ReTER, Santa Maria, v.3, n.2, 2022. ISSN:2675-9950 Dossiê IV Simpósio Internacional sobre Games, Gamification e Tecnologias na Educação

PESQUISA NARRATIVA SOBRE MULHERES JOGADORAS: UMA HISTÓRIA INTERROMPIDA E UMA HISTÓRIA INCENTIVADA

 

Ana Laura Silva 

Graduanda no Curso de Letras-Inglês na Universidade Federal de Uberlândia analaura.silva@ufu.br

Valeska Virgínia Soares Souza  

Professora do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia valeskasouza@ufu.br

 

Resumo: Neste artigo, narramos experiências vividas enquanto mulheres jogadoras em nossa relação com os videogames. Conduzimos uma pesquisa de iniciação científica de natureza predominantemente autobiográfica, com a qual objetivamos narrar e discutir as experiências de uma gamer no seu processo de aprendizagem de línguas a partir dos jogos, em uma busca por possibilidades inovadoras e educativas. Seguimos o caminho teórico metodológico da Pesquisa Narrativa segundo Clandinin e Connelly (2015), que propõem que a narrativa seja, ao mesmo tempo, o método de pesquisa e o fenômeno pesquisado, com base nos pressupostos deweyanos de experiência. As histórias vividas e contadas nos levaram a compor sentidos relacionados com o contexto vivenciado pelas pesquisadoras. Em nossas narrativas, apontamos histórias conflitantes já que a experiência de uma das pesquisadoras foi de história interrompida e a experiência da outra pesquisadora foi de história incentivada. Entendendo assim como Gee e Hayes (2010) que os jogos, com toda a sua estrutura e potencialidade, podem ir além do próprio jogo, problematizamos nossas histórias de aprendizagem que podem encontrar ressonância em experiências vividas por outras mulheres jogadoras. Esperamos que nossas reflexões possam contribuir para pensarmos os estereótipos                    difundidos acerca da posição da mulher na rede de jogos digitais e para a agenda de pesquisa sobre a integração de jogos digitais e de princípios de bons jogos no contexto escolar.

 

Palavras-chave: pesquisa narrativa; videogames; mulheres jogadoras.

 

 

NARRATIVE INQUIRY ON WOMEN PLAYERS: AN INTERRUPTED STORY AND AN ENCOURAGED STORY

 

Abstract: In this paper, we narrate our experiences as women players and our relationship with video games. We conducted a scientific initiation research of mainly autobiographical nature, with which we aimed to narrate and discuss the experiences of a gamer in her language learning process based on games, in a search for innovative and educational possibilities. We followed the theoretical methodological path of Narrative Inquiry according to Clandinin and Connelly (2015), who propose that the narrative is both the research method and the researched phenomenon, based on the deweyan assumptions of experience. The stories experienced and told led us to compose meanings related to the context experienced by the researchers. In our narratives, we pointed out conflicting stories since the experience of one of the researchers was of interrupted story and the experience of the other researcher was of encouraged story. Understanding as well as Gee and Hayes (2010) that games, with all their structure and potentiality, can go beyond the game itself, we problematize our learning stories that may find resonance in experiences lived by other women players. We hope that our reflections can contribute to think about the widespread stereotypes about the position of women in the digital games network and to the research agenda on the integration of digital games and principles of good games in the school context.

 

Keywords: narrative inquiry; video games; women gamers.

 

Introdução

 

Com a criação e o desenvolvimento das tecnologias digitais e a imersão da sociedade no mundo virtual, os jogos digitais nos consoles, nos computadores e nos dispositivos móveis têm feito cada vez mais parte da evolução humana. Entendemos que jogos não são um fenômeno exclusivo da contemporaneidade; como apontava Huizinga (1983[1938]), é no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve, o que mostra a importância do fator lúdico para a civilização desde os primeiros tempos. Mas de geração em geração, parece-nos que os videogames têm conseguido seu espaço cativo na vida das pessoas e isso nos remete ao lugar dos jogadores e das jogadoras, especialmente, no nosso interesse, ao lugar delas nesse cenário. Até alguns anos atrás, era senso comum que os videogames      eram destinados exclusivamente a um público: o homem cis[1]. Em outras palavras, jogar e falar sobre videogames costumava ser limitado ao público masculino.

Contudo, esse cenário tem mudado; a presença do público feminino nos jogos tem sido             notada e agora as jogadoras fazem parte das estatísticas de jogadores em todo o mundo. Segundo a Pesquisa Game Brasil (2020)[2], o público feminino representa cerca de 54% dos jogadores totais, sendo 61,9% dos jogadores casuais e 23,3% dos jogadores hardcore. De acordo com a referida pesquisa, ainda em 2021, mulheres  se escondem nos jogos online com medo de serem reconhecidas e sofrerem assédio nos jogos. Mulheres ainda deixam de abrir o microfone em jogos competitivos, em que a cooperação entre os jogadores é importantíssima, como nos jogos Counter-Strike: Global Offensive e Valorant, por medo de serem perseguidas pelo fato de serem mulheres.

Esse contexto em que mulheres não são sempre bem-vindas no mundo dos videogames não foi o ponto de partida para nossa pesquisa, mas esse tema foi revelado a partir da escrita das histórias contadas pela gamer. Nosso objetivo geral inicial foi narrar e discutir as experiências de uma gamer, uma graduanda do Curso de Letras Inglês, no seu processo de aprendizagem a partir dos jogos, em uma busca por possibilidades inovadoras e educativas. Nossos objetivos específicos de pesquisa incluíam compreender narrativamente as histórias autobiográficas narradas, localizando essas histórias individuais no contexto vivenciado contemporaneamente por jogadoras de videogames.

Para iniciar o percurso narrativo, considerando os objetivos delineados, a graduanda redigiu uma narrativa inicial - aquela que informa e forma à inquietação ou ao puzzle de pesquisa -  que carrega em si “um sentido ou uma busca, uma ‘nova busca’, um buscar de novo; um sentido de reformulação contínua” (CLANDININ; CONNELLY, 2000, p. 42). De acordo com Clandinin (2015), além de os pesquisadores narrativos começarem a pesquisa investigando suas histórias de experiência através de uma narrativa inicial, é preciso investigar continuamente suas experiências, antes, durante e depois de cada investigação. É assim que se começa uma pesquisa narrativa, de natureza predominantemente autobiográfica, o pesquisador volta aos seus inícios narrativos – é possível voltar até a infância – para compreender e nomear o puzzle de pesquisa.

À medida que as narrativas foram sendo redigidas, o foco específico nas experiências vividas por  uma jogadora de videogames e o que poderíamos aprender com essas experiências no contexto de ensino e aprendizagem de língua inglesa ganhou novos contornos. A orientadora encontrou nas histórias de sua orientanda espaço para pensar em suas próprias experiências, o que chamamos na pesquisa narrativa de histórias entrecruzadas. Sobre uma história entrecruzada, nas palavras de Vellom (2001, p. 137), “colocando de maneira simplificada, todos têm uma, e quando duas ou mais pessoas começam a falar sobre um tópico específico, cada um traz sua própria perspectiva para o assunto”.

Clandinin et. al. (2006), ao narrar histórias de três professores, explicam como suas narrativas de se tornarem docentes se entrecruzam a partir de suas experiências pessoais e profissionais. Nessa linha, Bengezen (2017, p. 96) nos lembra que “quando iniciamos uma pesquisa, já trazemos histórias de vida que influenciam a composição de sentidos das histórias que estão por vir. Os participantes da pesquisa também trazem suas histórias, que se entrecruzam com as nossas”. Esse é o sentido de histórias entrecruzadas que entendemos permear o novo escopo da pesquisa que acomoda a experiência da orientadora.

Partindo desse encontro de histórias, neste artigo, narramos experiências vividas enquanto mulheres jogadoras e nossa relação com os videogames. Para que os leitores possam acompanhar as narrativas e as composições de sentido tecidas juntamente com as narrativas, entendemos que é importante começar por explicações sobre o percurso teórico-metodológico seguido, o que apresentamos na próxima seção.

 

Percurso teórico-metodológico: a pesquisa narrativa

 

No caminho teórico-metodológico que seguimos, a narrativa caracteriza-se como fenômeno estudado e ao mesmo tempo método de pesquisa (CLANDININ; CONNELLY, 2000; 2015; CLANDININ, 2007; 2013). Tomamos emprestadas as palavras de Mello (2010) para explicar essa dualidade na Pesquisa Narrativa (PN):

 

Ao narrar uma experiência, tenho a experiência narrada como fenômeno estudado; é ao narrar que reflito sobre esse fenômeno e componho sentidos sobre o mesmo. O narrar, portanto, é o meio para ter a experiência (o fenômeno) como foco/objeto de estudos e é, também, o método investigativo para interpretá-lo. (MELLO, 2010, p. 173).

 

O rigor metodológico da PN, que parte da proposta da teoria de experiência de John Dewey (1938), é apresentado de forma sistematizada por Clandinin (2013) em seu livro Engaging in Narrative Inquiry. Nesta obra, de acordo com Clandinin (2013, p.17), a investigação na PN é definida como "uma  abordagem ao estudo da vida humana concebida como uma forma de honrar a experiência de vida como uma fonte de conhecimento e compreensão importantes". A pesquisadora demonstra como pensar e agir narrativamente. Ao pensar e agir narrativamente, os pesquisadores investigam as vidas nas dimensões temporal, pessoal, social e local. Além da disponibilização e discussão de exemplos, a autora enfatiza os compromissos ontológicos e epistemológicos de pesquisadores narrativos. Desta forma, pesquisadores iniciantes tanto como pesquisadores experientes podem imaginar os desafios e possibilidades de adotar a abordagem da Pesquisa Narrativa, assim como pesquisar narrativamente sobre a experiência.

Quatro termos norteiam o fazer do pesquisador narrativo, ao abordar a experiência como fenômeno historiado: viver, contar, recontar e reviver. A partir da compreensão de que pessoas vivem histórias e contam histórias vividas, o pesquisador narrativo pesquisa junto com seus participantes, recontando as histórias vividas e/ou contadas. As mudanças que acontecem no recontar de histórias propiciam que elas sejam revividas, gerando aprendizagens para experiências futuras.

O pesquisador narrativo também deve considerar o espaço tridimensional da PN: a temporalidade (o olhar retrospectivo e prospectivo para a experiência), a sociabilidade (as condições pessoais e sociais) e o lugar em que a experiência se situa. No desenho da pesquisa, primeiramente, o pesquisador narrativo elabora indagações de pesquisa (puzzle) e, na sequência, entra em campo ciente de que sua entrada é no entremeio e ele deve se mover ao longo do fluxo do que está em processo. Em campo, redige narrativas que se constituem textos de campo, que evoluem para textos intermediários e, por fim, para textos de pesquisa. Todo esse trabalho deve considerar a importância do relacional, ou seja, do constante renegociar do relacionamento com os participantes e das próprias indagações, e a complexidade do que significa posicionar-se como pesquisador narrativo, preocupado com honrar as experiências e os participantes.

De acordo com Clandinin (2013, p. 34), “há dois pontos de partida para a investigação narrativa: começando com histórias vividas ou começando com histórias contadas”. Nossa pesquisa é de histórias contadas. Em um movimento retrospectivo, voltamos no tempo utilizando-nos de um instrumento de pesquisa narrativo denominado caixa de memória, em que o pesquisador coloca objetos em um caixa, literalmente ou metaforicamente, na tentativa de relembrar o que os objetos podem remeter das histórias vividas no que se relaciona ao foco da pesquisa. Clandinin e Connelly (2015) demonstram preocupação em não propor um conjunto fechado de  tipos de texto de campo, pois, segundo os autores, a complexidade das paisagens investigadas requer do pesquisador a criatividade para, se necessário, pensar em novas formas de composição   de textos.

Para o processo de análise e interpretação, assim como da escrita dos textos de pesquisa,                    adotamos os pressupostos de Ely, Vinz, Downing e Anzul (2001). Ao compor sentidos das histórias contadas, atentamos para o fato de que dados de pesquisa se constituem múltiplos e em múltiplas camadas, às vezes turvos e imprecisos, e é a partir do escrever, reescrever, conversar e negociar com nossas memórias enquanto jogadoras e com os membros do meu grupo de apoio, a partir do                      refletir, é que encontramos uma forma válida, com certeza não a única, de produzir um texto final que possa contar histórias pertinentes aos nossos leitores.

Nas duas próximas seções, apresentamos as narrativas iniciais de nossa relação com os videogames; são as primeiras memórias que temos em termos de temporalidade. Junto com as narrativas, tecemos algumas reflexões que fazem parte da composição de sentidos sobre as experiências que vivemos.

História Interrompida: O Atari 2600 não era meu

 

A seção está organizada em três partes. A Figura 1 tem como objetivo ilustrar a história ‘O Atari 2600 não era meu’ já que traz fotos de uma caixa do jogo Atari 2600, do Telejogo e da parte superior da capa do jogo Pitfall. Depois da narrativa ‘O Atari 2600 não era meu’, discorremos sobre a história que categorizamos como interrompida.

 

Figura 1 – Mosaico de imagens que ilustram a narrativa História Interrompida

Fonte: elaborado pelas pesquisadoras a partir de imagens disponíveis na internet

 

O Atari não era meu

 

Foi em um Natal da década de 80 que meu irmão mais velho ganhou aquele presente. Veio em um embrulho vermelho e chamou minha atenção. Quando ele abriu, fiquei encantada com a caixa do Atari 2600, com o console, com os controles e com o jogo padrão que era o Pac-Man. Parecia ser bem mais interessante que seu jogo anterior, o Telejogo, que já me fazia passar as horas livres – as que ele não estava jogando – especialmente no jogo de Paredão. Minhas expectativas foram confirmadas e realmente era bem mais interessante, tinha um cenário e jogatinas diferentes – andar, pular, subir, descer, passar por obstáculos. Meu jogo favorito era o Pitfall – eu podia subir escadas, coletar ouro, saltar com um cipó sobre a cabeça de um jacaré... e quando eu caía na boca e não na cabeça do jacaré, eu podia começar tudo de novo. Mas eu só podia fazer isso quando meu irmão não estava jogando, afinal de contas o jogo era dele. Era coisa de menino e meninas não eram sempre bem-vindas. Com o passar do tempo e a dificuldade de só poder jogar em horários determinados, minha empolgação se foi e não me tornei a jogadora de vídeo games que, em outro contexto, talvez, teria me tornado.

 

Refletindo sobre a história interrompida

 

Com os direitos adquiridos ao longo do tempo e os movimentos contra o assédio, o público feminino sai da sombra masculina para conquistar uma voz própria. Isso também começa a se refletir no mundo                  dos jogos. De acordo com Alves, Camurugy e Souza (2009), com o crescimento da indústria dos jogos eletrônicos, os roteiros dos games começaram a atrair o público feminino com narrativas que possam atender a uma perspectiva tipicamente feminina como nos jogos de aventura ou de simulação.

A franquia dos jogos Tomb Raider[3] é um exemplo disso, com a inserção de  narrativas sobre uma mulher protagonista; as personagens femininas começaram a ficar mais poderosas, quebrando o  paradigma na maioria dos jogos de uma mulher frágil. Lara Croft no jogo Tomb Raider se  tornou esse tipo de personagem, uma heroína destemida, que é inteligente, bonita, e possui força e agilidade nos seus movimentos. O jogo Tomb Raider em si, mistura elementos femininos, em que as mulheres se sentem  envolvidas pela história e participando como protagonista, e os homens que também se sentem  imersos na história de uma arqueóloga, com sua sensualidade e habilidades físicas, que se aventura em busca de tesouros.

Essa não foi a experiência da pesquisadora, que teve suas histórias de jogadora interrompidas logo na infância. Suas buscas por aventura com o jogo Pitfall, o cipó e a cabeça do jacaré, não continuaram para que ela conhecesse o jogo Tomb Raider e se identificasse com a protagonista Lara Croft. Murphy (2004) chama atenção para como as histórias interrompidas estão relacionadas a momentos de vulnerabilidade. De acordo com o pesquisador, uma interrupção na história coloca quem a está vivenciando em um espaço liminal, um espaço instável, por isso é necessário encontrar uma maneira de se estabilizar e sair desse espaço de instabilidade. Esse movimento de sair da instabilidade pode levar a diferentes caminhos. No caso da pesquisadora temos um movimento de abandono e de desistência. Será que isso foi uma marca dos tempos? Será que décadas depois o contexto mudou e as meninas já podem ser protagonistas em suas jogatinas e não ter que ceder seu desejo de jogar para seus irmãos já que são meninos?

 

História Incentivada: Um sábado com Super Mario 64

 

A seção está organizada em três partes. A Figura 2 tem como objetivo ilustrar a história ‘Um sábado com Super Mario 64’ já que traz imagens da interface do jogo em diferentes fases. Na sequência, além da narrativa ‘Um sábado com Super Mario 64’, apresentamos algumas reflexões a partir da história contada.

 

Figura 2 – Mosaico de imagens que ilustram a narrativa História Incentivada

Fonte: elaborado pelas pesquisadoras a partir de imagens disponíveis na internet

 


 

Um sábado com Super Mario 64

 

Tenho muitas recordações felizes da minha infância, dentre elas estão os momentos em que passei com meu pai durante os dias que ficávamos apenas eu e ele em casa. Eu tinha quatro anos de idade e como filha única, meu pai ficava por conta de cuidar de mim nos sábados de manhã já que minha mãe trabalhava neste dia. Todo sábado, fazíamos uma das coisas que meu pai mais gostava de fazer, jogar videogame. Tínhamos o console Nintendo 64 e jogávamos Super Mario 64, um jogo de plataforma e aventura. Eu ficava fascinada pelos gráficos bonitos, coloridos e pela música divertida. Como era ainda muito nova, eu e meu pai alternávamos na jogatina.

Me lembro que ao jogar esse jogo pude aprender um pouco de inglês, já que a versão que jogava era totalmente em inglês. Logo ao iniciar o jogo me deparava com a palavra “Press start”. Por não saber inglês, era meu pai que me ajudava com o idioma do jogo, me auxiliava com o entendimento dos diálogos e a história por trás do jogo. Dessa forma, aprendi que a palavra “Press start” seria para começar o jogo, ou seja, apertar o botão colorido escrito “start” no controle do videogame.

Após apertar o botão “Press start”, o jogo ia para uma tela também de início, só que mais complexa. Era a tela em que selecionávamos o arquivo em que estava salvo o nosso jogo que em inglês ficava “Select file”, ou seja, selecionar um arquivo. Ao selecionar um arquivo de jogo salvo, podíamos voltar ao momento em que paramos no jogo. Além disso, havia outras opções como “Score” em que podiamos ver a nossa pontuação atual no jogo, “Copy” para copiar um arquivo de jogo salvo existente, “Erase” para apagar algum arquivo que esteja salvo e “Stereo” em que podiamos configurar o som do jogo e também escolher o idioma.

No papel do protagonista, um encanador italiano baixinho rechonchudo e bigodudo de roupa vermelha e macacão azul, Mario, continuava na busca de salvar a princesa Peach. Precisávamos atravessar vários obstáculos diferentes como inimigos que nos atacavam, criaturas mais amigáveis ​​que forneciam assistência, informações ou que pediam favores. O jogo era composto por fases, cada fase era um mundo fechado no qual éramos livres para passear em quaisquer direções e explorar o ambiente sem limites de tempo. Assim reuníamos estrelas em cada fase, com algumas delas aparecendo apenas após a conclusão de determinadas tarefas. Essas tarefas incluíam derrotar um chefe, resolver quebra-cabeças, competir com um oponente e coletar moedas. À medida que coletávamos mais estrelas, mais áreas se tornavam acessíveis. Nesse dia, jogamos praticamente o dia todo juntos, pois estávamos focados em completar o jogo.

 

Refletindo sobre a história incentivada

 

Gee e Hayes (2010), argumentam que as mulheres, muitas vezes ignoradas como gamers, estão em muitos aspectos liderando o caminho nesta tendência. Segundo os dados da NewZoo de 2018[4], 7,6 milhões de brasileiros consomem e-sports e 30,2% desses espectadores                     são mulheres, ou seja, são mais de 35 milhões de players e, muitas delas, saem do nível da diversão e encaram o jogo de forma profissional.

Para problematizar a relação entre mulheres e jogos e com o intuito de compreender “como os jogos hoje se moveram de um lugar de apenas jogar para o de envolver quem joga com o desenho, produção e participação em comunidades de aprendizagem” (GEE; HAYES, 2000, p. 1), os pesquisadores colocam em foco o jogo The Sims, categorizando-o como um jogo               não-violento que é jogado, em maior proporção, por garotas e mulheres. Uma crítica inicial levantada pelos pesquisadores é que o jogo The Sims é considerado por muitos como brincar de  casinha, comparação que não ocorre quando homens e garotos jogam jogos militares; ninguém  considera que estejam brincando com soldadinhos de chumbo. Essas distinções e preconceitos relacionados a jogos e se estão sendo jogados por garotas ou garotos fazem parte das questões postas pelos autores.

Gee e Hayes (2010) discutem e chamam a atenção para o papel das mulheres na indústria dos games, um tema que vem ganhando destaque nas pesquisas na área. O espaço que os games proporcionam tem sido motivador, principalmente para as jogadoras, que se sentem empoderadas e encorajadas. As mulheres têm se tornado especialistas através dos games, em desenhar e projetar cenários, mundos, se tornando designers habilidosas.

Para a pesquisadora gamer, seu pai foi, sem dúvida, importante para que ela se tornasse jogadora, mas não foi o único motivador. Será que os jogos também não têm se alterado com o tempo, décadas depois que o primeiro videogame foi lançado? Não foi só no jogo Tomb Raider que ela pode viver histórias de empoderamento, mas há vários outros jogos, jogos lançados recentemente, que trazem protagonistas femininas também contribuíram para que ela se sentisse empoderada enquanto jogadora. Esses jogos foram importantes até para que ela pudesse superar os desafios de continuar jogando enquanto mulher.

Gee e Hayes (2010, p. 16) argumentam que as mulheres são fundamentais para onde o jogo, a cultura popular, e a aprendizagem está indo no futuro. Os jogos vão para além do jogo, e embora as mulheres não sejam as únicas forças a levar os jogos para adiante, elas fazem parte da ação. As mulheres podem contribuir com a ampliação da discussão sobre a aprendizagem dentro e fora da escola no século XXI. Os games oferecem um espaço benéfico para a aprendizagem de jogadores, assim como proporciona discussões e problematizações sobre questões de gênero ou a questão da presença feminina nos games, pois:

jogos são artefatos produzidos e utilizados por comunidades, e por isto são capazes de reforçar e promover valores específicos que os constituem por meio dos processos de desenvolvimento empregados em sua concepção, seus sistemas de significados estão sujeitos a determinados contextos históricos, culturais, sociais e políticos. (RODRIGUES, 2017, p. 21).

 

Gee e Hayes (2000, p. 182) concluem que “o panorama de aprendizagem na sociedade  mudou muito. As pessoas podem aprender em uma variedade de ambientes diferentes, utilizando uma variedade de ferramentas digitais diferentes.” A partir de histórias de garotas e de  mulheres, em suas experiências jogando e jogando para além do jogo, os pesquisadores apresentam a importância de entender que o que está acontecendo na contemporaneidade é importante para o futuro e para como podemos mitigar os problemas em nosso mundo globalizado. Nas palavras dos autores, “precisamos aprender a trabalhar juntos para nos           remodelarmos como aprendizes éticos, emocionalmente inteligentes, para toda a vida em um mundo complexo e de alta tecnologia. As meninas e mulheres que conhecemos são, de fato, bons exemplos”.

O jogo como um espaço benéfico e seguro foi a experiência da pesquisadora gamer, cujo pai a acompanhou em suas primeiras jogatinas, apoiando-a e ensinando-a os primeiros comandos no console Nintendo 64. Décadas se passaram e essas histórias singulares apontam para possíveis mudanças no contexto para que garotas e mulheres sejam jogadoras e respeitadas nessa singularidade de suas experiências de vida. Será que as mulheres podem jogar tranquilas na contemporaneidade? Será que uma história não-interrompida garante que há um mundo seguro para jogadoras de videogames?

 

Histórias Continuadas: As dificuldades de uma jogadora

 

A seção está organizada em quatro partes, sendo que as três primeiras trazem narrativas da pesquisadora gamer, que teve sua história de jogadora incentivada. Na sequência, trazemos algumas reflexões da pesquisadora a partir das histórias narradas.

 

Videogame como hobby

 

Aos meus 12 anos, o videogame se tornou meu hobby favorito. Comecei jogando Grand Theft Auto 4 com o auxílio do meu pai, para entender o sistema do jogo (controles gerais do controle como andar, correr, pular, dirigir automóveis etc), mas com o decorrer do jogo, me vi jogando sozinha até completar o jogo. Nessa época, jogava por muitas horas e tentava conversar online com estrangeiros no modo online, já que o jogo possui bate papo com voz, até aquele momento tinha um conhecimento mínimo da língua. Ainda, tinha muitas dificuldades para me interagir com outros jogadores e entender o objetivo das missões do jogo, mas eu não desistia. Nesse meio tempo, tive alguns impasses com a minha mãe, ela não aceitava muito bem a ideia de uma menina jogar videogame, tinha que convencê-la diariamente de que era normal e de que o videogame também tem seu lugar para mulheres.

 

A dificuldade de jogar online sendo mulher

 

Apesar de jogar e ter contato com videogames desde criança, foi em meados de 2008 que tive, pela primeira vez, a oportunidade de jogar online com outros jogadores. Jogos como Grand Theft Auto 4, Skate 3, Red Dead Redemption e entre       outros me introduziram a esse universo fantástico. Ficava fascinada com a possibilidade de conhecer pessoas de outros países, outras culturas, outras línguas, sem  precisar de ter que sair de casa ou até viajar. Adorava jogos do gênero FPS                    (FirstPersonShooter) ou mais conhecidos como jogos de tiro. O jogo Call of Duty: Black Ops II foi um dos jogos que mais joguei em 2012, gostava de jogar o modo história, mas o que me chamava mais atenção era seu modo multiplayer. Ao relembrar essas jogatinas, algo me perturbava, a dificuldade de jogar online sendo mulher que se tornava cada vez mais frequente. Muitos jogadores homens não me levavam a sério, simplesmente por ser mulher. Esse cenário me levou a várias tensões, essas tensões me levaram a ter atitudes diferentes enquanto eu jogava, como a escolher nicknames e avatares masculinos, para tentar escapar dessas situações. Apesar de gostar bastante de jogos do gênero FPS, com as tensões, tive que abandonar de jogar alguns jogos, um exemplo disto é o jogo Counter-Strike: Global Offensive (CS GO). A franquia CS GO é um dos jogos mais jogados do mundo. No jogo, os jogadores jogam em times e conta com bate papo em voz, para que conversem sobre os movimentos que serão feitos durante o jogo. É simplesmente por esse modo, que me sentia exposta, não me sentia confortável de jogar online pelo fato de ouvir certos comentários feitos por outros jogadores  homens.

 

Desconforto no jogo Counter Strike

 

Certo dia decidi jogar Counter-Strike: Global Offensive, liguei o computador e abri minha Steam. A Steam é um software que funciona como uma mistura de rede social e loja virtual de jogos eletrônicos. Na Steam, é possível comprar jogos através dos dispositivos compatíveis (Windows, macOS e Linux), e compartilhar para jogar com amigos de forma online. Counter-Strike: Global Offensive é um jogo de tiro e ação, contendo quatro modos diferentes de jogo: Modo Clássico Competitivo Modo Clássico Casual, Demolição e Corrida Armada. Ao abrir o jogo, decidi jogar o modo Corrida às Armas, que consiste em um tipo de progressão de armas, ao selecionar esse modo de jogo, o jogador enfrenta os adversários de perto em mapas fornecidos pelo jogo. Os jogadores são equipados com uma arma nova imediatamente após eliminarem um adversário. Para ganhar a partida, é preciso eliminar um adversário com a última arma da sequência, uma faca dourada. Ao iniciar a partida, era possível visualizar as fotos de perfil de todos os jogadores na tela do jogo, além disso havia como ouvir outros jogadores falando, pois o jogo permite bate papo de voz ao vivo. Comecei a jogar até que um jogador disse “Boa tarde” no bate papo do jogo. Eu decidi retribuir e disse o mesmo no bate papo. Não foi uma boa escolha, percebi que era a única mulher na partida e após entenderem que se tratava mesmo de uma voz feminina no jogo, outros jogadores começaram a se manifestar. Um jogador ficou curioso e perguntou para mim “Você é mulher mesmo?!”, eu disse “Sim”. Outro jogador após ouvir a confirmação me disse “Oi linda, passa seu número”. Até aquele momento eu estava tentando ignorar os comentários e me concentrar no jogo. Com o decorrer do jogo, mais comentários surgiram como “Quer namorar comigo?”, “Fala gostosa”, “Me manda uma foto sua?” e entre outros. Me senti extremamente desconfortável, uma vez que comecei a receber mensagens no meu perfil da Steam. Nesse dia decidi encerrar a partida ali mesmo, limitar as mensagens de jogadores que não são meus amigos na plataforma Steam e decidi retirar minha foto de perfil.

 

Refletindo sobre as histórias continuadas

 

Por que meu  pai me aceitava como jogadora e minha mãe não? Será por que os jogos, por um tempo, eram referidos por ser de meninos? Por que tinha tanta dificuldade em jogar por ser mulher? Por que as mulheres enfrentam essa tensão? De onde vem o preconceito das mulheres ao jogarem videogames? Por que os jogos atraem para tantas questões de gênero?

Ao narrar minhas histórias vividas como mulher gamer, pude levantar tensões que vivi por ser mulher. Situações como preconceito e assédio ocorriam frequentemente enquanto jogava. Tais situações são abordadas por Rodrigues (2017), que aponta que jogadoras têm enfrentado injúrias machistas e misóginas ao se aventurar por ambientes online dos games, tais injúrias referem-se quase que exclusivamente à “condição de ser mulher”, não tendo por enfoque o desempenho dessas jogadoras no jogo, nem quaisquer outras caraterísticas. Além disso, a violência sofrida por muitas mulheres nos ambientes de jogos online faz com que muitas jogadoras prefiram jogar sem se identificar como “mulheres”, muitas vezes optando por “nomes” ou “apelidos” compreendidos como neutros ou “masculinos”.

Ao revisitar minhas memórias jogando alguns jogos, tal como o jogo Counter-Strike: Global Offensive, por exemplo, eu era alvo de ofensas e comentários machistas como “Volta pra cozinha” , “Já terminou de lavar a louça?”, “Começou a jogar por causa do seu namorado?”, “O seu namorado está do seu lado para te ajudar?” “Você não sabe jogar, seu lugar é no tanque!”, “Não deveria ter ligado o videogame” por jogadores homens.

Também era alvo de assédio, e até perseguição nos jogos online - ouvia comentários “Sua vagabunda!”, “Você não sabe jogar sua imprestável, sai daqui!”, além de questionamentos inconvenientes como “Você é mulher mesmo?”, e comentários sexuais. Por um tempo decidi que o melhor a se fazer era usar um “nickname” masculino ou até excluir a minha foto de perfil para minimizar, evitar comentários e expulsão de partidas de jogos online.

A partir das minhas narrativas das histórias que vivi, levantei tensões sobre ser uma mulher que joga. Essa tensões se mostraram importantes discutir. É ainda um problema bastante atual, muitas mulherem continuam sendo vítimas, todos os dias, da violência e do machismo, não só especificamente no universo dos jogos, mas em outros ambientes como no âmbito familiar e profissional.

Rodrigues (2017) ressalta a necessidade de providências em relação a políticas públicas de suporte e auxílio, assim como políticas de punição mais eficientes. Nesse sentido, é importante que grupos militantes e ativistas procurem movimentar ações governamentais e políticas que possam dar subsídios para as pessoas que são vítimas de violência virtual nos ambientes de jogos online ou em outros contextos de violência.

 

Desempacotando histórias de preconceito contra jogadoras

 

Os jogos não são mais um meio de entretenimento com predominância de apenas um gênero, as mulheres estão cada vez mais interessadas em games do que antes. Embora esse cenário de predominância masculina tenha começado a mudar, Rodrigues (2017) argumenta que as jogadoras têm enfrentado injúrias machistas e misóginas ao se aventurar por ambientes online dos games, tais injúrias referem-se quase que exclusivamente à “condição de ser mulher”, não tendo por enfoque o desempenho dessas jogadoras no jogo, nem quaisquer outras caraterísticas. O preconceito em torno do uso  de jogos pelas mulheres existe, tanto na parte do desenvolvimento de games, como por uma parte dos homens que os utiliza (FORTIM, 2009 apud ALVES; CARAMURUGY; SOUZA, 2009)

A violência sofrida por muitas mulheres nos ambientes de jogos online faz com que muitas jogadoras prefiram jogar sem se identificar como “mulheres”, muitas vezes optando por “nomes” ou “apelidos” compreendidos como neutros ou “masculinos” (GRANDO, 2013, apud RODRIGUES, 2017, p. 63). Outras formas de violência praticadas contra jogadoras também se manifestam de maneira a impedir que elas possam jogar, seja através do assédio verbal ou dentro das mecânicas do próprio jogo que inviabilizam que a jogadora consiga exercer as atividades propostas pelo jogo, seja por não receber o auxílio de outros jogadores em games em que o trabalho colaborativo dos grupos é essencial para que as atividades sejam bem sucedidas dentro do game, ou porque sua personagem no jogo é perseguida ou impedida de realizar suas funções.

Situações como essa estão cada vez mais divulgadas no universo dos games, o que a pesquisadora gamer viveu e que conta em minhas narrativas, a dificuldade de jogar sendo mulher, leva as jogadoras a contextos bastante desmotivadores. Como consequência, esse contexto pode fazer com que mulheres deixem de ter a oportunidade de aprender através dos jogos, ou até de se tornarem designers habilidosas.

Rodrigues (2017) ainda destaca que situações assim de vulnerabilidade e violência contra as mulheres e da população LGBTQIA+[5] no Brasil é preocupante, e ressalta a necessidade de providências em relação a políticas públicas de suporte e auxílio, assim como políticas de punição mais eficientes. Nesse sentido, é importante que grupos militantes e ativistas procurem movimentar ações governamentais e políticas que possam dar subsídios para as pessoas vítimas de violência virtual nos ambientes de jogos online ou em outros contextos de violência, assim como promovem o combate à cultura machista e LGBTfóbica que permeia nosso país (RODRIGUES, 2017, p. 66).

Não há dúvidas que os games se tornaram um grande negócio, e nesse meio tempo, eles também têm se tornado um assunto polêmico. Gee e Hayes (2010) afirmam que, de certa forma, essa controvérsia se dá apenas pelos games serem tipicamente uma tecnologia emergente:

Escrever era controverso quando começou. Platão, por exemplo, pensava que a escrita mataria a memória e permitiria que as pessoas alegassem saber o que não haviam realmente dominado quando o memorizaram (ver o diálogo de Platão intitulado Fedro; para uma explicação da crítica de Platão à escrita, ver Gee, 1990; capítulo 7). A impressão foi controversa quando começou a ser usada. A gráfica tornava os livros fáceis de produzir, uma vez que era muito mais fácil e barato imprimir um livro do que escrevê-lo à mão (como era feito antes do advento da impressão). Essa facilidade de produção deu origem a temores de que muitos livros triviais fossem produzidos e as pessoas perdessem tempo lendo coisas bobas. Havia também o problema de que a produção em massa de livros tornava mais fácil para a classe trabalhadora ter acesso a eles. A classe trabalhadora pode então ler e até escrever materiais que os façam querer se rebelar contra seus “superiores” (ALTICK, 1957 apud GEE; HAYES, 2005, p. 26, tradução nossa)

 

A violência contida em alguns games tem sido o principal fator na polêmica em torno dos jogos. Embora milhares de games tenham sido produzidos e vendidos, a cobertura da mídia às vezes faria alguém pensar que Grand Theft Auto, um game bastante mencionado quando se fala de violência nos games, foi o único já feito. Entretanto, muitos jogos não são violentos, incluindo o jogo de simulação The Sims, que já fora citado aqui.

Gee e Hayes (2010, p. 27-28), fazem alguns apontamentos importantes sobre violência e os games. Primeiramente, que a agressão e a violência são causadas por pessoas que já vivem em uma cultura ou ambiente de agressão e violência, e que isso vai muito além dos videogames. Em segundo lugar, os pesquisadores apontam que os seres humanos costumam tratar o que veem nas telas como "real" no sentido de que respondem a isso emocionalmente como se estivesse acontecendo no mundo material. Este é provavelmente o caso de uma evolução que nunca preparou a mente humana para diferenciar emocionalmente entre ver pessoas na tela e no mundo real, uma vez que as telas eram inexistentes conforme nossas mentes evoluíam.

Ademais, essa “confusão” entre as telas e a vida é uma parte considerável do poder da mídia. Pessoas que não percebem essa diferença entre o real e o não real podem acabar perdendo sua criticidade e se tornam perigosas para si mesmas e para os outros de todas as maneiras, indo muito além dos games que jogam, de forma negativa. Assim, os games podem ser usados tanto ​​para o bem ou para o mal, podendo ser um uso produtivo de tempo ou uma perda de tempo e isso tudo depende do que fazemos com eles.

Jogos em geral não possuem gênero, mas não foi sempre assim. Ao narrar suas experiências, a pesquisadora gamer percebeu outra tensão relacionada a questão de gênero nos jogos. Rodrigues (2017) nos lembra que os games, por serem artefatos produzidos e utilizados por comunidades, oferecem um espaço para discussões e problematizações sobre questões de gênero, uma vez que são capazes de reforçar e promover valores específicos que os constituem por meio dos processos de desenvolvimento empregados em sua concepção, seus sistemas de significados estão sujeitos a determinados contextos históricos, culturais, sociais e políticos

Apesar de ter um pai que a aceitava como jogadora, tinha a situação com sua mãe que não aceitava com a mesma naturalidade. Essa tensão a levou a compreender como o machismo é ainda um pensamento forte, que está tão enraizado em nossa sociedade que levou sua mãe a crer que as mulheres não devem jogar videogame.

Essa problemática levantada em uma de suas narrativas, a fez compor o sentido de que é importante refletirmos e entendermos que não há jogos para um gênero em específico. Os jogos podem e devem ser apreciados por jogadores de qualquer gênero, sem preconceito ou discriminação. Além disso, como professora em formação, a professora gamer compreende a importância de levar essas questões em discussão dentro de sala de aula, não só de gêneros, mas de igualdade, diversidade entre outros.

 

Algumas considerações finais

 

Nesse artigo, partimos de histórias conflitantes, uma história interrompida e uma história incentivada, concebendo-as como história que se diferiam na paisagem do tema de pesquisa explorado. Clandinin (2013) explica a necessidade de compreender a diferença entre histórias conflitantes e histórias concorrentes: “As histórias conflitantes são entendidas como histórias que colidem com as histórias dominantes da escola, enquanto as histórias concorrentes vivem em tensão dinâmica, mas positiva, com as histórias dominantes da escola (p. 65-66). Mesmo que as histórias iniciais tenham sido divergentes entre si, talvez a história interrompida tenha se alinhado à narrativa dominante de que jogos não são para as mulheres e a história incentivada seja um exemplo de uma história concorrente, já que vai contra à narrativa dominante, em uma tensão positiva.

As histórias continuadas nos mostram a relevância de (re) pensarmos os estereótipos                    difundidos acerca da posição da mulher na rede de jogos digitais. Como podemos fazer com que esse cenário mude? Como a professora gamer e em formação e a professora formadora podem contribuir para que esse cenário mude? Como as aprendizagens narradas podem servir de ponto de partida para ações que ajudem a mudar esse cenário? Esses são questionamentos que poderemos levar conosco em nossa agenda de pesquisas sobre a integração de jogos digitais e de princípios de bons jogos no contexto escolar.

 

Referências

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BENGEZEN, V. C. As histórias de autoria que vivemos nas aulas de inglês do sexto ano na escola pública. 2017. 208 f. Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2017.

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CLANDININ, D. J.; HUBER, J.; HUBER, M.; MURPHY, M. S.; ORR, A. M.; PEARCE, M.; STEEVE, S. Composing diverse identities: narrative inquiries into the lives of children and teachers. London and New York: Routledge, 2006.

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ELY, M.; VINZ, R.; DOWNING, M.; ANZUL, M. On writing qualitative research: living by words. London, Reino Unido e Filadélfia, EUA: Routledge Falmer, [1997] 2001.

GEE, J. P.; HAYES, E. Women and Gaming: The Sims and 21st Century Learning. New York: Palgrave Macmillan, 2010.

HUIZINGA, J. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. 4 ed. Tradução de João Paulo Monteiro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993. (vom Ursprung der Kultur im Spiel, 1938).

MELLO, D. M. Pesquisa narrativa: fenômeno estudado e método de pesquisa. In: ROMERO, T. R. S. (Org.) Autobiografias na (re)constituição de identidades de professores de línguas: o olhar crítico-reflexivo. Campinas (SP): Pontes Editores, 2010. p. 171-187.

MURPHY, M. S. Understanding Children’s Knowledge: A Narrative Inquiry into School Experiences. Doctorate of Education. University of Alberta, 2004.

RODRIGUES, L. Questões De Gênero Em Jogos Digitais: Uma Coleção De Recursos Educacionais Abertos De Apoio À Mobilização. Universidade Tecnológica Federal Do Paraná, 2017. Disponível em http://repositorio.utfpr.edu.br/jspui/handle/1/2839. Acesso em: 13 de Mar. 2021.

VELLOM, P. Narrative inquiry research in an urban school setting. Proceedings of the Fifth Annual Spring Conference of the Mathematics, Science and Technology Education & Researchers of the Ohio State University. US. Department of Education, 2001.



[1] Cisgênero (Cis) é o termo utilizado para se referir ao indivíduo que se identifica, em todos os aspectos, com o seu "gênero de nascença". ... Ou seja, esse prefixo faz referência à concordância da identidade de gênero do indivíduo com a sua configuração hormonal e genital de nascença.

[2] Disponível em: https://www.pesquisagamebrasil.com.br/pt/pesquisa-game-brasil-2020/. Data de acesso: 24 fev.2021.

[3] Tomb Raider é uma série de jogos eletrônicos, histórias em quadrinhos e filmes tendo como protagonista a   personagem Lara Croft.

[4] Disponível em: https://newzoo.com/insights/infographics/brazil-games-market-2018/. Data de acesso: 27 fev.2021.

[5] LGBTQIA+ é um movimento político e social que defende a diversidade, busca mais representatividade e busca lutar pelos direitos e inclusão de pessoas de diversas orientações sexuais e identidades de gênero.