Depreciação, insensibilidade afetiva e resistência: A construção de uma Estética Negra Emancipatória
Depreciation, affective insensitivity, and resistance: The construction of an Emancipatory Black Aesthetic
Centro Federal de Educação Tecnológica, Rio de Janeiro -RJ, Brasil
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria – RS, Brasil.
Recebido em 26 de setembro de 2025
Aprovado em 30 de outubro de 2025
Publicado em 04 de novembro de 2025
RESUMO
Este artigo investiga o papel dos afetos na depreciação estética e na desumanização de pessoas negras no contexto do racismo estrutural, com ênfase em experiências escolares marcadas por insensibilidade afetiva diante de “brincadeiras” e “chacotas” relacionadas à beleza e às características do corpo negro. O objetivo é analisar como afetos como desprezo, nojo e indiferença operam na constituição de uma estética racista que marginaliza corpos negros, especialmente os de mulheres negras. A pesquisa adota uma abordagem teórico-conceitual, fundamentada em autoras e autores como Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez, Nilma Lino Gomes, Frantz Fanon, Angela Davis, bell hooks, Lewis Gordon e Achille Mbembe, articulando os conceitos de racismo estrutural, desumanização, injustiça estética e estética da resistência. Argumenta-se que atitudes depreciativas e os afetos que as sustentam funcionam como dispositivos simbólicos de manutenção de hierarquias morais e sociais, produzindo impactos profundos na constituição da autoimagem e nos processos subjetivos das pessoas negras. O artigo também propõe caminhos de resistência por meio da afirmação de uma estética negra emancipatória, orientada à revalorização da beleza, da dignidade e da presença dos corpos negros no espaço social.
Palavras-chave: Racismo estrutural; Estética negra; Depreciação; Desumanização; Afetos; Afetividade.
ABSTRACT
This article investigates the role of affects in the aesthetic depreciation and dehumanization of Black individuals within the context of structural racism, focusing on school experiences marked by affective insensitivity toward “jokes” and “mockery” concerning Black beauty and bodily features. The aim is to analyze how affects such as contempt, disgust, hyper sexualization, and indifference operate in the construction of a racist aesthetic that marginalizes Black bodies, particularly those of Black women. The research adopts a theoretical-conceptual approach, grounded in the works of authors such as Frantz Fanon, Achille Mbembe, Angela Davis, bell hooks, and Lewis Gordon, and articulates the concepts of structural racism, dehumanization, aesthetic injustice, and aesthetics of resistance. It is argued that attitudes of depreciation and their accompanying affects sustain moral and social hierarchies, potentially leading to negative self-image and subjective conflict. The article also proposes paths of resistance through the affirmation of a Black aesthetic that restores the dignity and beauty of Black bodies.
Keywords: Structural racismo; Black aesthetics; Depreciation; Dehumanization; Affects; Affectivity.
Introdução
Imagine uma estudante negra em uma escola predominantemente branca, alvo frequente de bullying por causa do cabelo cacheado natural. Seus colegas zombam da textura e do tom de pele, reproduzindo estereótipos negativos da mídia e de narrativas sociais. As provocações persistem em gozações e exclusão, gerando nela sentimentos de alienação e inferioridade. A estudante passa a crer que sua aparência é indigna de respeito. Embora a escola tenha políticas antibullying e atividades de valorização da diversidade, professores e funcionários muitas vezes minimizam o problema, tratando-o como “brincadeiras inofensivas”.
Esse cenário ilustra a insensibilidade afetiva diante do racismo vivenciado por pessoas negras — uma omissão emocional e moral frente à violência simbólica e seus impactos psicológicos. Trata-se da recusa em reconhecer o sofrimento racializado e o efeito das “piadas” que perpetuam estigmas e humilhações.
A depreciação estética de pessoas negras é recorrente em práticas de racismo recreativo (Moreira, 2017). A indiferença afetiva de professores e colegas, bem como manifestações explícitas de desprezo, nojo ou falta de empatia, revelam mecanismos emocionais que sustentam a exclusão.
Diversos autores destacam a rejeição estética de meninas e jovens negras no ambiente escolar (Carneiro, 2019). As chacotas sobre cabelo ou pele resultam da internalização de um ideal eurocêntrico de beleza, agravado por marcadores de classe e gênero. A estudante, portanto, sofre duplamente: tem seu sofrimento invalidado e desenvolve baixa autoestima e autovalor diante da ausência de reconhecimento positivo. Afetos de repulsa e desprezo contribuem para uma autoimagem negativa e conflitos com a própria identidade corporal, podendo levar à autorrejeição e à tentativa de adequação a padrões brancos.
Como observa Grada Kilomba, “o corpo negro é sempre um corpo em tradução, nunca suficiente, nunca inteiro” (2019, p. 119). A linguagem e os afetos racistas moldam a experiência cotidiana negra, marcando-a pela exclusão simbólica. A insensibilidade afetiva e a falta de empatia, assim, operam como mecanismos emocionais do racismo estrutural, que, como lembra Munanga (2017), atua de forma sutil e mascarada, inclusive em “brincadeiras” que naturalizam a inferiorização estética.
Considerando esse quadro, este artigo busca compreender como os afetos contribuem para a depreciação estética e a desumanização das pessoas negras. O objetivo central é analisar os afetos desumanizadores — como o desprezo, a repulsa e a exotificação da corporeidade negra — que sustentam uma estética racista e perpetuam a marginalização.
O artigo se divide em três seções. A primeira apresenta conceitos centrais, como depreciação estética, desumanização e racismo estrutural, destacando o papel das emoções nesses processos, com base em autores como Fanon, Mbembe, Davis, bell hooks e Gordon. A segunda discute a insensibilidade afetiva como dimensão da reprodução do racismo estrutural, especialmente no ambiente escolar. A terceira propõe a construção de uma estética negra emancipatória, a partir de Angela Davis e Sara Ahmed, analisando expressões contemporâneas da estética negra na mídia, moda e arte.
Racismo Estrutural, Estética Eurocêntrica E A Depreciação Da Estética Negra
A desumanização estética dos corpos negros tem raízes nas estruturas históricas do colonialismo, da escravidão e das doutrinas eugênicas legitimadas pelo racismo científico. No Brasil, o pensamento de Raimundo Nina Rodrigues expressa de forma contundente esse imaginário racial hierarquizado. Médico e antropólogo influente no final do século XIX, Nina Rodrigues sustentava que a inferioridade da população negra era inata, sendo imune inclusive aos efeitos da mestiçagem. Como ressaltou, a mestiçagem não pode modificar a inferioridade da raça negra no Brasil, nem elevar a sua condição na escala das civilizações (Rodrigues, 1935). Sua crítica à mestiçagem não visava à valorização da população negra, pois expressava a crença de que esta comprometia o “progresso civilizacional” do país. Thomas Skidmore, ao analisar o pensamento racial brasileiro em Preto no Branco, destaca que, para Nina Rodrigues, negros e mestiços representavam um entrave à modernização nacional. Sua defesa do branqueamento como política eugenista evidencia a intenção de “corrigir” a composição étnica do país. De tal modo, em vez de denunciar o racismo, Nina colaborou para sua legitimação, consolidando uma ordem social racializada que associa a branquitude à civilização, ao progresso e à beleza, enquanto relega a negritude à inferioridade e à feiura.
Esse padrão simbólico, inicialmente vinculado ao racismo biológico e à eugenia, permanece no ideário racial brasileiro e produz reflexos na depreciação da beleza negra. A hegemonia da estética eurocêntrica, nesse contexto, atua como um mecanismo de exclusão que ultrapassa o plano da representação, pois ela afeta diretamente a autoestima, a visibilidade e o acesso a direitos da população negra. A depreciação estética é também um instrumento de marginalização concreta. Nesse espectro, é possível identificar uma linha de continuidade entre os fundamentos ideológicos de Nina Rodrigues e as formas contemporâneas de exclusão racial.
A inferiorização biológica e moral de pessoas negras – articulada, como vimos, a discursos pseudocientíficos do passado –, assim como a dominância de padrões de beleza europeus, são parte do racismo estrutural. A engrenagem do racismo estrutural envolve, nesse sentido, padrões de opressão e exploração material e segregação social, bem como a imposição de padrões estéticos e simbólicos que desumanizam o corpo negro. Um de seus mecanismos mais insidiosos é a construção de uma estética racializada, na qual a branquitude é associada à humanidade, ao progresso e à beleza, enquanto a negritude é relegada a um lugar de inferioridade, desvalorização e exclusão. A branquitude, segundo Lewis Gordon (2023, p. 38), consiste numa “consciência imposta ao mundo na qual o normal é ser branco”. Essa forma de consciência implica sentimentos de superioridade, que envolvem rebaixar os demais grupos raciais ou mesmo determinadas etnias, particularmente o corpo negro. Achille Mbembe (2018) vai na mesma direção quando argumenta que o racismo moderno se ancora em uma lógica estética que subordina a negritude a um estado de alteridade degradada. Essa estrutura não se limita ao campo da representação; ela influencia diretamente o imaginário social e os valores que regem as relações humanas. A estética eurocêntrica, nesse contexto, não é apenas um padrão de beleza, mas um instrumento de dominação cultural e social que define o que é considerado aceitável, desejável e legítimo.
A construção da branquitude como modelo universal de beleza e humanidade se consolidou ao longo da história colonial. Edward Said (2007), em sua análise sobre o orientalismo, mostra como o Ocidente produziu imagens estereotipadas sobre "o outro" para sustentar relações de poder desiguais. Esse processo se deu também em relação ao corpo. A consciência branca desenvolveu formas paradoxais de transformação de pessoas negras em meros corpos destituídos de alma, “como meras superfícies, seres físicos superficiais sem consciência” (Gordon, 2023, p. 43), em vez de admitir que pessoas negras são consciências corporificadas, uma consciência vivida e encarnada. Na medida em que o corpo negro é, para a imaginação branca, destituído de uma consciência vivida e encarnada, ele se aproxima do objeto. Ele é, ao mesmo tempo, o corpo feio ou contaminante, que prova a superioridade branca, e o corpo do desejo, vez que destituído de valor moral, sendo propriamente objeto de fantasias sexuais, frequentemente vinculadas à dominação masculina. Nessa perspectiva, ele é, ao mesmo tempo, marcado pelo desprezo e repugnância, mas também atraente como objeto de satisfação e desfrute numa cultura de dominação e sujeição. Como mero corpo, a pessoa negra assume o estatuto de um “algo”, de um ser desumanizado, sem perspectiva particular, intenções, sonhos e personalidade, convertendo-se ora em máquina de satisfação e desejo, ora em objeto que inspira medo e repulsa. Como coloca Lewis Gordon:
[...] embora sociedades antinegras temam, e mesmo repugnem, o que ficou conhecido como o corpo negro, elas também desejam possuí-lo – desde que ele seja habitado e controlado por mentes brancas conscientes. O temor, então, é de corpos negros habitados por mentes negras conscientes” (Gordon, 2023, p. 46).
A lógica conflitiva de repugnância, exploração sexual e hiperssexualização do corpo negro integra a dinâmica afetiva e simbólica do racismo. É importante destacar que a hiperssexualização não é um afeto em si, mas um fenômeno social enraizado, que se manifesta por meio de práticas discursivas, representacionais e institucionais que erotizam excessivamente corpos negros, sobretudo os femininos — embora também atinjam os masculinos. Esse fenômeno é atravessado por diversos afetos, como o desejo objetificante, o fetichismo racial, a repulsa moral e a indiferença empática, os quais operam de modo a desumanizar e reduzir esses corpos a objetos de uso. Mulheres negras, nesse contexto, são frequentemente percebidas como corpos disponíveis, desprovidos de vontade própria e subjetividade. Tal estereótipo, cuja origem remonta ao regime escravocrata, suprime sua agência e autonomia, transformando-as em objetos erotizados e fetichizados, alheios a qualquer reconhecimento ético ou afetivo genuíno. Homens negros, por sua vez, são muitas vezes hipersexualizados sob o signo da virilidade agressiva e da força bruta, o que os reduz a corpos instrumentais e ameaça constante, afetando diretamente sua subjetividade, cidadania e acesso a direitos. Como destaca Patricia Hill Collins (1990, p. 117), ao discutir as imagens de controle que incidem sobre mulheres negras, “os corpos negros são atravessados por significados que negam sua subjetividade e reforçam sua disponibilidade para o desejo alheio”. Essa análise é fundamental para compreender como a desumanização se inscreve tanto no imaginário social quanto nas estruturas afetivas coletivas, moldando profundamente a forma como corpos negros são percebidos, representados e tratados. bell hooks (2019), em Ain’t I a Woman?, também explora como essa violência estética se traduz em uma experiência cotidiana de exclusão, marcada por uma autoimagem fragilizada e pela negação sistemática de reconhecimento. É, contudo, no pensamento de Frantz Fanon que encontramos uma formulação contundente sobre as formas pelas quais o racismo se infiltra nas camadas mais íntimas da subjetividade negra, internalizando as categorias desumanizadoras e afetivamente degradantes impostas pelo olhar branco.
Em Pele Negra, Máscaras Brancas (2008), Fanon analisa os efeitos psíquicos do colonialismo e do racismo sobre os sujeitos negros colonizados, articulando a tese de que a consciência negra é moldada por uma relação especular alienante com o olhar branco. Ou seja, o negro é compelido a ver a si mesmo, não a partir de sua própria referência ontológica, mas a partir da imagem distorcida imposta pelo colonizador. Trata-se de uma estética racializada que antecede e sustenta a exclusão política e social. Fanon (2008, p. 76) dramatiza essa lógica ao escrever:
O negro está diante de mim e não me agrada. A negritude representa para mim o arquétipo do mal. Ele é o mal absoluto. Eu sou a paz. Eu sou a harmonia. Eu sou a graça. Todos aqueles que ainda estão na barbárie só podem ter horror diante de mim. Ele é o Tártaro. Ele é Caim. Ele é insaciável. Ele é a visão de feiura absoluta, como eu sou a visão do belo absoluto (Fanon, 2008, p. 76).
Articulando a voz da consciência branca, importa destacar que esse excerto formula uma denúncia contundente da estrutura discursiva do racismo, que opera pela via da desumanização simbólica. Fanon expõe o que denomina “neurose colonial”, ou seja, o modo como o negro é interpelado pela sociedade branca e obrigado a introjetar valores que o desqualificam afetivamente. O afeto, nesse contexto, é politizado e racializado, funcionando como dispositivo de opressão. A aversão estética ao corpo negro, descrita por Fanon, é uma ferramenta de exclusão social legitimada por um regime de sensibilidade hegemônico.
Dessa maneira, o pensamento fanoniano permite compreender que a depreciação estética da negritude, longe de ser uma dimensão inofensiva da experiência humana, atua como instrumento de violência simbólica. O contraponto dessa experiência de ocultamento e desvalorização do corpo-forma negro é caracterizado por Grada Kilomba quando afirma: “ser negro significa crescer sem espelhos, sem ver-se refletido como belo, digno e humano” (Kilomba, 2019, p. 34). A matriz estética branca e a ausência de representatividade positiva resultam num sistema de validação social que determina quem é digno de reconhecimento, de respeito e de pertencimento. Sua influência se estende à moda, à publicidade, ao entretenimento e às políticas públicas, afetando diretamente as oportunidades e o status dos indivíduos que não se encaixam nesse modelo.
A depreciação estética do corpo negro caminha lado a lado com a dessensibilização e o desinvestimento afetivo na experiência da negritude. Há aqui um capítulo da estética e das formas de gerar insensibilidade que precisa ser melhor compreendido. O movimento que produz a inferiorização estética repete a lógica da dessensibilização diante do sofrimento, da dor física e psíquica vivida pela população negra brasileira. A título de ilustração, no tocante à violência policial, um estudo divulgado pela Agência Brasil em 2024 aponta que, em 2023, quase 90% das pessoas mortas por intervenção policial eram negras, enquanto, em estados como Bahia e Pernambuco, esse percentual ultrapassa 94% (Agência Brasil, 2024). Há vários fatores envolvidos nesse fenômeno, mas chama a atenção a ausência de qualquer resposta de indignação e pesar social por tal forma de tragédia. Do mesmo modo, no âmbito da saúde, há exemplos paradigmáticos de distorção de profissionais quanto à percepção da dor em pessoas negras. Sem qualquer base empírica, muitos acreditam que pessoas negras têm maior resistência à dor, crença que tem efeitos diretos no tratamento médico dispensado a essa população. Estudos realizados nos Estados Unidos, como o de Hoffman et al. (2016), destacam que pacientes negros recebem menos analgésicos do que pacientes brancos para tratar a mesma condição médica. De forma semelhante, Goyal et al. (2015) identificaram que pacientes negros são liberados do hospital mais rapidamente do que pacientes brancos após cirurgias, mesmo quando apresentam condições que justificariam maior tempo de internação. Tais práticas revelam que a depreciação estética é parte de um fenômeno mais amplo: o da dessensibilização para o sofrimento e da incapacidade de percepção e representação de pessoas negras como pessoas vulneráveis, que sofrem e são dignas não apenas de direitos, mas também de um olhar humano e acolhedor.
Na próxima seção, será abordado o modo como tal ausência de reação pode ser enfrentada sob uma perspectiva epistêmica e afetiva, com ênfase na noção de resistência afetiva.
Insensibilidade Afetiva e Resiliência Epistêmica: O Papel Do Afeto Na Manutenção Da Depreciação Estética
A depreciação estética é parte do racismo estrutural e mecanismo de promoção de inferiorização e exclusão. Há muitas estratégias de compreensão de tal fenômeno na literatura. Neste artigo, analisaremos a persistência da depreciação estética em termos de resiliência epistêmica e insensibilidade afetiva (Rogers, 2022).
A resiliência epistêmica é a capacidade dos sistemas dominantes de crenças e representações sociais resistirem à mudança, mesmo quando confrontados com evidências contrárias. De acordo com Rogers (2022), há uma relação estreita entre resiliência epistêmica e fatores afetivos, uma vez que um dos principais fatores responsáveis por essa resistência é o funcionamento de mecanismos afetivos específicos que bloqueiam o reconhecimento emocional das experiências daqueles que pertencem a grupos marginalizados. A insensibilidade afetiva (affectivenumbness), ou seja, a incapacidade sistemática de envolver-se emocionalmente com experiências que contrariam perspectivas hegemônicas ou que provenham de sujeitos cujas vivências não são consideradas socialmente relevantes ou legítimas, é um desses mecanismos. Por sua vez, a insensibilidade afetiva caracteriza-se por um bloqueio ou embotamento emocional que torna os indivíduos privilegiados incapazes de compreender plenamente as experiências dolorosas e vulneráveis dos grupos marginalizados. Esse fenômeno foi descrito por Collins (2009), ao afirmar que o grupo dominante estrutura os discursos e também as emoções legítimas, de modo que a dor dos oprimidos é muitas vezes descartada como irrelevante ou exagerada. Em virtude disso, tais experiências tornam-se emocionalmente insignificantes para esses sujeitos, o que reforça ainda mais as percepções dominantes e mantém os estereótipos negativos intactos. Dessarte, mesmo quando expostos a narrativas explícitas de injustiça e sofrimento, os sujeitos dominantes permanecem resistentes às evidências apresentadas, já que suas estruturas afetivas impedem um engajamento emocional genuíno com essas realidades (Ahmed, 2014).
Podemos ilustrar esse ponto por meio de um exemplo recorrente em contextos escolares. Suponhamos que estudantes negros relatem, de maneira constante, episódios de bullying racial envolvendo humilhações por conta de características físicas, como cabelos crespos ou cor da pele. Um professor branco, apesar de ouvir repetidamente essas queixas, pode continuar classificando tais incidentes como simples brincadeiras ou como situações normais, sem perceber a profundidade do dano emocional causado. Esse comportamento decorre de desconhecimento ou insensibilidade cognitiva, bem como destaca um bloqueio afetivo que sustenta uma visão resistente à mudança. Como demonstra Matias (2016), educadores brancos frequentemente exibem o que ela chama de blindnesstopain, uma cegueira afetiva diante das experiências raciais de seus alunos negros. A dor relatada pelo estudante negro é incapaz de afetar emocionalmente o professor branco porque sua sensibilidade afetiva encontra-se embotada pela estrutura epistêmica dominante, que nega ou minimiza a legitimidade dessas experiências (hooks, 1995; Kilomba, 2019).
Em vista disso, a manutenção dessa estrutura resistente às evidências se apoia fortemente na dimensão afetiva. Como argumenta Medina (2013), a resistência epistêmica envolve estruturas afetivas que tornam certos sujeitos menos dispostos a serem afetados pelas experiências e conhecimentos de grupos marginalizados. Rogers (2018) corrobora esse entendimento ao defender que os afetos são componentes centrais do processo pelo qual as crenças dominantes permanecem intactas, mesmo diante de evidências em contrário.
A apatia afetiva diante do sofrimento assume, por outro lado, a forma de uma hipersensibilidade afetiva direcionada a elementos que reforçam estereótipos racistas. Ahmed (2014) demonstra que emoções como medo, repulsa e paranoia circulam socialmente e se sedimentam em práticas institucionais, reforçando a exclusão racial. Logo, enquanto o sofrimento psicológico decorrente da depreciação estética e da perseguição racial tende a ser minimizado ou invisibilizado pelos sujeitos não negros (Kilomba, 2019), os estereótipos de criminalidade, ameaça e agressividade atribuídos a pessoas negras são amplificados por reações afetivas como o medo, a suspeita e a hostilidade, elementos centrais da experiência branca em sociedades racializadas (DiAngelo, 2018).
Essa percepção emocional, que obscurece a vulnerabilidade e a humanidade das pessoas negras, reforça e estabiliza sistemas epistêmicos injustos, impedindo transformações nas estruturas sociais e políticas vigentes (Fricker, 2007). Nessa linha de pensamento, a superação da resiliência epistêmica exige mais do que a apresentação de novas evidências ou argumentos racionais; ela requer, como defende Rogers (2018), uma transformação dos próprios padrões afetivos subjacentes que sustentam tais estruturas.
Conforme propõe Taylor Rogers, é necessário desenvolver estratégias de resistência afetiva que sejam capazes de romper com a insensibilidade emocional e desestabilizar os afetos normativos, como o medo racializado e o desprezo, que sustentam a injustiça epistêmica. A noção de resistência afetiva, tal como elaborada por Rogers (2018), refere-se a práticas emocionais intencionais orientadas a superar o embotamento afetivo (affectivenumbness) e a criar condições emocionais mais abertas à escuta, à empatia e ao reconhecimento do outro. Essa proposta aproxima-se das contribuições de Spelman (1997), para quem a empatia não deve ser confundida com projeção, visto que exige esforço ativo de descentramento. Nesse sentido, Rogers argumenta que, para romper com sistemas dominantes resistentes à mudança, não basta apresentar informações ou argumentos; é necessário, sobretudo, transformar a forma como sujeitos em posição de privilégio percebem e sentem o sofrimento de sujeitos marginalizados. Isso implica cultivar uma atitude emocional que ele denomina disinterestedness, uma forma de sensibilidade desapegada de interesses egocêntricos, capaz de acolher e compreender experiências alheias sem interferência de preconceitos, temores ou conveniências pessoais. Tal atitude emocional, como também observa hooks (1995), é necessária para práticas pedagógicas e sociais libertadoras, capazes de desestabilizar as hierarquias afetivas que sustentam a dominação racial. Considere o caso do bullying racial em ambientes escolares que buscamos discutir neste artigo: ao cultivar uma resistência afetiva na forma de atenção desinteressada, esses sujeitos poderiam reconhecer emocionalmente a gravidade e autenticidade do sofrimento negro, superando o bloqueio emocional que impede mudanças estruturais mais profundas. A noção de resistência afetiva oferece, nesse sentido, uma chave importante para compreender como os afetos operam na sustentação de sistemas epistêmicos racistas.
A superação dessa resiliência epistêmica exige, como vimos, uma reconfiguração dos afetos, na direção do que Rogers chama de resistência afetiva. Para o autor, é necessário um esforço ativo para cultivar formas de escuta e sensibilidade que reconheçam plenamente a humanidade e a dor daquelas cujas vivências são historicamente marginalizadas (Rogers, 2022). Mas a resistência afetiva não é um exercício interior ou um exercício empático superficial, considerando que é uma transformação das respostas emocionais diante do sofrimento dos outros, permitindo a desestabilização dos sistemas epistêmicos resistentes à mudança. Trata-se de uma transformação vinculada aos afetos que circulam em sociedade (Ahmed, 2013). Avançando para além da proposta de Taylor Rogers, propomos compreender os afetos racializados que impulsionam fenômenos como a depreciação estética em termos de estruturas de sentimentos que naturalizam a inferiorização e a exclusão de pessoas negras, operando tanto na constituição da autoimagem quanto na legitimação social de práticas discriminatórias. A resistência afetiva não deve ser entendida, assim, como um processo de mudança interna, como transformar afetos de ódio em afetos positivos. Como forças políticas e participantes de processos de inferiorização e exclusão, emoções não são, como tem sido defendido na tradição cognitivista (Kurth, 2018) e não cognitivista (Prinz, 2004), episódios psicológicos, internos, curtos, que reagem a características ambientais. As emoções devem ser compreendidas como fenômenos de base político-cultural, de caráter social, relacional e político, tal como teorizado por Sara Ahmed. Como ela sustenta, afetos não são meramente coisas que “temos” ou “sentimos”, mas forças que moldam o mundo, atribuindo valor a corpos, objetos e arranjos sociais. Elas ultrapassam a arquitetura interna da mente ou do corpo e se mostram como práticas que operam para alinhar indivíduos com coletivos, moldando o que é sentido, por quem, e em resposta a quê. São forças culturais e políticas que operam entre corpos, aderindo a certas figuras e circulando dentro dos discursos públicos. Afetos e emoções, no contexto do racismo e da depreciação estética de pessoas negras, devem ser vistos como forças produtivas: elas estabelecem fronteiras entre sujeitos e outros, entre quem está dentro e quem está fora, criando grupos marginais, pessoas que podem ser odiadas, assim como corpos que são alvos diretos de dominação e violência.
Do ponto de vista afetivo, nessa abordagem, a superação da depreciação estética e da insensibilidade afetiva diante do sofrimento psicológico e da violência vivida por pessoas negras precisa ser compreendida num quadro mais amplo, um quadro em que emoções “aderem” aos corpos, fazendo com que certas pessoas ou objetos passem a ser associados a determinados sentimentos. No contexto do racismo e de extremismos nacionalistas, o medo, o nojo e o ódio são estruturados por histórias, normas e instituições. A figura do imigrante, como temos visto nos pronunciamentos e gestos de líderes políticos extremistas, pode ser afetivamente lida antes mesmo de qualquer interação ocorrer. Ela aparecerá imbuída de ameaça, repulsa ou perigo, com base em um arquivo coletivo de impressões e associações. O mesmo vale para a apreensão e circulação de afetos em relação a pessoas negras. As emoções, nesse contexto, funcionam ideologicamente: sustentam relações de poder ao moldar quem é bem-vindo, quem é visto como ameaça e quem pertence. Os afetos criam aquilo que Ahmed chamou de “economias afetivas”. Eles estruturam o social, reforçando ou contestando hierarquias, aderindo a signos e símbolos, acumulando valor ao longo do tempo. Essa circulação de afetos cria sujeitos (“o negro perigoso”, “a menina negra indigna”, “o imigrante ameaçador”) e ordena a vida coletiva. Em consonância com isso, emoções não são simplesmente eventos psicológicos em pessoas isoladas. Elas são relacionais, embutidas em contatos e histórias, e atravessam superfícies e corpos. Por exemplo, o sentimento de medo é um alarme interno diante do perigo e modo de traçar fronteiras. O medo desenha linhas: quem é temido, quem é protegido, quem deve ser expulso. Ele não tanto rastreia o perigo, mas o constitui. Assim, os afetos atuam na sustentação de formas de exclusão, especialmente quando corpos racializados ou generificados são marcados como fontes de perigo ou desconforto.
À luz dessas considerações sobre a dinâmica afetiva analisada por Ahmed, é possível vislumbrar estratégias práticas de superação da depreciação e inferiorização estética de pessoas negras. Tal processo tem um caráter eminentemente social, relacional e político, promovendo a circulação de uma afetividade afirmativa, que envolva grandes aspectos sociais e dimensões da cultura, de tal modo que novos afetos ganhem circulação, afetos afirmadores da beleza e do significado negro. É esse aspecto que analisaremos na última seção.
Estética Afetividade E A Construção De Uma Estética Negra Emancipatória
A desconstrução da estética eurocêntrica e a valorização de uma estética negra afirmativa são passos fundamentais para a superação do racismo estrutural. Desafiar os padrões estéticos impostos não envolve apenas ampliar a diversidade da representação, mas reconfigurar as dinâmicas de poder que definem quem é visto como humano e digno de reconhecimento (hooks, 2009). A afirmação de uma estética negra emancipatória passa pela valorização das características físicas associadas à negritude e pela construção de novas narrativas visuais que rompam com a lógica da exclusão. Em AnAestheticofBlackness, bell hooks (1995) enfatiza a necessidade de romper com o olhar exotizante imposto pela branquitude. Ela propõe que a produção estética negra deve buscar espaços autônomos de significação, onde a beleza negra seja validada por critérios internos à própria negritude, sem subordinação aos parâmetros eurocêntricos. Isso implica, por exemplo, valorizar aquilo que a estética dominante tende a marginalizar, como narizes largos, lábios grossos, tons de pele escuros, corpos volumosos, características que passam a ser resignificadas como expressões legítimas de beleza e identidade. Do mesmo modo, é necessário destacar que essas transformações estéticas incidem diretamente sobre a dinâmica dos afetos sociais. Quando corpos negros se reconhecem uns nos outros a partir de uma gramática afetiva de admiração, desejo e solidariedade, e não mais de rejeição, medo ou indiferença, abre-se a possibilidade de reinscrever a paisagem racial brasileira sob uma nova ordem sensível. Trata-se de afirmar a negritude como um em-si, e não como espelho ou sombra da branquitude, produzindo uma estética da autonomia e um horizonte de pertencimento que se sustenta em afetos insurgentes. Há diversos elementos socioestruturais, culturais e afetivos com potencial de contribuição nesse percurso. Indicaremos inicialmente os elementos de fundo social e cultural.
Em termos culturais, Stuart Hall (1997) sustentou a necessidade de desafiar as representações culturais dominantes e abrir espaço para produções que celebrem a diversidade. Esse processo envolve a criação de políticas públicas que promovam equidade racial e combatam a marginalização da população negra. Além disso, a valorização de uma estética negra emancipatória, ante o exposto, não se resume à ampliação da representação, mas à subversão dos códigos que hierarquizam os corpos e seus significados. Como aponta Lélia Gonzalez (1988), a imposição de uma estética branca é também uma forma de violência epistêmica e afetiva, que inferioriza saberes, modos de ser e linguagens corporais de matriz africana. Desafiar esse modelo hegemônico é um gesto político que afirma a beleza, a complexidade e a humanidade dos traços, corpos, cabelos e expressões da negritude, promovendo outras possibilidades de existência e de reconhecimento.
Em termos afetivos, particularmente no contexto brasileiro, podemos destacar que a afirmação da estética negra e do orgulho negro é um fenômeno afetivo, sociocultural e político cuja emergência remonta aos processos de resistência forjados desde o período colonial, nos quilombos, passando pela reconfiguração das identidades negras no pós-abolição e culminando nas lutas contemporâneas por reconhecimento e dignidade. Trata-se de um movimento que visa desconstruir os padrões estéticos eurocêntricos hegemônicos, impostos ao longo da história como mecanismo de dominação simbólica e racial, e que relegaram os corpos negros a uma posição de alteridade negativa, inferiorização e apagamento (Gomes, 2017). Tal processo ganha contornos particulares devido à formação social marcada pelo mito da democracia racial, que, ao negar o racismo estrutural, também invisibilizou os marcadores estéticos da negritude como símbolos de orgulho e identidade. A partir da década de 1970, sobretudo com a articulação dos movimentos negros urbanos e da influência dos Panteras Negras nos Estados Unidos, passou-se a reivindicar com mais intensidade a valorização das características fenotípicas negras, como os cabelos crespos, os lábios grossos e o nariz largo, bem como a exaltação de práticas culturais de matriz africana, entre elas a capoeira, o samba, o candomblé e os modos de vestir tradicionais (Ribeiro, 2019).
Essa ressignificação estética tem caráter político e subjetivo, pois ela se apresenta como um processo de reconstrução da autoestima, especialmente entre as juventudes negras, historicamente socializadas para rejeitar seus próprios corpos e heranças culturais. A chamada “transição capilar”, por exemplo, surgiu como prática contra-hegemônica que recusa os procedimentos de alisamento, anteriormente associados à integração social e profissional, e revaloriza os cabelos naturais como símbolos de resistência, beleza e ancestralidade (Santos, 2021).
Outrossim, observa-se o crescimento de marcas de moda, beleza e arte fundadas por pessoas negras, as quais, ao produzirem e disseminarem produtos e representações que dialogam com a estética afro-brasileira, contribuem para a consolidação de um mercado étnico positivo e voltado ao empoderamento (Nascimento, 2016). Autores como Lélia Gonzalez e Oliveira Silveira foram fundamentais na construção e disseminação dessas ideias. Gonzalez, em sua obra Lugar de Negro, discute a importância da valorização da cultura negra e a necessidade de combater o racismo estrutural presente na sociedade brasileira (Gonzalez; Hasenbalg, 1982). Silveira, por sua vez, destacou-se na valorização da identidade afro-gaúcha e na promoção da cultura negra por meio de sua poesia e militância (Silveira, 1970).
Psicologicamente, a afirmação da estética negra atua como um mecanismo de fortalecimento da autoestima e da identidade de jovens negros. Ao reconhecerem e valorizarem suas características físicas e culturais, pessoas negras, especialmente jovens, desenvolvem uma autoimagem positiva, que os capacita a enfrentar e resistir às manifestações de racismo, promovendo seu bem-estar e saúde mental (Aguiar; Costa, 2021). O orgulho negro, longe de ser uma manifestação espontânea, deve ser entendido como um investimento político-afetivo, resultante de um longo processo de enfrentamento da desumanização colonial. Como afirma Grada Kilomba (2019), esse orgulho emerge como contra-narrativa à lógica do silenciamento e da inferiorização sistemática do corpo negro, sendo por meio de estratégias discursivas, estéticas e emocionais que se redesenha o pertencimento racial e a agência subjetiva.
A moda afro-brasileira, nesse contexto, desempenha função política e simbólica de primeira ordem, em que elementos como turbantes, tecidos estampados com grafismos ancestrais, bijuterias de conchas, tranças e cabelos crespos naturais são práticas de insurgência estética que desafiam o paradigma eurocêntrico de beleza. Conforme argumenta Ribeiro (2017), ao ocupar o espaço público com esses signos, sujeitos negros constroem uma “estética da afirmação”, que subverte os códigos coloniais e reivindica o corpo negro como locus de beleza autônoma, repleto de historicidade, espiritualidade e memória coletiva. Ou seja, trata-se de um processo em que o vestir comunica estilo e filiação a um repertório simbólico antirracista.
Essa dimensão afetiva da estética negra se intensifica em momentos históricos que condensam afetos revolucionários. O movimento Black isBeautiful, nos Estados Unidos da década de 1960, e sua ressonância no Brasil por meio do Movimento Negro Unificado, em 1978, foram marcos basilares na constituição de uma sensibilidade negra compartilhada, baseada em afetos como o orgulho, a altivez, a raiva criativa e a alegria coletiva. Tais afetos funcionam como tecnologias de coesão social e política, reconfigurando os modos de sentir e perceber os corpos negros a partir da admiração mútua e da afirmação ontológica, e não mais da falta ou da ausência.
Além da estética visual, a produção musical negra também se consolida como campo privilegiado de reconfiguração afetiva. Angela Davis (2016), ao analisar artistas como Nina Simone e Billie Holiday, argumenta que a música negra articula uma estética da resistência em que a dor é transfigurada em denúncia, e a performatividade do corpo e da voz se converte em ato político. Essa potência estética se expressa também em outras linguagens, como nas obras de Rosana Paulino, que reconfigura memórias da escravidão e denuncia a violência racial e de gênero por meio de uma arte visual profundamente afetiva. No cinema, Jeferson De tem sido uma voz central na valorização de protagonistas negros e na construção de narrativas que rompem com estigmas, criando novas formas de ver e sentir a negritude na tela.
A emoção contida em versos, timbres e gestos públicos gera afetos de solidariedade e reconhecimento, constituindo o que Gilroy (1993) denominou de “contrapúblico negro atlântico”, que é uma comunidade estética transnacional que compartilha experiências de opressão e de superação por meio da arte. Hoje, manifestações culturais como o festival Afropunk, a difusão da estética afrofuturista e o fortalecimento de marcas independentes conduzidas por estilistas negros e negras evidenciam uma celebração da diversidade racial e a emergência de um paradigma estético que reposiciona a negritude como núcleo criador e normativo, e não mais como referência periférica. Conforme argumenta YtashaWomack (2013), o afrofuturismo atua como ferramenta crítica de reescrita do passado e reconfiguração do presente, articulando visualidades, sons e narrativas que descentram a branquitude como referência universal. Nessas experiências estético-políticas, o corpo negro adquire densidade histórica, simbólica e afetiva, convertendo-se em vetor de inovação e vanguarda. As práticas visuais negras criam estilos que rompem com a dicotomia entre assimilação e exotização. Na moda, por exemplo, o uso de tranças, black power, estampas africanas e acessórios de matriz afrodescendente representa uma estratégia estética de reinscrição identitária. Trata-se, como propõe Monica Miller (2009), de uma stylepolitics, uma política do estilo que desafia a imposição de normas visuais eurocentradas e afirma um regime próprio de beleza, desejo e distinção.
Considerados em conjunto, os aspectos culturais, musicais, da moda e dos afetos permitem reconfigurar a experiência corporal e social da negritude em termos afirmativos e permitem reinscrevê-la no tecido cotidiano como centralidade subjetiva, epistemológica e sensível. Para finalizar, cabe destacar a relevância da transformação das formas de sentir. Os afetos, como observa Brian Massumi (2002), são circuitos relacionais que moldam a percepção do mundo e dos corpos. No caso da experiência negra, esses afetos foram historicamente estruturados pelo racismo, que colou ao corpo negro emoções negativas como medo, repulsa, vergonha e desejo violento. Para modificar esse regime afetivo, é preciso intervir nas formas como os corpos negros são sentidos e reconhecidos socialmente. Reverter esse quadro implica construir novos afetos (affectivecounterpublics), como propõe José Esteban Muñoz (2000), em que circulam a admiração, a ternura, o desejo ético e o orgulho insurgente. Essas novas economias afetivas se tornam visíveis na valorização do swagger negro, conceito que Stuart Hall (1996) entende como uma estética do deslocamento e da potência, uma corporeidade que comunica confiança, dignidade e irreverência diante da ordem social excludente. Ela também pode se beneficiar de afetos catalisados por eventos históricos específicos, como o surgimento do hip-hop nos anos 1970 no Bronx, ou as manifestações de resistência cultural no Brasil contemporâneo, como as rodas de slam e os desfiles de moda negra (Barra; Portela, 2021). Nessas ocasiões, sentimentos como a raiva criativa, o amor coletivo e a alegria insurgente funcionam como forças políticas que deslocam o imaginário racial. A sensualidade negra, longe da hipersexualização imposta pelo olhar colonial, passa a ser reivindicada como expressão autônoma de desejo e presença. O encanto, o respeito e a identificação mútua tornam-se afetos estruturantes de uma nova forma de estar no mundo.
Considerações Finais
Com este artigo, buscamos trazer à tona como a depreciação estética dos corpos negros, especialmente no ambiente escolar, é uma manifestação direta do racismo estrutural. Esse processo é alimentado por afetos socialmente construídos, como o desprezo, o nojo, a hipersexualização e a indiferença. Esperamos que esta discussão inspire reflexões e ações para desmantelar essas dinâmicas opressoras em seus diversos contextos. Esses afetos não atuam exclusivamente no plano subjetivo ou interpessoal, mas operam como dispositivos de dominação simbólica que reforçam hierarquias raciais, morais e estéticas historicamente consolidadas. Quando crianças e jovens negros são cotidianamente confrontados com imagens, discursos e práticas que desqualificam seus corpos e suas expressões, internalizam, muitas vezes, uma sensação persistente de inadequação, vergonha e desvalor, o que pode comprometer sua autoestima, seu rendimento escolar e sua capacidade de projetar um futuro com dignidade e reconhecimento.
Tais efeitos não se dão de forma isolada, mas se articulam a um contexto de desigualdades sociais e econômicas que restringem o acesso à educação de qualidade, à saúde mental, ao lazer, à mobilidade e a oportunidades de vida plena. Assim, a depreciação estética deve ser compreendida como uma violência simbólica e parte de um sistema mais amplo de exclusão que compromete o direito de pessoas negras de existirem com liberdade, beleza e potência. Argumentamos, à luz das considerações apresentadas, que tais emoções funcionam como verdadeiras tecnologias políticas de exclusão, que naturalizam a inferiorização da população negra, operam na constituição da autoimagem e legitimam socialmente práticas discriminatórias que sustentam o racismo estrutural.
Ao mobilizar os aportes teóricos de autoras e autores como Frantz Fanon, Sueli Carneiro, bell hooks, Angela Davis, Achille Mbembe, Lewis Gordon e Sara Ahmed, buscou-se evidenciar o papel central dos afetos na reprodução do racismo estrutural. A partir da noção de insensibilidade afetiva proposta por Taylor Rogers, analisou-se como a resiliência epistêmica, a capacidade dos sistemas de dominação de se manterem inalterados mesmo diante de evidências contundentes, está ancorada em mecanismos emocionais que bloqueiam o reconhecimento da dor e da humanidade dos sujeitos negros. Esse embotamento afetivo, como demonstram também as reflexões de Fanon e Carneiro, contribui para a naturalização da exclusão, ao mesmo tempo em que mobiliza afetos negativos, como o medo e o desprezo, para manter intactas as estruturas de opressão. Romper com essa lógica exige, em face do que foi dito, mais do que intervenções racionais: requer transformações nos modos de sentir, perceber e se afetar diante das experiências marginalizadas.
Reconhecemos, contudo, que este estudo possui limitações. Por se tratar de uma abordagem teórico-conceitual, não foram incluídos dados empíricos ou entrevistas que poderiam aprofundar a compreensão das experiências vividas por sujeitos negros em ambientes escolares. Além disso, o artigo concentrou-se predominantemente nas dinâmicas entre afetividade e estética no racismo contra mulheres negras, o que deixa em aberto o aprofundamento de como esses mecanismos operam em relação a homens negros, pessoas negras LGBTQIA+ e, de forma mais ampla, sobre a juventude negra e seus modos de existir, resistir e projetar futuros em contextos de vulnerabilidade. Investigar como jovens negros constroem seus projetos de vida diante da depreciação estética e do apagamento simbólico pode apresentar dimensões da subjetivação e da resistência em meio a sistemas estruturais de exclusão, bem como trazer contribuições relevantes para políticas públicas e práticas educativas comprometidas com a justiça racial. Também permanece em aberto a análise desses processos em outros contextos institucionais, como o sistema de justiça, a saúde pública e os meios de comunicação.
Apesar dessas limitações, acreditamos que o trabalho abre importantes perspectivas para pesquisas futuras. Entre elas, destacamos a necessidade de estudos empíricos que analisem como crianças, adolescentes e jovens negros elaboram subjetivamente os efeitos da depreciação estética e constroem sentidos de pertencimento, resistência e futuro em contextos marcados pela exclusão racial. Investigar os modos como essa juventude enuncia seus projetos de vida, agencia estratégias de afirmação identitária e disputa narrativas sobre si é essencial para compreender os impactos psicossociais do racismo e, ao mesmo tempo, para reconhecer sua potência criadora. Além do mais, ressaltamos a importância de investigações interdisciplinares que articulem filosofia, psicologia, pedagogia e estudos raciais na análise das experiências afetivas e estéticas da população negra. A proposta de uma estética negra afirmativa, inspirada na noção de “estética da resistência”, aponta ainda para a possibilidade de explorar, em pesquisas futuras, práticas artísticas, culturais e políticas que desafiem as economias afetivas do racismo e inaugurem novos regimes de visibilidade, escuta e reconhecimento para os corpos e subjetividades negras.
Portanto, argumentamos que enfrentar o racismo estrutural demanda também uma grande reconfiguração dos regimes afetivos e estéticos que moldam nossa percepção social. A resistência afetiva, entendida como a disposição ética de se afetar genuinamente pela dor e pela existência do outro, é uma estratégia política fundamental para desestabilizar os dispositivos de desumanização que sustentam a desigualdade racial. Valorizar a pluralidade dos corpos negros, suas expressões e subjetividades é parte de um projeto de transformação social mais amplo, um projeto que exige ver e sentir o outro de forma ética, justa e comprometida com a equidade.
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