ReTER, Santa Maria, v.2, n.4. ISSN:2675-9950 Dossiê Educação Profissional e Tecnologias em Rede.

FORMAÇÃO INTEGRADA NA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA: PENSAMENTO COMPUTACIONAL E CRÍTICO POR MEIO DO ENSINO DE PROGRAMAÇÃO[1]

 

Rodrigo Thomas

Mestrando do ProfEPT do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha (IFFar)rodrigothomas@gmail.com

Adão Caron Cambraia

Doutor em Educação nas Ciências e professor do ProfEPT do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha (IFFar)adao.cambraia@iffarroupilha.edu.br

Lenir Basso Zanon

Doutora em Educação e professora do PPGEC da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí)bzanon@unijui.edu.br

 

Resumo: Neste texto são discutidos aspectos relativos à formação integrada num curso de Licenciatura em Computação, na possibilidade da efetivação de uma educação para o mundo do trabalho numa perspectiva curricular ligada a politecnia e omnilateralidade. Com o objetivo de potencializar o desenvolvimento do pensamento computacional, apostamos na elaboração de uma sequência didática fundamentada nos três momentos pedagógicos (Delizoicov et al., 2011), visando o desenvolvimento de aplicativos móveis com App Inventor. O estudo partiu de autores que referenciaram a criação dos Institutos Federais (FRIGOTTO, CIAVATTA e RAMOS, 2005; PACHECO, 2015; KUENZER, 2007) para salientar aspectos pertinentes ao currículo integrado e construir aproximações com estudos sobre o pensamento computacional e sobre os momentos pedagógicos. Como resultado, deixamos o desafio de que professores de computação criem sequencias didáticas, utilizando o App Inventor para concretizar o ensino de programação e desenvolver o pensamento computacional.

Palavras-chave: Formação integrada; Pensamento computacional; Ensino de programação.

 

INTEGRATED TRAINING IN THE DEGREE IN COMPUTING: COMPUTATIONAL AND CRITICAL THINKING FOR PROGRAMMING TEACHING

 

Abstract: In this text, aspects related to integrated training in a Degree in Computing course are discussed, in the possibility of carrying out an education for the world of work in a curricular perspective linked to polytechnics and omnilateralism. In order to enhance the development of computational thinking, we bet on the development of a didactic sequence based on the three pedagogical moments (Delizoicov et al., 2011), aiming at the development of mobile applications with App Inventor. The study came from authors who referenced the creation of Federal Institutes (FRIGOTTO, CIAVATTA and RAMOS, 2005; PACHECO, 2015; KUENZER, 2007) to highlight aspects relevant to the integrated curriculum and build approaches with studies on computational thinking and on pedagogical moments . As a result, we left the challenge for computer teachers to create didactic sequences, using App Inventor to implement programming teaching and develop computational thinking.

Keywords: Integrated training; Computational thinking; Programming teaching.

 

Introdução

O ensino da Computação tem sido marcado pela racionalidade técnica, em distintos cursos, incluindo o contexto dos cursos de Licenciatura em Computação (LC)[2], o que tem sido atribuído à sua ligação estreita com o aprendizado de “tecnologias de última geração”. Contudo, esta é uma problemática mais ampla, pois o ensino, nos diversos níveis e áreas da educação, vem sendo pautado no modelo da racionalidade técnica, herança do positivismo lógico. Suas marcas estão amplamente expressas na dualidade entre quem pensa, sabe, e quem apenas executa decisões e soluções formuladas por outros, fora dos contextos da prática.

Na área da Computação, a emergência em dominar tecnologias para simplesmente atender o mercado de trabalho imerso em aparatos de “última geração” encobre a verdadeira finalidade e sentido da formação, pouco atenta à apropriação pedagógica dos processos e recursos como meio ao pleno desenvolvimento humano/social. Mudanças desenfreadas no interesse imediato do mercado de trabalho impactam na tendência de apenas consumir tecnologias descontextualizadas das reais demandas de humanização do homem na/da sociedade, desde os ambientes de interação pedagógica em que se processa a educação com significado inscrito na história da humanidade. Professores para serem considerados “bons” transmitem conhecimentos que atende as demandas da “moda” empresarial, ou seja, “vestem a roupa” do profissional que atua no mercado e oferecem treinamentos de ferramentas de “última geração” para proporcionar ou se aproximar de uma empregabilidade imediata (BAZZO, 2011). Com isso, o movimento reflexivo que toda profissão exige para a constituição de um profissional que saiba lidar com os problemas do dia a dia, que construa e se aproprie de pertinentes conhecimentos e aprenda a “caminhar com suas próprias pernas” de forma crítica, reflexiva e produtiva, é deixado de lado.

Em contraposição a essa tendência, emerge no contexto dos Institutos Federais (lócus deste estudo) a concepção de Educação Profissional e Tecnológica fundamentada no currículo integrado como pressuposto balizador da formação, rompendo a lógica da racionalidade técnica e as dicotomias dela decorrentes. Situado nesse cenário, o estudo visa construir indícios de que assumir o currículo integrado como pressuposto da formação integrada mediante momentos pedagógicos favorece o ensino da programação com aplicativos móveis (App Inventor) de modo a potencializar o desenvolvimento do pensamento computacional, rompendo com a postura acrítica, mecanicista e alienada, que se vê limitada às metas imediatas do mercado de trabalho.

Ante a percepção de que o ensino de programação exige considerável esforço cognitivo, os três momentos pedagógicos (3MP) referidos por Delizoicov et al. (2011) e Muenchen e Delizoicov (2014) são considerados adequados para fazer frente as amplas deficiências de formação no curso, que vão desde a interpretação de enunciados, passando por incipientes conhecimentos matemáticos, até limitações no campo da memória para relembrar e fazer uso de aprendizados anteriores, comprometendo a formação e ocasionando evasão em cursos de computação (GIRAFFA; MÜLLER, 2017). De modo especial, é levada em conta a necessidade de avanços no conhecimento e na prática da formação integrada realmente comprometida com o pleno desenvolvimento humano/social.

Este texto está organizado como um ensaio teórico, entendido como uma “exposição lógica e reflexiva”, articulada mediante “interpretação e julgamento pessoal. No ensaio há maior liberdade por parte do autor, no sentido de defender determinada posição sem que tenha que se apoiar em documentação empírica e bibliográfica” (MEDEIROS, 2000). O estudo partiu de autores que referenciaram a criação dos Institutos Federais (FRIGOTTO, CIAVATTA e RAMOS, 2005; PACHECO, 2015; KUENZER, 2007) para salientar aspectos pertinentes à formação integrada e construir aproximações com estudos sobre o pensamento computacional e sobre os momentos pedagógicos, tecendo diálogos com Jeannette Wing (2006) e a pedagogia freireana. Para isso, iniciamos com uma explanação sobre a formação integrada nos Institutos Federais, seguindo por uma aproximação do currículo integrado ao conceito de pensamento computacional e finalizamos com uma discussão sobre os momentos pedagógicos apoiada na perspectiva freireana.

 

A Formação Integrada nos Institutos Federais

Planejar o presente e projetar o futuro da educação profissional passa, necessariamente, pela preservação e resgate dos caminhos percorridos. Na história da Educação Profissional e Tecnológica (EPT) destacamos o período compreendido após 2003 em que ocorreram dois momentos de expansão importantes da educação pública: 1) até 2010, em que o número total de Campi de Institutos Federais passou de 140 para 354 e o número de municípios atendidos de 120 para 321; 2) até 2014 constituíram a rede de EPT um total de 562 campi com atendimento de 512 municípios brasileiros. Isso demonstra a recente popularização e democratização da EPT no Brasil.

Conforme Pacheco (2015), a partir de 2003, foram implementadas políticas que, em partes, se contrapuseram às concepções neoliberais e que possibilitaram acesso à educação e permanência para milhões de jovens e adultos da classe trabalhadora. É importante salientar que essa expansão esteve acompanhada de outros cenários conquistados por uma política nacional de distribuição de renda, geração de empregos e elevação da renda média do trabalhador. Vinculado a esse ambiente, houve a consequente necessidade de mão de obra qualificada para os novos postos de trabalho. Assim, a Rede Federal de EPT surgiu com a intenção de articular trabalho, ciência e cultura na perspectiva da emancipação humana.

O currículo integrado, uma das principais identidades dos IFs, fundamenta a concepção de um ensino médio integrado ao ensino técnico buscando superar o histórico conflito em torno do papel da escola, de formar para a cidadania ou para o trabalho produtivo. Nos cursos de graduação, como na Licenciatura em Computação, o currículo integrado também é relevante, pois diferentes conhecimentos disciplinares coparticipam no processo de formação. Segundo Cambraia e Zanon (2018), na Licenciatura em Computação se percebe uma cisão entre quem pensa e quem faz o currículo, o que exige o desenvolvimento de um processo formativo crítico e integral, pois não se trata de dois cursos diferentes, mas sim, de uma demanda de integração curricular que proporciona essa formação omnilateral[3]. A elaboração de uma proposta curricular com esse viés busca, segundo Ciavatta (2005, p. 85):

 

garantir ao adolescente, ao jovem e ao adulto trabalhador o direito a uma formação completa para a leitura do mundo e para a atuação como cidadão pertencente a um país, integrado dignamente à sua sociedade política. Formação que, neste sentido, supõe compreensão das relações sociais subjacentes a todos os fenômenos.

 

Historicamente, a Educação Profissional e Tecnológica caminha alinhada ao ideal de uma sociedade mais justa, pautada na igualdade política, econômica e social, e ligada ao mundo do trabalho numa perspectiva democrática. Esses pressupostos se justificam, na visão de Pacheco (2015, p. 10), na medida em que “não basta incluir em uma sociedade desigual [...]. O conceito de inclusão tem de estar vinculado ao de emancipação, quando se constroem também os princípios básicos da cidadania como consciência, organização e mobilização”. Em outras palavras, o sucesso escolar perpassa pelo ambiente de sala de aula e envolve a comunidade, fazendo da educação um instrumento a serviço da democracia e inclusão.

A indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, uma das características do currículo integrado, reforça a busca por metodologias que aproximem ciência e tecnologia como forma de romper com o modelo de conhecimento fragmentado que ainda separa teoria e prática. Fundamentada no trabalho como princípio educativo, essa formação não dicotomiza as dimensões intelectual e operacional, mas sim capacita cidadãos ativos para entender e transformar a sociedade, tanto para desempenhar funções de decisão quanto de ordem técnica, com aptidões para pensar, agir, refletir e transformar a realidade de forma crítica e responsável. Isso sinaliza a tendência referida por Freire (2011, p. 100-101) de os educadores e educandos “estabelecerem uma forma autêntica de pensar e atuar. Pensar-se a si mesmos e ao mundo, simultaneamente, sem dicotomizar este pensar da ação.”.

Isso requer permanente estímulo para que educadores e educandos desenvolvam um senso crítico e reflexivo ao longo dos estudos e aprendizados dos conteúdos e conceitos disciplinares, indo ao encontro de um processo educacional sistematicamente engajado e participativo. Como diz Freire (1996, p. 26), “o educador democrático não pode negar-se o dever de, na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua insubmissão”. Porém, desenvolver a criticidade não é um processo simples. Requer uma abordagem educacional capaz de promover a autonomia e ampliar os horizontes dos sujeitos das práticas pedagógicas, pela constante reconstrução da realidade, desenvolvendo consciência acerca das visões de mundo e dos projetos de sociedade em que se assentam.

Entender o currículo integrado implica entender os fundamentos que explicam os processos naturais e sociais, em suas relações de implicação com a formação e a prática profissional, exigindo que os conceitos científicos sejam ensinados, estudados e aprendidos em suas raízes epistemológicas, como produções humanas histórica e socialmente situadas. Ramos (2005, p. 114) propõe que a finalidade da formação integrada seja:

 

possibilitar às pessoas compreenderem a realidade para além de sua aparência fenomênica. Sob essa perspectiva, os conteúdos de ensino não têm fins em si mesmos e nem se limitam a insumos para o desenvolvimento de competências. Os conteúdos de ensino são conceitos e teorias que constituem sínteses da apropriação histórica da realidade material e social do homem.

Como discorre Ciavatta (2005, p. 94), a formação integrada “exige que se busquem os alicerces do pensamento e da produção da vida além das práticas de educação profissional e das teorias da educação propedêutica que treinam para o vestibular”. Desenvolver uma formação integrada exige romper com a tendência de manter o modelo de educação bancária, que, “servindo à dominação, inibe a criatividade”, nega “os homens na sua vocação ontológica e histórica de humanizar-se”, domestifica a “intencionalidade da consciência como um desprender-se ao mundo” (FREIRE, 2011, p. 101), impedindo o desvelamento crítico da realidade. Isso implica entender que, na formação integrada, o processo de apropriação social do conhecimento é mediado pelo trabalho e, por sua vez, produz conhecimento de forma dialeticamente transformadora, o que corrobora com a compreensão da realidade que a noção de currículo integrado pode proporcionar. O que reforça a integração entre trabalho, ciência, tecnologia e cultura como dimensões indissociáveis.

Essas dimensões também são discutidas por Kuenzer (2007) que ressalta a integração entre ciência, trabalho e cultura como um dos princípios para a organização curricular que pretende atender as necessidades dos que vivem do trabalho. Para isso, a autora chama a atenção para a organização curricular que intenta a educação científico-tecnológica específica, de modo que “atenda às especificidades regionais, viabilizando a movimentação do pensamento do geral para o específico e vice-versa, [...] sem que haja momentos separados no currículo para as partes geral e diversificada” (KUENZER, 2007, p. 60). Assim, a constituição do professor para atuar no mundo do trabalho na Licenciatura em Computação supera a ideia de uma formação calcada nas tecnologias de “última geração” apenas e proporciona, por meio do ensino da computação, o desenvolvimento do pensamento computacional para garantir uma formação humana e social integrada.

 

Formação Integrada e desenvolvimento do Pensamento Computacional

Uma das formas de desenvolver o pensamento computacional é por meio da programação de computadores, mas não se trata de um aprendizado da programação descontextualizado, que mais gera problemas como repetência, evasão e reprovação, do que construção de conhecimentos significativos.

Não é novidade que disciplinas introdutórias de Cursos de Computação, principalmente as relacionadas com Algoritmos e Programação, são responsáveis pela repetência e evasão (KRZYZANOWSKI et al., 2019). Os autores identificaram que “em média, 62,5 % dos alunos que reprovaram na primeira disciplina de Algoritmos e Programação por nota e 70% dos que reprovaram por frequência acabaram trancando o curso”. Ao mesmo tempo, “em média, metade dos alunos que conseguem aprovação nessa disciplina mantêm-se matriculados no curso” (KRZYZANOWSKI et al., 2019). Tais resultados confirmam que possivelmente as disciplinas introdutórias são determinantes na permanência dos estudantes. Isso nos levou a pensar na importância de se propor e avaliar metodologias alternativas para o ensino dessas disciplinas.

Na perspectiva de colaborar com a construção do conhecimento, diferentes abordagens podem favorecer o desenvolvimento de aprendizados que promovam capacidades e aptidões profissionais e pessoais constitutivas do pleno desenvolvimento humano. Nossa proposta focaliza o desenvolvimento de aplicativos móveis por meio da programação baseada em blocos com a ferramenta App Inventor[4], na perspectiva de potencializar a construção do pensamento computacional articuladamente com a aprendizagem da programação pelos alunos do curso de Licenciatura em Computação.

Embora se encontrem várias definições para o termo “pensamento computacional”, existe uma visão convergente de que sua utilização, enquanto ato de pensar como um cientista da computação pode auxiliar na solução de problemas para diferentes situações e áreas. Portanto, o pensamento computacional não tem a intenção de fazer com que as pessoas pensem como computadores, mas sim que se utilizem dos fundamentos e recursos da computação, aliados à sua inteligência, para abordar problemas (formular e resolver problemas). Segundo Wing (2006), o pensamento computacional é uma “distinta forma de pensamento com conceitos da Ciência da Computação para formular e resolver problemas, desenvolver sistemas e para entender o comportamento humano, habilidade fundamental para todos”.

Nos dizeres da autora, para além da formação e prática no campo da computação, a noção de pensamento computacional potencializa a criação de condições para expandir, na sociedade como um todo, um conhecimento constitutivo do pensar e agir em situações problema da realidade, assim como o computador vem sendo usado como instrumento mediador entre as dimensões material e intelectual, entre pensamento e ação humana. Trata-se de entender e desenvolver um modo de pensamento humano, não de alguma máquina, diz Wing (2006). É um pensamento mobilizado quando a pessoa formula ou resolve um problema lançando mão de meios usuais ao campo da computação, mas é a pessoa que o coloca em ação, pois, afinal, as máquinas não pensam. O homem cria máquinas, incluindo o computador, como meios que contribuam no pensamento das pessoas, não das máquinas, tornando-as capazes de desenvolver e usar modos de pensar e agir quando enfrentam situações problema da realidade. É a apropriação do conhecimento da computação para todos, proporcionando construir um novo olhar explicativo e interpretativo para o mundo, transformando-o.

Além dos conhecimentos técnicos, que já são complexos, a formação de um profissional nos IFs também perpassa pela compreensão de diferentes aspectos sociais e da realidade em que os indivíduos estão inseridos. Para que ocorra a recontextualização do conhecimento técnico científico da computação para o conhecimento cotidiano é necessário que o pensamento computacional integre o espaço da escola, atuando como instrumento de construção de ideias e resolução de problemas que envolvem questões sociais, culturais e curriculares.

Conforme Cambraia (2016), o pensamento computacional científico é subversivo e refuta o adestramento que privilegia as listas de conteúdo sem significado. A articulação dos conhecimentos científicos com significados nas comunidades escolares é possível através da aproximação da realidade do estudante, possibilitando que ele interaja, discuta e procure soluções para problemas concretos, lançando mão de pertinentes conhecimentos, articulados como modo de pensar e agir na prática, de forma que se contraponha à racionalidade técnica, na qual, como discute Schön (2000), a atividade profissional é uma pretensa solução de problemas instrumentais mediante aplicação rigorosa e padronizada da teoria e a técnica científica. O autor critica a formação de profissionais ‘como técnicos’, em que a atividade profissional é vista de forma positivista, encaixando teorias e procedimentos técnicos de maneira generalista, padrão, sem levar em conta os condicionantes reais dos problemas práticos: a complexidade, a imprevisibilidade, a singularidade, a variabilidade, a incerteza e os conflitos de valores. Diferentemente da racionalidade técnica, na organização da licenciatura nos moldes da formação integrada, conhecimentos científicos dialeticamente recontextualizados e transformados nos contextos da prática profissional não são idealizados nem deturpados e é levada em conta a complexidade e dinamicidade dos problemas reais da prática, vistos como ‘terreno pantanoso’, como refere o autor.

Desenvolver a formação integrada de forma crítica e transformadora exige entender e saber lidar com a relação dialética entre as duas rupturas epistemológicas entre o conhecimento científico o conhecimento de senso comum. Boaventura Souza Santos denomina de primeira e segunda ruptura epistemológica.

 

Uma vez feita a ruptura epistemológica com o senso comum, o ato epistemológico mais importante é a ruptura com a ruptura epistemológica. (…) Enquanto a primeira ruptura é imprescindível para constituir a ciência, mas deixa o senso comum tal como estava antes dela, a segunda ruptura transforma o senso comum com base na ciência (SANTOS, 1989, p. 41).

 

De acordo com o autor, a dupla ruptura procede a um “trabalho de transformação tanto do senso comum como da ciência” (idem, p. 41), não cabendo ‘reinventar a roda’, como se diz, nem a visão deturpada de uma pretensa solução tecnicista aos problemas práticos mediante uma suposta aplicação de conhecimentos científicos gerais e padronizados. O que importa, sim, é perseguir avançando no desenvolvimento do currículo integrado, articuladamente com a mobilização e uso do pensamento computacional exigente do domínio do conhecimento científico básico, mas como modo dialético de pensar e agir para ‘andar com as próprias pernas’, ao resolver problemas sem negligenciar sua inerente dinamicidade e complexidade.

Assim, estudar coletivamente o referencial teórico que trata do pensamento computacional no contexto do curso de Licenciatura em Computação contribui para promover uma formação integrada dialogante com distintas formas de conhecimento a serem ensinadas e apreendidas na relação dialética entre teorias e práticas profissionais, como distintos modos de ver, entender, pensar e agir na realidade. Trata-se de entender a transformação da realidade vivencial pelo caminho da reconstrução sistemática das práticas sociais em que o sujeito está situado.

Esses são desafios e potencialidades que acompanham os dinâmicos processos de desenvolvimento do pensamento computacional em contextos de formação integrada, que giram em torno do estudo de situações existenciais tomadas como situação problema da realidade. Nela, todos os participantes do processo formativo têm o que ver, o que dizer, o que pensar, o que fazer, na medida em que é coletivamente problematizada e ressignificada, à luz de distintas fontes de explicação/ação.

O pensamento computacional articulado como formação integrada se apresenta como uma alternativa para melhorar a formação para saber lidar com a resolução de problemas da realidade mediante um pensamento/ação crítico e transformador. A possibilidade de desenvolver conhecimentos aliados com capacidades, habilidades e competências essenciais para a vida contemporânea, independentemente da área em que o egresso irá atuar, com foco em criar soluções para questões sem resoluções pré-definidas, aproxima o pensamento computacional das concepções de formação integral.

 

Três Momentos Pedagógicos como organizadores do processo didático

Pensar em uma alternativa para organizar o ensino no Curso de Licenciatura em Computação, com foco na programação, para desenvolver o pensamento computacional articulado como formação integrada, emergiu a proposta da sequência didática embasada nos três momentos pedagógicos (DELIZOICOV et al., 2011) para desenvolver aplicativos móveis com App Inventor. Isso vislumbra uma organização do processo didático no sentido de desenvolver o pensamento computacional pela transversalidade, que diz respeito ao diálogo entre educação e computação. A computação, nesse caso, ultrapassa os limites da simples aplicação mecanicista e amplia-se ao proporcionar uma formação que traz novas possibilidades de conhecimento aos educandos.

Segundo Muenchen e Delizoicov (2014), os três momentos pedagógicos propiciam a articulação da educação freiriana com o espaço da educação formal, sendo nomeados como: problematização inicial; organização do conhecimento; aplicação do conhecimento. Na discussão aqui apresentada, eles são retomados mediante um diálogo com a ideia freireana da pedagogia do ser mais, cujo foco está assentado na problematização transformadora da realidade como pronúncia do mundo que, para além do imediato, carrega as marcas dos significados ético/político/sociais histórica e universalmente inscritos na humanidade.

O primeiro momento pedagógico, que se caracteriza como “problematização inicial”, desenvolve-se por meio de situações reais que os alunos experienciam, desafiá-los a expor o que pensam para entendê-los melhor e, assim, problematizar e criar a necessidade de conhecer o que ainda não conhecem. Isso sinaliza a importância da problematização de situações vivenciais, o que favorece a intercomunicação e, para além dela, a relação de verdadeiro diálogo, em que uns apreendem com os outros na diferença, na mútua reciprocidade, à medida que avançam os processos de explicitação dos conhecimentos com que enfrentam, dialeticamente, as contradições inerentes a cada situação de tensionamento, em meio às tramas com que cada rede de significação conceitual é tecida.

O segundo momento pedagógico, que se caracteriza como “organização do conhecimento”, abrange o desenvolvimento de atividades, com a orientação docente, sobre os conhecimentos necessários para entender a problematização inicial. Essa perspectiva toma a situação existencial como problema desafiador na educação trans/formadora do/no mundo, situa o Homem como ser histórico, social, inserido na cultura, situa a importância de compreender a dialética dos movimentos de individualização pelos quais cada pessoa torna-se um ser singular e único, ao se apropriar dos instrumentos e símbolos objetivados, materializados, no mundo concreto em que vive.

Freire (2011), ao discutir a noção de educação problematizadora, contribui no entendimento da potencialidade da formação integrada articulada com os momentos pedagógicos para favorecer relações entre sujeitos que concebem a realidade como processo em constante transformação, de forma crítica e reconstrutiva, apontando que: “somente o diálogo que implica um pensar crítico é capaz, também, de gerá-lo”, como dimensão constitutiva do humano, pois sem a relação de diálogo “não há comunicação e sem esta não há verdadeira educação” (p. 115).

No caso do terceiro momento pedagógico, aqui o referimos como de “recontextualização do conhecimento”, por considerarmos que o termo ‘aplicação’ deixa margem ao risco de incorrer na racionalidade técnica, num caráter positivista e simplista, como já discutido neste texto. Este momento pedagógico se caracteriza pela atividade de sistematização do conhecimento elaborado pelo aluno, analisando e interpretando as situações iniciais e outras que possam ser compreendidas pelo mesmo conhecimento.

Este momento marca a prática formativa integrada na perspectiva da educação como ato ético-político marcado como ‘acercamento’ aos sujeitos em seus mundos, numa intersubjetividade que, como refere Freire (2011, p. 119), “se faça, não para levar-lhes uma mensagem ‘salvadora’, em forma de conteúdo a ser depositado, mas, para, em diálogo, conhecer, não só a objetividade em que estão, mas a consciência que tenham desta objetividade”, com o reconhecimento “dos vários níveis de percepção de si mesmos e do mundo em que e com que estão”.

Essa compreensão/ação que engaja sempre mais o sujeito inscrito e situado na história é que interessa desenvolver nos processos de formação integrada, como movimento de desvelamento, problematização e reflexão sobre as visões de mundo com que se constitui a consciência crítica sobre a própria condição de existência. Entendimentos como esses corroboram a visão de que a formação integrada entremeada pelos três momentos pedagógicos permite ressignificar concepções e práticas curriculares numa perspectiva problematizadora e transformadora da realidade, para além das inerentes relações de verticalidade e de horizontalidade que se cruzam na relação pedagógica entre educador e educando.

Sendo assim, os três momentos pedagógicos relacionam-se diretamente com o currículo integrado, pois não reduzem a construção do conhecimento ao treinamento para a execução de determinadas tarefas. Pelo contrário, visam superar a divisão do ser humano entre o que pensa e aquele que faz, produzida pela divisão social do trabalho. Buscam sim, a formação humana omnilateral que procura desenvolver o pensamento crítico e a autonomia intelectual. Além disso, propiciar a compreensão do mundo do trabalho como dimensão histórica e ontológica, promovendo o desenvolvimento humano em sua integralidade, em substituição à unilateralidade, e a emancipação dos sujeitos.

Assim, o desenvolvimento do pensamento computacional por meio do ensino de programação, desenvolvido em contexto de formação integrada, não tem apenas a preocupação de formar para o exercício do emprego, mas para entender e saber lidar com o trabalho, assumido como princípio educativo, em que o ser humano é produtor da sua própria realidade, sendo capaz de transformá-la crítica e sistematicamente. Formar um profissional professor que atue intelectualmente de maneira crítica, criativa e autônoma, capaz de entender e promover mudanças de maneira ética e politicamente engajada na sociedade implica prosseguir estudando e se educando permanentemente.

Considerações Finais

A abordagem pedagógica idealizada para o desenvolvimento do pensamento computacional por meio do ensino de programação, neste ensaio, foi a criação de sequências didáticas pautadas nos três momentos pedagógicos, com a finalidade de desenvolver problematizações contextualizadas e construir o conhecimento de forma significativa, extrapolando uma educação bancária, descontextualizada e desconectada da realidade como uma totalidade complexa. Não se trata de um modelo, mas de um trabalho reflexivo para um quefazer, um trabalho que se sabe inconcluso.

Nessa perspectiva, abordar o pensamento computacional como um processo auxiliar na formulação/resolução de problemas e formação omnilateral é entender o homem como um ser histórico-social que produz ciência, tecnologia e cultura. Por isso, compreender como o desenvolvimento de aplicativos para dispositivos móveis pode facilitar o desenvolvimento do pensamento computacional na educação profissional e tecnológica é um esforço em superar uma formação mecanicista e proporcionar uma formação integrada e integral.

A partir do desenvolvimento do pensamento computacional, pode-se contribuir para a aprendizagem que fomenta reflexões críticas, tendo como base o protagonismo dos alunos na relação destes com o conhecimento. Não se trata de, portanto, somente adquirir habilidades, a exemplo do que ocorre com a lógica multidisciplinar que fragmenta o saber por meio de disciplinas, mas sim de uma concepção de integralidade que capacita o aluno a desenvolver habilidades do pensamento computacional, como: abstração, análise de informações, reconhecimento de padrões e automação de soluções. Habilidades essas que também ampliam a compreensão de sociedade e qualificam o sujeito a integrar o mundo do trabalho com raciocínio crítico-reflexivo e autonomia intelectual.

A formulação/resolução de problemas de maneira lógica é uma das habilidades a serem desenvolvidas a partir do ensino de programação. Por meio da programação o aluno amplia a capacidade de organizar e sistematizar ideias, aumentando o pensamento crítico na solução de problemas reais. Assim, o pensamento computacional não se restringe a programar um computador, mais do que isso, habilita o sujeito a buscar e selecionar informações relevantes, abstrair e decompor os problemas de modo criativo e dinâmico, auxiliando no processo de construção de saberes.

Contudo, por fim, este ensaio é um desafio aos professores de computação para superar modelos bancários de transmissão de conhecimentos e criar sequências didáticas pautadas nos três momentos pedagógicos, possibilitando o desenvolvimento do pensamento computacional e a aprendizagem de programação contextualizada. Para trabalhos futuros, vislumbramos pesquisas que construam estas sequências didáticas, para o ensino de programação visual e compreendam como o pensamento computacional é desenvolvido nesses contextos.

 

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[1] Texto publicado no Seminário Regional Sul de Educação Profissional e Tecnológica, realizado de 12 a 14 de maio de 2021. Mais informações: https://www.even3.com.br/sept2021/.

[2] Entendemos que a Licenciatura em Computação pertence à Educação Profissional e Tecnológica por se preocupar com a construção do conhecimento profissional e formar professores que atuarão na Educação Profissional e Tecnológica.

[3] A formação omnilateral, defendida pelos clássicos do marxismo (Marx, Engels e Gramsci), destaca o trabalho enquanto princípio educativo, superando a oposição entre formação intelectual e formação técnica. Apresenta-se como preceito básico para a emancipação humana a partir de uma formação integral pautada na igualdade de oportunidades, na autonomia, no pensamento crítico e na consciência da realidade, aliando a instrução e a atividade prática com vistas a superar o caráter alienante do trabalho na sociedade capitalista.

[4] Mais informações em: https://appinventor.mit.edu.