Rev. Enferm. UFSM - REUFSM

Santa Maria, RS, v. 10, e63, p. 1-19, 2020

DOI: 10.5902/2179769240818

ISSN 2179-7692

 

Submissão:  01/11/2019    Aprovação:15/05/2020            Publicação: 22/07/2020

Artigo Original

 

“Nós estamos grávidos”: rituais de cuidado desenvolvidos por famílias durante o processo gestacional*

 

“We are pregnant”: care rituals developed by families during the gestational process

 

“Estamos embarazados”: rituales de atención desarrollados por las familias durante el proceso gestacional

 

 

Lisie Alende PratesI

Natália da Silva GomesII

Carolina Heleonora PilgerIII

Ana Paula de Lima EscobalIV

Jussara Mendes LipinskiV

Lúcia Beatriz ResselVI

 

* Artigo oriundo de Tese de doutorado “Rituais de cuidado desenvolvidos por famílias no processo gestacional: um estudo etnográfico”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria, ano de 2017.

[I] Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Adjunta da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Uruguaiana, Rio Grande do Sul (RS), Brasil, email: lisiealende@hotmail.com, orcid: http://orcid.org/0000-0002-5151-0292

II Acadêmica de Enfermagem. UNIPAMPA. Uruguaiana, RS, Brasil, email: nataliasilvag_@hotmail.com, orcid: http://orcid.org/0000-0002-6952-7172

III Acadêmica de Enfermagem. UNIPAMPA. Uruguaiana, RS, Brasil, email: carolinapilger@gmail.com, orcid: http://orcid.org/0000-0001-6844-962X

IV Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Adjunta da UNIPAMPA. Uruguaiana, RS, Brasil, email: anapaulaescobal@hotmail.com, orcid: http://orcid.org/0000-0002-2601-9098

V Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Associada da UNIPAMPA. Uruguaiana, RS, Brasil, email: jussaralipinski@gmail.com, orcid: http://orcid.org/0000-0002-3907-0722

VI Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora aposentada da Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria, RS, Brasil, email: luciaressel@gmail.com, orcid: http://orcid.org/0000-0002-2836-1997

 

Resumo: Objetivo: conhecer os rituais de cuidado desenvolvidos pelas famílias durante o processo gestacional. Método: pesquisa etnográfica, desenvolvida entre abril e dezembro de 2016, com três famílias que vivenciavam o processo gestacional e profissionais de saúde que as acompanhavam, em um município da região central do estado do Rio Grande do Sul. Adotou-se o modelo de Observação-Participação-Reflexão, com entrevista complementar. A análise fundamentou-se na etnoenfermagem. Resultados: os rituais de cuidado estavam ligados à revelação da gestação, à alimentação, à utilização de homeopatia e chás, à reorganização familiar, à preparação do quarto do bebê, às vestimentas do bebê, ao chá de fraldas, às escolhas futuras da criança, ao apadrinhamento e ao registro da gestação. Conclusão: os rituais de cuidado constituem elementos culturais essenciais para o cuidado à saúde da família grávida. Eles integram os familiares, mantém e fortalecem a identidade e a cultura familiar e renovam os elementos que compõem a família.

Descritores: Saúde da mulher; Relações familiares; Comportamento ritualístico; Cultura; Enfermagem

 

Abstract: Objective: to understand the care rituals developed by families during the gestational process. Method: ethnographic research, carried out between April and December 2016, with three families who experienced the gestational process and health professionals that accompanied them, in a city in the central region of the state of Rio Grande do Sul. The model adopted was the Observation-Participation-Reflection, with supplementary interview. The analysis was based on the ethnonursing. Results: the care rituals were related to the revelation of the pregnancy, nutrition, the use of homeopathy and teas, family reorganization, the preparation of the baby's room, the baby clothing, diaper shower, to the future choices of the child, godparents and the record of the pregnancy. Conclusion: care rituals constitute cultural elements essential for the health care of the pregnant family. They are part of the family, maintaining and strengthening the family identity and culture and renewing the elements that compose the family.

Descriptors: Women's health; Family relations; Ceremonial behavior; Culture; Nursing

 

Resumen: Objetivo: comprender los rituales de cuidado desarrollados por las familias durante el proceso de gestación. Método: investigación etnográfica, llevada a cabo entre abril y diciembre de 2016, con tres familias que experimentaron el proceso gestacional y los profesionales de la salud que las acompañaron, en un municipio de la región central del estado de Rio Grande do Sul. Se adoptó el modelo Observación-Participación-Reflexión, con entrevista complementaria. El análisis se basó en la etnoenfermería. Resultados: los rituales de cuidado estaban relacionados con la revelación del embarazo, la nutrición, el uso de la homeopatía y tés, y a la reorganización de la familia, la preparación de la habitación del bebé, la ropa del bebé, fiesta de pañales, las opciones futuras del niño, apadrinamiento y el registro del embarazo. Conclusión: los rituales de cuidado constituyen elementos culturales esenciales para el cuidado de la salud de la familia embarazada. Ellos son parte de la familia, mantienen y refuerzan la identidad y la cultura de la familia y renuevan los elementos que componen la familia.

Descriptores: Salud de la mujer; Relaciones familiares; Conducta ceremonial; Cultura; Enfermería

 

 

Introdução

 

O processo gestacional pode ser marcado por inúmeras repercussões nos âmbitos biológico, psicológico, social, cultural e familiar. Apesar de representar um estado natural e fisiológico, que gera transformações físicas no corpo feminino, também constitui um evento compartilhado com a família e/ou grupo social.1

Portanto, é fundamental compreender o processo gestacional para além das mudanças físicas corporais, mas como um fenômeno social familiar, uma vez que representa um evento relevante no seu ciclo do desenvolvimento.2 Nessa perspectiva, cada família vivencia, sente e participa do processo gestacional de acordo com o contexto cultural em que está inserida.1,3

Por cultura entende-se o sistema a partir do qual um grupo de indivíduos manifesta suas necessidades, valores, tradições, crenças e saberes. A cultura, neste estudo, é compreendida como um emaranhado de símbolos interpretáveis e socialmente estabelecidos, capazes de direcionar o comportamento, orientar e fornecer significado às práticas e à visão de mundo dos indivíduos.4

Logo, o processo gestacional pode ser influenciado pelo contexto cultural em que as famílias vivem,3 levando-as a desenvolver e perpetuar alguns rituais.5 Os rituais podem ser entendidos como atos ou cerimônias que têm como finalidade auxiliar o indivíduo a celebrar ou solenizar a passagem de uma situação, fase ou etapa para outra.5 Os rituais não possuem implicações explícitas ou diretas, mas eles têm a capacidade de expressar, renovar e reforçar as tradições, valores e princípios básicos do grupo. Eles podem ser calendáricos, de transição social e de infortúnio. Entre os rituais de transição social, estão aqueles ligados ao processo gestacional, que demarcam a transição do ciclo gravídico-puerperal.6

Durante o período gestacional, considera-se que a família desenvolve rituais de transição social ligados, principalmente, ao cuidado, com o intuito de proteger a gestante e o bebê em desenvolvimento.6 Ao realizar esses rituais, os familiares conseguem reinterpretar seus papéis sociais, fornecer suporte, apoio e proteção à gestante e ao bebê, fortalecer os laços afetivos e organizar o ambiente para a chegada do novo ser.

            Desse modo, este estudo mostra-se relevante, por trazer a perspectiva da família sobre o processo gestacional, ancorada nos rituais de cuidado desenvolvidos nessa fase. Essa ótica é fundamental para a promoção de cuidados congruentes culturalmente com as necessidades dos indivíduos, valorizando e reconhecendo que o contexto cultural e familiar pode influenciar nos estilos de vida, condutas, concepções e cuidados.

Também é preciso destacar, como uma das justificativas para a realização deste estudo, o fato de que a enfermagem tem desenvolvido muitas pesquisas sob a perspectiva cultural, alicerçadas na antropologia, especialmente, na área da saúde da mulher e utilizando o ambiente hospitalar como cenário de estudo, conforme sinaliza revisão bibliográfica.7 Esse levantamento aponta para a necessidade de ampliar as pesquisas para objetos de investigação ainda pouco explorados, sob os aportes teóricos da antropologia e da enfermagem, como é o caso dos rituais de cuidado.

Ressalta-se ainda que o estudo se coaduna com as propostas da Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde do Brasil, que incentiva pesquisas durante o período gestacional. Assim, a questão de pesquisa que guiou este estudo, oriundo de uma tese de doutorado,8 foi: quais os rituais de cuidado desenvolvidos pela família no processo gestacional? O objetivo, portanto, foi conhecer os rituais de cuidado desenvolvidos pelas famílias no processo gestacional.

 

Método

 

Estudo etnográfico,9 desenvolvido entre abril e dezembro de 2016, com três famílias de uma cidade de médio porte do interior do estado do Rio Grande do Sul, que vivenciavam o processo gestacional. O acesso e a seleção dos informantes aconteceram a partir da inserção da pesquisadora em ações desenvolvidas com um grupo de gestantes, que não possuía vinculação com nenhum serviço de saúde.

O cenário geral do estudo consistiu no grupo de gestantes e representou o local onde os informantes foram acessados. Já os domicílios das gestantes e de suas famílias, e/ou ainda outros locais que os informantes julgaram necessários, representaram os cenários focalizados. Estes foram denominados desta forma, pois foram os locais nos quais os rituais de cuidados foram verificados durante a coleta dos dados.

As informações foram coletadas a partir da observação dos informantes, conforme modelo denominado de observação-participação-reflexão (OPR) e entrevista. O modelo OPR é dividido em quatro fases: 1) observação; 2) observação com alguma participação; 3) participação com alguma observação; e 4) observação reflexiva.9

Na primeira fase, foi realizada entrada no cenário geral e utilizadas, basicamente, a observação e a escuta atenta aos relatos das famílias no grupo de gestantes, estabelecendo, assim, um primeiro contato com os informantes. A pesquisadora solicitou autorização das enfermeiras organizadoras do grupo para participar dos encontros e, a partir da interação com as famílias, iniciar o processo de produção dos dados. No primeiro encontro como participante do grupo, as enfermeiras solicitaram que a pesquisadora se apresentasse e explicasse a proposta de seu estudo. A partir da apresentação e conversas informais, a pesquisadora se aproximou de algumas famílias, utilizando também o contato por meio de rede social (Facebook®). Com essas interações, foi possível realizar o convite as famílias para participarem do estudo.

Cinco famílias recusaram-se a participar, alegando que dividiam o domicílio com outras pessoas, fator que, segundo os informantes, poderia prejudicar a participação e/ou desenvolvimento da pesquisa. Duas gestantes comprometeram-se em discutir a participação no estudo com os familiares, mas não deram retorno. Ainda cabe mencionar que não houve recusa entre os informantes gerais.

Ao final, foram selecionadas três famílias grávidas nucleares. Duas eram formadas pela gestante, o companheiro e um filho; e a outra família apenas pela gestante e o companheiro. À época de início da produção dos dados, a primeira família encontrava-se com 38 semanas e quatro dias; a segunda família com 25 semanas e cinco dias; e a terceira família com 30 semanas e três dias de gestação.

Com isso, os informantes-chave abrangeram três gestantes e seus respectivos companheiros e as informantes gerais quatro enfermeiras da equipe de enfermeiras obstetras e uma médica obstetra. Os critérios de seleção envolveram famílias de mulheres que participavam do grupo de gestantes. Destaca-se que todas as famílias estavam planejando a realização do parto domiciliar assistido por enfermeiras obstetras. Contudo, o desejo pelo parto domiciliar planejado não constituiu variável para selecionar as famílias, sendo uma característica que emergiu durante a coleta de dados e não configurou em critério para inclusão ou exclusão de novas famílias. Em tempo, cabe destacar que, durante a produção dos dados, os informantes gerais foram somente observados e não entrevistados.

Na segunda fase, após o convite e aceite das famílias, foi possível ingressar nos cenários focalizados e conhecer o contexto e a rotina familiar. Nessa fase, a observação passou a ser mais focalizada e detalhada. Destaca-se que os informantes-chave foram observados durante as consultas de pré-natal, realizadas tanto no consultório médico quanto em domicílio, visto que planejavam a realização do parto domiciliar. As gestantes desenvolveram consultas médicas e, após a 30ª semana de gestação, de forma complementar passaram a realizar o acompanhamento com enfermeiras obstetras em domicílio. A observação das consultas também foi acordada com os profissionais de saúde. Ainda, foi realizada a observação do chá de bebê e o atendimento hospitalar durante o processo gestacional. Ao total, foram realizadas 94 horas de observação por uma pesquisadora, além das horas de realização das entrevistas, que variaram de uma a duas horas.

Buscou-se observar o contexto das relações familiares, os rituais de cuidado e a forma como as famílias se estruturavam no processo gestacional. O diário de campo foi utilizado para registro e organização das notas de observação/entrevista; notas teóricas, que contemplavam as interpretações das pesquisadoras, por ocasião da produção dos dados; e notas metodológicas, que incluíam as observações referentes à produção dos dados e alguns lembretes acerca de temáticas que precisavam ser aprofundadas.

Na terceira fase, embora a observação permanecesse mantida, houve uma participação mais ativa da pesquisadora. Essa fase permitiu uma maior aproximação entre pesquisadora e informantes-chave e a realização da técnica de entrevista nos domicílios, focalizando nos rituais de cuidado em seus contextos culturais. Reforça-se que apenas as entrevistas foram audiogravadas e que, para aplicação dessa técnica, não foi utilizado roteiro estruturado, uma vez que os questionamentos emergiram a partir das observações realizadas e que precisavam ser aprofundadas ou esclarecidas. As entrevistas foram desenvolvidas nos domicílios dos informantes-chave.

Na última fase, ocorreu a saída dos cenários focalizados e o direcionamento para os rituais de cuidado observados durante a coleta de dados, a fim de recapitulá-los junto aos informantes e avaliar os achados. Portanto, essa fase culminou na análise de todo o processo e na validação dos resultados junto aos informantes.

O processo analítico, ancorado na etnoenfermagem, considerou, respectivamente: a coleta, descrição e documentação dos dados brutos; a identificação e categorização dos descritores e componentes; a análise contextual; e a síntese e interpretação dos dados.9 Na primeira etapa, as informações obtidas na observação e na entrevista foram registradas e transcritas em arquivos no Microsoft Word®, com o intuito de identificar o ponto de vista dos informantes (dimensão emic), balizando-se no referencial teórico (dimensão etic).9 Após, realizou-se a releitura de todos os achados, a fim de identificar os rituais de cuidado desenvolvidos pela família no processo gestacional. Ainda nessa etapa, a partir das dimensões emic e etic, foi possível verificar os símbolos e os significados relacionados com os rituais de cuidado. Para isso, foram utilizadas ferramentas disponíveis no processador de texto Word®, como cores de realce de texto e de fonte, o que contribuiu para a realização da segunda etapa, em que foram categorizadas as dimensões. Ao que tange à dimensão emic, considerou-se o contexto, os significados e as similaridades na ocorrência dos rituais de cuidado. Na análise e interpretação destes dados, utilizou-se a dimensão etic.

A terceira etapa envolveu a análise dos padrões culturais recorrentes, refletindo os comportamentos padronizados encontrados nos cenários focalizados. A partir de todas as marcações nos arquivos do Word® e categorizações realizadas anteriormente, foi possível identificar temáticas e condutas que se repetiam entre os informantes ou na mesma família e, com isso, verificar comportamentos padronizados nesses contextos. Nessa conjuntura, os rituais de cuidado foram sendo revelados, da mesma forma como os aspectos culturais dessas situações. Nessa etapa, também foi realizada a validação dos resultados com os informantes-chave, a partir da disponibilização e leitura do material redigido. Com isso, buscou-se a garantia de que os achados obtidos sobre os rituais de cuidado desenvolvidos pelas famílias durante o processo gestacional fossem interpretados a partir do contexto em que se desenvolveram. Na última etapa, emergiram os temas relevantes e as formulações teóricas do estudo. Essa etapa se deu a partir da abstração dos resultados da pesquisa, ponderando todas as demais fases.

Ainda, conforme as recomendações do método da etnoenfermagem, adotou-se os critérios de rigor de confirmabilidade, padrões recorrentes, saturação, significado-em-contexto e transferibilidade.9 O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade local, sob o CAAE 53928116.6.0000.5346, em 18 de abril de 2016, cumprindo os dispositivos éticos da Resolução n. 466/2012. Os informantes leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A identidade desses foi preservada, a partir da utilização da sigla IC, seguida de numeração aleatória, para os informantes-chave; IG, também acompanhada por numeração, para os gerais.

 

Resultados

 

Ao que tange às famílias que vivenciavam o processo gestacional e constituíram os informantes-chave, identificou-se que os casais tinham entre 24 e 35 anos de idade; uma das crianças estava com um ano e nove meses e a outra com seis anos e 10 meses. A maioria dos informantes possuía ensino superior completo, com exceção de um que tinha ensino médio completo.

            À época da produção dos dados, duas famílias vivenciavam o terceiro trimestre gestacional e a outra se encontrava no segundo trimestre. As três famílias possuíam plano de saúde privado, realizavam consultas pré-natais com médico e a partir da 30ª semana de gestação, iniciaram o acompanhamento com enfermeiras obstetras. As gestantes, que apresentavam filhos, haviam vivenciado cesáreas anteriormente.

O processo analítico resultou na identificação de quatro padrões culturais: “A gente vai ficar com a família completa”: os significados do processo gestacional; “A gente fica mais paparicada”: os cuidados com a alimentação, o esforço físico e a saúde, “A família acaba se tornando grávida”: a vivência da gravidez na família; e “Tem que ter amor”: a família se prepara para a chegada do bebê. A partir desses padrões culturais, emergiu o tema deste artigo: “Rituais de cuidado desenvolvidos por famílias durante o processo gestacional”.

 

“A gente vai ficar com a família completa”: os significados do processo gestacional

 

            O processo gestacional precisa ser considerado no contexto cultural em que se desenvolve, pois é nele que estão presentes os símbolos e os significados de cada cultura. Desse modo, as informantes-chave, ao se referirem ao processo gestacional, mencionaram o significado cultural atribuído à vivência.

Eu estava tentando engravidar [...] foi uma festa [...] A gente planejou bastante [...] está sendo muito legal [...] nossa, é um sonho. (IC1)

[...] parece que agora a gente vai ficar com a família completa. A gente vai completar esse sonho. Não que vai nascer só o filho, mas a gente vai completar. (IC3)

 

            O processo gestacional foi exaltado pelas gestantes como a realização plena da família e não como o simples nascimento de uma criança. Os companheiros também revelaram significados semelhantes. Eles vislumbravam como um sonho que foi materializado pela família.

 

Eu sempre quis ter filhos [...] não desejo mais nada. É uma realização como pai, como família plena, não tem nada mais a imaginar ou pedir. Estou completamente realizado. (IC4)

 

            A partir desses significados, o processo gestacional foi acompanhado por rituais. Esses iniciaram com a sua descoberta. A partir da confirmação, a mulher e a família desenvolveram rituais associados à sua revelação.

Eu que vi [o resultado do teste] primeiro, eu mandei uma foto para o [companheiro] no whats e depois a gente contou para família [...] tem um videozinho do [filho] contando que ele ia ser o mano mais velho. (IC1)

Eu fiz só uma surpresinha. Coloquei o exame e escrevi uma frase que “melhor do que amar um filho, é amar dois”. (IC3)

 

Ademais, com a descoberta do processo gestacional, eles buscam pelo atendimento pré-natal. Nesse contexto, verifica-se a participação e o envolvimento do grupo familiar.

No consultório médico, entram na sala a obstetra, a gestante, o companheiro e o filho [...] ao longo da avaliação, o filho indica antecipadamente as etapas do exame físico geral e gineco-obstétrico [...] o casal demonstra empolgação e alegria com o comportamento do filho; eles parecem vibrar com a participação dele em todo o processo. (Diário de campo. IC3, IC6 e IG5)

 

“A gente fica mais paparicada”: os cuidados com a alimentação, o esforço físico e a saúde

            As famílias manifestavam preocupação com a rotina diária da gestante e com elementos que poderiam prejudicar o bem-estar materno e fetal. Os hábitos alimentares e as atividades que exigiam esforço físico da gestante eram visualizados com maior destaque.

 

Acho que a família se preocupa com a comida, me mima um pouco mais, se preocupa com o que posso comer. Antes não cuidavam da minha alimentação. (IC2)      

 

            Atrelado à alimentação, identificou-se desconfortos digestivos, como a pirose, que gerou o desenvolvimento de rituais de cuidado. Outras situações, comuns a outras fases da vida e que também demandavam rituais de cuidado foram mencionadas.

 

Na consulta pré-natal, o informante-chave 4 observa certo desconforto na informante-chave 1. Sem que ela faça qualquer comentário ou que ele questione sobre o que se tratava, ele vai até o freezer, retira a forma de gelo, coloca alguns gelos no copo e entrega para ela [...] Dias depois, ela comenta que apresenta pirose e que só consegue aliviar o desconforto com gelo. Ela afirma que o companheiro e o filho sabem disso e quando percebem que ela está com desconforto, imediatamente providenciam o gelo. (Diário de campo. IC1)

 

“A família acaba se tornando grávida”: a vivência da gravidez na família

           

Para alguns informantes, o processo gestacional ultrapassou os limites do corpo feminino, estendendo-se também ao companheiro e à própria família. Portanto, frente ao processo gestacional, desvelaram-se casais e/ou famílias grávidas.

Eu acho que tudo gira em torno da gravidez. A família acaba se tornando grávida, porque tudo depende de mim. -“Vamos em tal lugar? Ah, mas tu vais cansar”. Acho que a família acaba se tornando grávida. (IC1)

No grupo de gestantes, os casais encontram-se sentados lado a lado [...] desde a apresentação do primeiro casal, percebo que, independentemente de ser a mulher ou o homem o primeiro a se apresentar, todos os companheiros sempre utilizam a mesma expressão: “nós estamos grávidos”. (Diário de campo. Grupo de gestantes com as famílias informantes da pesquisa)

 

            Em contrapartida, um companheiro manifestou dificuldade em sentir-se parte integrante desse processo. Ele afirmou que a sua paternidade se concretizaria apenas com o nascimento do bebê.

Eu participo desde o início, mas eu ainda tenho a visão de que para o homem, é quando nasce. Quando nascer, para o homem, é a paternidade. Antes disso, é tudo muito subjetivo para nós [...] eu acho que o nascimento é para o pai o que simboliza mesmo o filho. (IC4)

 

            Também foi possível constatar que os laços familiares foram solidificados. A união e maior aproximação da família e de outras pessoas da rede de apoio social da gestante foram manifestadas pelos informantes.

Eu acho que eu tenho me esforçado bastante para estar sempre do lado dela e podendo também me inteirar das coisas que eu acho que vai agregar, quando o bebê nascer. Eu acho que isso aproximou eu e a [gestante] [...] eu vejo aproximação do meu irmão também, eu acho que a gente tem mais contato. (IC5)

 

Em consulta com a equipe de enfermeiras obstetras, as informantes gerais 1 e 4 convidaram o companheiro e o filho para participarem do ultrassom natural, que consiste na pintura da barriga da gestante, demonstrando a posição do bebê intraútero. Inicialmente, o filho observa a pintura com certa desconfiança, sem compreender o seu sentido. Aos poucos, começa a interagir e participar da pintura. O companheiro também auxilia [...] é possível verificar que a atividade aproxima a família, contribui para o entendimento do filho sobre a existência do bebê no meio intraútero. (Diário de campo. IC3, IC5, IG1 e IG4)

 

            Por fim, destacou-se a relevância da participação paterna. As informantes salientaram o interesse dos companheiros em compreender o processo gestacional, colaborar na criação dos filhos e envolver-se nas consultas.

 

A informante-chave 2 realiza muitas leituras sobre a gravidez [...] ela destaca que observa que, muitas vezes, ele realiza as leituras e procura materiais informativos por conta própria [...] ela ressalta que ele participa das consultas de pré-natal e tenta se instrumentalizar com leituras sobre os cuidados e a criação de bebês. (Diário de campo. IC2)

A informante-chave 1 frisa a participação do companheiro por meio das leituras, nas consultas e encontros com a equipe de enfermeiras obstetras. (Diário de campo. IC1)

 

“Tem que ter amor”: a família se prepara para a chegada do bebê

 

            O processo gestacional pode representar um período impregnado de procedimentos reorganizadores. Dentre os arranjos, prevaleceram aqueles ligados ao quarto do bebê. Nessa perspectiva, as famílias revelaram o significado cultural desse ambiente.

 

A gente passou ele para o outro quarto e comprou coisas para o quarto dele. Toda arrumação que a gente faz é em prol da família, não especificamente para ela [filha]. (IC1)

 

O primeiro filho tem que ter quarto, tem que pintar, tem que ter isso, tem que ter aquilo. A gente fica muito preocupado com as coisas materiais, tem que ter berço, tem que ter roupeiro. Hoje a gente vê que tem que ter amor. Então, a gente não está tão preocupado com as coisas materiais do quarto dela. (IC3)

 

            Para os casais que já possuíam filhos, os recursos materiais que compunham o quarto apresentaram um segundo plano, pois a prioridade era a participação da família e a inclusão do filho mais velho. Havia uma mobilização coletiva e familiar em torno da construção desse espaço. Além do quarto, também foram observados rituais de cuidado ligados às vestimentas do bebê. Os rituais de cuidado demarcam os significados culturais que as roupas possuíam no contexto cultural de cada família.

Como eu tenho uma rede de mulheres muito grande, eu acabei ganhando muita coisa. Eu sou muito dessa filosofia de passar, porque fica tudo novo. Eu guardei poucas roupas dele [filho], até porque a gente não tem lugar, mas os mais bonitinhos, aquelas relíquias eu guardei. Tem roupa minha também, o [filho] usou uma roupa minha [...] A gente está sempre guardando na família, tem algumas roupas do meu irmão que tem quase 50 anos. (IC1)

 

Eu tenho algumas coisas dele [filho] que eu guardei [...] tem muitas roupinhas que tenho um apego [...] o primeiro filho usou, eu quero que ela use também. (IC3)

 

            Associado às trocas de roupas entre as gerações e às presenteadas pela família e amigos, foi mencionado o chá de fraldas. Cada gestante se organizou para esse ritual, contando com o apoio de outras mulheres da sua rede de apoio.

A gente fez aqui no salão, bem simples. A gente convidou as pessoas mais próximas. Eram só mulheres. A minha tia fez os doces, eu encomendei frios, ela fez cachorro-quente também. A gente fez as lembrancinhas em casa. Eu e a minha irmã fizemos alfajor com bolacha Maria, bem caseiro. Eu abri os presentes e fui falando, adivinhando, mas não teve nenhuma brincadeira de pintar. (IC3)

 

Eu resolvi fazer esse chá de bênçãos. É um dos rituais que as mulheres estão fazendo [...] eu gosto muito dessa roda de conversa, deixar bilhetinho, falar, a pintura de barriga. É uma forma de incluir as pessoas. Cada um leva um pratinho como fazia antigamente, tem os presentes e como eu gosto muito dessa troca, eu resolvi fazer, apesar de não estar mais na moda, mas eu achei bem legal [...] eu acho que isso que é essência, da gente fazer essa troca, não virar festão. Foi bem importante para mim. (IC1)

 

As ideias para o chá de bebê eu tirei da internet, mas o layout fui eu que fiz tudo [...] eu também pensava nessa coisa de compartilhar, de ter algo da pessoa. Eu prefiro ganhar uma coisa que a pessoa tenha feito, sei lá, um pote de geleia, por exemplo, do que uma coisa comprada. (IC2)

 

            Nessa fase de preparação para a chegada do bebê, as famílias também passaram por um processo de reflexão quanto aos valores e princípios a serem repassados ao filho. A preocupação quanto à educação e às escolhas da criança foram ponderadas pelos casais. Assim, em relação às escolhas futuras da criança, foi enfatizada a orientação quanto à religião e a escolha dos padrinhos, que constitui um ritual de cuidado desenvolvido antes mesmo do nascimento do bebê.

Não vamos batizar. Os padrinhos, a gente convida pessoas que a gente gosta, mas já fala que não é um batismo real. A gente fala que padrinho não é para dar presente, mas para estar presente, que a gente sabe que pode contar, mas não é uma cerimônia. (IC1)

 

Como a gente não tem uma religião, a gente optou por batizar em casa. (IC3)

 

Em conversa, o informante-chave 5 menciona que, na infância, lhe foi imposta uma determinada religião. Ele pondera que não teve autonomia para exercer sua escolha e, por isso, quer que a filha tenha essa possibilidade e seja respeitada. (Diário de campo. IC5)

 

            O último ritual de cuidado identificado entre as informantes envolveu o registro das percepções, vivências e sentimentos relativos ao processo gestacional por parte da mulher. Em formato de um diário, o álbum do bebê permitiu a documentação do processo gestacional.

 

Eu ganhei o álbum bem no iniciozinho da gestação. Eu vou anotando algumas coisas. Quando foi a primeira “mexida”. Botei o primeiro ultrassom. (IC1)

 

Eu preencho para ter guardadas as lembranças, para mostrar para [bebê], como se estivesse falando com ela. Acho que vai ser legal para ela ver, quando for mais velha. (IC2)

 

Diante do exposto, é possível considerar que, para esses informantes, existem ações e condutas apoiados em rituais de cuidado. Esses atos revelam o que há de mais íntimo, particular e real dessas famílias e demonstram a implicação das questões culturais sobre a vivência do processo gestacional.

 

Discussão

 

Os significados do processo gestacional foram social e historicamente construídos pelas famílias, as quais estão imersas em diferentes contextos culturais. Esses significados se relacionam com o valor social conferido ao processo gestacional, demonstrando que esse é entendido como uma experiência ímpar e transformadora para o grupo familiar.1

            As concepções dos companheiros ratificam a importância dos profissionais de saúde, em especial os enfermeiros que desenvolvem a atenção pré-natal, ultrapassarem a visão biologicista acerca do processo gestacional, ampliando o olhar para a família, a qual pode ser designada como “família grávida”. O enfermeiro precisa desenvolver ações de cuidado que não sejam direcionadas apenas às manifestações biológicas,7 identificando os significados e as repercussões do processo gestacional no contexto familiar e considerando a ótica de todos os membros que compõem a sua estrutura.10

            É fundamental valorizar a família, pois é ela que fornece apoio, proteção e orientação à gestante11 e desenvolve essas funções por meio de rituais.5 Nessa conjuntura, infere-se que a realização do teste de gravidez inaugura o processo gestacional, pois a partir dele, o bebê passa, de fato, a existir para a família. Contudo, apesar de apresentar significados similares, o ritual de revelação ao companheiro e/ou à família pode manifestar-se de forma diferente em cada contexto familiar.

            No processo gestacional das famílias, a revelação representa um ato ou cerimônia que permite que elas iniciem uma nova fase do ciclo vital, tornando-se uma família grávida. No desenvolvimento desse rito, estão imbricados os valores e a visão de mundo, que orientam as práticas e as atitudes dos indivíduos e do próprio grupo.12

            Ao longo do período gestacional, outros rituais vão sendo desvelados. Inicialmente, existe a preocupação com o estado geral da gestante, que se reflete na preocupação de que ela consuma os nutrientes necessários para o crescimento e desenvolvimento fetal. Com isso, as práticas alimentares são destacadas nas conversas e nos encontros familiares, visando, especialmente, a proteção da saúde do bebê.

Sob essa ótica, a alimentação constitui um fenômeno marcado por simbologias, que manifestam as características de um grupo.13 Nessa direção, uma pesquisa desenvolvida em Gana constatou que existem muitas proibições e crenças alimentares dirigidas às mulheres grávidas, e que são constantemente enfatizadas pelos pais e familiares,14 atribuindo uma certa responsabilização materna pelos cuidados com o feto.11

Em contrapartida, em alguns casos, as normas culturais, tabus e crenças alimentares podem ser considerados causas básicas de desnutrição. Estudo realizado na Nigéria constatou que as gestantes evitam determinados alimentos, com receio de prejudicar o desenvolvimento do feto ou recém-nascido ou prolongar ou dificultar o trabalho de parto e parto. Contudo, alguns dos alimentos evitados apresentam nutrientes vitais para uma dieta equilibrada. Estes achados enfatizam a necessidade de abordar mitos e tabus alimentares durante o acompanhamento pré-natal.15 Assim, reconhece-se a importância de considerar os aspectos culturais, os quais, muitas vezes, não são valorizados pelos profissionais de saúde.7,13

Nesse sentido, reforça-se que o processo gestacional está atrelado às modificações fisiológicas, que podem gerar desconfortos toleráveis e demandam rituais de cuidado simples e resolutivos, vinculados ao contexto cultural de cada mulher e família e direcionados à proteção materno-infantil.16 Por essa razão, os hábitos relacionados à alimentação e ao controle de esforços físicos costumam ser questões de interesse e preocupação da família.17-18

            Ainda, constatou-se que o deslumbramento das reações de gestar, socializadas junto ao casal, direciona a vivência do processo gestacional numa perspectiva de família grávida. Esse período é marcado como um evento social, que ultrapassa a dimensão física, caracterizada pelas alterações no corpo da mulher, e abrange um fenômeno de dimensões socioculturais, que envolvem a família.19 Tal achado reforça a necessidade do enfermeiro promover à família grávida um cuidado que englobe os aspectos econômicos, sociais, culturais e ambientais, e não apenas questões biológicas.7

Ademais, a transformação da família em família grávida pode ser entendida como um ritual de passagem, em que os indivíduos mudam de status social.5 Quando os informantes afirmaram “nós estamos grávidos”, a representatividade do “nós” se sobressaiu. Em relação ao casal, o “nós” pode contextualizar a ideia de que cada um dos pares ingressa no universo do outro20 e, conforme se constatou nos achados, é no reconhecimento da condição de transitoriedade das famílias liminares que os rituais de cuidado se desenvolvem.

            Por outro lado, conforme destacado por um dos informantes-chave, o fato de não sentir fisicamente a presença do bebê crescendo em seu corpo, revela a dificuldade do companheiro em conseguir elaborar a ideia de uma família grávida. Logo, o período de transição para a parentalidade exige inúmeras adaptações e mudanças do casal, no âmbito psicológico, biológico e social.21

            Sob essa perspectiva, salienta-se que, em outros países, a vivência e a participação paterna no período gestacional também está envolta por questões culturais. Na Indonésia, por exemplo, o companheiro decide os serviços de acompanhamento pré-natal e atenção ao parto que devem ser frequentados pela gestante. Ele define se ela pode ser acompanhada por um profissional de saúde ou um curandeiro tradicional.22 Já em muitas sociedades da África, os homens não participam do processo gestacional de suas companheiras, pois há a crença de que se eles as “seguem” nas consultas e exames estão sob o seu controle. Por isso, eles optam por não se envolverem no cuidado pré-natal.23 No Brasil, tem-se verificado a participação paterna cada vez mais frequente no processo gestacional, ainda que as figuras femininas, como as mães das gestantes, ainda estejam mais próximas nesse período.1

Desse modo, pondera-se que esse evento demanda a participação do companheiro, o que não inclui apenas o acompanhamento nas consultas e ultrassons, mas também o seu envolvimento emocional. Nessa vivência, os companheiros e demais familiares podem estreitar seus laços e criar redes de apoio, ao mesmo tempo em que propiciam um ambiente favorável para receber o novo membro da rede familiar.

Portanto, embora, culturalmente, para alguns companheiros, ainda exista o entendimento de que o ápice da relação só pode ser alcançado após o nascimento e desenvolvimento da criança, é preciso investir na construção de vínculos entre ambos ainda no período gestacional.10 Sobretudo, estimulando que a inclusão não seja centrada apenas na provisão de segurança financeira e/ou instrumental para a família. É imprescindível considerar outras possibilidades de participação e maior inclusão do companheiro no processo gestacional e na vinculação com o novo ser.21

            O enfermeiro precisa compreender os contextos socioculturais que influenciam as crenças e práticas e, dentro do possível, sem desconsiderar tradições e valores culturais,22 incluir os companheiros, assim como as famílias, de forma que possam ser protagonistas e não meros destinatários de ações assistenciais.24 Para isso, é fundamental considerar os diferentes espaços que compõem o cuidado à saúde materno-infantil, que não apenas as consultas pré-natais, como, por exemplo, o contexto domiciliar. Esses aspectos precisam ser considerados pelo enfermeiro, permitindo desenvolver um cuidado, com uma interface entre os aspectos culturais do sistema profissional, popular e familiar.7

            Na sequência, ainda constatou-se que as questões ligadas ao quarto do primeiro filho também constituem um ritual de passagem. Além de ser filho, agora ele também é irmão, agregando uma nova identidade. Sob o aporte teórico,5 a construção de um segundo quarto ou a reestruturação de um espaço que já existe representam a passagem material desse filho para outra identidade.

Para a família primigesta, o quarto do bebê foi pensado detalhadamente. As cores do quarto foram consideradas em uma perspectiva mais ampla, abarcando as concepções de gênero e refletindo determinados aspectos de criação da filha, sem atribuir-lhe características socialmente esperadas para uma menina.

            Entretanto, de modo geral, a chegada de um bebê é capaz de alterar significativamente a composição de uma família. Os ajustes e as adaptações que precisam ocorrer em um contexto que, aparentemente, estava equilibrado e organizado podem, até mesmo, gerar ansiedade.10

            A família também demonstra preocupação com as vestimentas. As idas e vindas de objetos entre os indivíduos originam um grupo delimitado e criam a continuidade do vínculo social entre as pessoas.5 Na lógica das trocas, está o chá de fraldas. Esta cerimônia simboliza um ritual de cuidado, que aproxima o grupo social.5 Assim, cada uma das gestantes planejou o chá de fraldas de forma particular, sob a sua visão de mundo impregnada pela sua cultura e pelo significado simbólico atribuído ao ritual.

            O chá de fraldas, enquanto ritual de cuidado, além das trocas, permite renovar e reforçar a relação de pertencimento a um grupo restrito, que, geralmente, envolve pessoas ligadas à família grávida.5 Além disso, ele representa um ritual de agregação,5 no qual o bebê ainda em desenvolvimento é integrado ao contexto familiar, incorporando-o dentro desse sistema de valores, crenças e tradições que já se encontra em funcionamento.

            Nos relatos dos informantes-chave, ainda foi possível verificar uma perspectiva de valorização da autonomia dos filhos. Mais do que proporcionar afeto e servir de suporte, eles destacam a importância da família proteger e respeitar a liberdade de expressão e a autonomia.25 Tal achado pode representar um ritual de desagregação, no qual o casal desvincula-se de seus papéis anteriores, de homem e mulher, e passa por um ritual de reconstituição, que agrega novos papeis, de pai e mãe. É um período em que repensam seus valores, esperam e recomeçam a agir, porém, de um modo diferente, considerando a perspectiva do filho. É um novo limiar que eles precisam atravessar.5

            Na perspectiva de valorização da autonomia, algumas famílias mencionaram o desejo de não realizar o ritual de batismo. Contudo, demonstraram a vontade de fornecer-lhes padrinhos. O apadrinhamento representa, simbolicamente, um ritual de cuidado dos pais para com os filhos. É, também, um ritual de união e cuidado entre a criança e os padrinhos, os quais estes poderão auxiliar em sua criação.5

            Ademais, verificou-se que as famílias, em especial as gestantes, demonstraram a necessidade de registrar a vivência do processo gestacional. Para isso, elas utilizaram “álbuns da gestação”. Observar a construção desses álbuns e os acontecimentos escolhidos para serem registrados ratifica a ideia de que o processo gestacional representa uma fase que é vivenciada de modo diferenciado em cada contexto familiar e grupo social.26 Nesse sentido, é um período marcado por mudanças, mas também permeado por valores, saberes, crenças e rituais de cuidado.20,26  Esses rituais são vivenciados por todo o grupo familiar, e não apenas pela mulher, demonstrando, assim, a importância de incluir os familiares nas ações que abrangem o período gestacional, e valorizar os rituais de cuidado que permeiam o processo gestacional de cada família. A partir desse reconhecimento e valorização, pondera-se que o enfermeiro poderá adquirir conhecimentos e competências para desenvolver um cuidado culturalmente sensível.22

Por fim, cabe destacar que pode configurar um aspecto limitador no estudo o fato das narrativas das informantes gerais, isso é, das enfermeiras e da médica obstetra não terem sido privilegiadas, uma vez que durante a produção dos dados elas foram somente observadas e não entrevistadas. Contudo, aponta-se para a possibilidade de novas investigações que incluam esses indivíduos, ampliando a perspectiva sobre os rituais de cuidado desenvolvidos no processo gestacional.

Logo, espera-se que este estudo possa provocar novos olhares, considerando outras dimensões culturais ainda pouco valorizadas ou consideradas pelos profissionais de saúde.7 Ainda, é preciso destacar a interface entre os aportes teóricos da antropologia cultural e da enfermagem permitida nessa pesquisa, que foi possível a partir da utilização da etnoenfermagem como método de produção dos dados. Essa associação é fundamental para a construção de formas de cuidado culturalmente específicas para cada indivíduo, grupo ou família.

 

Conclusão

 

Os rituais de cuidado desenvolvidos pela família envolvem a revelação do processo gestacional para o companheiro e para a família, os cuidados com a alimentação, a utilização de recursos simples na promoção, prevenção e tratamento de determinados desconfortos físicos, a reorganização do ambiente domiciliar e da própria família para a chegada do bebê, a vivência e a participação da família, as leituras compartilhadas, a compra e as trocas de peças infantis, o chá de fraldas ou de bênçãos, a escolha dos padrinhos e o registro de aspectos ligados ao processo gestacional no álbum do bebê.

            Além disso, esses rituais de cuidado sinalizam o processo gestacional como um evento planejado e desejado pelas famílias, o qual foi exaltado como a concretização de um sonho e a realização plena da família. Constitui também um período marcado pelo envolvimento e a participação da família e, especialmente, do companheiro no cuidado pré-natal, como também em todos os rituais de cuidado ligados ao bem-estar materno-infantil.

Sendo assim, os resultados deste estudo podem ser considerados importantes implicações para a práxis do enfermeiro no cuidado à mulher e sua família, pois permite conhecer os rituais de cuidado desenvolvidos pela família e percebê-los como subsídios para a construção de um cuidado de enfermagem diferenciado e congruente culturalmente às necessidades da família grávida. No ensino, espera-se que o conhecimento produzido com este estudo possa estimular a valorização das características culturais e singularidades de cada contexto familiar, contribuindo para a qualificação do cuidado.

 

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Fomento/Agradecimento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Bolsa de doutorado concedida a Lisie Alende Prates.

 

Autor correspondente

Lisie Alende Prates

E-mail: lisiealende@hotmail.com

Endereço: Dr. Maia, 2160 apto 320 Uruguaiana/RS

CEP: 97501-768

 

 

Contribuições de Autoria

 

1 – Lisie Alende Prates

Concepção ou desenho do estudo/pesquisa; análise e interpretação dos dados, revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito.

 

2 – Natália da Silva Gomes

Análise e interpretação dos dados.

 

3 Carolina Heleonora Pilger

Revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito.

 

4 Ana Paula de Lima Escobal

Aanálise e interpretação dos dados, revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito.

 

5 Jussara Mendes Lipinski

Análise e interpretação dos dados, revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito.

 

6 Lúcia Beatriz Ressel

Concepção ou desenho do estudo/pesquisa; análise e interpretação dos dados, revisão final com participação crítica e intelectual no manuscrito.

 

Como citar este artigo

Prates AP, Gomes SG, Pilger CH, Escobal APL, Lipinsk JM, Ressel LB. “Nós estamos grávidos”: rituais de cuidado desenvolvidos por famílias durante o processo gestacional. Rev. Enferm. UFSM. 2020 [Acesso em: Anos Mês Dia]; vol.10 e63: 1-19. DOI:https://doi.org/10.5902/2179769240818