A leitura no ensino de filosofia como direito e a necessidade de um pnld específico para obras de filosofia
Reading in the teaching of philosophy as a right and the need for a PNLD specific for philosophy works
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre – RS, Brasil.
Recebido em 18 de novembro de 2025
Aprovado em 25 de novembro de 2025
Publicado em 23 de dezembro de 2025
RESUMO
Documentos oficiais posteriores à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/2016) – os Parâmetros Curriculares para o Ensino Médio (1999), as Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares para o Ensino Médio (2002) e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006) – destacaram a leitura como um dos principais objetivos do ensino de filosofia. A leitura significativa de textos filosóficos e a leitura de modo filosófico de textos de diferentes estruturas e registros foram elencadas como competências específicas da filosofia na educação básica. Já a Base Nacional Comum Curricular (2017), ao optar por subsumir a filosofia à área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, não fornece competências específicas para a filosofia, mas sim competências gerais da área. Nesse contexto, a palavra leitura não é mencionada nenhuma vez no texto concernente às Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Apesar de seu apagamento na BNCC, a leitura de textos filosóficos e a leitura filosófica de variados textos continua sendo uma das tarefas básicas do ensino de filosofia. Nesse texto, gostaríamos de retomar a defesa da leitura significativa de textos filosóficos e da leitura filosófica de textos de diferentes estruturas e registros como uma das centralidades do ensino de filosofia. Nossa proposta é preencher esse silêncio com a defesa de um direito humano, a saber, a leitura de textos de filosofia, a qual deve ser viabilizada na educação básica com o apoio de políticas públicas de fomento à produção e à disponibilização de obras de apoio para o ensino de filosofia.
Palavras-chave: Ensino de filosofia; Leitura de textos de filosofia; Leitura filosófica; Direitos Humanos; Obras didáticas.
ABSTRACT
Official documents subsequent to the Education Guidelines and Bases Law (Law No. 9,394/2016) – the Curricular Parameters for Secondary Education (1999), the Complementary Educational Guidelines for the Curricular Parameters for Secondary Education (2002) and the Curricular Guidelines for Secondary Education (2006) – highlighted reading as one of the main objectives of teaching philosophy. The meaningful reading of philosophical texts and the philosophical reading of texts of different structures and registers were highlighted as specific competencies of philosophy in basic education. The National Common Curricular Base (2017), by choosing to subsume philosophy into the area of Applied Human and Social Sciences, does not provide specific skills for philosophy, but rather general skills in the area. In this context, the word reading is not mentioned once in the text concerning Applied Human and Social Sciences. Despite its erasure in the BNCC, the reading of philosophical texts and the philosophical reading of various texts continues to be one of the basic tasks of teaching philosophy. In this text, we would like to resume the defense of the meaningful reading of philosophical texts and the philosophical reading of texts of different structures and registers as one of the centralities of philosophy teaching. Our proposal is to fill this silence with the defense of a human right, namely, the reading of philosophy texts, which must be made possible in basic education with the support of public policies to promote the production and availability of supporting works for the teaching of philosophy.
Keywords: Teaching philosophy; Reading philosophy texts; Philosophical reading; Human Rights; Didactic works.
Introdução: o que é ler?
Dentro do universo da alfabetização e do letramento,[i] Magda Soares (2014, p. 68-69, grifos da autora) sistematiza o ato de ler do seguinte modo:
A leitura, do ponto de vista da dimensão individual de letramento (a leitura como uma “tecnologia”), é um conjunto de habilidades linguísticas e psicológicas, que se estendem desde a habilidade de decodificar palavras escritas até a capacidade de compreender textos escritos. Essas categorias não se opõem, complementam-se; a leitura é um processo de relacionar símbolos escritos a unidades de som e é também o processo de construir uma interpretação de textos escritos.
Essas habilidades básicas de decodificar e interpretar desdobram-se em outras habilidades complexas, fundamentais para o trato com um texto de filosofia:
Desse modo, a leitura estende-se da habilidade de traduzir em sons e sílabas sem sentido a habilidades cognitivas e metacognitivas; inclui , dentre outras: a habilidade de decodificar símbolos escritos; a habilidade de captar significados; a capacidade de interpretar sequências de ideias ou eventos, analogias, comparações, linguagem figurada, relações complexas, anáforas; e, ainda, a habilidade de fazer previsões iniciais sobre o sentido do texto, de construir significado combinando conhecimentos prévios e informação textual, de monitorar a compreensão e de modificar previsões iniciais quando necessário, de refletir sobre o significado do que foi lido, tirando conclusões e fazendo julgamentos sobre o conteúdo. (Soares, 2014, p. 69).
Ainda à guisa de introdução, nunca é demais lembrar da máxima de Paulo Freire que, ao remorar sua infância, conta-nos: “(...) eu comecei a ser introduzido na leitura da palavra. A decifração da palavra fluía naturalmente da “leitura” do mundo particular”. (Freire, 2011, p. 24). Em outros termos: a leitura do mundo precede a leitura das palavras, de modo que não podemos prescindir do contexto de vivência e dos conhecimentos prévios de nossos alunos para desenvolvermos a leitura junto a eles.
Leitura no ensino de filosofia
Desidério Murcho, em seu artigo “A natureza da filosofia e seu ensino”, afirma que a filosofia se distingue de outras disciplinas “(...) por apresentar poucos resultados consensuais: a maioria dos problemas centrais da filosofia continua em aberto.” (Murcho, 2008, p. 80).[ii] Assim, entendido o ensino de filosofia como uma área da grande área filosofia, não são estranhos os dissensos dentro desse campo de conhecimento. Não obstante as divergências, há consensos. Um deles é o de que a leitura de textos de filosofia e a leitura filosófica de textos de diferentes estruturas e registros é atividade fundamental e constituinte do ensino de filosofia na educação básica. Esse consenso foi solidificado em uma determinada sequência[iii] de documentos oficiais[iv] com orientações e diretrizes educacionais. E, mais recentemente, foi desconsiderado pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Convidamos o leitor a revisitar criticamente conosco esse percurso documental enquanto tentamos explorar a atualidade da leitura no ensino de filosofia.
No ano de 1999, foi lançada a Parte IV: Ciências Humanas e suas Tecnologias dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCN). Nos PCN, em consonância com a visão freireana citada, a comunicação linguística é considerada um dos aspectos constitutivos da vida humana no que ela tem de mais humano. Assim, é necessário o desenvolvimento de uma competência comunicativo-linguística para decodificar, compreender, recodificar e ressignificar os elementos cognitivos, afetivos, sociais e culturais constituintes das identidades (própria e dos outros). E, “a essa capacidade de decodificação/recodificação poder-se-ia designar, genericamente, como leitura.” (Brasil, 1999, p. 53).
Em meio às lutas pelo retorno da obrigatoriedade de seu ensino, em 1999, nos PCN, a filosofia já ganhava status de disciplina, e para ela foram designados alguns objetivos de aprendizagem, dentro os quais, compondo o primeiro eixo, chamado representação e comunicação, constavam: a) Ler textos filosóficos de modo significativo; e b) Ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros. Mas, afinal, o que isso significa?
Estamos falando de uma competência discursivo-filosófica, a qual é profundamente ligada à materialização da filosofia enquanto escrita:
Graças a uma história de pelo menos 2.500 anos, a Filosofia acumulou um vastíssimo corpo de conhecimentos, constituindo-se num dos maiores conjuntos bibliográficos de um único gênero.[v] Esse conjunto poderia ser apresentado, simplificadamente, como uma moeda, que possui duas faces: uma refere-se às diversas dimensões sobre as quais a elaboração filosófica se produz, como, por exemplo, a natureza, a arte, a linguagem, a moral, o conhecimento etc; a outra refere-se às diversas perspectivas filosóficas em que essas dimensões são abordadas, os diferentes sistemas, diferentes tradições e correntes em Filosofia. (Brasil, 1999, p. 50).
Em relação a “Ler textos filosóficos de modo significativo”, o texto explicou que leitura significativa corresponde a apropriar-se reflexivamente do conteúdo, com os seguintes passos: análise, interpretação, reconstrução racional, crítica ou problematização:
o plano geral de trabalho deve concentrar-se na promoção metódica e sistemática da capacidade do aluno em tematizar e criticar, de modo rigoroso, conceitos, proposições e argumentos, valores e normas, expressões subjetivas e estruturas formais. Somente o desenvolvimento dessa capacidade é que pode indicar que o aluno se apropriou de um modo de ler/pensar[vi] filosófico reflexivo. (Brasil, 1999, p. 50).
Para o desenvolvimento dessa habilidade, o documento pontuou alguns cuidados. Em primeiro, a atenção ao “(...) estágio de competência de leitura e abstração dos alunos (...)”. (Brasil, 1999, p. 42), desafio esse que se recoloca no presente momento com outros fatores, como a tomada das infâncias e juventudes por telas e os decrescentes índices de leitura no país.[vii] Repertório – nas palavras do documento, “um quadro mínimo de referências”, seria um pressuposto para a leitura significativa de textos filosóficos. Não esqueçamos, contudo, que a leitura promovida pelo ensino de filosofia é ela própria formadora de repertório geral e de filosofia. Além disso, a leitura de filosofia caminha conjuntamente com as outras práticas promovidas no ensino de filosofia, pois
não é possível pretender que o aluno construa uma competência de leitura filosófica sem que ele se familiarize com o universo específico em que essa atividade se desenvolve, sem que ele se aproprie de um quadro referencial a partir dos conceitos, temas, problemas e métodos conforme elaborados a partir da própria tradição filosófica. (Brasil, 1999, p. 51).
Outro alerta foi o de não cair no enciclopedismo, nem em lista de conteúdos; em não promover redução, tampouco academicismo. Esses zelos parecem dialogar com um debate que estava aquecido há época da elaboração dos PCN, a saber, a discussão sobre ensino de filosofia via temas ou via história da filosofia.
Em relação à “Ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros”, fez-se a defesa de “primordialmente o texto filosófico, mas não só”. Essa leitura filosófica demanda o respeito à especificidade de cada estrutura discursiva, a consideração para com o registro ou o suporte textual específico em que essa estrutura se apresenta (Brasil, 1999, p. 54), repertório e repertório filosófico para se poder avançar e reconhecer o filosófico:
A competência de leitura filosófica de outros discursos significa, por certo, a capacidade de problematizar e refletir a partir das estruturas e registros específicos desses discursos, isto é, lê-los com um olhar crítico. Isto pode ser traduzido também, mas não necessária ou unicamente, no exercício do reconhecimento de orientações filosóficas, refletidas ou não, originais ou não, que, eventualmente, possam habitar neles. De qualquer modo, o desenvolvimento dessa competência supõe a capacidade de articular referências culturais em geral e, mais especificamente, a capacidade de articular diferentes referências filosóficas e diferentes discursos. Uma prática, portanto, comprometida com o pressuposto de uma leitura transdisciplinar do mundo, a qual deve poder ser fomentada pela escola na medida em que os diversos conhecimentos disponíveis se interliguem numa rede. (Brasil, 1999, p. 54-55).
Em outras palavras, um olhar especificamente filosófico contribui para uma compreensão mais profunda de textos.
Na sequência dos PCN, foram apresentadas, em 2002, as Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+). Como continuidade, o documento reforçou a relação da leitura no ensino de filosofia com o exercício da cidadania, uma vez que essa promove o desenvolvimento do pensamento autônomo ao convidar à tomada de posição, à concordância ou discordância – não como crítica infundada ou imune à avaliação. Aliás, a competência discursivo filosófica não é produto acabado, mas é sim processo.
Como um documento que vinha para complementar, os PCN+ são mais taxativos em alguns aspectos acerca de leitura, dentre os quais destacamos: o início da leitura analítica pela análise temática, no intuito de
estimular a disciplina intelectual, ao aprender a identificar as ideias centrais, o rigor dos conceitos, a articulação da argumentação, a coerência da exposição, para só então enveredar pelos aspectos denotativos do texto e exercitar a análise interpretativa e a posterior problematização. (Brasil, 2002, p. 47);
e a precedência do desenvolvimento da competência de realizar uma leitura significativa dos textos filosóficos para então passar-se para ampliação desse processo com o oferecimento de outros textos de diferentes estruturas e registros.
Já em 2006 foram lançadas as Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Ciências Humanas e suas Tecnologias, que delegaram à filosofia a competência (um tanto vaga) de responder as questões advindas das mais variadas situações:
De forma um tanto sumária, pode-se afirmar que se trata tanto de competências comunicativas, que parecem solicitar da Filosofia um refinamento do uso argumentativo da linguagem, para o qual podem contribuir conteúdos lógicos próprios da Filosofia, quanto de competências, digamos, cívicas, que podem fixar-se igualmente à luz de conteúdos filosóficos. (Brasil, 2006, p. 30).
Mais especificamente em relação à leitura, as OCEM buscam divisar o que é próprio da filosofia, e não das letras ou mesmo da leitura científica:
Não basta dizer que é especificamente filosófico o olhar analítico, investigativo, questionador, reflexivo, que possa contribuir para uma compreensão mais profunda da produção textual específica que tem sob seu foco. Ora, nada impede que o cientista desenvolva um tal olhar. O fundamental aparece a seguir, conferindo a marca de conteúdo e de método filosófico: é imprescindível que ele tenha interiorizado um quadro mínimo de referências a partir da tradição filosófica, o que nos conduz a um programa de trabalho centrado primordialmente nos próprios textos dessa tradição, mesmo que não exclusivamente neles. (Brasil, 2006, p. 31).
As OCEM assentam o desenvolvimento de uma competência filosófica fundamentalmente na natureza argumentativa da filosofia e na sua tradição histórica. (Brasil, 2006, p. 26).
Chegamos então à Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Perguntamo-nos se a BNCC manteve a leitura de textos de filosofia e leitura filosófica como uma competência do ensino de filosofia, ou como documento postulou a relação entre filosofia e leitura. Para respondermos a esse questionamento, comecemos antes pelas dez competências gerais propostas para a educação básica. Nesse documento, que se apresenta como “referência nacional para a formulação (...) das propostas pedagógicas das instituições escolares (...)” (Brasil, 2017, p. 08), o verbo ler e o substantivo leitura não têm ocorrência nas dez competências gerais. Tampouco aparece a palavra texto. Dessas competências, há uma que aborda o tema das linguagens. Trata-se da de número 4:
Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras, e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, bem como conhecimentos das linguagens artística, matemática e científica, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que levem ao entendimento mútuo. (Brasil, 2017, p. 9).
A BNCC, organizada por áreas, situa a filosofia junto às Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e somente para o Ensino Médio. A disciplinaridade da filosofia conquistada em documentos oficiais pregressos – que não afasta a interdisciplinaridade – é apagada na BNCC em prol de uma organização geral da área. Assim, não há espaço para competências e objetivos de aprendizagem específicos da filosofia, situação que caminha de mãos dadas com o disposto na Lei Nº 13.415/2017, equivocadamente[viii] conhecida como Lei da Reforma do Ensino Médio, a qual retirou a obrigatoriedade da presença disciplinar da filosofia no Ensino Médio, relegando-a ao vago espaço curricular de estudos e práticas.
No lugar do que antes também era disciplinar (e não só interdisciplinar ou área), o que se encontra são seis competência gerais de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e suas habilidades (cerca de seis habilidades para cada competência). Nelas, repete-se a situação encontrada nas competências gerais: não há ocorrência do verbo ler e dos substantivos leitura e texto. Essas palavras, em verdade, não são citadas na parte do Ensino Médio destinada às Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Concluímos, portanto, que a Base desconsidera o consenso sobre a leitura como atividade essencial da aula de filosofia, incentivando, mesmo que por omissão, o enfraquecimento da presença de textos filosóficos e da leitura filosófica na educação básica.
A despeito do apagamento da leitura no ensino de filosofia promovido pela BNCC, ou, melhor dizendo, incluso considerando o descaso da Base para com a leitura na aula de filosofia, urge recolocarmos esses objetivos de aprendizagem, resgatando velhas defesas, e sem temer a ousadia em nossas novas abordagens. É aqui que gostaríamos buscar contribuir tentando especialmente acrescentar novas razões àquelas já elaboradas e consolidadas.
Uma defesa emprestada
Já em 1988, Antonio Candido defendia que a literatura é um direito humano. Para o literato, “(...) pensar em direitos humanos tem um pressuposto: reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo”. (Candido, 1995, p. 172).[ix] Na sequência, ele refletiu que
nesse ponto as pessoas são frequentemente vítimas de uma curiosa obnubilação. Elas afirmam que o próximo tem direito, sem dúvida, a certos bens fundamentais, como casa, comida, instrução, saúde, coisas que ninguém bem formado admite hoje em dia que sejam privilégio de minorias, como são no Brasil. Mas será que pensam que o seu semelhante pobre teria direito a ler Dostoievski ou ouvir os quartetos de Beethoven? Apesar das boas intenções no outro setor, talvez isto não lhes passe pela cabeça. E não por mal, mas somente porque quando arrolam os seus direitos não estendem todos eles ao semelhante. Ora, o esforço para incluir o semelhante no mesmo elenco de bens que reivindicamos está na base da reflexão sobre os direitos humanos. (Candido, 1995, p. 172).
O autor está lidando com a noção de bem compressíveis e bem incompreesíveis, que são aqueles que não podem ser negados a ninguém. Contudo, determinar que bens pertencem a cada grupo não é tarefa simples, pois “(...) cada época e cada cultura fixam os critérios de imcompressibilidade (...)”. (Candido, 1995, p. 173).
Não é adequado nos estendermos demasia na defesa da literatura como um direito humano, visto que não se trata disso o foco de nosso texto, tampouco nos delongarmos explorando as diferenças e aproximações entre filosofia e literatura.[x] Tomamos aqui a literatura como um equivalente, para tratarmos de um paralelo de direitos. Se a fabulação é uma manifestação das humanidades nos mais diferentes tempos, também o é o filosofar, entendido aqui desde como uma ação possível no cotidiano a exemplo de apresentar razões em defesa de algo, até argumentação que, tantas vezes, se condensou nos textos da tradição filosófica – e também nos textos que, mesmo marginalizados pelo cânone, guardaram e si o pensamento filosófico.
Já em 2006, as Orientações Curriculares asseveravam:
Uma sociedade que compreenda a obrigatoriedade da Filosofia não a pode desejar como um pequeno luxo, um saber supérfluo que venha a acrescentar noções aparentemente requintadas a saberes outros, os verdadeiramente úteis. A Filosofia cumpre, afinal, um papel formador, articulando noções de modo bem mais duradouro que o porventura afetado pela volatilidade das informações. (Brasil, 2006, p 17).
É nesse sentido que, de maneira análoga ao caso da literatura postulado por Antonio Candido, defendemos ser a leitura de textos de filosofia um direito humano. E é a escola, no Brasil, a instituição e o espaço que melhor pode garantir a asseguração desse direito. Por isso, é preciso pensar em mais meios práticos de efetivá-lo.
Uma reivindicação
Defendemos que a área de filosofia do ensino de filosofia – aqui compreendida como um coletivo heterogêneo formado pelo GT Filosofar e Ensinar a Filosofar da ANPOF, pelo Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO) e pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ensino (PPFEN), por pesquisadores e por professores, pela Associação Brasileira de Ensino de Filosofia (ABEFil), dentre outras autoras e outros atores que constroem o campo epistemológico e filosófico-didático – deve reivindicar um novo espaço nas políticas públicas de apoio a práticas educativas de leitura, a saber, dentro do Plano Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), um PNLD para obras de filosofia e filosóficas, a exemplo do PNLD literário.
Delineando melhor nossa ideia, estamos falando de obras de apoio que publiquem textos de filosofia e textos que permitam a leitura filosófica e/ou o diálogo com os conteúdos de filosofia. Não estamos, com isso, ignorando a contribuição do PNLD para o ensino de filosofia, pois não se trata do mesmo tipo de livro. O que estamos propondo é diferente do livro didático de filosofia, no qual os textos aparecem em recortes curtos. Desejamos que estejam disponíveis, para o docente e para o discente, textos de filosofia na íntegra ou em excertos de fôlego.
Acreditamos que, na atual conjunta, o modo mais efetivo de garantir o contato de estudantes com leituras de filosofia e filosóficas em publicações com qualidade textual, gráfica e editorial adequada às diferentes etapas da educação básica são as políticas públicas. Por meio delas, as obras chegariam às bibliotecas escolares, isto é, aos docentes e aos discentes. Aqui, abraçamos uma nova bandeira: a defesa de maior presença da filosofia em bibliotecas, especialmente as escolares.
Michèle Petit, antropóloga francesa dedicada à investigação da leitura,[xi] utiliza-se da metáfora do jardim para falar de bibliotecas. Uma coisa é uma floresta; certamente, uma exuberância da natureza, mas surgida de um modo um tanto quanto espontâneo e desordenado. Já o jardim é algo antes planejado – ou sonhado – e então materializado com intencionalidade:
Destacarei apenas que a biblioteca, assim como o jardim, tem a ver com o desejo de responder ao caos do mundo, criando um espaço à parte, um lugar interior; tanto uma como outro nos separam do mundo ao nosso redor para que possamos vê-lo melhor, habitá-lo. Uma e outro são chamamentos para ir além, em direção a algo que não se vê, algo invisível ou interior. Uma e outro são lugares de recriação a partir de uma herança, lugares de vida e de criatividade, pois são propícios ao sonhar[xii] acordado. (Petit, 2024, p. 156).[xiii]
Certamente, não estamos falando da biblioteca como espaço sisudo e reino do silêncio, ainda mais em contexto escolar. Não é incomum que os estudantes busquem no espaço da biblioteca um respiro aos demais ambientes da escola nos quais é permitida sua circulação, normalmente restrita à sala de aula e, mais controladamente, corredores, saguão, pátio, refeitório e banheiros. Sabemos que os estudantes não vão à biblioteca somente para locar um livro, pesquisar ou ler; vão também “(...) para conversar, beber, comer, jogar xadrez... viver.” (Petit, 2024, p. 138). Ou seja, não se trata de espaço evitativo de vida. Nas palavras da autora, “as bibliotecas são espaços jardins que se abrem para esse lugar-além de que tanto precisamos. Algumas também são, atualmente, verdadeiros laboratórios onde se inventam, diariamente, novas formas de fazer sociedade.” (Petit, 2024, p. 136).
Um breve interlúdio: relato de uma prática pedagógica de leitura
Peço licença para, brevemente, passar para a primeira pessoa do singular e compartilhar uma prática pedagógica ainda em fase experimental. Sou docente de uma das vinte e cinco escolas federais vinculadas a uma universidade, no meu caso, o Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CAp/UFRGS). Dentre essas escolas, o nosso é um dos únicos onde há a oferta, há vinte e cinco anos, de Educação de Jovens e Adultos (EJA), dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental ao Ensino Médio.
Atuo nessa EJA há mais de quatorze anos. Frente à falta de recursos financeiros, materiais e de pessoal, percebo a EJA sistematicamente preterida em comparação ao Ensino Regular (que ocorre no diurno). Junto a outras e outros colegas, há muito tempo reivindico a abertura da Biblioteca à noite, pedido que por muito tempo não foi atendido, apoiado principalmente em duas alegações vinculadas: falta de pessoal e pouca procura, o que justificaria um encaminhamento de servidores e bolsistas para garantir a abertura diurna da Biblioteca. Tal afirmação me lembrava sempre a velha pergunta sobre quem veio primeiro, o ovo ou a galinha: a Biblioteca não abre à noite porque não é frequentada, ou não é frequentada à noite porque não está aberta!?
Finalmente, nesse ano de dois mil e vinte e cinco, conseguimos a abertura da Biblioteca, ainda que parcial, durante um dos horários das Ciências Humanas, que é o componente curricular (e não filosofia). Precisávamos, então, ocupar, ou, melhor dizendo, viver esse espaço. Assim, nesse ano letivo, estamos dedicando um período semanal para práticas de leitura na Biblioteca com nossa turma de Anos Finais do Ensino Fundamental, a qual é multisseriada e pequena (não mais de dez estudantes). É bem verdade que, pegos de surpresa (meus colegas de Ciências Humanas e eu) com a possibilidade do uso pedagógico noturno do espaço de biblioteca, começamos um pouco desordenadamente, dado que sem tempo de planejamento. Contudo, não recuamos de começar, firmes na convicção de que melhor ler alguma coisa do que nada ler.
Como a EJA é semestral, em 2025/2 estamos podendo reeditar o que foi feito no primeiro semestre do presente ano, buscando corrigir e aprimorar nossas propostas. O que há de bom nos erros é que eles são oportunidades de aprendizagem. Assim, estamos mais atentos, principalmente, há: i. leituras como parte de um todo da aula daquele dia, ou seja: leituras que dialoguem com as atividades subsequentes ao período na Biblioteca;[xiv] ii. variar os modos de leitura: individual em silêncio, leitura em voz alta, comentários durante a leitura, comentários somente após a leitura, etc; e iii. variedade de gêneros textuais: literatura infantil, livro de imagens, excertos de textos de Ciências Humanas, literatura e quadrinhos.
Em relação às nossas e aos nossos estudantes, nosso olhar docente, ainda como percepção não sistematizada, já nos revela: melhoria na fluência da leitura, familiaridade e dessacralização do ambiente de biblioteca e retirada de livros para leitura fora da escola, tanto dos livros com os quais trabalhamos, como com obras de seus interesses particulares. Ou seja: tornam-se, aos poucos, donas e donos competentes de suas leituras. Como nos diz Petit (2024, p. 141), “o que mais me comove é ver como, de repente, as pessoas descobrem que a própria vida faz sentido, que tem um valor. Que elas não são um público, mas atores, sujeitos...”.
Retomando e concluindo
Antes desse passo final, que é a disponibilidade do livro físico para as e os estudantes, há todo um processo, o qual fomentaria a cadeia de produção do livro, a autoria para material didático de filosofia e para a mediação de leitura em filosofia. Estamos falando aqui de espaço para trabalhos e ideias engavetados até o momento por falta de nicho editorial; de trabalhos acadêmicos – dissertações, teses, relatórios, artigos – que já abordam o tema da leitura na aula de filosofia e que podem se transformar em linhas orientadoras para organização desses livros que permitam a leitura de textos de filosofia e a leitura de textos filosóficos na educação básica. Igualmente, falamos de atividades e projetos de mediação de leitura em filosofia, em busca de maior aproximação com os textos da área e com a qualificação da interpretação e da crítica dos textos por meio do desenvolvimento das habilidades filosóficas de leitura. Nossa defesa não se trata, contudo, em interesse mercadológico. Antes, se funda na compreensão da leitura de filosofia e filosófico como um direito humano. Para garanti-lo, o campo do ensino de filosofia, sem dúvida, com estímulo e oportunidade, tem fôlego para dar conta dessa tarefa produtiva.
Referências
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BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.
BRASIL. Ministério da Educação. Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Ciências Humanas e suas Tecnologias. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Brasília, 2006.
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BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais. Ensino médio. Parte I: Bases Legais. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Brasília: Ministério da Educação, 2000.
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CANDIDO, Antônio. O Direito à Literatura. In: ______. Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades; Ouro sobre Azul, 1988. p. 169 - 191.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se complementam. 51 ed. São Paulo: Cortez, 2011. 102 p.
MURCHO, Desidério. A natureza da filosofia e seu ensino. Revista Educação e Filosofia, v. 22, n. 44, pg. 79–99, jul./dez. 2008.
PETIT, Michèle. Somos animais poéticos: A arte, os livros e a beleza em tempos de crise. São Paulo: Editora 34, 2024. 192 p.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. 128p.
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Notas
[i] Na dimensão do letramento, Soares (2014), lembra-nos que ler é aquisição de um novo estado ou condição pelo indivíduo ou pelo grupo social.
[ii] Isso não significa, segundo o próprio autor, que não há resultados em filosofia, que não há resultados consensuais em filosofia, ou que se trata do questionamento pelo questionamento.
[iii]Para tratar do tema da leitura no ensino de filosofia, este trabalho circunscreve-se ao marco temporal dos documentos oficiais para orientações educacionais lançados após a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Nº 9.394/1996, conhecida também por sua sigla LDB). No espírito das novas configurações educacionais pós redemocratização, os esforços se voltaram primeiramente para uma lei que delineasse o que a nova Constituição (CF/88) previa e permitia para a educação. Vencida a aprovação da LDB, o Ministério da Educação (MEC), por meio de seus órgãos e secretarias e também do Conselho Nacional de Educação (CNE), promoveu a organização de documentos oficiais que detalhassem como essas mudanças no campo da educação efetivamente se dariam, em termos de currículo, projetos pedagógicos, conteúdos, competências e habilidades e metodologias.
[iv] No escopo desse trabalho, por “documentos oficiais” entendemos aqueles que foram lançados pelo Ministério da Educação (o que não quer dizer que documentos de outras origens não são oficiais; significa apenas que, por recorte, não estão sendo considerados para a presente pesquisa).
[v] Tal afirmação merece uma apreciação crítica mais detalhada de nossa área, isso é, avaliarmos se há algo como filosofia enquanto gênero textual. Em caso afirmativo, se é por conta de forma ou de conteúdo. Ainda, restaria explicar como a filosofia, sendo um gênero, manifesta-se ao menos na forma, em diferentes gêneros. Poe escapar ao escopo desse trabalho, limitamo-nos a lançar os questionamentos, sem poder respondê-los nesse momento.
[vi] Interessante notar que, nesse ponto, o documento igualou “ler” a “pensar”.
[vii] A “Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil”, promovida pelo Instituto Pró-Livro, apresentou dados que reforçam a percepção da queda constante da leitura no Brasil. Em 2024, 53% da população não lê por falta de tempo, por desinteresse e/ou falta de paciência e pela preferência por outras atividades, como redes sociais. Dentre os leitores, a média nacional é de 3,96 livros por ano, o menor índice desde 2007, quando a pesquisa iniciou. Nos últimos quatro anos, 6,7 milhões de pessoas passaram a não mais ler. Entre os jovens, as regiões Norte e Nordeste são as com piores índices. A escola não tem conseguido formar leitores, especialmente na faixa dos 05 aos 10 anos.
[viii] Entendemos que é um equívoco chamar a Lei Nº 13.415/2017 como “Reforma do Ensino Médio” porque tal texto legislativo altera não somente essa etapa, mas sim toda a Educação Básica, bem como o Ensino Superior, esse através dos conteúdos de seus processos seletivos e da formação docente nas licenciaturas.
[ix] Embora o artigo tenha sido publicado em 1995, a palestra em que ele foi proferido ocorreu em 1988.
[x] Para o escopo desse trabalho, uma distinção básica já nos é de ajuda: a literatura se sustenta sobre o pacto ficcional, enquanto a filosofia tem pretensão de verdade.
[xi] A pesquisadora desenvolve, desde a década de 80, pesquisas sobre a leitura e seus tempos e espaços, como, por exemplo: entre refugiados, em vilarejos rurais e durante a pandemia.
[xii] E, no caso da filosofia, a “pensar acordado”.
[xiii] Acreditamos que essa passagem dialoga com o que já fora postulado para a filosofia pelo PCN, pois a filosofia também é uma herança, uma herança de pensamentos humanos.
[xiv] Dois exemplos: a respeito de como o racismo já é sofrido desde a infância, lemos um capítulo do livro “Eu sei porque o pássaro canta na gaiola”, de Maya Angelou. Sobre o que é conhecimento e suas diferentes materializações ao longo do tempo e do espaço, lemos um trecho do livro “Sapiens: breve história da humanidade”, de Yuval Harari, no formato de história em quadrinhos, o qual abordava conhecimentos desenvolvidos e empregados por sapiens na idade da pedra.