ReTER, Santa Maria, v.2, n.2. ISSN:2675-9950 | Dossiê Práticas de Ensino Remoto nas Áreas de Educação, Letras e Interdisciplinar |
O ENSINO REMOTO E AS LITERATURAS ANGLÓFONAS: O DESAFIO DA PRÁTICA COMO COMPONENTE CURRICULAR
Doutora em Letras, Professora Adjunta do Departamento de Letras Estrangeiras (DLTE) na UFSM – monica.stefani@ufsm.br
Resumo: Este artigo descreve o desafio de trabalhar com a prática como componente curricular (PCC) em meio a um cenário emergencial de ensino remoto na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) via REDE (Regime de Exercícios Domiciliares Especiais), em vigor desde o início da pandemia de COVID-19 no Brasil, em março de 2020. Diante de todas as adaptações necessárias à implantação de um novo currículo de curso durante uma pandemia e no ambiente de ensino remoto, inevitavelmente, todas as disciplinas foram impactadas. A prática como componente curricular (PCC), que tem feito parte das propostas pedagógicas dos cursos de Licenciatura no Brasil nos últimos anos, também representou um desafio adicional, visto que deveria ser contemplada de alguma forma na modalidade de ensino remoto. Este artigo compartilha uma proposta de ensino de literaturas anglófonas envolvendo licenciandos cursando a disciplina Literaturas Anglófonas VI (do 6º semestre) na UFSM, enfocando a tarefa de criação de um plano de aula como atividade de Prática como Componente Curricular para ambientes de ensino remoto. Como resultado, a literatura se mostrou uma disciplina proveitosa em tal iniciativa, pois os acadêmicos estavam engajados e seu contato com artefatos literários foi de fato estimulado por meio das ferramentas online, tornando a experiência literária cativante.
Palavras-chave: Práticas como componente curricular; Ensino remoto; Literaturas Anglófonas.
REMOTE TEACHING AND ANGLOPHONE LITERATURES: THE CHALLENGE OF PRACTICE AS A CURRICULUM COMPONENT
Abstract: This paper describes the challenges concerning practice as a curriculum component amidst emergency remote teaching at the Federal University of Santa Maria via the Special Home Exercise Regime, in effect since the beginning of the COVID-19 pandemic in Brazil, in March 2020. Considering all the necessary adaptations to the implementation of a new curriculum of a teaching degree programme in the middle of a pandemic and in a remote teaching environment, all subjects have inevitably been impacted. Practice as a curriculum component, which has been part of the pedagogical proposals of teaching degree programmes in Brazil in recent years, also poses additional challenges, since it should be addressed in some way in the remote teaching modality. This paper shares a proposal involving the teaching of anglophone literatures to students enrolled in the subject Anglophone Literatures VI (belonging to the 6th semester of the teaching degree programme) at the Federal University of Santa Maria, focussing on the task of devising a lesson plan as part of a practice as a curriculum component activity in remote teaching environments. As a result, literature proved to be a fruitful subject in such endeavour, as academics were engaged and their contact with literary artefacts was indeed stimulated via online tools, making the literary experience captivating.
Keywords: Practice as a curriculum component; Remote teaching; Anglophone Literatures.
Introdução
Como se não bastassem as súbitas mudanças ocorridas em todos os níveis por conta da pandemia de Covid-19 no ano de 2020, os professores dos cursos de Licenciatura têm se deparado com outras alterações a nível curricular em suas respectivas áreas de atuação, por conta de inúmeros pareceres e instruções vindo do Ministério da Educação, visando à remodelação (ou atualização) dos cursos de Licenciatura, a fim de torná-los, a nosso ver, mais atrativos aos alunos e mais próximos a uma sociedade hipermoderna e conectada.
Como parte dessas alterações, não apenas as ementas das disciplinas de cursos de graduação foram atualizadas (contemplando, assim, novas obras, novos conceitos, e novas abordagens, junto aos clássicos), como também surgiu uma nova orientação, que passou a fazer parte das propostas curriculares mais recentes, as chamadas Práticas como Componente Curricular (doravante referidas como PCCs). No entanto, o que seriam, em resumo, essas PCCs? Como diferenciá-las das práticas de ensino já adotadas nos cursos de Licenciatura? Essa mesma questão foi levantada pelos pesquisadores em Educação Mohr e Wielewicki (2017):
Como um conceito com mais de 15 anos soa tão novo? Por que tanta polêmica e tantas dúvidas sobre seu significado? Uma das respostas possíveis é que a PCC institui-se e funciona em um terreno pleno de concepções muito arraigadas no senso comum, muito disputado no campo da pesquisa e encharcado de valores nem sempre percebidos ou admitidos. Há então que explicitar, discutir, elaborar e disputar concepções e valores. Por exemplo, a dicotomia teoria e prática é ainda um problema persistente. Precisamos romper tal dualidade para conseguir enxergar a teoria como ação pensada e a prática como reflexão sobre a ação. Outro aspecto muito sensível diz respeito a quem forma o professor. Todos aqueles que atuam em um curso de licenciatura atuam na formação de professores, mas nem sabe se dão conta disso (sic)... Podemos arrolar também a incompreensão que um currículo formativo é muito mais do que uma lista de disciplinas, uma grade horária ou uma distribuição de cargas horárias entre departamentos e centros de ensino universitário! O currículo se compõe, além de disciplinas, de ações em programas como o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), em projetos de extensão, em instâncias estudantis, em grupos de estudo, nas vivências, entre tantas outras possibilidades; assim seria interessante ver nessa diversidade não necessariamente um problema, mas, pelo contrário, parte da solução para a formação dos professores (MOHR; WIELEWICKI, 2017, p. 3).
A partir dessa exposição, refletimos sobre a ação em um contexto de excepcionalidade, que tem alterado sobremaneira nossa percepção sobre inúmeros aspectos da nossa vida quotidiana. Como trabalhar, então, com as práticas de ensino em um ambiente de ensino remoto? Tudo isso exige criatividade e muita reflexão acerca do perfil profissional exigido em tempos tão dinâmicos. O Parecer CNE/CES 492/2001 reitera que o curso de Letras objetiva “[...] formar profissionais interculturalmente competentes, capazes de lidar, de forma crítica, com as linguagens, especialmente a verbal, nos contextos oral e escrito, e conscientes de sua inserção na sociedade e das relações com o outro” (BRASIL, 2001a, p. 30). Antes de descrevermos a proposta de PCC no segundo semestre de 2020, realizada em REDE (Regime de Exercícios Domiciliares) na UFSM, vamos adotar a definição de PCC apresentada no Parecer CNE/CES n.º 15/05:
a prática como componente curricular é o conjunto de atividades formativas que proporcionam experiências de aplicação de conhecimentos ou de desenvolvimento de procedimentos próprios ao exercício da docência. Por meio destas atividades, são colocados em uso, no âmbito do ensino, os conhecimentos, as competências e as habilidades adquiridos nas diversas atividades formativas que compõem o currículo do curso. As atividades caracterizadas como prática como componente curricular podem ser desenvolvidas como núcleo ou como parte de disciplinas ou de outras atividades formativas. Isto inclui as disciplinas de caráter prático relacionadas à formação pedagógica, mas não aquelas relacionadas aos fundamentos técnico-científicos correspondentes a uma determinada área do conhecimento (BRASIL, 2005, p. 3).
Isto é, ainda como diferenciação entre PCC e práticas de ensino e estágio, é interessante observar o que o Parecer CNE/CP nº 28/2001 menciona que a prática como componente curricular “é, pois, uma prática que produz algo no âmbito do ensino(...). É fundamental que haja tempo e espaço para a prática, como componente curricular, desde o início do curso (...)” (BRASIL, 2001b, p. 9). A partir dessas definições, vemos que as PCCs visam a permitir que o licenciando, já nos primeiros semestres de sua formação, trabalhe com práticas de ensino, ou pelo menos que os profissionais atuantes em cursos de Licenciatura instiguem os licenciandos a pensar em ações que concretizem sua atuação docente antes do estágio, previsto na segunda metade do curso.
Tendo por base esses pressupostos, neste artigo, descrevemos uma proposta de atividade de PCC na área de literaturas anglófonas em uma disciplina do 6º semestre do curso de Letras - Licenciatura (Inglês e Literaturas de Língua Inglesa) da UFSM, tendo como base a utilização das ferramentas do Google (mais especificamente a ferramenta de comunicação por vídeo Google Meet para a realização de encontros síncronos) e do Moodle (modalidade Presencial) da UFSM (para o compartilhamento de conteúdo e a realização e avaliação de tarefas da disciplina).
Contexto de aplicação da proposta
O contexto de aplicação da proposta de PCC no ensino de literaturas anglófonas em meio ao REDE (Regime de Exercícios Domiciliares), instaurado pela UFSM em março de 2020 por meio da resolução 024, de 11 de agosto de 2020, gerou inúmeros desafios, não apenas na parte burocrática (de registro de disciplinas e legislações), mas também na parte pedagógica. Como parte da gestão do Departamento de Letras Estrangeiras (DLTE) da UFSM, foram perceptíveis o desconforto e o temor gerados pela nova resolução, afinal, a maioria dos docentes não imaginava, e sequer foi preparada, nas suas próprias trajetórias de formação, para o cenário de excepcionalidade que então se desvelava. De fato, algumas disciplinas aparentemente se mostraram um pouco menos problemáticas nessa transição (e adaptação) um tanto urgente e extremamente necessária ao ambiente de ensino remoto - por exemplo, se comparado à área de ensino de idiomas, que já há algum tempo trabalha com as CALL (Computer-Assisted Language Learning).
No primeiro semestre de 2020, quatro disciplinas de literaturas anglófonas foram ofertadas: Literaturas Anglófonas II (para o segundo semestre, carga horária de 60h); Literaturas Anglófonas IV: Modernismo (para o quarto semestre, carga horária de 60h); Literaturas Anglófonas VI: Literatura Britânica dos Séculos 18 e 19 (para o sexto semestre, carga horária de 60h); e Literaturas Anglófonas VIII: Do Período Medieval ao Período Carolino (para o oitavo e último semestre do curso, carga horária de 30h). Segundo o Plano Pedagógico do Curso (PPC), as disciplinas contempladas com PCCs são as Literaturas Anglófonas II, IV e VI (a VIII não foi escolhida, por ter uma carga horária menor do que as anteriores).
Na experiência ora descrita, a disciplina foi a de Literaturas Anglófonas VI, de caráter obrigatório e pertencente, no currículo do curso, ao eixo do “domínio do conhecimento”, isto é, enfoca “a formação teórico-prática (o estudante face à mobilização dos saberes relativos ao objeto)”. Das 60 horas que compõem sua carga horária total, 30 horas são dedicadas à parte teórica, e as outras 30 horas para a parte prática; logo, a Prática como Componente Curricular foi incluída, justamente por contemplar a formação pedagógica do licenciando em Letras – Inglês na sua prática de ensino de literatura. Houve a participação efetiva de 10 acadêmicos, com a maioria pertencente ao sexto semestre do curso (portanto, já estavam em contato com as primeiras disciplinas de estágio). Alguns já estavam prestes a se formar e cursavam a disciplina porque ela não possuía equivalência na adaptação curricular.
Tecnologias educacionais envolvidas
No REDE, houve a preferência pelo uso da plataforma Google Meet[1] para as duas horas de aulas realizadas de forma síncrona, com o professor utilizando seu endereço de e-mail institucional para acesso à ferramenta; para as outras duas horas restantes, optou-se pela plataforma Moodle[2], com diferentes tarefas sendo propostas. Um recurso comumente aplicado sempre no início da disciplina, e que serve de diagnóstico para eventuais mudanças no plano de ensino do professor, é o questionário. Sua construção é simples, e os resultados obtidos ajudam, por exemplo, saber se a turma já leu determinado romance ou autor, e para conhecer melhor as preferências dos alunos. Outro recurso do Moodle muito utilizado na disciplina, além das tarefas, foi o quiz. Após a leitura de determinado texto, era disponibilizado o quiz, para que os alunos também tivessem algum tipo de retorno sobre o que estavam lendo. O feedback era fornecido sempre na aula síncrona seguinte, que servia também como tira-dúvidas.
Como a disciplina possuía a orientação de trabalho com a PCC, optou-se por acomodá-la em duas partes: como complemento da parte teórica (por meio de orientações aos alunos sobre como melhor aproveitar - e de modo prático - materiais literários nas suas aulas - seja de língua, seja de literatura) via Moodle; e como parte prática propriamente dita, que seria realizada mais ao final da disciplina, na forma de uma tarefa que também comporia uma das notas para a avaliação final da disciplina: a apresentação de um plano de aula envolvendo algum tópico que tivesse sido estudado na disciplina, tendo como público-alvo alunos do ensino médio (por considerarmos que as opções de introdução de textos literários seguindo a BNCC seriam mais razoáveis para esse nível). Na próxima seção, detalhamos as etapas desenvolvidas nesta proposta do plano de aula envolvendo literaturas anglófonas.
Etapas envolvidas
A disciplina LTE 1224 - Literaturas Anglófonas VI: Literatura Britânica dos Séculos 18 e 19 (ofertada pela primeira vez já na nova matriz curricular), teve início em 27 de outubro de 2020 e foi encerrada em 9 de fevereiro de 2021. Segundo a ementa, o recorte de estudo contempla autores e a produção literária das Ilhas Britânicas de 1701 a 1900 (um ano antes do final do período de governo da Rainha Vitória). Logo, o desafio já se mostra imenso em termos de seleção de autores e obras pelo fato de estarmos lidando com um dos períodos mais fecundos, ricos e conhecidos nas literaturas de língua inglesa.
Por outro lado, isso também seria um facilitador, pois muitas das referências que os alunos já poderiam ter ouvido falar (seja por filmes, seja por seriados, ou mesmo por romances que já tivessem lido em tradução para o português) pertencem a este intervalo de estudo. Para exemplificar, os períodos mais conhecidos são o Romantismo, com poesias que exaltam a natureza e a individualidade, e cujo uso do idioma e das imagens favoreceriam sua escolha para uma aula de língua inglesa (William Wordsworth, Samuel Taylor Coleridge e Lord Byron são citados como exemplo); o período de transição, representado por Jane Austen, cujos romances têm sido adaptados ao cinema e novas edições de traduções lançadas de tempos em tempos; e o período Vitoriano, que conta, entre seus representantes, com as irmãs Brontë, principalmente Emily, que renovou seu público leitor no Brasil com O morro dos ventos uivantes, por meio da intertextualidade com a saga Crepúsculo, de Stephenie Meyer (já que era esse o romance lido pela personagem Bella Swan); Bram Stoker, com Drácula; Arthur Conan Doyle, com o detetive Sherlock Holmes; e Oscar Wilde e o personagem Dorian Gray, entre outros.
No primeiro encontro online, o professor apresentou seu plano de ensino, com as datas previstas e o conteúdo a ser abordado, junto com os detalhes acerca do processo de avaliação (que normalmente é o primeiro item a chamar a atenção dos acadêmicos). Quando foi mencionado que um plano de aula faria parte da avaliação, aparentemente não houve resistência, pois como os alunos já estavam no sexto semestre, a tarefa não seria considerada impossível de ser realizada. Aliás, o “plano é um documento utilizado para o registro de decisões do tipo: o que se pensa fazer, como fazer, quando fazer, com que fazer, com quem fazer” (LIBÂNEO, 1992, p. 221). E essa etapa, principalmente no momento histórico em que vivemos, torna-se imprescindível, afinal, sendo online ou não, continua sendo “na aula que organizamos ou criamos as situações docentes, isto é, as condições e meios necessários para que os alunos assimilem ativamente conhecimentos, habilidades e desenvolvam suas capacidades cognoscitivas” (LIBÂNEO, 1992, p. 241). Como estávamos ainda envoltos na aura de excepcionalidade, o temor da falta de engajamento pairava no ar - quantos planos de aula seriam de fato apresentados ao final da disciplina?
A ideia para o aproveitamento da tarefa de criação de um plano de aula procurava também integrar os conhecimentos práticos de outras disciplinas (como LTR 1015 - Ensino de Línguas Mediado por Tecnologias Digitais) em semestres anteriores. Além disso, o desafio era propor o uso da criatividade também em uma área até então vista como um tanto engessada e que aparentemente não ofereceria muitas possibilidades de “atração” aos alunos (seja porque o ato de leitura hoje sofre muita concorrência com outras formas mais tecnológicas, imediatistas e atraentes de entretenimento; seja porque as pessoas não têm mais tempo para isso; seja porque a fase da vida não privilegie esse tipo de ação): a literatura. Outro motivo para a adoção do plano de aula como parte da PCC envolve a necessidade de pensar nos alunos como futuros candidatos a vagas de emprego, não apenas em concursos públicos, mas também no ambiente corporativo, logo, a prova didática é vista como um critério de seleção crucial e que precisa de treinamento para que a habilidade de preparar planos de aula de fato torne-se um diferencial.
A definição prévia do público-alvo da aula já auxiliaria os alunos a pensarem em como tentar abordar algum autor ou obra que havíamos visto durante a disciplina. Conforme mencionado anteriormente, o Moodle era utilizado para o envio de orientações sobre como os alunos poderiam tentar abordar outras temáticas igualmente importantes, e que estavam em foco no momento da disciplina. Um exemplo disso foi o movimento Black Lives Matter, que havia tomado conta das ruas dos Estados Unidos em 2020, e que ampliou-se para outros países do mundo anglófono; como a disciplina lidava majoritariamente com autores britânicos, havia a possibilidade de revisitar as obras literárias produzidas nos séculos XVIII e XIX que tivessem autores negros ou que abordassem temas pertinentes relacionados a outras minorias (tendo em vista que a Inglaterra teve seu movimento colonialista intensificado nesse período). Outro ponto que precisou ser definido foi a duração dessa aula, para que todas as ações propostas pudessem ser descritas e adequadamente postas em prática: por convenção, pensamos em um período de 50 minutos, pois em geral seria esse o tempo estipulado para uma aula de língua inglesa em uma escola pública.
Depois dessa definição, uma pergunta foi feita pela maioria dos alunos: a proposta de aula seria apenas para um ambiente online ou poderia também ser para um ambiente (até então) tradicional, isto é, presencial? Apesar de o plano de ensino da disciplina propor que fosse um plano para uma aula online, já que estávamos todos precisando aprender a lidar melhor com essa modalidade e isso serviria como um treinamento, a alternativa foi pensar, entre as duas modalidades, quais adaptações seriam necessárias e que tipos de estratégias e habilidades seriam mobilizados no processo de ensino e aprendizagem em cada uma delas. Na próxima seção, descrevemos os principais aspectos dos planos de aula apresentados.
Resultados e discussões
Ao final da disciplina, surpreendentemente, foram apresentados 10 planos de ensino, logo, todos os alunos se propuseram a realizar a tarefa com êxito. Para a apresentação, foram propostos dois encontros síncronos via Google Meet, para que os apresentadores pudessem ver nos colegas e no professor um público-alvo hipotético e crítico, pois comentários seriam muito bem-vindos. A ideia original era a de que os alunos de fato tentassem aplicar o plano de aula em uma turma de ensino médio de alguma escola pública em que eles já estivessem realizando o estágio. No entanto, por dificuldades enfrentadas pelas próprias escolas quanto à adaptação necessária para a mínima continuidade de suas atividades letivas, optamos por não acrescentar essa demanda. No entanto, como o plano seria desenvolvido para um público-alvo hipotético, pelo menos a estrutura principal já teria sido primeiramente desenvolvida, sendo, posteriormente, adaptada conforme as necessidades.
O plano 1 teve como tema principal o poema “My heart leaps up” de William Wordsworth, em uma videochamada via Google Meet de uma hora de duração. Após a leitura do poema feita pelo professor para a turma, a primeira atividade seria relacionar colunas (com palavras de um lado e seu respectivo significado na outra); o plano permitia que essa atividade fosse realizada coletiva ou individualmente; no caso de a atividade ser feita coletivamente, por exemplo, o professor mostraria sua tela aos alunos, via Google Meet ou outra plataforma de apresentação, e as colunas seriam preenchidas conjuntamente. As demais atividades contempladas no plano foram perguntas relacionadas à leitura do poema, em que o aluno manifestaria sua percepção/opinião acerca do que foi lido e discutido entre o grupo. Essa tarefa poderia ser feita também por meio da gravação de vídeos, nos quais as perguntas fossem respondidas oralmente. Outra forma de trabalhar com a expressão, neste caso escrita, da opinião dos alunos seria por meio do preenchimento de formulários online (via Google Forms, por exemplo).
Já o plano 2 enfocou o trabalho com intermídias, no caso, explorando a conexão entre o poema de Lord Byron intitulado “Prometheus”, empregando um vídeo com a leitura do poema e a análise de uma pintura do século XIX relacionada ao poema. Os alunos e o professor, em uma videochamada via Google Meet com duração de uma hora, conversariam primeiramente sobre o mito, e, como recursos, slides do Microsoft PowerPoint ajudariam na contextualização das obras apresentadas.
Em relação ao plano 3, foi apresentada a obra Alice’s Adventures in Wonderland, de Lewis Carroll, tendo como recursos um documentário no YouTube, junto com as imagens dos manuscritos e das ilustrações disponíveis no site da British Library (material que foi transformado em slides de PowerPoint para facilitar a exibição). Outro ponto proposto no plano de aula foi a apresentação do audiolivro Alice’s Adventures in Wonderland, no original em inglês, de forma gratuita, para que os alunos começassem a entender esse formato de leitura e como ele poderia ajudar a desenvolver as habilidades de leitura e de compreensão auditiva em língua estrangeira. Os links seriam disponibilizados tanto na apresentação de slides quanto no chat.
Considerando o plano 4, foi abordado o poema de John Clare intitulado “I am!”. Após a apresentação da biografia do autor, por meio de um link que os alunos acessariam e que os direcionaria para a “Enciclopédia Britannica”, os alunos explorariam a leitura do poema com o professor. A escrita de um poema de autoria própria, para compartilhamento via sarau online (no Google Meet) ficaria como proposta para outro encontro, enfocando justamente a subjetividade por meio do uso do pronome “eu”, seguindo o que o poema já propõe em seu título, e estabelecendo conexões entre o que poema apresenta de forma artística e a realidade de cada um dos participantes da aula.
Por seu turno, o plano 5 propôs o trabalho com três poemas do Romantismo inglês: “The Rainbow” de Charlotte Richardson, “Infant joy” de William Blake e “On the Departure of the Nightingale” de Charlotte Smith. Após a leitura silenciosa e audição coletiva dos poemas – por meio do website Poetry Foundation -, o professor explicaria as principais características do Romantismo inglês. Como atividade remota, os participantes contrastariam os poemas e compartilhariam suas próprias percepções em um trabalho escrito.
O plano 6 embasou suas ações pedagógicas no conto “The Adventure of the Blue Carbuncle”, de Arthur Conan Doyle, tendo o protagonismo do célebre detetive Sherlock Holmes. Com o Google Classroom e o Google Forms, o objetivo seria desenvolver a interpretação textual e auditiva por meio do conto lido em voz alta (audiolivro) e da escrita dos alunos em língua inglesa. Com links para dicionários online disponibilizados pelo professor, os alunos deveriam preencher um formulário no Google Forms, adicionado como uma atividade no Google Classroom, respondendo perguntas sobre os personagens principais e momentos cruciais do conto. A última parte do plano era a reescrita de uma página do conto, em língua inglesa, por parte dos alunos, que poderiam formar grupos para essa atividade. Eles teriam de escolher algum item/personagem, pois a ideia era trabalhar com os diferentes pontos de vista da história, com plena liberdade para alterar o rumo dos acontecimentos ou o final. Em seguida, essas composições seriam compartilhadas e lidas pela turma.
Quanto ao plano 7, as ações pedagógicas tiveram como base um exercício de escrita de resenhas a partir de uma adaptação fílmica do romance clássico The Picture of Dorian Gray, de Oscar Wilde. Os alunos teriam acesso à adaptação fílmica por meio de um link enviado previamente pelo professor, para que depois ocorresse a discussão acerca de sua recepção. Neste mesmo momento, instruções sobre o gênero resenha seriam apresentadas, introduzindo os alunos para a tarefa de escrita de sua própria resenha, estimulando-os a transformarem sua opinião antes compartilhada oralmente no encontro remoto em forma escrita no gênero resenha e em língua inglesa.
Por sua vez, o plano 8 mostrou como Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, considerado o primeiro romance inglês, pode ser utilizado em conjunto com o filme para abordar diferentes aspectos literários, culturais e históricos, além de estimular o pensamento crítico e o desenvolvimento das diferentes competências linguísticas em língua inglesa, já que segmentos do filme seriam apresentados em uma versão legendada com o áudio original em inglês durante o encontro. Como atividade final, os alunos escreveriam um breve texto, respondendo algumas perguntas feitas pelo professor e manifestando sua própria opinião sobre o que assistiram.
Em relação ao plano 9, a ideia foi trabalhar com Charles Dickens e seu famoso A Christmas Carol e suas diferentes adaptações (como desenhos da Barbie, dos Smurfs e da Disney). Como recursos, animações curtas seriam exibidas durante o encontro remoto. Como atividade final, foi proposta a criação de uma tirinha com a própria versão de A Christmas Carol por parte dos alunos, que poderia ser feita tanto por desenho à mão quanto por meio da ferramenta online StoryboardThat, de acesso gratuito (disponível em https://www.storyboardthat.com/).
Por fim, o plano 10 apresentou um jogo de tabuleiro, com cartas e dados, em que o participante precisaria responder perguntas sobre Jane Austen (com o romance Sense and Sensibility), Oscar Wilde (com The Picture of Dorian Gray) e John Keats (principalmente com o filme Bright Star) com o objetivo de acumular pontos de reputação; o que acumulasse mais pontos, ganharia o jogo. A ideia inicial deste plano pareceu o ambiente de aulas presenciais, mas com algumas adaptações, seria plenamente possível pensá-lo para um ambiente online. A ferramenta Flippity (disponível em flippity.net), por ser de acesso gratuito (em oposição a outras, como o Tabletop Simulator), pareceria uma alternativa viável para isso, exigindo apenas conhecimento em inglês, já que toda a interface está nesse idioma.
Conclusões
Iniciamos a descrição desta proposta evidenciando o desafio que seria lidar com a prática como componente curricular (PCC) não apenas porque estávamos em meio a um cenário remoto e de excepcionalidade, mas também em meio à implementação de um novo currículo de um curso de Licenciatura em Letras. Admitindo-se, neste contexto, que a presencialidade é um dos seus pilares, logo, o desafio passou a ser pensar em formas de trabalhar com a presencialidade por meio das ferramentas digitais a nosso dispor, buscando, com isso, obedecer à legislação – que preconizava a inclusão da prática como componente curricular, neste caso, na disciplina Literaturas Anglófonas VI - e proporcionar aos acadêmicos um ambiente de ensino-aprendizagem que tivesse o potencial de ser replicado na sua prática docente fora da universidade, principalmente na área de literatura, a qual, na maioria das vezes, não parece cativar tanto os alunos. Nesta experiência, chamou a atenção o fato de todos os alunos terem cumprido a tarefa, demonstrando seu engajamento e seu comprometimento, ultrapassando a mera questão do “ganhar nota” (que muitas vezes norteia o comportamento do acadêmico). Neste caso, a experiência com literatura, isto é, a fruição estética, foi genuína, e se refletiu na qualidade dos planos de aula apresentados.
A elaboração de um plano de aula para ser aplicado de forma online como atividade contemplando a prática como componente curricular pareceu viável porque a tarefa de planejamento é importante, e o acadêmico de licenciatura poderia usar este momento para desenvolver este aspecto dentro da área de estudos literários. Além disso, o plano de aula evidencia não apenas o conhecimento técnico – o repertório de leituras –, mas também a forma de compartilhar diferentes experiências e interpretações, além de trabalhar o incentivo à leitura utilizando as tecnologias à nossa disposição. Isso serviu para demonstrar, como conclusões: 1) que a literatura, como área do conhecimento, também tem muito a ganhar com essas mudanças, refletidas na prática como componente curricular, pois as aulas dessa matéria em ambiente remoto podem representar um momento efetivo de prática de reflexão e de incentivo à leitura, aumentando o engajamento dos acadêmicos. Aliás, a atividade de leitura – que é prática – também está cada vez mais sendo feita de modo online (por exemplo, os artefatos literários selecionados para a disciplina descrita neste relato já se encontram em domínio público e em formato digital e foram a forma preferida pelos acadêmicos); 2) que a literatura é parte integrante da formação dos acadêmicos de licenciatura, e como tal, precisa também ser alvo de reflexões e de experiências como esta, com o uso crescente de novas tecnologias, para que ela se beneficie desses avanços e se mantenha renovada, acompanhando, de certo modo, também o desenvolvimento dos seus novos leitores; 3) que a prática como componente curricular, em vez de representar uma forma de afastamento ou de isolamento da área dos estudos de literatura, é precisamente uma maneira de integrá-la cada vez mais à vida e à prática docente dos acadêmicos; 4) que é possível alterar o status da disciplina de literatura de “entediante” e “inativa” para “prazerosa” e “interativa”, por meio das ferramentas online.
Após a exposição dos planos, percebemos o uso maciço das ferramentas do Google, por serem gratuitas e mais conhecidas tanto por alunos quanto por professores, permitindo, também, uma maior gama de dispositivos para uso (muitos smartphones - desde os de preço mais acessível até os mais sofisticados - rodam no Android). Os alunos da disciplina já estavam em ação nos estágios nas escolas públicas da cidade de Santa Maria no ensino remoto; logo, as escolas, na maioria dos casos, também contavam com a expertise desses alunos para a realização de tarefas que, até então, não faziam parte da rotina dos professores (por exemplo, a preparação de slides). A opção pelo encontro síncrono fez parte de praticamente todos os planos, com atividades sendo propostas para entrega posterior (assíncrona) na parte final do encontro.
Um ponto, porém, que chamou a atenção foi que a ideia dos jogos online como opção de ação pedagógica acabou não sendo tão explorada. De fato, apenas o plano 10 expôs a ideia de trabalhar com um jogo de tabuleiro, mas que seria para encontros presenciais (a partir do uso de cartas de papel). Apenas o plano 9 propôs o uso de uma ferramenta online para a criação de quadrinhos, procurando estimular o trabalho com adaptações.
Um quesito discutido pelos participantes e pelo professor responsável pela disciplina concentrou-se na duração inicialmente proposta – de 50 minutos – para a atividade: alguns planos contavam com ações demasiadas que, se não fossem pontualmente realizadas, extrapolariam o tempo. Logo, um dos desafios nesta modalidade de ensino remoto se refere à dosagem de conteúdo a ser trabalhado, para não sobrecarregar nem os alunos nem o professor - afinal, ambos os lados sentem os ônus e os bônus das práticas de ensino remoto. Outro desafio proposital para que as práticas como componente curricular fossem devidamente realizadas - no caso descrito neste artigo, tendo feito uso de planos de aula contemplando turmas do ensino médio do ensino básico brasileiro - era utilizar objetos de estudo das literaturas de língua inglesa, com a ideia de que a separação de áreas de estudo (linguística x literatura) não se mostra produtiva: muito antes pelo contrário, sua união (linguística + literatura) representa avanços significativos, pois permite trabalhar com figuras que fazem parte do imaginário geral, mas que muitas vezes não são reconhecidas como originárias do contexto anglófono (Sherlock Holmes soa familiar para muitos, mas poucos o associam à literatura inglesa, isto é, à “existência” dele em páginas de livros, haja vista que a adaptação para filmes e seriados se dá por meio do que foi escrito por Conan Doyle no fim do século XIX e início do século XX). Isso ajuda a estabelecer conexões importantes no aprendizado do idioma, tendo em vista que a literatura “pode ser uma forma de compreender como determinados agentes sociais ou grupos se apropriam da realidade para simbolizá-la” (STEFANI; PEREIRA, 2020, p. 242).
Após a apresentação dos planos, consideramos a possibilidade de replicação da experiência ainda dentro dos Estudos Literários, contemplando outras disciplinas (por exemplo, literaturas de língua espanhola para aulas de espanhol no ensino básico, também para alunos do ensino médio ou mesmo dos anos finais do ensino fundamental). Como conclusões sobre os resultados desta experiência realizada entre outubro de 2020 e fevereiro de 2021, em relação ao público-alvo, fundamentadas nas observações realizadas, podemos confirmar que:
A ação de planejar, portanto, não se reduz ao simples preenchimento de formulários para controle administrativo: é, antes, a atividade consciente de previsão das ações docentes, fundamentadas em opções político-pedagógicas, e tendo como referência permanente as situações didáticas concretas (isto é, a problemática social, econômica, política e cultural que envolve a escola, os professores, os alunos, os pais, a comunidade, que interagem no processo de ensino) (LIBÂNEO, 1992, p. 222).
A ideia do planejamento, tendo em vista um ambiente de ensino online, propõe-se também a introduzir os acadêmicos às práticas do ensino híbrido, visto que esse ambiente certamente será uma realidade cada vez mais comum. Este relato pode servir também como fonte de ideias e ponto de partida para outros profissionais que, porventura, também estejam considerando modos de abordar a prática como componente curricular nos cursos de Licenciatura em Letras.
Esta iniciativa se junta a outras pelo Brasil que consideram esse cenário, para que os licenciandos tenham um espaço qualificado de prática (antes do estágio), pensando na integração cada vez mais crescente e produtiva entre a literatura (já não mais vista como apenas mera forma de “escape”) e o ensino/aprendizado de idiomas, permitindo que eles transitem de forma mais confortável entre os ambientes remoto e presencial.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Parecer CNE/CES n.º 492, de 3 de abril de 2001. Brasília, DF, 2001a.
BRASIL. Ministério da Educação. Parecer CNE/CP nº 28, de 2 de outubro de 2001. Brasília, DF, 2001b.
GOOGLE MEET. Como usar a videoconferência do Google Meet. Disponível em: https://apps.google.com/intl/pt-BR/meet/how-it-works/. Acesso em: 02 jun. 2021.
LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 1992.
MOODLE. Sobre o Moodle - Nossa Missão e Valores. Disponível em: https://moodle.com/pt/sobre/. Acesso em: 01 jun. 2021.
STEFANI, Mônica; PEREIRA, Tiago F. Literaturas Anglófonas e ensino em meio à pandemia de COVID-19: uma experiência no Sul do Brasil. Revista Terceira Margem, Rio de Janeiro, v. 24, n. 44, set./nov. 2020. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/tm/article/view/36004/21366. Acesso em: 10 mar. 2021.
[1] A ferramenta de comunicação por vídeo Google Meet foi criada oficialmente em março de 2017 pelo Google, sendo uma das duas ferramentas (a outra é o Google Chat) derivadas do antigo Google Hangouts. Para ter acesso ao Google Meet é necessário ter uma conta do Google. Há a possibilidade de criação de uma sala para reuniões com duração de até 60 minutos contando com a participação de até 100 usuários. O Google disponibiliza recursos avançados para empresas, escolas e outras organizações.
[2] Criado pelo australiano Martin Dougiamas em 2002, a plataforma MOODLE (Modular Object-Oriented Dynamic Learning Environment) é um software livre, de código aberto, de apoio à aprendizagem em ambiente virtual, cuja missão é “capacitar educadores para melhorar nosso mundo construindo a plataforma mais eficiente de ensino, aprendizagem e colaboração online” (MOODLE, 2021).