefálica

Prevalence and factors associated with the diagnosis of brain death

Prevalencia y factores asociados con el diagnóstico de muerte cerebral

 

 

Kércia Dantas Oliveira de MouraI

Flávia Emília Cavalcante Valença FernandesII

Gerlene Grudka LiraIII

Emily Oliveira Duarte FonsecaIV

Rosana Alves de MeloV

 

I Graduanda em Enfermagem, Universidade de Pernambuco Campus Petrolina, Petrolina, Pernambuco, Brasil. E-mail: kerciamoura12@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3256-2051.

II Enfermeira, Doutora em Inovação Terapêutica pela Universidade Federal de Pernambuco, Professora Adjunta da Universidade de Pernambuco Campus Petrolina, Petrolina, Pernambuco, Brasil. E-mail: flavia.fernandes@upe.br, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2840-8561.

III Enfermeira, Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Pernambuco, Professora Assistente da Universidade de Pernambuco Campus Petrolina, Petrolina, Pernambuco, Brasil. E-mail: gerlene.grudka@upe.br, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5175-7738.

IV Graduanda em Enfermagem, Universidade de Pernambuco Campus Petrolina, Petrolina, Pernambuco, Brasil. E-mail: emilyduarte2016@hotmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8249-8652

V Enfermeira, Doutora em Inovação Terapêutica pela Universidade Federal de Pernambuco, Professora Adjunta da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF). E-mail:  rosana.melo@univasf.edu.br, Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9217-921X

 

Resumo: Objetivo: avaliar a prevalência de morte encefálica e os fatores associados. Método: estudo transversal com dados dos registros de pacientes neurocríticos e potenciais doadores de órgãos entre 2018 e 2019, sendo analisados por meio de estatística descritiva e regressão logística multinomial multivariada. Resultados: a prevalência de morte encefálica nos pacientes acompanhados foi de 46,6%, predominando homens, adultos, com Traumatismo Cranioencefálico (44,3%) como causa da morte. Os fatores associados à morte encefálica foram: score da Escala de Coma de Glasgow (RRR=0,30; p=0,001), uso de droga vasoativa (RRR=7,55; p=0,000) e Acidente Vascular Cerebral Hemorrágico e Isquêmico (RRR=2,14; p=0,031). Conclusão: houve uma alta prevalência de morte encefálica. O uso de droga vasoativa, o score da Escala de Coma de Glasgow e os diagnósticos de Acidente Vascular Cerebral Hemorrágico e Isquêmico mostraram-se associados à evolução para o quadro.

Descritores: Morte Encefálica; Cuidados Críticos; Escala de Coma de Glasgow; Neurologia; Obtenção de Tecidos e Órgãos

 

Abstract: Objective: to evaluate the prevalence of brain death and its associated factors. Method: cross-sectional study with data from the records of neurocritical patients and potential organ donors between 2018 and 2019, being analyzed by descriptive statistics and multivariate multinomial logistic regression. Results: the prevalence of brain death in followed-up patients was 46.6%, predominantly men, adults, with traumatic brain injury (44.3%) as cause of death. Factors associated with brain death were: Glasgow Coma Scale score (RRR=0.30; p=0.001), vasoactive drug use (RRR=7.55; p=0.000) and Hemorrhagic and Ischemic stroke (RRR=2.14; p=0.031). Conclusion: there was a high prevalence of brain death. The use of vasoactive drugs, the Glasgow Coma Scale score and the diagnoses of Hemorrhagic and Ischemic stroke were associated with the evolution to the condition.

Descriptors: Brain Death; Critical Care; Glasgow Coma Scale; Neurology; Tissue and Organ Procurement

 

Resumen: Objetivo: evaluar la prevalencia de la muerte cerebral y sus factores asociados. Método: estudio transversal con datos de los registros de pacientes neurocríticos y potenciales donantes de órganos entre 2018 y 2019, siendo analizado por estadísticas descriptivas y regresión logística multivariada multinomial. Resultados: la prevalencia de la muerte cerebral en pacientes de seguimiento fue del 46,6%, predominantemente hombres, adultos, con lesión cerebral traumática (44,3%) como causa de muerte. Los factores asociados con la muerte cerebral fueron: la puntuación de la Escala de Coma de Glasgow (RRR-0,30; p-0,01), el consumo de drogas vasoactiva (RRR-7,55; p-0,000) y el accidente cerebrovascular hemorrágico e isquémico (RRR-2,14; p-0,031). Conclusión: hubo una alta prevalencia de muerte cerebral. El uso de drogas vasoactivas, la puntuación de la Escala de Coma de Glasgow y los diagnósticos de accidente cerebrovascular hemorrágico e isquémico se asociaron con la evolución a la afección.

Descriptores: Muerte Encefálica; Cuidados Críticos; Escala de Coma de Glasgow; Neurología; Obtención de Tejidos y Órganos

 

Introdução

A morte encefálica (ME) é caracterizada pela perda das funções cerebrais e do tronco encefálico de maneira irreversível. O diagnóstico é feito com o auxílio de dois exames clínicos, realizados por médicos diferentes e capacitados, além de um exame complementar, sendo caracterizado por coma aperceptivo, ausência dos reflexos de tronco encefálico e apneia.1-2 A condição neurológica pode ser avaliada por meio da Escala de Coma de Glasgow (ECG), a qual define o nível de consciência mediante a observação da resposta ocular, motora e verbal, sendo atualizada em 2018 com o acréscimo da avaliação pupilar para correlacionar gravidade de dano neurológico traumático. Baseia-se em um valor numérico, sendo um instrumento amplamente utilizado para avaliação de pacientes.3-4

O diagnóstico de ME é obrigatório e sua notificação é compulsória, sendo o órgão responsável por receber essas notificações a Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos, em cada Estado.5 A partir da notificação e da abertura do protocolo de ME, o paciente é considerado potencial doador de órgãos, sendo iniciado o processo de comunicação com a família acerca do diagnóstico de ME.6 Atualmente, a doação de órgãos deve ser realizada após consentimento de familiares de primeiro ou segundo graus ou pelo cônjuge do falecido.7

Diante dos avanços tecnológicos, nos dias de hoje, é possível fazer a manutenção do corpo do paciente em ME, proporcionando suporte hemodinâmico, como o ventilatório e o cardíaco, possibilitando a doação de órgãos.8 A equipe precisa conhecer esses cuidados, uma vez que uma assistência eficaz pode resultar em maiores resultados de transplantes.9 No Brasil, em 2019, foram notificados 11.400 potenciais doadores, sendo as causas neurológicas responsáveis por 85% dos óbitos, dentre estas, o Traumatismo Cranioencefálico (TCE) e o Acidente Vascular Cerebral (AVC) as duas principais.10

Estudos que abordem a ME permitem maior entendimento sobre o assunto.11-12 Nesse contexto, questiona-se, com essa pesquisa, qual a prevalência da ME em pacientes neurocríticos acompanhados por uma Organização de Procura de Órgãos (OPO) e os fatores que influenciaram esse desfecho? Nesse contexto, o presente estudo teve como objetivo avaliar a prevalência de morte encefálica e os fatores associados.

 

Método

Trata-se de um estudo transversal, a partir do acesso ao banco de dados da OPO do município de Petrolina, Pernambuco (PE). A OPO é uma instituição responsável pela procura, identificação, manutenção e captação de doadores para fins de transplantes.13

A população estudada envolveu pacientes neurocríticos e potenciais doadores de órgãos internados em hospitais públicos e privados acompanhados pela OPO. A coleta deu-se por uma das pesquisadoras do estudo, sendo esta estudante da área da saúde capacitada pelas orientadoras de forma a realizar a obtenção de informações homogêneas. Foi utilizado um instrumento de coleta, construído pelas autoras, para busca dos dados no banco de registros feitos em planilhas de atividades diárias da OPO, fornecidas pela instituição. O período de coleta deu-se entre setembro de 2019 e fevereiro de 2020. Foram incluídos no estudo todos os registros dos pacientes neurocríticos cuja ECG foi igual ou menor que sete e que estiveram internados nos anos de 2018 e 2019. Foram excluídos os registros dos pacientes que não apresentaram os resultados das avaliações da ECG e a informação do desfecho clínico.

As variáveis do estudo envolveram informações sociodemográficas e clínicas dos pacientes como: sexo, idade, ECG, uso de droga vasoativa (DVA), uso de sedação anterior à abertura do protocolo, droga sedativa, causa da internação, natureza do hospital de internação, tempo de acompanhamento, desfecho clínico, entrevista familiar, tempo de fechamento de protocolo, efetivação da doação e motivo da não efetivação.

Inicialmente, foi realizada a estatística descritiva por meio da distribuição de frequência e medidas de tendência central e dispersão como média e desvio padrão (DP) para os pacientes que tiveram o diagnóstico de ME. A análise dos fatores associados deu-se por meio do modelo de regressão logística multinomial. Para tanto, adotou-se como variável dependente a causa do óbito (ME e parada cardiorrespiratória - PCR) em comparação aos pacientes que evoluíram para melhora clínica do quadro, sendo essa a categoria de referência. O modelo multivariado foi gerado pelo método stepwise de seleção de variáveis, considerando o critério de inclusão o valor de p de 0,20, obtendo-se, assim, um modelo ajustado. Os efeitos das variáveis explicativas foram verificados pela razão de risco relativo (RRR). Adotou-se intervalo de confiança de 95% e significância de 5%.

Os dados foram organizados em um banco de dados no software Microsoft® Office Excel 2013 e posteriormente tratados pelo programa estatístico Stata 14.0. A pesquisa respeitou os preceitos éticos que envolvem pesquisa com seres humanos exigidos pela Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº 466/2012 e foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros da Universidade de Pernambuco, sob parecer nº 3.605.843 em 26 de agosto de 2019.

 

Resultados

Foram acompanhados 416 pacientes pela OPO nos anos de 2018 e 2019, desses, 194 (46,6%; IC95% 41,9-51,5) evoluíram para ME, 100 (24,0%; IC95% 20,2-28,4) para PCR e 122 (29,3%; IC95%25,1-33,9) tiveram melhora clínica. Com relação aos 194 pacientes em ME que compuseram o estudo, a maioria era do sexo masculino (63,9%), com idade média de 41,7 (DP: 17,3). Os principais diagnósticos de internação foram TCE (44,3%) e Acidente Vascular Cerebral Hemorrágico (AVCH) (41,8%).

A média de ECG desses pacientes foi 3 (DP 0,4) e a maioria estava internada em hospitais da rede pública (93,8%). Os pacientes foram acompanhados pela equipe da OPO durante uma média de 2,6 dias (DP 1,9) (Tabela 1).

 

Tabela 1 – Características sociodemográficas e clínicas dos pacientes em morte encefálica acompanhados pela OPO. Petrolina, 2018 – 2019.

Variáveis sociodemográficas

n

% ou média±DP*

IC95%

Idade

194

41,7 ± 17,3

39,2

44,1

Sexo

 

 

 

 

Feminino

70

36,1

29,6

43,1

Masculino

124

63,9

56,9

70,4

Causa da internação

 

 

 

 

Traumatismo Cranioencefálico

86

44,3

37,4

51,4

Acidente Vascular Cerebral Hemorrágico

81

41,8

35

48,9

Acidente Vascular Cerebral Isquêmico

6

3,1

1,4

6,8

Encefalopatia Hipóxica Isquêmica

9

4,6

2,4

8,7

Causas Clínicas

8

4,1

2,1

8,1

Malformações Neurológicas

1

0,5

0,1

3,6

Neoplasias

3

1,6

0,5

4,7

ECG‡

194

3 ± 0,4

3

3,1

Tempo de acompanhamento da OPO (em dias)

194

2,6 ± 1,9

2,3

2,8

Natureza do hospital

 

 

 

 

Privado

12

6,2

3,5

10,6

Público

182

93,8

89,4

96,5

         Nota: * desvio padrão; † intervalo de confiança de 95%; ‡ escala de coma de Glasgow.

 

Grande parte dos pacientes em morte encefálica (76,3%) fez uso de DVA, e 10,3% usaram sedação anterior à abertura do protocolo de ME, sendo as mais utilizadas o Fentanil® associado ao Midazolam® (85,7%). O tempo médio de fechamento de protocolo foi de 7,8 horas (DP 7,9).

Com relação à doação de órgãos, a maior parte das famílias (57,2%) autorizou realizá-la após a entrevista e, dessas, 53,1% foram doações efetivadas. Dentre os principais motivos de sua não efetivação, destacaram-se a contraindicação médica (50,6%) e a recusa familiar (41,8%) (Tabela 2).

 

Tabela 2 – Caracterização dos pacientes em morte encefálica acompanhados pela OPO. Petrolina, 2018 – 2019.

Variáveis de caracterização

n

% ou média±DP†

IC95%‡

DVA*

 

 

 

 

Não

46

23,7

18,2

30,3

Sim

148

76,3

69,7

81,8

Sedação anterior à abertura do protocolo

 

 

 

 

Não

174

89,7

84,5

93,3

Sim

20

10,3

6,7

15,5

Droga sedativa

 

 

 

 

Fentanil® + Midazolam®

18

85,7

61,3

95,8

Outros

3

14,3

4,2

38,7

Entrevista familiar

 

 

 

 

Recusa

38

19,6

14,5

25,8

Aceite

111

57,2

50,1

64,5

Notificação

45

23,2

17,7

29,7

Tempo de fechamento do protocolo (em horas)

194

7,8 ± 7,9

6,7

8,9

Efetivação da doação

 

 

 

 

Não

91

46,9

39,9

54,0

Sim

103

53,1

46,0

60,1

Motivo da não efetivação

 

 

 

 

Recusa familiar

38

41,8

31,9

52,3

Contraindicação médica

46

50,6

40,2

60,8

Falta de logística para captação de órgãos

7

7,7

3,7

15,5

          Nota: * droga vasoativa; † desvio padrão; ‡ intervalo de confiança de 95%.

 

Analisando os fatores associados ao diagnóstico de ME nos pacientes acompanhados pela OPO, observou-se que um aumento de um ponto no score da ECG representa redução na chance de ir a óbito por ME (RRR 0,30; p – valor = 0,001) e por PCR (RRR 0,46; p – valor = 0,000). Pacientes que fizeram uso de DVA apresentaram maiores chances de ir a óbito tanto por ME (RRR 7,55; p-valor = 0,000) quanto por PCR (RRR 2,78; p – valor = 0,001) em comparação aos pacientes que evoluíram para melhora clínica.

Quanto ao diagnóstico de internação, os pacientes que tinham como causa o AVCH e o acidente vascular cerebral isquêmico (AVCI) apresentaram maiores chances de ir a óbito por ME (RRR 2,14; p – valor = 0,031) em relação aos que apresentaram melhora clínica. O diagnóstico de internação não esteve associado aos pacientes que evoluíram para o óbito por PCR (p > 0,05). A idade, o sexo e os dias de internação não foram significantes na análise (p > 0,05) (Tabela 3).

 

Tabela 3 – Fatores associados ao diagnóstico de morte encefálica em pacientes acompanhados pela OPO. Petrolina, 2018-2019.

                                         Morte encefálica

PCR*

 

RRR

p-valor

IC95%‡

RRR†

p-valor

IC95%‡

Idade

0,99

0,544

0,98

1,01

1,00

0,645

0,99

1,02

Sexo

 

 

 

 

 

 

 

 

Masculino

0,90

0,753

0,48

1,71

0,95

0,891

0,47

1.91

Feminino

1,00

 

 

 

1,00

 

 

 

ECG§

0,30

0,001

0,15

0,59

0,46

0,000

0,30

0,70

DVA||

 

 

 

 

 

 

 

Sim

7,55

0,000

4,20

13,57

2,78

0,001

1,48

5,21

Não

1,00

 

 

 

1,00

 

 

 

Dias de internação

1,08

0,353

0,92

1,26

0,90

0,418

0,70

1,16

Diagnóstico da internação

 

 

 

 

 

 

 

AVCI**/AVCH††

2,14

0,031

1,07

4,29

1,91

0,085

0,91

3,99

Outras causas

1,00

 

 

 

1,00

 

 

 

Nota: *parada cardiorrespiratória; †razão de risco relativo; ‡ intervalo de confiança de 95%; § escala de coma de Glasgow; || droga vasoativa; ** acidente vascular cerebral isquêmico; †† acidente vascular cerebral hemorrágico.

 

Discussão

Os 194 casos analisados, entre os anos de 2018 e 2019, representaram aproximadamente 19,4% dos casos notificados de ME no estado de PE somando os dois anos.10,14 O perfil sociodemográfico e as principais causas de morte evidenciadas no presente estudo apresentaram, ao mesmo tempo, concordância e divergência em relação à literatura. Quanto ao sexo e à idade, a maioria era homem e na fase adulta, corroborando o perfil nacional. Porém, no tocante às causas, prevaleceu o TCE seguido do AVCH, divergindo do cenário em território nacional, no qual a principal causa de ME foi o AVC, seguido de TCE.10

Uma pesquisa de 2014 realizada na mesma região de Pernambuco do presente estudo evidenciou que grande parte dos casos de TCE estava associada a acidentes automobilísticos.11 Isso pode explicar o fato de a maioria dos casos ser do sexo masculino, pois os homens geralmente estão mais envolvidos nesses acidentes.15 Um estudo com o objetivo de avaliar o perfil dos potenciais doadores e dos doadores efetivos mostrou que, entre as causas traumáticas, o sexo mais acometido foi o masculino, e que as causas não traumáticas, como o AVCH, estão relacionadas a maus hábitos de vida e doenças crônicas.16

O escore da ECG evidenciado no presente estudo indicou uma maior gravidade dos pacientes neurocríticos acompanhados. Pacientes com escores 3 e 4 apresentam maiores taxas de mortalidade quando comparados a escores maiores.4 Ressalta-se que o score recomendado para a abertura do protocolo de ME é igual a três.6

O tempo de acompanhamento do paciente pela equipe da OPO desde a observação até a confirmação do óbito encontrou-se dentro do esperado, da mesma forma que o tempo de realização do protocolo foi relativamente curto. No primeiro caso, deve-se respeitar o tempo mínimo de seis horas de internação e observação no hospital, para iniciar os procedimentos de confirmação da ME, exceto para os indivíduos que apresentam encefalopatia hipóxica isquêmica, em que o tempo mínimo é ampliado para 24 horas.1

No que se refere ao tempo de realização do protocolo, o tempo mínimo entre um exame clínico e outro para sua confirmação é de uma hora em pacientes acima de dois anos de idade e para pacientes mais novos é necessário um intervalo de seis ou 24 horas.1 A maioria dos pacientes encontrava-se internada em hospitais públicos, fato que pode estar diretamente relacionado ao serviço de referência em alta complexidade em traumatologia e neurologia da região ser público,17 somado ao fato de cerca de 80 a 90% da população pernambucana não possuir cobertura da assistência de saúde suplementar.18

O uso de DVA foi predominante neste estudo, reforçando a gravidade dos casos, uma vez que, para a ressuscitação hemodinâmica do potencial doador, há uma forte recomendação da Associação de Medicina Intensiva Brasileira, após a expansão volêmica. Essas drogas são utilizadas com frequência nas unidades de terapia intensiva (UTI) por atuarem no sistema cardiovascular e regularem funções vitais, e podem ser necessárias pelas alterações fisiológicas da ME, porém devem ser adequadas à resposta terapêutica em cada situação para alcançar a estabilidade hemodinâmica.19-20

A respeito do uso de sedação, uma menor proporção dos casos analisados fez uso. A utilização de sedação na UTI tem o papel de reduzir a resposta ao estresse e proporcionar conforto, sendo que o nível e a profundidade de sedação estão relacionados ao tempo de internação e à mortalidade.21

A sedação mais utilizada foi o Fentanil® associado ao Midazolam®, sendo o Fentanil® um sedativo e analgésico de ação rápida e eficiente, usado para potencializar os benzodiazepínicos, como o Midazolam®, que se caracteriza como um hipnótico produtor de sonolência.22 Esses dois medicamentos são comumente utilizados em centros de terapia intensiva.23 Ressalta-se que, para a determinação da ME, alguns procedimentos são necessários, como a exclusão de fatores tratáveis que possam confundir seu diagnóstico, e a suspensão do uso dos sedativos.24

A contraindicação médica foi o principal motivo que impediu a realização de doação de órgãos, seguida da recusa familiar. Atualmente, esta última foi o principal motivo para a não efetivação da doação de órgãos no Brasil, representando 40% dos motivos no ano de 2019.10 Um estudo realizado no Rio Grande do Sul, com objetivo de compreender as motivações para a decisão das famílias quanto à doação, mostrou que a recusa esteve associada a vários fatores, como a não aceitação da morte na situação de adoecimento inesperado e a falta de expressão em vida sobre esse posicionamento, tornando a tomada de decisão mais difícil.25

Dentre os fatores que estiveram associados ao diagnóstico de ME e óbito por PCR em relação àqueles que apresentaram melhora clínica, observou-se que o score da ECG foi relevante, pois, quanto maior ele se apresentou, maior foi a chance de sobrevida. Uma baixa pontuação na ECG é um fator de gravidade, estando associada a desfechos clínicos negativos em neurocríticos.26 Embora existam limitações na ECG, ela pode ser considerada uma aliada para indicar o desfecho clínico em casos neurológicos.3

O presente estudo mostrou associação significativa entre o uso de DVA e a evolução do neurocrítico, revelando que os que fizeram seu uso tiveram mais chances de evoluir para ME e PCR em relação aos que evoluíram para melhora clínica. Pode-se inferir que o uso de DVA pode ser um indicativo de maior gravidade. A literatura aponta, dentre outros fatores de risco, uma relação entre o uso de DVA e o desfecho clínico negativo em doentes internados em UTI, apresentando maior chance de evolução para o óbito.27

Os diagnósticos de AVCI e AVCH mostraram uma relação significativa na evolução para ME em relação aos que evoluíram para melhora clínica, apesar de a maior frequência das causas de internação ter sido o TCE. O motivo de o AVC ser um agravante na evolução para ME pode estar relacionado aos fatores de risco associados ao quadro, como a Hipertensão Arterial Sistêmica, a obesidade e o tabagismo, dentre outros.12,28

O presente estudo encontrou limitações em sua execução devido à incompletude de algumas informações em alguns prontuários, dificultando a construção do banco de dados.

 

Conclusão

A prevalência de ME representou quase a metade dos neurocríticos acompanhados no presente estudo. A maioria desses era do sexo masculino, na fase adulta, tendo como diagnósticos principais da causa de morte o TCE e o AVCH. O uso de DVA e os diagnósticos de AVCH e AVCI mostram-se associados à evolução para ME. Da mesma maneira, reforçou que o score da ECG, mostrou-se como um preditor da gravidade. Esse achado reforça, na prática clínica, a validade da ECG para a avaliação do neurocrítico, sugerindo uma maior atenção pelos profissionais que o acompanham. A queda de um ponto na escala implicou em gravidade e possível evolução para o diagnóstico de ME.

A maioria das famílias aceitou realizar a doação de órgãos, porém a recusa foi o segundo motivo de impedimento de doações, o que representou um número relevante no estudo. Sabe-se que o paciente em ME é a principal fonte de órgãos para transplantes, sendo importante o empenho de todos os profissionais e instituições envolvidos em todas as etapas do processo de doação, desde a identificação e diagnóstico até o momento da entrevista familiar. Cenário que permite um aumento na efetivação da doação, uma vez que o transplante proporciona sobrevida e qualidade de vida aos doentes crônicos, potenciais receptores de órgãos.

 

Referências

 

1. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2.173, de 23 de novembro de 2017. Define os critérios do diagnóstico de morte encefálica. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 240,  p. 274-276, 15 dez. 2017.

2. Westphal GA, Garcia VD, Souza RL, Franke CA, Vieira KD, Birckholz VRZ, et al.; Associação de Medicina Intensiva Brasileira; Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Diretrizes para avaliação e validação do potencial doador de órgãos em morte encefálica. Rev Bras Ter Intensiva [Internet]. 2016 [cited 2020 maio 04];28(3):220-55. Available from: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-507X2016000300220&script=sci_abstract&tlng=pt

3. Saika A, Bansal S, Philip M, Devi BI, Shukla DP. Prognostic value of FOUR and GCS scores in determining mortality in patients with traumatic brain injury. Acta Neurochir. 2015;157:1323-8. doi: https://doi.org/10.1007/s00701-015-2469-6

4. Brennan PM, Murray GD, Teasdale GM. Simplifying the use of prognostic information in traumatic brain injury. Part 1: the GCS-Pupils score: an extended index of clinical severity. J Neurosurg. 2018;128(6):1612-20. doi: https://doi.org/10.3171/2017.12.JNS172780

5. BRASIL. Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9434.htm. Acesso em 28 jul. 2020.

6. Secretaria de Estado da Saúde do Paraná (PR), Superintendência de Gestão de Sistemas de Saúde, Sistema Estadual de Transplantes. Manual para notificação, diagnóstico de morte encefálica e manutenção do potencial doador de órgãos e tecidos [Internet]. 2ª ed. Curitiba (PR): SESA/SGS/CET; 2016 [acesso em 2020 maio 04]. Disponível em: http://www2.ebserh.gov.br/documents/1948338/2446271/Manual+de+notifica%C3%A7%C3%A3o+e+diagn%C3%B3stico+de+ME+e+manuten%C3%A7%C3%A3o+do+potencial+doador+-+2016.pdf.pdf/bf1fd53c-3ebd-4b39-b706-37fdb9cef571

7. BRASIL. Lei nº 10.211, de 23 de março de 2001. Altera dispositivos da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 58-A-E [ed. extra], p. 6, 24 mar. 2001.

8. Aredes JS, Firmo JOA, Giacomin KC. A morte que salva vidas: complexidades do cuidado médico ao paciente com suspeita de morte encefálica. Cad Saúde Pública. 2018;34:e00061718. doi: https://www.doi.org/10.1590/0102-311X00061718

9. Alves NCC, Oliveira LB, Santos ADB, Leal HAC, Sousa TMF. Management of patients in brain death. Rev Enferm UFPE On Line. 2018;12(4):953-61. doi: https://www.doi.org/10.5205/1981-8963-v12i4a110145p953-961-2018

10. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos; Registro Brasileiro de Transplantes. Dimensionamento dos transplantes no Brasil e em cada estado (2012-2019) [Internet]. 2019 [acesso em 2020 abr 14]. Disponível em: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2019/RBT-2019-leitura.pdf

11. Souza BSJ, Lira GG, Mola R. Notificação da morte encefálica em ambiente hospitalar. Rev Rene. 2015;16(2):194-200. doi: https://www.doi.org/10.15253/2175-6783.2015000200008

12. Eira CSL, Barros MIT, Albuquerque AMP. Doação de órgãos: a realidade de uma unidade de cuidados intensivos portuguesa. Rev Bras Ter Intensiva [Internet]. 2018 [cited 2020 May 04];30(2):201-7. Available from: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-507X2018000200201&script=sci_abstract&tlng=pt

13. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria Nº 2.601, de 21 de outubro de 2009. Institui, no âmbito do Sistema Nacional de Transplantes, o Plano Nacional de Implantação de Organizações de Procura de Órgãos e tecidos – OPO. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2009. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt2601_21_10_2009.html. Acesso em: 04 maio 2020.

14. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Registro Brasileiro de Transplantes. Dimensionamento dos transplantes no Brasil e em cada estado (2011-2018) [Internet]. 2018 [acesso em 2020 abr 21]. Disponível em: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2018/Lv_RBT-2018.pdf

15. Biffe CRF, Harada A, Bacco AB, Coelho CS, Baccarelli JLF, Silva KL, et al. Perfil epidemiológico dos acidentes de trânsito em Marília, São Paulo, 2012. Epidemiol Serv Saúde. 2017; 26:389-98. doi: https://www.doi.org/10.5123/S1679-49742017000200016

16. Bertasi RAO, Bertasi TGO, Reigada CPH, Ricetto E, Bonfim KO, Santos LA, et al. Perfil dos potenciais doadores de órgãos e fatores relacionados à doação e a não doação de órgãos de uma organização de procura de órgãos. Rev Col Bras Cir. 2019;46(3):1-8. doi: https://www.doi.org/10.1590/0100-6991e-201922180

17. Ministério da Saúde (BR); Secretaria de Atenção à Saúde. Cadastro Nacional de Estabelecimento de Saúde [Internet]. 2020 [acesso em 2020 maio 04]. Disponível em: http://cnes.datasus.gov.br/pages/estabelecimentos/consulta.jsp?search=6042414

18. Ministério da Saúde (BR), Agência Nacional de Saúde Suplementar. Agência Reguladora de Planos de Saúde no Brasil [Internet]. 2020 [acesso em 2020 maio 04]. Disponível em: http://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-gerais

19. Westphal GA, Caldeira Filho M, Vieira KD, Zaclikevis VR, Bartz MCM, Wanzuita R, et al. Diretrizes para manutenção de múltiplos órgãos no potencial doador adulto falecido: parte I. Aspectos gerais e suporte hemodinâmico. Rev Bras Ter Intensiva. 2011;23(3):255-68. doi: https://doi.org/10.1590/S0103-507X2011000300003

20. Melo EM, Oliveira TMM, Marques AM, Ferreira AMM, Silveira FMM, Lima VF. Caracterização dos pacientes em uso de drogas vasoativas internados em unidade de terapia intensiva. Rev Pesq Cuid Fundam. 2016;8(3):4898-04. doi: https://www.doi.org/10.9789/2175-5361.2016.v8i3.4898-4904

21. Silva DC, Barbosa TP, Bastos AS, Beccaria LM. Associação entre intensidades de dor e sedação em pacientes de terapia intensiva. Acta Paul Enferm. 2017;30(3):240-6. doi: https://doi.org/10.1590/1982-0194201700037

22. Lira-Filho EB, Arruda ALM, Furtado MS, Kowatsch I, Carvalho FP, Felinto CE, et al. Impacto do fentanil associado ao midazolam na sedação para ecocardiograma transesofágico. Arq Bras Cardiol Imagem Cardiovasc. 2014;27(2):83-6. doi: https://doi.org/10.5935/2318-8219.20140014

23. Cortes ALB, Silvino ZR, Santos FBM, Pereira JAC, Tavares GS. Prevalência de interações medicamentosas envolvendo medicamentos de alta vigilância: estudo transversal. REME Rev Min Enferm. 2019:e-1226. doi: https://doi.org/10.5935/1415-2762.20190074

24. Westphal GA, Veiga VC, Franke CA. Determinação da morte encefálica no Brasil. Rev Bras Ter Intensiva. 2019;31(3):403-9. doi: https://doi.org/10.5935/0103-507X.20190050

25. Rossato GC, Girardon-Perlini NMO, Begnini D, Beuter M, Camponogara S, Flores CL. Doar ou não doar: a visão de familiares frente à doação de órgãos. REME Rev Min Enferm. 2017:1-8. doi: https://doi.org/10.5935/1415-2762.20170066

26. Tahir RA, Rotman LE, Davis MC, Dupépé EB, Kole MK, Rehman M, et al. Intracranial hemorrhage in patients with a left ventricular assist device. World Neurosurg. 2018;113:714-21. doi: https://doi.org/10.1016/j.wneu.2018.02.135

27. Galvão G, Mezzaroba AL, Morakami F, Capeletti M, Franco Filho O, Tanita M, et al. Seasonal variation of clinical characteristics and prognostic of adult patients admitted to an intensive care unit. Rev Assoc Med Bras. 2019 Nov;65(11):1374-83. doi: https://doi.org/10.1590/1806-9282.65.11.1374

28. Correia JP, Figueiredo AS, Costa HM, Barros P, Veloso LM. Investigação etiológica do acidente vascular cerebral no adulto jovem. Rev Med Interna [Internet]. 2018 [acesso em 2020 maio 04];25(3):213-23. Disponível em: https://www.spmi.pt/revista/vol25/vol25_n3_2018_213_223.pdf

 

Editora Científica: Tânia Solange Bosi de Souza Magnago

Editora Associada: Etiane de Oliveira Freitas

 

 

Autor correspondente

Flávia Emília Cavalcante Valença Fernandes

E-mail: flavia.fernandes@upe.br

Endereço: Av. Cardoso de Sá, s/n. Campus Universitário. Vila Eduardo.

Petrolina – PE.

CEP: 56.328-900

 

 

Contribuições de Autoria

 

1 – Kércia Dantas Oliveira de Moura

Concepção ou desenho do estudo/pesquisa, análise e/ou interpretação dos dados, revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito

 

2 – Flávia Emília Cavalcante Valença Fernandes

Concepção ou desenho do estudo/pesquisa, análise e/ou interpretação dos dados, revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito

 

3 Gerlene Grudka Lira

Concepção ou desenho do estudo/pesquisa, análise e/ou interpretação dos dados, revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito

 

4 Emily Oliveira Duarte Fonseca

Concepção ou desenho do estudo/pesquisa, revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito

 

5 Rosana Alves de Melo

Revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito

 

 

Como citar este artigo

Moura KDO, Fernandes FECV, Lira GG, Fonseca EOD, Melo RA. Prevalência e fatores associados ao diagnóstico de morte encefálica. Rev. Enferm. UFSM. 2021 [Acesso em: Ano Mês Dia]; vol.11 e39: 1-15. DOI: https://doi.org/10.5902/2179769253157