O DISCURSO DOS “NATIVOS DIGITAIS” NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA AMAZÔNIA OESTE PARAENSE

Narelly Tavares Rodrigues e Melo

Centro Universitário Luterano de Santarém – Ceuls Ulbra – narelly.rodrigues@ulbra.br

 

José Ricardo e Souza Mafra

Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA – jose.mafra@ufopa.edu.br

  

 

Resumo: Desde que surgiu, há mais de duas décadas, o termo “nativos digitais”, cunhado por Marc Prensky, tornou-se expressão genérica para se referir aos novos sujeitos da cultura digital. Muitas análises e críticas foram feitas ao termo, evidenciando problemáticas discursivas, principalmente no campo educacional, espaço utilizado pelo autor para ilustrar seus argumentos. Neste sentido, a pesquisa problematiza o termo “nativos digitais”, analisando-o desde a sua gênese até as aplicações discursivas no meio acadêmico em um Curso de formação de professores na Amazônia Oeste Paraense, a fim de compreender os limites de utilização do termo “nativos digitais” nas realidades educacionais amazônidas, considerando as identidades emergentes na sociedade em rede e as descrições identitárias dos sujeitos nomeados de “nativos digitais” na perspectiva de Prensky. A abordagem metodológica da pesquisa é constituída pelo aprofundamento do referencial teórico, combinado à pesquisa de campo em uma Licenciatura em Informática Educacional na Amazônia Oeste Paraense, sendo os participantes da pesquisa os professores do magistério superior e os licenciandos. Os resultados convergem para a necessária compreensão e discussão dos fenômenos identitários pós-modernos, valorizando e ampliando os debates sobre cultura digital na formação de professores amazônidas, assim como na necessária cautela sobre as generalizações discursivas que enquadram e padronizam os sujeitos, limitando os debates em torno da diversidade identitária.

Palavras-chave: Cultura digital. Nativos digitais. Formação inicial de professores na Amazônia.

 

THE DISCOURSE OF “DIGITAL NATIVES” IN TEACHER EDUCATION IN THE WESTERN PARÁ STATE, BRAZILIAN AMAZON

 

Abstract: Since its emergence more than two decades ago, the term “digital natives”, coined by Marc Prensky, has become a generic expression to refer to the new subjects of digital culture. Many analyzes and criticisms were made of the term, highlighting discursive problems, mainly in the educational field, a space used by the author to illustrate his arguments. In this sense, the research problematizes the term “digital natives”, analyzing it from its genesis to the discursive applications in the academic environment in a teacher education course in the western Pará State, Brazilian Amazon, in order to understand the limits of use of the term “digital natives” in Amazonian educational realities, considering the emerging identities in the network society and the identity descriptions of the subjects named “digital natives” from Prensky’s perspective. The methodological approach of the research consists of the deepening of the theoretical framework, combined with field research in a Degree in Educational Informatics in the Western Amazon of Pará, with the research participants being higher education teachers and undergraduate students. The results converge towards the necessary understanding and discussion of post-modern identity phenomena, valuing and expanding debates on digital culture in the education of Amazonian teachers, as well as the necessary caution regarding discursive generalizations that frame and standardize subjects, limiting debates in around identity diversity.

Keywords: Digital culture. Digital natives. Initial teacher education in the Amazon.

 

Introdução

 

Na literatura dos estudos geracionais é comum nos depararmos com o nome do escritor norte-americano Marc Prensky. Ele é um dos muitos teóricos que nomearam as gerações e fizeram recomendações aos educadores e aos sistemas de ensino, bem como previsões sobre as identidades dos novos sujeitos que surgiram a partir da explosão da internet e das tecnologias digitais.

Foi no artigo “Nativos digitais, Imigrantes digitais”, publicado na Revista On the Horizon em 2001, que Marc Prensky apresentou pela primeira vez a indicação sobre “nativos e imigrantes digitais”. Segundo o autor, os sujeitos nascidos em um mundo digital poderiam ser nomeados de “nativos digitais”, já aqueles que não nasceram em um mundo digital poderiam ser chamados de “imigrantes digitais”, pois estes, em alguma época, ficaram fascinados pelo mundo digital e acabaram adotando muitos aspectos dessa cultura (PRENSKY, 2001, p.2). Sobre esse artigo, Bruno Carvalho analisa:

 

Embora curto (...) o artigo se tornou um sucesso imediato, alavancando internacionalmente o nome de Prensky, até ali conhecido apenas no ramo americano dos jogos educacionais. Entre os acadêmicos, o texto tem sido desde então uma referência quase obrigatória para aqueles que se debruçam sobre a relação entre as chamadas NTICs – novas tecnologias da comunicação e da informação (já não tão novas assim) – e o processo de ensino-aprendizagem (CARVALHO, 2016, p. 36).

 

Analisando outros estudos de gerações que dão conclusões a partir de períodos históricos ou de consumos das sociedades, gerando mudanças na natalidade[1] e geralmente ligadas aos países do 1° mundo, Prensky fez uma demarcação do ponto de vista da socialização dos sujeitos nas sociedades analógicas ou digitais, dividindo o mundo em dois grupos: os “nativos digitais” e os “imigrantes digitais” (CARVALHO, 2016, p. 36). Entendemos que foi essa perspectiva de cisão que repercutiu, pois, o entendimento do “antes” (imigrante) e do “depois” (nativo) é simples de explicar e de fácil compreensão, o que acabou tornando os dois termos populares em todo mundo. No Brasil, por exemplo, a partir da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e dos movimentos pela Base, o termo “nativos digitais” ganhou destaque e frequência nos vocabulários dos sujeitos escolares, tornando-se expressão genérica para se referir aos novos sujeitos da cultura digital.

Sobre o artigo de Prensky, as principais análises e polêmicas que renderam sucesso ao autor giram em torno da educação formal para os “alunos nativos digitais” realizada por “professores imigrantes digitais”. Ao levarmos essas narrativas para as realidades amazônicas, nos deparamos com muitas problemáticas, contudo, o discurso impera no campo educacional, ao mesmo tempo que nos deparamos com a diversidade de identidades globais oriundas da cultura digital e identidades locais que conferem representatividade e identificação cultural aos amazônidas.

Neste sentido, entendendo a explosão de uso dessas nomenclaturas, buscamos entender quais os limites de utilização do termo “nativos digitais” nas realidades educacionais amazônicas, considerando as identidades emergentes na sociedade em rede e as compreensões dos sujeitos considerados “nativos digitais” na perspectiva de Prensky, que ocupam ou ocuparão o ofício de docentes na atuação com as novas gerações de alunos. Apresentamos uma análise crítica sobre os argumentos utilizados no artigo de Marc Prensky publicado em 2001, bem como as percepções de professores universitários e jovens estudantes de uma Licenciatura em Informática no interior da Amazônia Oeste Paraense, sobre os sujeitos nomeados de “nativos digitais”.

 

“IMIGRANTES DIGITAIS” X “NATIVOS DIGITAIS”? – DISCURSOS E CONTEXTOS

 

O popular artigo “Nativos digitais, Imigrantes digitais” (2001) não pode ser considerado somente como uma análise geracional. Na obra, Marc Prensky apresenta vários argumentos e exemplifica-os utilizando narrativas do cotidiano escolar dos sujeitos “imigrantes” e “nativos” digitais, invadindo propositalmente o campo educacional, abrasando ainda mais as diferenças de cultura, de geração e de educação formal.

Para justificar as suas análises, o autor situa principalmente a dificuldade de adaptação dos “imigrantes” à cultura digital. Segundo Prensky, o “imigrante digital” carrega “sotaques” que seriam “o pé no passado”, característica comum de todo sujeito oriundo de outro lugar e que carrega bagagens linguísticas e culturais marcantes do seu lugar de origem, situação semelhante identificado pelo autor nas atitudes e valores do “imigrante digital”. Em suma, seus argumentos giram em torno das seguintes problemáticas:

- Os instrutores/professores imigrantes digitais utilizam uma linguagem pré-digital para ensinar os nativos digitais. Essa linguagem, para o autor, é ultrapassada (PRENSKY, 2001, p. 2). Por isso, “os professores de hoje têm que aprender a se comunicar na linguagem e estilo de seus estudantes (Idem, p.4).

- Os “Nativos digitais” estão acostumados a múltiplas tarefas, a receber rapidamente muitas informações e processá-las, além disso preferem manusear materiais hipertextos, trabalhar em rede, ser constantemente recompensados e investir no entretenimento (Idem, p.4).

- Já os professores “Imigrantes digitais” desacreditam na aprendizagem dos “nativos digitais” enquanto estes fazem multitarefas. Além disso, conjecturam que os métodos com que eles, os imigrantes, foram ensinados e aprenderam durante a toda a sua formação, podem ser reutilizados com os estudantes nativos digitais (Idem, p. 3).

- Por fim, Prensky sugere que os educadores “Imigrantes digitais” devem mudar para alcançar os seus estudantes, entendendo que em breve todos os sujeitos jovens serão nativos digitais, e, nas palavras do autor:

 

Já é hora para pararem de lamentar, e assim como o lema da Nike da geração dos Nativos Digitais diz “Apenas faça isso!”. Eles terão sucesso a longo prazo – e seus sucessos virão mais rapidamente se seus administradores apoiá-los (PRENSKY, 2001, p. 6).

 

À primeira vista percebemos o quão desolador é imaginar que toda uma geração de professores está ultrapassada, a ponto de serem considerados a última geração de uma era, que no caso seria a última geração de pessoas que nasceram em um mundo analógico. Inclusive, essa é uma das suposições de Prensky:

 

Em algum momento, é claro, todos terão nascido na era digital. Estamos a caminho de algo novo: a era do Homo sapiens digital ou a era do indivíduo com sabedoria digital. Para compreender o mundo será preciso usar ferramentas digitais para articular o que a mente humana faz bem, com o que as máquinas fazem melhor. Nesse futuro, a diferença de idade e as diferenças entre nativos e imigrantes certamente serão menos relevantes (PRENSKY, 2010).

 

À medida que vamos analisando os argumentos do autor, somos levados a validar muitas de suas afirmações, afinal, as críticas aos sistemas de ensino e à educação não são novidades, principalmente nos ambientes de ensino formais, como as escolas e as universidades. Inúmeros teóricos da educação, sociologia e comunicação anteviram esse contexto, como o entusiasta das comunicações Marshall Macluhan em 1967 com estudantes que ainda não estavam dentro do contexto digital, mas que já respiravam as inovações técnico-científicas de suas épocas que não foram acompanhadas pelas suas instituições de ensino. Ele ilustrou o panorama:

 

A criança de hoje [1967] fica atônita ao entrar no ambiente típico do século XIX que ainda caracteriza as instituições educacionais, nas quais a informação é escassa, mas ordenada e estruturada em discursos, assuntos e horários fragmentados e classificados. (MACLUHAN apud TAPSCOTT, 2010, p. 156).

 

Paula Sibila (2012) também escreve sobre a escola sendo uma tecnologia de época que está conflito com “os corpos e subjetividades das crianças de hoje” (SIBILA, 2012, p. 197). A autora identifica, inclusive, a gênese do desencanto e a incompatibilidade dos sujeitos com a escola:

É claro que não se trata de um fenômeno fortuito ou enigmático: há explicações históricas e inclusive antropológicas para essa crescente incompatibilidade. (...) Sua gestação e seu desenvolvimento ocuparam várias décadas, tendo-se iniciado pelo menos a partir dos anos 1960 para se fortalecer ao longo da segunda metade do século XX. Mas essas tendências estão se cristalizando agora, e sua decantação na atualidade – com a ajuda dos dispositivos móveis e outras tecnologias de recente popularização – é um dos motivos pelos quais a brecha entre ambos os universos se tornou iniludível: por um lado, a escola; por outro lado, os modos de ser contemporâneos. (SIBILA, 2012, p. 198).

 

Vani Kenski (2007, p. 63), outra importante pesquisadora na área de tecnologias e educação, escreve que a expectativa no ensino se deve a “uma relação cíclica que se estabelece: quanto maior o acesso à informação, mais necessidade se tem de atualização para ficar em dia com as mais novas informações. E a escola é o espaço social fundamental para alimentar essa relação”, mas infelizmente não conseguiu acompanhar esse ritmo nas últimas décadas.

Essas preocupações também importunavam o célebre educador brasileiro Paulo Freire. Ele, que fez importantes discussões sobre o que chamou de educação bancária no ensino, defendia uma Educação Libertadora com currículos e práticas contextualizadas, com temas geradores, leitura de mundo e problematização. Freire mostrou sua preocupação em um diálogo histórico registrado em vídeo[2] com o matemático sul-africano Seymour Papert. Na ocasião, refletiu sobre a escola e defendeu a urgência da sobrevivência dessa escola a partir de uma reforma profunda e necessária:

 

Eu constato que a escola está péssima! (...) Mas eu não constato que a escola esteja desaparecendo e vá desaparecer. Por isso, eu apelo pra nós, os que escapamos da morte da escola (...) E que estamos sobreviventes aqui, modifiquemos a escola! Pra mim a questão não é acabar com ela, mas é mudá-la completamente (...). Quer dizer, eu continuo lutando no sentido de pôr a escola a altura do seu tempo. E pôr a escola a altura do seu tempo não é soterrá-la, sepultá-la. Mas é refazê-la! (...). (TV PUC-SP, 1995, grifos nossos).

 

Há muitos apontamentos para explicar essa crise, muitos versam sobre os fatores socioculturais, econômicos e políticos, mas também pedagógicos e ideológicos, entre eles a resistência à inovação educacional, seja por parte das escolas, dos docentes e/ou dos sistemas de ensino. José Moran, por exemplo, argumenta que

 

Vivemos o paradoxo de manter algo em que já acreditamos completamente, mas não nos atrevemos a incorporar plenamente novas propostas pedagógicas e gerenciais, mais adequadas à sociedade da informação e do conhecimento, para onde estamos caminhando rapidamente (MORAN, 2007, p. 16).

 

Então, é bem verdade que o impacto da cultura digital na sociedade ressoou na educação formal, destacando novas identidades culturais dos estudantes, mas também desafiou os sistemas de ensino, os sujeitos escolares e os agentes de políticas educacionais a repensarem o processo de ensino para as novas gerações. Nesse sentido, conseguimos entender os discursos de Prensky, apesar de perceber também que nas suas análises o autor generaliza os contextos escolares, ignorando as políticas educacionais e ações, inclusive do seu próprio país, Estados Unidos da América (EUA), que buscam há tempos minimizar essas problemáticas.

 

O discurso dos “Imigrantes digitais” X “O chão da escola” – Perspectivas para além dos estereótipos

 

Ao mesmo tempo que validamos as críticas aos métodos e sistemas de ensino, também discordamos de Marc Prensky, principalmente quando ele alimenta as disputas geracionais e trata o professor, que ele nomeia de imigrante digital, como:

§  Antiquado: “nossos instrutores Imigrantes Digitais, que usam uma linguagem ultrapassada” (PRENSKY, 2001, p. 2);

§  Lento: “(...) os Imigrantes Digitais tipicamente têm pouca apreciação por estas novas habilidades que os Nativos adquiriram e aperfeiçoaram através de anos de interação e prática. Estas habilidades são quase totalmente estrangeiras aos Imigrantes, que aprenderam – e escolhem ensinar – vagarosamente, passo a passo, uma coisa de cada vez, individualmente, e acima de tudo, seriamente” (Idem, p. 2 – 3).

§  Inflexível: “Os Imigrantes Digitais não acreditam que os seus alunos podem aprender com êxito enquanto assistem à TV ou escutam música, porque eles (os Imigrantes) não podem (Idem, p. 3).

§  Chato: “Os Imigrantes Digitais acham que a aprendizagem não pode (ou não deveria) ser divertida” (Idem, p. 3).

§  E Metódico, a ponto de ignorar as diversas realidades dos alunos: “Os professores Imigrantes Digitais afirmam que os aprendizes são os mesmos que eles sempre foram, e que os mesmos métodos que funcionaram com os professores quando eles eram estudantes funcionarão com seus alunos agora” (Idem, p. 3).

Ao refletirmos sobre a crítica de Prensky aos professores “imigrantes digitais”, percebemos que seu discurso generaliza e ignora os tempos e espaços escolares/universitários, o “chão da escola”, a organização do trabalho pedagógico e a relação dos professores com os alunos. David Buckingham (2010) critica esse tipo de discurso acusatório e revela que

 

não é que os professores sejam inflexíveis, mas que a grande maioria das reformas educacionais – inclusive as dirigidas pela tecnologia – são implementadas sem o envolvimento ativo dos próprios professores (BUCKINGHAM, 2010, p. 41).

 

Buckingham ainda ressalta que “precisamos parar de pensar nessas questões em simples termos tecnológicos, e começar a ter ideias novas sobre aprendizagem, comunicação e cultura” (2010, p. 55), dessa forma estaremos assumindo mais proatividade diante da realidade de cultura digital dos alunos.

Além dessas questões, precisamos também fazer a análise do principal termo apresentado por Marc Prensky e sopesar se todas as suas afirmativas sobre os sujeitos “nativos digitais” descritas no popular artigo de 2001, são válidas.

 

Problematizando o termo “nativos digitais”

 

Muitos autores fizeram análises sobre o artigo de Marc Prensky, alguns tomaram o caminho de aceitação das afirmações do autor, e isso o elevou ao status de guru digital de educação e tecnologias (SCHLECHTY, 2009, p. 18). Outros contextualizaram as análises para os dias atuais e questionaram os argumentos, a fim de fazer releituras sobre os termos propostos e refutar as análises apresentadas pelo autor em 2001. Eis as principais releituras e críticas:

- Ao apresentar a sua explicação sobre os termos “nativos” e “imigrantes” digitais, Marc Prensky ignora a exclusão digital ao redor do mundo.

Recorremos a Stuart Hall, célebre autor dos Estudos Culturais, que afirma que não podemos falar em uma homogeneização de identidades culturais sem situá-las, afinal:

 

(...) a globalização é muito desigualmente distribuída ao redor do globo, entre regiões e entre diferentes estratos da população dentro das regiões. Isto é o que Doreen Massey chama de "geometria do poder" da globalização.

(...) a globalização - embora seja, por definição, algo que afeta o globo inteiro- seja essencialmente um fenômeno ocidental (HALL, 2006, p. 78).

 

Carvalho (2016) também levanta a questão de que mesmo nos Estados Unidos, ponto de partida para as análises de Prensky no artigo de 2001, o conceito de nativos digitais não é suficiente para atender as demandas da classe social, da origem étnica e o acesso a bens técnicos e à própria cultura digital (CARVALHO, 2016, p. 39).

- Outra crítica se deve a própria demarcação etária do termo “nativo digital” feita por Prensky, o “antes” (imigrante) e o “depois” (nativo”) do digital.

Ocorre que muitos autores, a exemplo de Don Tapscott (2010), Neil Howe e William Strauss (2000); e Wim Veen, Bem Vrakking (2009)[3], além de Marc Prensky, também nomearam os sujeitos da cultura digital, sendo que todos esses autores tem em comum a compreensão de que o advento das Tecnologias digitais e da internet foram fundamentais para o surgimento de novos sujeitos com uma identidade relacionada ao contexto digital. Esses autores compartilham também a similitude em registrar a gênese desses sujeitos, como discorre os autores John Palfrey e Urs Gasser: Os “Nativos digitais (...) nasceram depois de 1980, quando as tecnologias digitais (...) chegaram online.” (PALFREY; GASSER, 2011, p.11).

Contudo, Tapscott também indica que “a porcentagem de jovens da Geração internet na população varia consideravelmente de um país para outro” (2010, p. 34), algo que também foi refletido por Carvalho (2016), analisando que “(...) aquilo que era para ser visto como uma unidade definida pela data de nascimento (“geração”), também é fortemente delimitado pelo local e pelas condições de nascimento”. Desta forma, não poderíamos considerar a década de 1980 como o período de surgimento dos nativos digitais em todo globo; na verdade, nessa perspectiva de demarcação etária, o ideal seria primeiro identificar o início da conexão de um país à rede mundial de computadores. Para entender esse argumento, ilustrando com o exemplo brasileiro:

Sabemos que no Brasil essa conexão seguiu uma longa e árdua trajetória e foi somente no final da década de 80 que as Fundações de Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e o Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC) conseguiram o acesso às redes internacionais. Como o acesso ainda era muito restrito aos centros acadêmicos, ainda assim não poderíamos considerar que os nascidos a partir de 1988 seriam a primeira geração de nativos digitais brasileiros.

Refletindo mais profundamente sobre os as afirmações de Tapscott (2010, p. 30), identificamos que a geração digital vê a tecnologia como parte do seu ambiente, absorvendo-a como todas as outras coisas, então entendemos que nesta perspectiva, os nativos digitais seriam os sujeitos que nasceram e cresceram em um ambiente digital, portanto o marco de referência definitivo seria a ascensão da internet no país e a distribuição de acesso para a população, ou seja, quando a internet chegou aos provedores comerciais e impactou as comunicações, as rotinas e as tecnologias.

Tentando entender o tempo considerado nessa possível demarcação brasileira, apoiamo-nos em Dementshuk & Henriques (2019, p. 402) que indicam o início da operação do primeiro backbone da Rede Nacional de Pesquisa (RNP), em 1992, registrando a popularização da rede no meio acadêmico, sendo que “em 1992 havia dois mil computadores brasileiros acessando a rede; um crescimento de 500%, em um ano” (Ibidem, p. 409). Mas foi no ano de 1995 que aconteceu a abertura dessa grande rede para o uso comercial, registrando ainda que isso “envolveu novos ajustes em diversas áreas: tecnologia, legislação, comércio, política; essencialmente, forma-se o jeito de operar a Internet no Brasil” (Idem, p. 420 – 421).

Portanto, utilizando a perspectiva da demarcação etária sugerida por Prensky, poderíamos definir que os nativos digitais brasileiros seriam os sujeitos que nasceram a partir de 1995, com a popularização da internet comercial no país e já com muitas iniciativas de empresas e serviços de telecomunicações em utilizar a rede mundial de computadores nas suas atividades cotidianas, tornando o ambiente digital e de rede mais próximos, de certa maneira, da população.

Nessa perspectiva, sugere-se que todos os jovens a partir de determinado ano, idade ou fato social (o surgimento da internet, por exemplo), seria nativo digital. Essa demarcação seria prática, se não fossem diversos fatores, como a própria exclusão digital e a exclusão social.

São por todas essas compreensões que preferimos utilizar nesta pesquisa as contribuições dos Estudos Culturais e as suas análises de cultura e identidade cultural. Entendendo que o mais apropriado seria considerar que conseguimos perceber no Brasil o surgimento de uma nova identidade cultural de sujeitos nascidos e socializados na sociedade em rede a partir do ano de 1995. Mas, não são todos os nascidos a partir desse ano no Brasil que compartilham da mesma identificação cultural, sendo condição necessária a socialização do sujeito na sociedade em rede.

- Uma das maiores críticas ao artigo de Marc Prensky é a insinuação de que os “nativos digitais” são “falantes nativos” da linguagem digital, incluindo nesse repertório todas as tecnologias, como os computadores, vídeo games e internet. Este ponto de vista sugere que os jovens nativos digitais têm fluência tecnológica e sabem usar intuitivamente as tecnologias digitais.

Contudo, o autor Neil Selwyn critica a positividade e a frequente celebração ao se falar dos jovens da cultura digital como empoderados digitalmente, pois o modo como geralmente se referem a eles dá a impressão de que são livres para fazer escolhas e interagir, são autônomos e sociáveis (SELWYN, 2009, p. 366 - 367), quando na verdade essas impressões negligenciam e disfarçam os riscos e perigos do uso das tecnologias digitais sem moderação, além do incentivo a uma “cultura de desrespeito” entre os jovens e as instituições escolares (Idem, p. 368).

Ilustrando essa crítica, explanamos o artigo “A Falácia do Nativo digital”, publicado em 2014 no site europeu do ICDL - Certificado Internacional de Competências em Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). Neste artigo, o ICDL apresenta uma série de análises e estudos realizados em vários países europeus sobre os sujeitos nativos digitais, dando ênfase para as análises das dimensões do termo “nativo digital” e em como isso influenciou na identificação dos jovens. No artigo, verifica-se que:

§  O termo “nativo digital” sugere falsamente que os jovens sabem utilizar as tecnologias digitais.

§  O termo se perpetua e oferece uma falsa sensação de segurança aos pais, professores e sistemas de ensino, e acabam influenciando os currículos escolares.

§  O tempo de exposição às tecnologias não é sinônimo de saber utilizá-las.

§  Os jovens superestimam seus níveis de habilidades digitais.

§  Não se pode confundir “competências de estilo de vida” (uso de redes sociais, jogos, entre outros) com competências digitais estabelecidas pelo mercado de trabalho.

§  E mesmo que pareça que os jovens sabem tudo sobre tecnologias digitais, não podemos negligenciar o acesso à educação digital de maneira formal e estruturada.

Na mesma linha dessas análises, David Buckingham evidencia os estudos de diversos autores constatam “que os usos que a maioria das crianças fazem da nova tecnologia são caracterizados não por espetaculares manifestações de inovação e criatividade, mas por formas relativamente mundanas de comunicação e recuperação da informação” e que muitos jovens ainda se sentem frustrados com o uso das tecnologias e estão interessados somente na sua utilidade (BUCKINGHAM, 2010, p.43). Selwyn alerta também que:

 

Embora muitas vezes atraente e persuasivo, o teor geral dessas construções discursivas de jovens e tecnologia tende ao exagero e inconsistência. Não se pode dizer que o discurso do nativo digital, conforme articulado atualmente, forneça um relato especialmente preciso ou objetivo dos jovens e da tecnologia (2009, p.370).

 

Então, entendemos que devemos ter cautela sobre as idealizações e narrativas criadas em torno das habilidades natas dos sujeitos nativos digitais.

 

Em várias oportunidades, desde o lançamento do seu artigo de 2001, Prensky defendeu que a sua concepção e a dicotomia utilizada para designar os sujeitos, giram em torno da dimensão cultural e das experiências, muito mais do que de uma demarcação etária. Segundo o autor,

Nativos digitais e imigrantes digitais são termos que explicam as diferenças culturais entre os que cresceram na era digital e os que não. Os primeiros, por causa de sua experiência, têm diferentes atitudes em relação ao uso da tecnologia (...) (PRENSKY, 2010).

 

Em 2012, Marc Prensky escreveu uma nova obra, retomando a análise dos termos dicotômicos de nativos e imigrantes digitais, sugerindo um novo conceito: sabedoria digital. Analisando essa mudança da perspectiva de Prensky, os autores Flavio Bartoszeck, Wanderlucy Czeszak e João Mattar Neto explanam que pela nova concepção

 

a tecnologia não nos deixa complacentes, passivos e pouco preparados para os desafios cotidianos, mas sim é uma fonte de instrumentação conceitual indispensável para o panorama atual, o qual abundam problemas relacionados com a Ciência, Tecnologia e Sociedade. Ou seja, a construção de uma Sabedoria digital, poderia nos fornecer subsídios para lidar de forma positiva com a Tecnologia (BARTOSZECK, CZESZAK MATTAR NETO, 2016, p.3).

 

Contudo, essa nova concepção de Prensky não teve tanta repercussão como o artigo de 2001, mas nos trazem novos conceitos para o campo da pesquisa e a importância da autorreflexão e autocrítica.

 

MATERIAIS E MÉTODOS

 

O desenho metodológico envolveu a Pesquisa do tipo bibliográfica e Pesquisa de campo. A pesquisa bibliográfica foi fundamentada em torno do autor dos Estudos Culturais, Stuart Hall (2006); da obra de Marc Prensky (2001), e outros autores dos Estudos geracionais, tais como Tapscott (2010) e Palfrey, Gasser (2011); e também de autores que se debruçam nos temas da cultura digital, como: Selwyn (2009), Bruckingham (2010), Carvalho (2016).

A pesquisa de campo foi desenvolvida na Licenciatura em Informática Educacional (LIE) de uma Universidade pública localizada na Amazônia Oeste Paraense. A LIE se destaca por ser um curso inovador que traz no seu bojo a formação de professores e as temáticas relacionadas às tecnologias educacionais, acompanhando a Instituição de Ensino Superior (IES) na sua proposta acadêmica estruturada na interdisciplinaridade, com grandes aspirações para a inovação na Amazônia.

É importante salientar que a pesquisa de campo necessitou ser adaptada ao contexto das atividades pedagógicas não presenciais e aulas remotas em virtude da Pandemia da Covid-19 nos anos de desenvolvimento do estudo (2020, 2021 e 2022/01), assim, adotamos processos investigativos com atenção aos protocolos do contexto pandêmico e direcionamentos da IES, sendo que esta fase do estudo precisou ser desenvolvida por meios virtuais, não havendo, portanto, etapas presenciais na pesquisa de campo.

Houveram três intervenções para a coleta de dados, sendo: observação participante em salas de aulas virtuais; coleta de dados com os discentes do Curso LIE por meios virtuais, aplicando questionários e entrevistas em profundidade; e coleta de dados com os professores do Curso LIE, também por meios virtuais utilizando questionários e entrevistas.

Para facilitar a identificação de cada grupo de participantes da pesquisa, apresentamos a seguinte organização dos comunicadores:

 

Quadro 01 Identificação dos comunicadores da pesquisa.

Técnica/Instrumento aplicado

Identificação

Comunicadores

Observação participante

Grupo de alunos 1

Grupo de alunos da disciplina do 1º semestre do Curso LIE.

Grupo de alunos 3

Grupo de alunos da disciplina do 3º semestre do Curso LIE.

Grupo de alunos 7

Grupo de alunos da disciplina do 7º semestre do Curso LIE.

Questionários

Discentes QA

Discentes do Curso LIE.

Docentes QB

Docentes do Curso LIE.

Entrevistas

Discente E1

Discente entrevistado do 1° semestre.

Discente E3

Discente entrevistado do 3º semestre.

Docente E1

Docente da disciplina do 1º semestre do Curso LIE.

Docente E3

Docente da disciplina do 3º semestre do Curso LIE.

Docente E7

Docente da disciplina do 7º semestre do Curso LIE.

Fonte: A pesquisadora, 2022.

 

Utilizou-se a Análise de conteúdo (BARDIN, 2011) para tratamento dos dados coletados. Já a abordagem do estudo é essencialmente qualitativa, visto que as impressões dos grupos de interlocutores nos permitiram compreender os fenômenos culturais e identitários e os processos de ensino-aprendizagem, comunicações, relações e interações. Mas, também decidimos combinar as articulações quantitativas com a abordagem qualitativa, a fim de somar nas análises e triangulações dos resultados.

 

RESULTADOS E DISCUSSÕES

 

A questão chave que conduziu a pesquisa estava relacionada as compreensões e percepções dos participantes da pesquisa para identificar e/ou reconhecer os sujeitos nativos digitais no curso LIE. As respostas estão ilustradas a seguir:

Gráfico 01 Percepções gerais de identificação e reconhecimento do sujeito nativo digital

Fonte: A pesquisadora, 2022.

 

As percepções dos respondentes sobre o sujeito nativo digital, a partir da análise do gráfico, nos permite considerar duas dimensões de apreciação: uma global e uma local.

Na dimensão global, as afirmações das questões relacionadas às habilidades dos sujeitos nativos digitais com as Novas tecnologias da informação e comunicação (NTIC) são demarcadas nos percentuais dos gráficos, assim como as afirmações relacionadas as habilidades sociais e de comportamento na cultura digital. Notamos, por exemplo, que nenhuma das seguintes afirmações receberam discordâncias totais: “Possui habilidade no uso das tecnologias digitais”; “Demonstra interesse em atividades que utilizem recursos digitais”; “Aprende rapidamente a utilizar uma nova tecnologia digital ou app”; “Pesquisa qualquer coisa em sites de buscas”; e “Participa ativamente de atividades que propõe a resolução de problemas”. Todas essas afirmações sugerem o consumo das tecnologias digitais no cotidiano, visando facilitar ou entreter a rotina dos sujeitos, algo que constatamos também no seguinte trecho da entrevista com o discente:

 

Discente E3: O fato de um estudante ser "Nativo Digital" não significa necessariamente que este entende e/ou saiba tudo de tecnologias e de seus usos, podemos verificar que muitas vezes o seu foco de atenção está somente nas ferramentas que ele tem interesse.

 

Essa crítica é a mesma de Neil Selwyn (2009), quando se superestima as habilidades de uso de TDICs pelos jovens. Esse tipo de uso se relaciona ao que é demonstrado no artigo “A falácia do Nativo Digital” do ICDL (2014) que evidencia o uso maior das tecnologias digitais pelos jovens para o desenvolvimento das “competências de estilo de vida”, que também é corroborado por David Buckingham (2010) quando afirma que:

 

Estudos recentes [FACER ET AL., 2003; HOLLOWAY; VALANTINE, 2003; LIVINGSTONE; BOBER, 2004] sugerem que (...) pouquíssimos [jovens] estão interessados na tecnologia em si ou acreditam que ela tenha poderes mágicos: só estão interessados na sua utilidade. (BUCKINGHAM, 2010, p. 43)

 

Compreendemos também que a percepção dos respondentes sobre o sujeito nativo digital está conexa a relação com as tecnologias digitais, algo que também entendemos nas entrevistas:

Discente E1: Imagino que a pessoa nativo digital está sempre pesquisando as novidades, principalmente, em relação as tecnologias.

 

Docente E1: Muitos deles [nativos digitais], a sua maioria são jovens que há algum tempo tem o acesso de certa forma facilitado, o que os leva a desenvolver esse manuseio com as novas tecnologias; e aí em especial a questão do celular, do notebook e, claro, todos com acesso à internet.

 

Entendemos que essa relação do sujeito com as tecnologias digitais faz parte da sua identificação com a cultura estabelecida na pós-modernidade, portanto, é a sua diferença diante da diversidade de outras identidades, algo que entendemos na análise das concepções de identidades pós-moderna explanados por Stuart Hall (2006).

Sobre a dimensão local na análise dos gráficos, chama-nos atenção a percepção dos participantes em não generalizar ou determinar que os sujeitos nativos digitais sejam naturalmente habilidosos com as tecnologias digitais, ou que tudo relacionado ao digital seja a expertise do nativo digital. Ao contrário, apresentaram discordâncias parciais ou totais, mesmo que em percentuais pequenos, com as afirmações mais deterministas, que geralmente são direcionadas ao sujeito nativo digital, tais como: “É inseparável do seu smartphone e/ou outras tecnologias digitais”; “Está sempre conectado(a) à internet”; “Possui diversas contas em redes sociais”; “Relaciona-se ou se comunica com os outros de modo diferenciado, geralmente mediado por alguma tecnologia digital”; “Faz várias coisas ao mesmo tempo”; e “Participa ativamente de atividades colaborativas e trabalha bem em rede”.

Essas percepções sobre os sujeitos nativos digitais vão na contramão do que é explanado por muitos autores geracionais, em especial os mais deterministas, como Don Tapscott (2010) e Marc Prensky (2001). Esse grupo de autores defendem que para as novas gerações “a tecnologia é como o ar” e que “à medida que a tecnologia evolui implacavelmente a cada mês, os jovens simplesmente a absorvem, como se fossem melhorias na atmosfera” (TAPSCOTT, 2010, p. 29 - 31), portanto, seriam as tecnologias que impulsionariam com naturalidade os comportamentos culturais dos sujeitos nativos digitais.

Entretanto, notamos que as percepções dos respondentes da pesquisa se aproximam da visão defendida por autores como Neil Selwyn (2009) e Buckingham (2010), que fazem uma crítica contundente aos autores deterministas; e são mais cautelosos com a retórica da geração digital (BUCKINGHAM, 2010, p. 43), entendendo que:

 

(...) eles [geração digital] são caracterizados por uma forma de determinismo tecnológico - pela noção de que a tecnologia traga mudanças sociais ou psicológicas, a despeito de como e por quem é usada. A noção da geração digital também essencializa os jovens e pode nos levar a ignorar desigualdades e diferenças entre eles (...). A retórica da geração digital leva também à ignorância do que se pode chamar de banalidade de boa parte do uso da nova mídia (Idem, p. 43).

A aproximação com essa perspectiva é confirmada quando, nas entrevistas, os docentes explicam as contradições existentes na base do termo nativos digitais, por exemplo:

 

Docente E1: Apesar de ser um conceito ainda discutido por diversos autores da área, alguns observam concordância, outros nem tanto. Mas considerando aqueles que observam com concordância o termo, me faz crer que aqueles alunos que têm, de certa forma, alguma facilidade no manuseio dessas, então chamadas novas tecnologias da informação e comunicação, parecem estar caracterizadas como nativos digitais.

Mas percebo também que isso não vale como regra, né! Aqueles que têm menos acesso e, portanto, menos oportunidade de terem contato com esses aparatos tecnológicos, eles acabam, independentemente da idade, sendo mais jovens ou não; ainda não considerados como nativos digitais.

 

Docente E3: A gente tem alunos que, eu não tô nem falando do domínio de tecnologias, mas que tiveram uma formação muito deficitária, no sentido de educação básica (...). E ainda, some-se a isso uma universidade multicultural, uma universidade em que a gente traz estudantes quilombolas, traz indígenas, que são estudantes que vêm de modos de vida distintos em que a tecnologia pode se fazer presente, ou não pode; porque muitas vezes certas comunidades indígenas eles têm acesso a celulares, têm acesso a equipamentos, mas não é o acesso equivalente ao que existe ali. Por isso, o termo nativos e Imigrantes digitais, por ele se basear em uma cisão sócio-geracional que estabelece o grau de desenvoltura com as tecnologias, que se dá a partir do momento em que eu nasci numa época “x”, e os sujeitos que nasceram antes dessa época “x” são, automaticamente, Imigrantes, é muito problemático! (...)

A partir do momento em que a gente parte do pressuposto de que todos são nativos digitais, porque eles nasceram no cenário em que a tecnologia se estabelece com uma espécie de padrão, uma constante nas práticas cotidianas; a gente desconsidera as desigualdades, e esses sujeitos ficam automaticamente invisíveis.

 

Entendemos que a preocupação dos participantes gira em torno do determinismo e do engessamento retórico originado pelo termo, em especial pela demarcação etária e pela apreensão sobre quem são os sujeitos nativos digitais. No artigo do ICDL (2014), há o descontentamento com essas compreensões deterministas sobre o sujeito nativo digital, evidenciando as sugestões equivocadas e a tendência de superestimar as habilidades digitais dos jovens.

Focando na dimensão local, evidenciamos também as preocupações que circundam as vivências dos participantes da pesquisa com a diversidade amazônida, entendendo que não podemos generalizar a compreensão de nativos digitais e tornar o termo absoluto para a realidade amazônica; como denota os entrevistados:

 

Docente E3: Eu tenho numa turma pessoas que são absolutamente desenvoltas e se encaixam no estereótipo de nativos digitais, e eu tenho pessoas que não sabem sequer fazer funções básicas em pacotes do Office, por exemplo, não sabem fazer um recuo de texto, centralizar, que não sabem fazer afastamento, enfim! Então, esses são cenários que, principalmente, no contexto da Amazônia é muito importante a gente estar atento a essas nuances.

 

Docente E7: Eles estão dentro de um curso de informática Educacional na região Amazônica, então eles não deixam de ter essa visão ao fazer reflexões sobre a educação, porque a gente não pode fazer uma reflexão de educação como se a gente tivesse na região sudeste, por exemplo; é uma realidade totalmente diferente.

 

Então, entendemos que os participantes da pesquisa estão com “os pés firmes no chão” quando se trata de relacionar os nativos digitais no contexto e realidade amazônida. Constatamos que há o entendimento de que esse sujeito, entendido popularmente como nativo digital, está presente na Universidade em questão, mas não são o universo total dos jovens estudantes. Eles são identificados a partir do seu consumo de tecnologias e mídias digitais e pelo seu estilo de vida, não significando que são fluentes em todas as tecnologias que surgem.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Sabendo que o termo “nativo digital” carrega uma série de problemáticas, o mais sensato seria utilizar outras terminologias. Entretanto, estamos falando de um termo que ganhou popularidade na rotina escolar, principalmente a partir da homologação da BNCC no Brasil, e o “nativo digital” ganhou essa repercussão nos espaços escolares, tornando-se não somente mais um termo ou expressão, mas, está carregando, um discurso que vem a ser excludente no âmbito social e digital.

Esse discurso destaca as determinações e descrições identitárias que foram impressas sobre os sujeitos nativos digitais por Marc Prensky desde o artigo de 2001, tais como: a generalização e homogeneização dos sujeitos das sociedades analógicas e digitais; as demarcações etárias e/ou biológicas generalistas; e as habilidades natas no uso das tecnologias digitais e da internet. Mas, apoiados em Neil Selwyn (2009, p.370), quando nos alerta que:

Embora muitas vezes atraente e persuasivo, o teor geral dessas construções discursivas de jovens e tecnologia tende ao exagero e inconsistência. Não se pode dizer que o discurso do nativo digital, conforme articulado atualmente, forneça um relato especialmente preciso ou objetivo dos jovens e da tecnologia.

 

Assim, conforme constatamos nos resultados da pesquisa, precisamos assumir que o discurso do “nativo digital” não engloba a Universidade do interior da Amazônia e o Curso LIE em suas completudes, visto que o termo apresenta limitações e determinismos desde a sua gênese, que na realidade amazônica exclui grande parte dos licenciandos.

Consideramos que no âmbito Universitário Amazônida, os participantes da pesquisa, atentos às narrativas e contextos em que estão inseridos, reconhecem o surgimento e as transformações identitárias emergentes da cultura digital, e não as rejeitam; mas assumem uma posição crítica e reflexiva sobre os discursos. Nesta perspectiva, conseguimos entender que precisamos ter cautela com o uso dos termos deterministas, bem como conhecer as suas nuances e argumentos contrários, afinal, tratamos sobre construções identitárias de sujeitos, que são complexos, diversos e estão em constante deslocamento nas suas culturas locais e globais.

Vislumbramos também uma das muitas lentes que revelam a complexidade da construção identitária professoral, entendendo na observação das relações reais entre estudantes e professores, ou melhor, entre os sujeitos que nasceram ou foram socializados na cultura digital, os princípios de identidade, diferença (HALL, 2006, p. 86-87), significação e representação (Idem, p. 13), que permitem a reflexão sobre o outro, suas culturas e marcas de pertencimento, mas também sobre si na e em relação ao outro.

Diante dessas considerações, entendemos que a Ufopa e o Curso LIE estão posicionados como uma Intuição que entende a cultura digital no contexto amazômico. Entendemos também que a Ufopa, como uma jovem universidade[4], têm mostrado continuidade no processo de amadurecimento institucional, bem como, consciência do papel estratégico que exerce na Região Amazônica; cabendo a IES, como indica Imbernón, prosseguir com o reconhecimento das identidades culturais da comunidade universitária, “permitindo-lhes a aquisição de autoconhecimento, de autonomia pessoal e de socialização” (2016, p.81), dessa forma, entendemos que o Curso LIE se apresenta com potencial para contribuir com a Ufopa nesse processo de amadurecimento.

 

Referências

 

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.

 

BARTOSZECK, Flavio Kulevicz; CZESZAK, Wanderlucy A. A. Corrêa; MATTAR NETO, João Augusto de. Um Exemplo de Sabedoria Digital: a aprendizagem baseada em games. Revista Científica de Educação à distância. Vol. 8 – Nº 14- julho-2016 / ISSN 1982-6109.

 

BUCKINGHAM, David. Cultura digital, Educação Midiática e o Lugar da Escolarização. Educ. Real., Porto Alegre, v. 35, n. 3, p. 37-58, set./dez., 2010.

 

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Nativos digitais, Imigrantes digitais: Quinze anos depois. In.  BUENO, André; ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton (orgs.). Para um novo amanhã: visões sobre aprendizagem histórica. Rio de Janeiro/União da Vitória: Edição LAPHIS/Sobre Ontens, 2016.

 

DEMENTSHUK, Márcia; HENRIQUES, Percival. Pássaros voam em bando: a história da internet do século XVIII ao século XXI. João Pessoa, Editora ANID: 2019.

 

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro.

 

HOWE, N., & STRAUSS, W. (2000). Millennials Rising: The Next Great Generation. In R. J. Matson (Ed.), Cartoons. New York: Vintage Books.

 

ICDL Europa. The fallacy of the ‘digital native’. 2014. Disponível em: <https://www.icdleurope.org/policy-and-publications/the-fallacy-of-the-digital-native/>. Acesso 15 nov 2021.

 

KENSKI, Vani Moreira. Educação e Tecnologias: O novo ritmo da Informação. 8ª Ed. Campinas, SP: Papirus, 2007.

 

PALFREY, John; GASSER, Urs. Nascidos na era digital: entendendo a primeira geração dos nativos digitais. Porto Alegre: Artmed, 2011.

 

PRENSKY, Marc. Nativos Digitais, Imigrantes Digitais - Part. 1. Tradução de Roberta de Moraes Jesus de Souza. On The Horizon – Estados Unidos – NCB University Press, v.9, n.5, Oct, 2001. Título Original: Digital natives, digital immigrants.

 

__________. In. GUIMARÃES, Camila. Marc Prensky: “O aluno virou o especialista”. Revista Época. 08 jul 2010. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI153918-15224,00-MARC+PRENSKY+O+ALUNO+VIROU+O+ESPECIALISTA.html. Acesso em 12 fev 2022.

 

SCHLECHTY, Phillip C. Leading for learning: How to transform schools into learning organizations. Jossey -Bass. San Francisco: EUA, 2009.

 

SELWYN, Neil. The digital native – myth and reality. Aslib Proceedings: New Information Perspectives Vol. 61 No. 4, 2009 pp. 364-379.

 

SIBILIA, Paula. A escola no mundo hiperconectado: redes em vez de muros? Matrizes, São Paulo, ano 5, n. 2, p. 195-211, 2012.

 

TAPSCOTT, Don. A hora da geração digital: como os jovens que cresceram usando a internet estão mudando tudo, das empresas aos governos. Rio de Janeiro: Agir Negócios, 2010.

 

VEEN, Wim; VRAKKING, Ben. Homo Zappiens: educando na era digital. Porto Alegre: Armed, 2009. Tradução: Vinícius Figueira.

 

Notas



[1] Exemplos, a partir dos estudos de Don Tapscott (2010): Geração Baby Boom (1946 – 1964), os filhos do pós2ª guerra; Geração X (1965 – 1976), em uma referência ao romance de Douglas Coupland (Geração X: Contos para uma cultura acelerada, 1991); Geração Internet/ Y/ Milênio (1977 – 1997), “a primeira geração imersa em bits”; e a Geração Z/ Next (a partir de 1998) os sujeitos imersos na cultura digital. Outros estudos apontam anos diferentes para esses mesmos recortes de gerações e indicam, inclusive, a existência da Geração Alpha (nascidos a partir de 2010 até o presente).

 

[2] Em 1995, a TV PUC-SP documentou o encontro e diálogos dos célebres teóricos Paulo Freire e Seymour Papert sobre “O futuro da escola”. Ambos autores fazem profundas reflexões sobre as tecnologias digitais e as práticas educativas.

 

[3]Geração Internet” para Tapscott (2010), “Millennials” para Howe e Strauss (2000) e “Geração Homo zappiens” para Veen e Vrakking (2009).

 

[4] A Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) foi criada pela Lei nº 12.085, de 5 de novembro de 2009. É a primeira Universidade Federal do interior da Amazônia Brasileira com sede fora das capitais e nasceu no contexto de expansão do ensino superior público, por meio do Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) e pela Lei nº 12.085, de 5 de novembro de 2009. Com sede em Santarém/PA, é multicampi, atendendo aos municípios Oeste paraenses: Alenquer, Itaituba, Juruti, Monte Alegre, Óbidos e Oriximiná.