TECNOBIOGRAFIA DE UMA PROFESSORA DE PORTUGUÊS EM HULHA NEGRA-RS: EXPERIÊNCIAS EM TEMPOS DE ENSINO REMOTO EMERGENCIAL
Universidade Federal do Pampa
fatimasilva.aluno@unipampa.edu.br
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo maior a apresentação, por meio de autonarrativas, das minhas vivências e da minha atuação como professora, pesquisadora e estudante durante a pandemia do novo Coronavírus (COVID-19), que reverberou em transformações sociais, culturais e pedagógicas muito significativas, no Brasil (e no mundo). Em termos metodológicos, esta é uma pesquisa qualitativa, de caráter autobiográfico, desenvolvida com base na literatura da área de Linguística Aplicada (LA) e na produção de tecnobiografias. Em síntese, as tecnobiografias são histórias de vidas relacionadas às tecnologias, que podem trazer contribuições significativas para entender o período pandêmico pela ótica de professores de línguas. Destarte, o trabalho tem como referencial teórico estudos da área de LA sobre as autonarrativas e suas potencialidades para a docência. Escrevo, portanto, este trabalho como uma autonarrativa minha, partindo do pressuposto que nós somos o que nós narramos, e que nossas vivências passam a ter sentido por meio das nossas narrativas. Defendo que, com minhas narrativas sobre o trabalho docente em Hulha Negra, Rio Grande do Sul, nos anos de 2020 e 2021, somadas às narrativas produzidas durante a pandemia de COVID-19 por outros docentes, podemos ter uma cartografia complexa do que foi vivido/sentido por docentes, aprendizes, profissionais da educação, pais, colegas e comunidade escolar em geral nesses tempos difíceis. Os resultados apontam para a importância de a prática docente acompanhar a sociedade e, portanto, os professores e as professoras de línguas contarem com capacitação e formação continuada, principalmente para o uso das tecnologias digitais.
Palavras-chave: Pandemia do novo Coronavírus (COVID-19); Narrativas; Linguística Aplicada.
TECNOBIOGRAFIA DE UNA PROFESORA DE PORTUGUÉS EN HULHA NEGRA-RS: EXPERIENCIAS EN TIEMPOS DE ENSEÑANZA REMOTA DE EMERGENCIA
RESUMEN: El presente trabajo tiene como principal objetivo la presentación, a través de autonarrativas, de mis vivencias y mi desempeño como docente, investigadora y estudiante durante la pandemia del nuevo Coronavirus (COVID-19), que repercutió en transformaciones sociales, culturales y pedagógicas muy significativas en Brasil (y en el mundo). En términos metodológicos, se trata de una investigación cualitativa, autobiográfica, desarrollada a partir de la literatura en el área de Lingüística Aplicada (LA) y en la producción de tecnobiografías. En resumen, las tecnobiografías son historias de vida relacionadas con las tecnologías, que pueden hacer aportes significativos para comprender el período de la pandemia desde la perspectiva de los profesores de lenguas. Así, el trabajo tiene como referente teórico estudios en el área de LA sobre las autonarrativas y sus potencialidades para la docencia. Por lo tanto, escribo este trabajo como una autonarrativa mía, basado en el supuesto de que somos lo que narramos y que nuestras experiencias cobran sentido a través de nuestras narrativas. Argumento que, con mis narrativas sobre el trabajo docente en Hulha Negra, Rio Grande do Sul, en los años 2020 y 2021, sumadas a las narrativas producidas durante la pandemia de COVID-19 por otros docentes, podemos tener una cartografía compleja de lo que fue experimentado/sentido por profesores, alumnos, profesionales de la educación, padres, colegas y la comunidad escolar en general en estos tiempos difíciles. Los resultados apuntan a la importancia de que la práctica docente acompañe a la sociedad y, por ello, los docentes y profesores de idiomas tengan formación y educación continua, especialmente para el uso de las tecnologías digitales.
Palabras clave: Pandemia del nuevo coronavirus (COVID-19); Narrativas; Lingüística Aplicada.
Introdução
O presente trabalho tem como propósito o relato da minha atuação como professora, pesquisadora e estudante durante a pandemia de COVID-19, na qual o Brasil (e o mundo) passou por modificações radicais. Durante a pandemia, as pessoas pararam de viver suas rotinas como elas as conheciam até então. Nesse sentido, a pandemia de COVID-19 trouxe transformações econômicas, trabalhistas, sociais, culturais e, principalmente, educacionais.
Este é um relato meu, Fátima Inabel Tres da Silva, no qual busco respaldo na literatura acadêmica da área de Educação e Linguística Aplicada (LA) para narrar o meu processo de adaptação e minhas vivências na Escola Estadual de Ensino Médio Quinze de Junho, no município de Hulha Negra, Rio Grande do Sul, escola esta que migrou do ensino regular presencial para o Ensino Remoto Emergencial (ERE)[1]. Enquanto mulher, professora e pesquisadora, escrevo este trabalho como uma autonarrativa, partindo do pressuposto de que somos o que narramos, e nossas vivências passam a ter sentido por meio de nossas narrativas (COSTA, 2021). Com minha narrativa, somada às muitas narrativas produzidas durante a pandemia, podemos ter uma cartografia do que foi vivido/sentido por professores(as), aprendizes, profissionais da educação, pais, colegas e comunidade escolar em geral nestes tempos difíceis.
A pandemia de COVID-19 vem ocorrendo desde março de 2020, e ainda hoje – cerca de dois anos depois, momento em que esta pesquisa foi desenvolvida – implica em várias mudanças no âmbito escolar. Dessa forma, com a escrita autonarrativa do que foi e está sendo vivido ao longo da pandemia de COVID-19, é possível identificar e registrar as dificuldades e adaptações para a vida no cotidiano escolar, sendo que a educação não parou e as tecnologias digitais entraram, por sua vez, de forma ainda mais acoplada ao ensino e à aprendizagem de línguas. Além das experiências de aprendizes e de pais de alunos(as), é necessário dar destaque para os(as) docentes, que se encontravam despreparados/as para o fazer educação no ensino remoto, que se impunha como uma solução para a continuação dos estudos mesmo com o distanciamento social. Isso, em grande medida, mostrou-se uma opção pela saúde pública e pela preservação da vida humana (COSTA; FIALHO, 2022).
Tendo em vista as considerações prévias, parto do pressuposto de que é de grande importância refletir sobre o trabalho dos(as) professores(as) no ERE e as grandes dificuldades que tais profissionais tiveram em adaptar-se ao contexto de ensino na pandemia de COVID-19. Portanto, o objetivo geral desta pesquisa é apresentar, por meio de autonarrativas, o meu complexo processo de formação e adaptação, no âmbito da Escola Estadual de Ensino Médio Quinze de Junho, com foco no contexto de ERE.
Este artigo está estruturado da seguinte forma. Após esta introdução, na seção seguinte, apresento a fundamentação teórica do trabalho, pautada principalmente por pesquisas recentes que tratam da pandemia de COVID-19 e as transformações resultantes dela, que implicaram mudanças drásticas no ensino e na aprendizagem de línguas, assim como na formação de professores. Posteriormente, apresento a metodologia qualitativa do estudo, que se alicerça nos conceitos de autonarrativa (COSTA, 2021) e tecnobiografias (PAIVA; MURTA, 2020). Finalmente, apresento os resultados do estudo: minhas experiências no ERE e minhas reflexões, tecidas a partir de comparações entre as minhas vivências e os dados referentes ao trabalho docente durante a pandemia de COVID-19.
Fundamentação teórica
Este referencial teórico é constituído por estudos da área da LA e da Educação. Esta seção está dividida em três partes, sendo a primeira aquela que trata da importância das narrativas. A segunda parte é referente ao conceito de “dizer sua palavra” de Paulo Freire, que corrobora a importância das narrativas na atualidade. Por fim, na terceira parte, apresento uma autonarrativa minha, com base em estudos da área e documentação oficial, sobre a pandemia de COVID-19 e o ERE na cidade de Hulha Negra, sudoeste do Estado do RS.
A importância das narrativas
Sobre as narrativas e a construção de identidades sociais, Moita Lopes (2002) aponta:
no processo de construção das identidades sociais, mediado pelo discurso, as narrativas, como formas de organizar o discurso através das quais agimos no mundo social, têm sido entendidas como desempenhando um papel central no modo como aprendemos a construir nossa identidade na vida social. Ou seja, as narrativas são instrumentos que usamos para fazer sentido do mundo a nossa volta e, portanto, de quem somos neste mundo. (MOITA LOPES, 2002, p. 63)
A partir dessa perspectiva, torna-se evidente a relevância das narrativas como instrumentos de identificação e categorização de identidades, assim como metodologia potente de (re)desenho complexo da docência (COSTA, 2021). Afinal, quando narramos, podemos expressar as nossas percepções acerca das nossas vivências e das experiências que temos em nossos ambientes. Sobre isso, Moutinho e Conti (2017) afirmam:
Narramos hoje e narramos sempre. Narramos sobre um dia de trabalho, acontecimentos na família. Narramos sobre nós mesmos, o que nos é importante, pessoas com as quais lidamos. Esse falar de nós, de forma narrativa, que fazemos de maneira tão costumaz, possivelmente contribui para que sejam as narrativas a forma discursiva privilegiada para estudo da construção de sentidos da identidade (MOUTINHO; CONTI, 2017, p. 01).
Mediante o exposto, os autores enfatizam as contribuições das narrativas e o modo como elas podem ser utilizadas para compreender a nossa construção identitária e docente. Costa e Piccinin (2020), de forma semelhante, defendem que narrar é um ato terapêutico, e fundamental para que entendamos a vida e as nossas vivências, bem como a nossa constante auto-trans-formação como professores de línguas. Nesse viés, é possível também buscar o respaldo da obra de Paulo Freire (1991a; 1991b; 1996) para pensarmos a contínua formação docente em devir, relacionada à (e, também, impulsionada pela) prática de dizer sua palavra.
A pandemia de COVID-19 aumentou o trabalho dos(as) professores(as), como demonstra o relatório produzido pelo GESTRADO, Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente (2021). O trabalho docente tem sido desgastante, sem horário final de jornada de expediente, e com adaptação forçada e urgente do ensino por meio de diversas mídias e ferramentas, sejam elas impressas ou digitais (em redes sociais e plataforma de estudos). Tudo isso precisa ser narrado, mas não narrado pela mídia hegemônica ou por políticos que muitas vezes desconhecem a realidade escolar. É necessário que o(a) professor(a) assuma o papel de narrador(a) das vivências no ERE. Cabe a cada um(a) de nós[2], enquanto docentes, dizer a sua palavra na perspectiva freiriana.
A tecnologia digital e a aprendizagem caminham juntas, influenciando uma à outra em recursividade constante (COSTA, 2021). As tecnologias digitais podem representar, portanto, melhorias na qualidade do ensino e da aprendizagem; porém, não foi isso que ocorreu em vários contextos durante a pandemia de COVID-19. As principais razões para isso são: a falta de infraestrutura das escolas, a falta de formação docente para o uso das tecnologias e as precariedades educacionais durante o ERE (RIBEIRO, 2020). Vale ressaltar, portanto, a importância da autonarrativa dos(as) professores(as) durante a pandemia, uma vez que funcionam como memória de um tempo de desvelamento das estruturas desiguais da educação brasileira, bem como de mudanças importantes na sua configuração.
A importância de dizer a sua palavra
O cenário de contágio mundial da população pelo COVID-19, ainda que se entenda como uma questão fundamentalmente de saúde pública, afetou a sociedade de forma geral, em seus mais diferentes setores, incluindo o campo educacional. Perante o isolamento social, determinado com maior ou menor rigor nos mais variados países, relatou-se, logo nos primeiros 30 dias de contágio mundial e massivo do vírus, a gravidade do número de 300 milhões de crianças e adolescentes fora da escola (ARRUDA, 2020).
Diante desse fato, e do aumento de casos de transmissão do vírus, o sistema educacional brasileiro também precisou adaptar-se, em maior ou menor escala, nos níveis municipais, estaduais e federal. O Ministério da Educação (MEC), por meio da portaria N° 343, de 17 de março de 2020, autorizou Instituições de Ensino a substituírem suas aulas presenciais por aulas on-line ou aulas no viés do ERE, a partir do uso de Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) quando possível.
É um período difícil de adaptação dos meios e modos de fazer educação, portanto. Aprendizes, pais e professores(as) tiveram que adotar em suas casas rotinas que até então eram comuns na escola, seja por meio de aulas online ou material impresso. Foi preciso que as famílias, em grande medida, se (re)organizassem para auxiliar os(as) estudantes em seus processos de aprendizagem; no entanto, é preciso levar em consideração que há pais que ficam fora o dia todo, trabalhando, sem dispor de tempo para acompanhar de perto o estudo dos filhos. Cabe ainda ressaltar que há pais sem nenhum tipo de experiência educacional e sem formação para orientar ou mediar a aprendizagem dos filhos, e que estão totalmente despreparados e desorientados dentro desse processo. Assim, crianças e jovens podem ter seu processo de aprendizagem comprometido, independentemente do uso ou não de TICs.
A tecnologia, tão presente no cotidiano das pessoas, invadiu o espaço escolar, e vem sendo uma ferramenta de difusão de informação e construção de conhecimento para os/as estudantes, assim como para professores(as) em sala de aula, seja ela física ou virtual. Entretanto, apenas o uso da tecnologia per se não é garantia de efetivação de uma educação de qualidade. Com efeito, as tecnologias provocam mudanças na relação escola-aluno e nos papéis de docente e discente (COSTA, et al., 2020), principalmente em um momento atípico, como o atual, em que professores(as) precisaram ampliar seus conhecimentos tecnológicos. Mas qual seria a forma mais adequada de estudar e avaliar tais mudanças? Considerando esse contexto de pandemia de COVID-19, defendo neste texto que precisamos refletir sobre a seguinte questão norteadora: quais narrativas estão sendo produzidas e registradas sobre as vivências dos anos de 2020 e 2021?
Como já apontado, corre-se o risco de que as narrativas produzidas na pandemia de COVID-19, por razões capitalistas e reacionárias, julguem o(a) professor(a) como aquele profissional que não trabalhou ou não produziu contribuições sociais por cerca de dois anos. A descredibilização dos(as) docentes – e da escola, em geral – é uma estratégia sórdida que compõe um projeto de destruição da educação, promovendo o sucateamento das escolas públicas, principalmente, e ataque aos(às) professores(as) na atualidade.
É nesse sentido que se mostra ainda mais urgente a confecção e o registro de narrativas de docentes sobre o que aconteceu (e ainda vem acontecendo) na pandemia de COVID-19 e no ERE. Por todo o exposto, busco na obra de Paulo Freire o conceito de “dizer sua palavra” para apontar a urgência de os(as) educadores(as) dizerem suas palavras e produzirem suas narrativas sobre esses tempos difíceis que vivemos.
Para Freire (1991a; 1991b) “dizer a sua palavra” é agir para a transformação do mundo. Com base no autor, podemos entender que esse processo só é possível por meio da palavra autêntica, ou seja, a palavra que é construída na reflexão e ação sobre a vida. Assim, “dizer a sua palavra” não é somente “um ato retórico/fonético, mas da viabilidade de ser agente do processo histórico e por ele ser feito e refeito constantemente” (LOUREIRO; PEREIRA, 2019, p.13). Por isso, entendo ser fundamental a relevância do uso de autonarrativas, para que eu e meus colegas educadores(as) possamos refletir sobre as nossas experiências e agir sobre as nossas realidades experienciadas. Sem esse exercício de autoconhecimento, que é a confecção de autonarrativa, perde-se muito da potência do (re)desenho da docência e do entendimento de como ela ocorre.
Sobre a pandemia de COVID-19 em Hulha Negra-RS
Hulha Negra é uma cidade do RS. O município se estende por 822,9 km² e conta com uma população estimada em 6.776 habitantes, conforme apontado no último censo. A densidade demográfica é de 8,2 habitantes por km² no território do município. Eu não nasci em Hulha Negra, mas em Tapejara. Mudei-me para Hulha Negra em 1991, e resido no município desde então. Trabalho na Escola Estadual de Ensino Médio Quinze de Junho desde 1995. A escola é relativamente pequena, conta com Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Com surpresa, no início de 2020, recebi notícias sobre esse dito “novo vírus”, que se espalhava pelo mundo e que, em março do ano em questão, chegou ao Brasil. Nesse mesmo mês, as autoridades optaram por decretar orientações e determinações referentes ao ensino e ao trabalho na escola. A seguir, um trecho do decreto municipal de Hulha Negra:
DECRETO MUNICIPAL N.º 2.372/2020 Determina novas providências no combate à pandemia de COVID-19 (novo coronavírus) O PREFEITO DO MUNICÍPIO DE HULHA NEGRA, Estado do Rio Grande do Sul, no uso das atribuições legais que lhe confere a Lei Orgânica Municipal e CONSIDERANDO o Decreto nº 2.371 de 20 de março de 2020, que declarou ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA no Município de Hulha Negra, e, devido a necessidade de novas providências, a fim de combater à Pandemia de COVID-19 (novo coronavírus) (PREFEITURA DE HULHA NEGRA, 2020).
Como exposto no documento, as aulas presenciais foram suspensas em 18 de março de 2020, tendo novo formato de aulas através de WhatsApp e por meio de atividades impressas. Em seguida foi lançada a Plataforma de estudos da empresa Educar, no Google Classroom. Existiram muitas dificuldades para os(as) docentes, alunos(as) e pais ou responsáveis se adaptarem a tais recursos, tendo em vista a inexperiência de todas as partes em relação à plataforma e à estrutura organizacional das aulas em um momento tão atípico.
As aulas via atividades impressas aconteciam com retiradas de materiais na escola quinzenalmente, com posterior devolução para os(as) professores(as) fazerem a correção e a avaliação da aprendizagem. As aulas via Plataforma Educar – que aconteceram conforme os horários de aula regulares da escola – contavam com atividades síncronas, via ferramenta Google Meet. Além das atividades impressas e dos ambientes virtuais da Plataforma Educar, a maioria dos(as) educadores(as) optaram por também por fazer uso de grupos de WhatsApp, para facilitar a comunicação entre si e com os(as) discentes.
A internet no interior do município de Hulha Negra não era muito utilizada, e os pais, com muitas dificuldades, priorizaram o sinal de internet em casa para, assim, seus filhos e filhas terem condições de estudar. Nesse sentido, a Escola Estadual de Ensino Médio Quinze de Junho, no Assentamento Conquista da Fronteira, se organizou e ajudou os(as) alunos(as) e familiares a cadastrar discentes na Plataforma Educar, onde muitas dificuldades surgiram pela falta de maior familiaridade com as tecnologias digitais. A partir principalmente do trabalho voluntário de uma integrante da comunidade, que tem mais habilidades com informática, foi realizada uma ação de ajuda aos alunos sobre como usar os programas e recursos tecnológicos da Plataforma Educar. Na sequência, foram implementadas diversas ações que buscavam sanar, ou ao menos ajudar, os(as) alunos(as) em suas dúvidas e receios quanto ao uso das tecnologias na educação. Iniciou-se, então, a prática pedagógica na Plataforma Educar, na qual professores(as) e alunos(as) se ajudavam mutuamente e colaboravam entre si, para assim entender os novos meios e modos de fazer educação. Passou o ano de 2020 e continuou o ERE no ano de 2021, com a pandemia de COVID-19 ainda com altíssimos índices de transmissão e contaminação. Novamente, iniciamos o ano letivo de 2021 com ERE, dando seguimento no uso da Plataforma Educar e das atividades impressas.
A pandemia de COVID-19 também apresentava altos índices de óbitos, o que implicava em medo, dor e luto na educação. Parte disso era amenizada pela esperança proporcionada pelas vacinas e pelo avanço científico na área: as vacinações começavam em Hulha Negra. Entretanto, as faixas etárias privilegiadas inicialmente foram as das pessoas idosas, o que não comportava nenhum(a) aluno(a) vacinado(a). Em maio de 2021 foram iniciadas, depois de muitas lutas, as vacinações para docentes e funcionários(as) das escolas, mas as aulas não voltaram presencialmente no primeiro momento, em razão da necessidade de preservar a saúde e a vida de discentes. No mês de agosto começou o regresso ao ensino presencial, para aqueles(as) alunos(as) e responsáveis que se sentissem confortáveis. Mesmo com as medidas de prevenção propostas pelo governo estadual, poucos estudantes retornaram à escola. No caso da Escola Estadual de Ensino Médio Quinze de Junho, nenhum(a) aluno(a) quis retornar nesse primeiro momento.
No mês de setembro de 2021 começou a vacinação para a faixa etária de 12 anos, e vários(as) estudantes foram vacinados(as) com a primeira dose. Isso já garantiu uma certa segurança, mas ainda foram poucos os que voltaram às aulas presenciais nesse primeiro momento. Em Hulha Negra, no mês de setembro de 2021, começou a diminuir os casos de COVID-19; por isso, houve um aumento do número de aprendizes voltando ao ensino presencial. Entretanto, muitos pais seguem com medo do novo coronavírus, e muitos falam que “só com a vacina seu filho volta” [à escola]. Nos assentamentos e na cidade, todos(as), apesar das muitas dificuldades, estão ainda em luta contra o vírus da COVID-19. As pessoas e a comunidade escolar estão dando o seu máximo para a educação das crianças continuar, sem que isso coloque-as em risco de contaminação.
Metodologia
Em termos metodológicos, esta é uma pesquisa qualitativa, de caráter autobiográfico, desenvolvida com base na literatura da área de LA (PAIVA, 2020; RIBEIRO, 2020; COSTA, 2021).
O primeiro procedimento metodológico adotado neste estudo foi a confecção de autonarrativas, instrumentos para a confecção de uma cartografia complexa das experiências e vivências. Com base em Costa e Fialho (2022), a cartografia complexa é uma metodologia desenvolvida no fluxo do viver a partir de autonarrativas, que propiciam a reflexão sobre o vivido e o autoconhecimento necessário para pensar a trajetória em devir daqueles que escrevem as narrativas. Essas autonarrativas foram produzidas no formato de tecnobiografias. De acordo com Paiva e Murta (2020), a tecnobiografia se dá pelo relato de uma pessoa sobre suas experiências com as tecnologias ao longo da vida. O conceito de “Tecnobiografia” é definido por Barton e Lee (2013, p. 71) como uma história de vida em relação a tecnologias” ou como “relato de relações cotidianas com tecnologia”. Segundo Paiva e Murta (2020), a tecnobiografia permite desenvolver competências e habilidades socioemocionais, algo fundamental para o contexto pandêmico tão difícil e emocionalmente desgastante que vivemos. Além disso, as autoras comentam que, “para entender a tecnologia, ocasionalmente temos que reconhecer e ter consciência das experiências pessoais” (PAIVA; MURTA, 2020). Citando Barton e Lee (2013), as autoras defendem que escrever é sempre escrever-se:
escrever on-line é uma forma de escrever-se. Em outras palavras, sempre que fazemos uma postagem, um comentário na postagem de outra pessoa, o upload de uma imagem, ou criamos um perfil, estamos também construindo uma autobiografia, uma narrativa de quem somos e de quem queremos que os outros vejam em nós. Estas práticas de escrita podem projetar novas identidades, ou nos permitir ampliar nossas identidades off-line. (BARTON; LEE, apud PAIVA; MURTA, 2020, p. 84)
A produção de tecnobiografias pode ser fundamental para a emergência e para a percepção de novas affordances, notadas à medida que as pessoas usam as tecnologias (PAIVA; MURTA, 2020). Quer dizer: os indivíduos (por exemplo, docentes e aprendizes) vão se apropriando dessas tecnologias de acordo com seus propósitos, adaptando seus usos aos contextos de sua emergência, e as tecnobiografias poderão revelar as affordances percebidas e as formas como os usuários agem e lidam com as restrições tecnológicas. Ou seja, utilizamos as tecnobiografias para narrarmos e refletirmos sobre as nossas experiências com elas.
Nesse sentido, a produção de narrativas minhas (isto é, minhas tecnobiografias) foi o primeiro procedimento metodológico adotado neste estudo. O foco das minhas tecnobiografias é referente àquele período que considero de maior inserção das tecnologias digitais na minha vida, pessoal, profissional e acadêmica: a pandemia de COVID-19. Durante os anos de 2020 e 2021, minha vida, assim como a de muitos educadores(as) e aprendizes de línguas, sofreu uma transformação radical no que diz respeito ao uso das tecnologias digitais.
O segundo procedimento adotado foi o estudo bibliográfico e documental referente aos impactos da pandemia na educação, no ensino de línguas e no trabalho de professores de português na escola pública. Além de pesquisas referentes ao período mencionado (2020 e 2021), foi estudada a documentação que orientou a prática docente no ERE.
Finalmente, o terceiro e último procedimento metodológico diz respeito à análise crítica-comparativa entre minhas vivências individuais e as experiências coletivas dos docentes brasileiros no que tange à pandemia.
Resultados e discussões
Os resultados e discussões deste trabalho são apresentados em seções, referentes a cada um dos procedimentos metodológicos adotados. A partir do primeiro procedimento metodológico (a produção de tecnobiografias), produzo uma autonarrativa minha, apresentada na seção “4.1. Minhas interpretações sobre a pandemia”. O segundo procedimento adotado foi o estudo bibliográfico e documental, que serviu como base para a apresentação do capítulo “2.3 Sobre a pandemia em Hulha Negra”. O terceiro e último procedimento metodológico (a análise crítica-comparativa entre minhas vivências individuais e as experiências coletivas dos docentes brasileiros no que tange à pandemia de COVID-19) implica na produção da seção “4.2. Entre a parte e o todo”.
Minhas interpretações sobre a pandemia de COVID-19
Sou a Fátima Inabel Tres da Silva, tenho 54 anos, sou professora e sou estudante de um curso de Letras EaD da Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Quando me mudei de Tapejara para Hulha Negra, passei a residir em um assentamento onde havia uma escola, que contava com apenas uma professora formada (com curso de licenciatura). Além dela, apenas eu contava com Ensino Médio completo. A referida escola se localiza a 70km da cidade de Bagé, onde está situada a 13ª CRE. Naquela época, os(as) docentes de Bagé não tinham condições de ficar na escola, em razão da falta de possibilidades de residir ali durante a semana, e não havia ali casa para morar. Então fui convidada pela diretora para trabalhar na escola: eu já morava aqui e, como eu era a única com Ensino Médio concluído, comecei a lecionar, embora tenha ficado com muitas dúvidas. O apoio da minha família foi fundamental para eu aceitar o desafio e, assim, entre 1995 e 1997, fui contratada pela prefeitura de Hulha Negra.
Em 1998, fui formalmente contratada pelo Estado do RS. Minha história, então, é de uma docência que foi se constituindo no fluxo do viver, fui acompanhando oportunidades que iam aparecendo, nunca pensei muito profundamente sobre a vontade de ser professora, embora gostasse muito das aulas de português na minha infância. Em 1999, a Coordenadoria de Educação me sugeriu de fazer o curso de Pedagogia EaD da URCAMP (Centro Universitário da Região da Campanha). À época, eu já pensava em fazer licenciatura em Letras, mas não havia essa opção de curso, razão pela qual concluí o curso de Pedagogia, e deixei o sonho de cursar Letras para algum futuro próximo.
“Vai fazer Letras nessa altura da vida?”, foi uma das questões que mais ouvi quando entrei no curso EaD da Unipampa em 2018. Em função da minha idade e de eu já contar com mais de 20 anos de trabalho docente, algumas pessoas não compreenderam bem minha motivação, mas nunca é tarde demais para aprender e para conquistar algo que se quer tanto. Além disso, o aperfeiçoamento e a aprendizagem contínua são necessidades para o meu trabalho pedagógico: nunca paramos de aprender e de nos formar professores(as) (COSTA, 2021). Deste modo, o curso de Letras EaD da Unipampa, que cursei em grande medida durante a pandemia de COVID-19, foi essencial para o meu aprendizado, pois estudar foi fundamental para o meu crescimento profissional e pessoal. Com o curso, consegui desenvolver novas habilidades, superar meus medos com relação ao uso de tecnologias e ensino de línguas, e acima de tudo, ser uma pessoa/professora melhor, na medida em que pude aprender mais sobre mim e sobre minha profissão. A partir dessa minha trajetória e das reflexões que pude tecer sobre as tecnologias na formação docente e no ensino de línguas, interpreto que posso avaliar, hoje, de forma mais crítica, a experiência de ERE nos anos de 2020 e 2021.
O ERE exigiu uma pré-disposição maior para ensinar e aprender. Para realizar minha prática, eu precisei estar disposta a me qualificar quanto às novas tecnologias e às novas abordagens metodológicas, a fim de promover aulas mais dinâmicas e significativas para os(as) discentes. Quanto a esse aspecto, Freire (1996) já afirmava que não se pode ensinar sem aprender, e esse momento em que os(as) educadores(as) tiveram que, literalmente, (re)aprender para poder realizar a sua prática, comprova isso. Eu e todos os(as) profissionais da minha escola tivemos que aprender a utilizar as ferramentas digitais, acessar plataformas de ensino e aprendizagem, buscar e (re)pensar metodologias de ensino, além de ressignificar – na teoria e na prática – o que entendíamos por ensinar e aprender em função ERE.
A maioria dos(as) professores(as) estavam acostumados(as) ao ensino mais tradicional (com livros didáticos, quadro, giz etc.) e, durante essa transformação do ensino em tempos pandêmicos, foi necessário (re)aprender a usar tais tecnologias e a mediar a aprendizagem. Isso vale não só com as práticas necessárias para lidar com as plataformas digitais da internet, mas também a se relacionar com os(as) alunos(as) nesse contexto do ERE. As aulas, em março de 2020, iniciaram somente com material na Plataforma Educar, mas logo em seguida já foi possível recorrer às aulas síncronas via Google Meet. Essa mudança representou para mim um grande avanço no ERE, por permitir interação síncrona com os(as) aprendizes.
Entendo que aprender é um ato contínuo e que exige muita dedicação e criatividade. Nessa troca entre quem aprende e quem ensina, o(a) professor(a) tem o papel de mediador(a) entre aprendiz e aquisição de conhecimento. Todavia, para isso, é necessário que o(a) educador(a) esteja em constante revisão da práxis, sempre aberto(a) ao novo, àquilo que pode tornar a sua prática mais significativa, e ter a humildade de saber que sempre há mais a aprender. Sobre isso, conforme Freire (1991a; 1991b): ninguém ignora ou sabe tudo, todos sabemos e ignoramos alguma coisa, e é por isso que devemos estar sempre aprendendo.
A maior dificuldade que eu encontrei quanto ao ERE foi a urgência com que as instituições tiveram que disponibilizar alternativas de aulas e a incerteza provocada por essa situação. Como o ERE não foi planejado, nem tinha como ser previsto, a escola não sabia muito bem como conduzir o processo, e dependiam das orientações recebidas por webconferências. Entendo que a falta de orientação foi uma das principais “precariedades” do ensino de línguas na pandemia, considerando o que Ribeiro (2020) aponta sobre o tema.
Ainda sobre essas dificuldades da educação nacional e “precariedades” no ensino (RIBEIRO, 2020), vale lembrar: também não houve – para a maioria dos(as) docentes – tempo hábil para capacitação quanto ao uso de TICs, já que o ERE se instalou de forma repentina. Ainda que docentes mais familiarizados com a educação online tenham tido uma experiência “menos traumática” de readaptação da “práxis tecnológica” (COSTA et al., 2020), mesmo eles tiveram de lidar com as dificuldades e os desafios da educação em tempos pandêmicos.
Uma educação mais tecnológica pode significar contribuições maiores para a educação do futuro, mas a experiência do ERE deixou claro ser necessário mais planejamento e mais inserção das tecnologias digitais via políticas públicas, sobretudo nas escolas municipais e estaduais. Sobre isso, Paiva (2021, p. 11) lembra que o nosso país não se preparou para o presente e “fechou os olhos para a importância das tecnologias digitais”. Em minha opinião, esse é um erro que não pode mais se repetir.
O Governo Federal por meio da portaria nº 343/2020 determinou a substituição das aulas presenciais, por aulas em meios digitais, enquanto durar a situação de pandemia de COVID-19. A suspensão das aulas em todo o território nacional foi algo inédito na história recente, como uma forma de conter a propagação da COVID-19, uma doença que até hoje leva à óbito muitas pessoas ao redor do mundo. Ainda hoje temos muitos pacientes hospitalizados, e não existia vacinação em larga escala até meados de 2021. No Brasil quase 56 milhões de alunos matriculados na educação básica e superior tiveram suas aulas suspensas, destes 32,4 milhões passaram a ter aulas remotas (CHAGAS, 2020, p.4). Os números não são inexpressivos, e precisam ser vistos com atenção.
Chagas (2020) também aponta que, na rede pública, 26% dos(as) alunos(as) que estão tendo aulas online não possuem acesso à internet, por isso a maior parte desses aprendizes estão estudando por meio do plano de estudo tutorado, o que pode dificultar o processo de aprendizagem. Tais casos precisam ser (re)pensados no futuro, via políticas públicas efetivas.
A adoção de TICs pela escola é fundamental para que possamos superar esse período singular e, ao mesmo tempo, fazer com que a aprendizagem aconteça; porém muitas são as dificuldades que os(as) alunos(as) têm que enfrentar no seu cotidiano, tais como: falta de acesso à internet; não compreensão dos conteúdos escolares e falta de equipamentos eletrônicos adequados para a educação (RIBEIRO, 2020). Esses são problemas pontuais que afetam a aprendizagem e têm consequências diretas na educação brasileira. Sabemos que implementar novas tecnologias na escola é um processo que demanda tempo, recursos e formação docente adequada, mas essa demanda não pode mais ser postergada ou negligenciada: trata-se de um ponto central no funcionamento da sociedade contemporânea.
Foram as minhas práticas e as minhas experiências como docente que fizeram com que eu fosse vislumbrando o que ocorria ao meu redor e que me deram subsídios teórico-metodológicos para pensar – enquanto educadora – aquilo que funcionava no ERE, bem como ir reformulando e adaptando o que não surtiu o efeito desejado nas aulas em tempos pandêmicos. Essa ação de refletir sobre sua prática com a intenção de modificá-la de acordo com as necessidades dos(as) alunos(as) tornou-se ainda mais recorrente na minha vida profissional durante o ERE, e levarei isso para o futuro. Sobre essa constante reinvenção do professor, Freire declara: “Ninguém nasce educador ou marcado para ser educador. A gente se faz educador, na prática e na reflexão sobre a prática” (FREIRE, 1991b, p. 58). Concordo com Freire e me apego às palavras dele para manter minha constante reflexão na prática e sobre a prática na educação pós-pandemia que se desenha no horizonte.
Entre a parte e o todo
Sou uma professora, sou parte de uma classe docente, mas não falo por todos(as): o Brasil é um país continental, com muita desigualdade social e diferentes realidades. É necessário, então, que eu apresente a minha realidade social, mas também teça reflexões em comparação com outras realidades durante a pandemia de COVID-19. Portanto, lanço mão de dados apresentados no relatório sobre o trabalho docente durante a pandemia (GESTRADO, 2021) para apresentar minhas reflexões e discussões a seguir. Segundo Loureiro (2021):
Uma das principais pesquisas que mapeia a situação do trabalho docente no Brasil durante a pandemia de COVID-19 vem sendo produzida pelo GESTRADO, e está intitulada “Trabalho Docente em Tempos de Pandemia”, na pesquisa foram entrevistados/as 15.654 docentes de todos os estados da federação e DF. Na pesquisa 89% destes entrevistados argumentam que não possuem nenhuma experiência anterior com ERE e 41,8% afirmam não estar recebendo nenhum tipo de formação para o uso de tecnologias. A precariedade é ainda mais visível quando 84,2% dos professores e professoras entrevistados/as dizem ter aumentado o tempo de preparação de suas aulas por conta do ERE. (LOUREIRO, 2020, p.131).
Segundo o relatório do GESTRADO (2021), 89% dos(as) docentes entrevistados(as) não possuem nenhuma experiência anterior com ERE, e 41,8% afirmam não estar recebendo formação para o uso de TICs. No meu caso específico, a única experiência que tenho é com a Educação a Distância (EaD). Vale ressaltar que ERE e EaD são significativamente diferentes, embora possam ter algumas semelhanças. Sobre isso, Fialho (2021) sistematiza algumas semelhanças e distinções entre a EaD e o ERE da seguinte forma:
Figura 1 - Aproximações e distanciamentos entre EAD e ERE.
Fonte: Fialho (2021).
O relatório do GESTRADO (2021) também trata da dificuldade no manuseio das ferramentas digitais e a falta de treinamento específico no uso de tecnologias para educação remota, que demanda mais tempo no preparo das atividades por parte dos(as) docentes. Além do tempo dedicado ao conteúdo da disciplina que lecionam, é exigido dos(as) educadores(as) também um período para o aprendizado do manejo dos programas e aplicativos estabelecidos para a realização das aulas no ERE. No meu caso, não foi diferente: também precisei me adaptar e desenvolver certa fluência tecnológica e letramentos digitais. Para tanto, contei com o apoio pedagógico de algumas disciplinas do curso de Letras EaD que, ainda que não tenham sido pedagogicamente planejadas para o ERE, proporcionaram conhecimentos sobre TICs e recursos que servem tanto para a EaD quanto para o ERE. Embora muito disso eu não possa ter empregado de forma prática na escola em razão do sinal precário de internet, para a minha formação foi muito válido.
A quantidade de trabalho dos(as) docentes, que já era grande, aumentou com a preparação do material didático digital. Minha jornada de trabalho foi ampliada significativamente por conta da falta de experiência e de conhecimentos para lidar com tecnologias digitais. De modo geral, a experiência foi muito desgastante: tive que aprender a trabalhar com as TICs e, ao mesmo tempo, ajudar os(as) alunos(as) e seus pais também no uso daquelas tecnologias. Cumpre destacar, então, a questão do desenvolvimento de fluência tecnológica, não só para o(a) docente, mas para outros membros da comunidade escolar que, antes, não exerciam função tão direta na educação dos(as) aprendizes (embora devessem).
Para realizar as aulas remotas, precisei ter em minha residência uma série de equipamentos e serviço de internet adequados, como bem apontou Ribeiro (2020) ao tratar das precariedades do trabalho docente no ERE. Sem esses recursos, não conseguiria dar conta de tanta demanda da rede de ensino. Em suma, eu não seria capaz de fazer uso dos ambientes virtuais de aprendizagem, por exemplo, se eu não tivesse uma conexão a uma rede de internet. Entretanto, conforme venho debatendo ao longo do presente trabalho, apenas a garantia de um bom sinal de internet não é o suficiente. É preciso que profissionais da educação sejam capacitados(as) para um uso adequado das tecnologias com fins pedagógicos.
Na imagem a seguir (Figura 2), cabe observar que a idade dos(das) professores(as) influencia diretamente no grau de dificuldade para o manejo de tecnologias. Ou seja, segundo a pesquisa do GESTRADO, para os(as) docentes com 50 anos ou mais, o uso de tecnológicos digitais tem sido, principalmente, “regular”, “difícil” ou “muito difícil”.
Figura 2 - Gráfico do relatório do GESTRADO sobre faixa etária de docentes e dificuldades do manejo de tecnologias.
Fonte: GESTRADO (2021).
Segundo o relatório do GESTRADO (2021), a ausência de recursos necessários para o pleno desenvolvimento das atividades, aliada à formação insuficiente para lidar com os programas e recursos tecnológicos, tem sido fonte de sofrimento para muitos(as) educadores(as). No estudo, os(as) docentes informam que têm receios e angústias sobre a situação da pandemia, além da insegurança em relação ao futuro. Eu me somo a este grupo, no sentido de que também me senti muito angustiada e exausta com o meu trabalho. Da metade do primeiro ano de pandemia de COVID-19 em diante, quando se iniciaram as aulas síncronas no Google Classroom, foram muitas dúvidas, desencontros com os(as) estudantes, muitas turmas para atender, passei meus dias em frente ao computador, não recebia retorno de muitos(as) alunos(as), pois muitos(as) não tinham internet para acessar a plataforma. E, então, começaram a entrega de material físico na escola, foi um momento de ainda mais trabalho, posto que eu produzia atividades para o ensino online e, também, para o “ensino presencial à distância” (em outras palavras, o envio de material impresso a ser utilizado pelo estudante em casa). Eu já não estava dando conta de administrar todas as atividades em grupos de WhatsApp, Plataforma Educar e Google Meet, e passei também a produzir e enviar materiais físicos/impressos, tudo isso perpassada por muitas dúvidas, angústias e medos.
Por todo o exposto, urge destacar a autopercepção de docentes da escola pública sobre o trabalho docente na pandemia na América Latina. Conforme apontado pelo GESTRADO (2021), em países como Paraguai, 25% dos(as) professores(as) entendem que a sua saúde mental foi muito afetada nesse período. Na Costa Rica, esse número é ainda maior: 37% dos(as) docentes afirmam que foram muito afetados.
Figura 3 - Sobre a autopercepção dos professores sobre a pandemia e a saúde pública.
Fonte: GESTRADO (2021).
Essa questão da pesquisa referente à América Latina não constava no relatório referente ao Brasil, por tratar-se de um aprimoramento posterior do estudo. Nesse sentido, é possível buscar em outras pesquisas – no âmbito nacional –, índices sobre o contexto brasileiro. Com base em Cruz et al. (2020), que realizaram estudo descritivo com 84 docentes da região Sul do Brasil, os índices são alarmantes. A pesquisa mostrou que 82,1% dos(as) participantes estavam preocupados(as) com a exposição ao novo coronavírus, e que ansiedade (21,7% e 27,6%) e depressão (28,9% e 28,5%) são as alterações mais frequentes na saúde mental dos(as) docentes. Portanto, a questão da saúde mental mostra-se como um dos aspectos centrais para pensar a educação pós-pandemia, sobretudo no que diz respeito ao cuidado com os(as) profissionais da educação e com a qualidade do ensino.
Considerações finais
O objetivo deste trabalho foi o de apresentar uma autonarrativa minha (tecnobiografia), enfatizando minhas vivências recentes na pandemia de COVID-19. Com isso, entendo que é possível identificar e (re)pensar desafios encontrados por docentes para a execução do ERE no Brasil, de modo geral, e em Hulha Negra-RS, especificamente.
Em virtude dos fatos mencionados, ficou claro que a educação brasileira está passando por um momento inédito, que evidencia as fragilidades do sistema educacional e a desigualdade social existente. Com minhas experiências e reflexões, assumo um compromisso de defender a partir de agora, de forma ainda mais enfática, a comunidade escolar como um todo, a partir das experiências difíceis vivenciadas no ensino de línguas, seja em tempos de pandemia, seja na educação pós-pandemia que começa a se esboçar no cenário brasileiro.
Em grande medida, minha graduação em EaD contribuiu para o desenvolvimento de certos letramentos digitais em minha prática docente. Nesse sentido, me sinto uma privilegiada, embora isso não tenha facilitado totalmente minha experiência com o ERE. Além disso, preciso considerar que minha realidade não se aplica a toda a classe docente no Brasil: a falta de preparo do sistema educacional no que diz respeito à formação de professores(as) para o uso de tecnologias era um problema notório no passado, e que se acentuou no presente, e que precisa ser revisto se queremos uma educação efetiva no futuro.
Também vale destacar a necessidade de registro: tudo o que foi (e ainda é) vivido no ensino de línguas e na educação atual precisa ser registrado. É preciso sinalizar as inseguranças e o estresse de alunos(as) e docentes, as angústias, as questões de saúde mental e, principalmente, a sobrecarga de trabalho. Sem o devido registro de narrativas de professoras(as), corremos o risco de que, futuramente, se popularizem narrativas tendenciosas e/ou perversas, ideologicamente produzidas para descredibilizar docentes. Na atualidade, isso já ocorre, no sentido de ser comum discursos que apontam ou insinuam que educadores(as) não trabalharam no ERE, o que não condiz com a realidade dos fatos.
Os resultados deste trabalho autonarrativo apontam para a importância de a práxis docente acompanhar a sociedade e, portanto, os(as) educadores contarem com capacitação e formação continuada, principalmente para o uso das tecnologias digitais. Espera-se que as tais experiências sirvam para mostrar a importância de capacitar os(as) docentes e investir e equipar as escolas, que devem estar em contínua sinergia com a realidade vivida pela sociedade, que é altamente tecnológica hoje e continuará sendo no amanhã. Conclui-se que é necessário passar por essa nova realidade imposta, que é o contexto de pandemia de COVID-19, visando chegar ao futuro, mas sem negligenciar o presente. Por essa razão, o registro das experiências no presente, sem desconsiderar a constante importância das TICs em todas as classes sociais, é fundamental. É necessário que, no pós-pandemia, as práticas pedagógicas sejam efetivadas considerando a perspectiva dos(as) profissionais da educação.
REFERÊNCIAS
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Notas
[1] Mais informações sobre a escola em: <https://www.escol.as/251226-quinze-de-junho>.
[2] Ao longo deste texto acadêmico, com base em Costa (2021), alterno entre a primeira pessoa do singular (“eu”) e a primeira pessoa do plural (“nós”). A razão para tal opção de escrita tem relação com a questão de ora eu falar por mim, enquanto autora-pesquisadora, e ora eu falar por um grupo, a classe docente, grupo que eu procuro referenciar ao longo da pesquisa e ao qual eu pertenço.