Role-playing games como ferramentas para metodologias lúdicas, interativas e inclusivas para o ensino de lógica

Role-playing games as tools for ludic, interactive, and inclusive methodologies for teaching logic

 

Ricardo Peraça Cavassane  

Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil

ricardo.peraca@gmail.com

 

Rafael Rodrigues Testa

Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil

rafaeltesta@gmail.com

 

Recebido em 22 de setembro de 2025

Aprovado em 29 de outubro de 2025

Publicado em 04 de novembro de 2025

 

RESUMO

Neste artigo, exploramos o uso de role-playing games (RPGs) no ensino de lógica, como parte da disciplina de Filosofia, no Ensino Médio, como ferramentas que propiciem a aplicação de metodologias de ensino lúdicas, interativas e inclusivas. Após discutirmos a aplicação de RPGs como ferramentas educacionais, bem como a aplicação de metodologias lúdicas no ensino de lógica, apresentamos O Legado dos Lógicos, um RPG desenvolvido para auxiliar na introdução e no ensino de lógica proposicional clássica (LPC). Neste jogo, tanto os conceitos mais básicos da LPC, tais como proposição, conectivo lógico, valor de verdade e argumento, bem como noções mais avançadas, tais como tautologia e contradição, consequência e equivalência lógica e até mesmo falácia lógica, são apresentados aos jogadores, através, respectivamente, da mecânica principal de um RPG, que permite que os jogadores assumam o controle da narrativa, e de enigmas lógicos, possibilitando aos jogadores aprender lógica por meio da sua própria aplicação.

Palavras-chave: Ensino de Lógica; Lógica Proposicional Clássica; Metodologias Lúdicas; Role-playing Games; Enigmas Lógicos.

 

ABSTRACT

In this paper, we explore the use of role-playing games (RPGs) in teaching logic, as part of the Philosophy course in high school, as tools that facilitate the application of ludic, interactive, and inclusive teaching methodologies. After discussing the application of RPGs as educational tools, as well as the application of ludic methodologies in teaching logic, we present O Legado dos Lógicos (The Legacy of the Logicians), an RPG developed to aid in the introduction and teaching of classical propositional logic (CPL). In this game, both the basic concepts of CPL, such as proposition, logical connective, truth value, and argument, as well as more advanced notions, such as tautology and contradiction, logical consequence and equivalence, and even logical fallacy, are introduced to players by means of, respectively, the core mechanics of an RPG, which allows players to take control of the narrative, and logical puzzles, enabling players to learn logic by means of its own application.

Keywords: Logic Teaching; Classical Propositional Logic; Ludic Methodologies; Role-playing Games; Logical Puzzles.

 

1. Introdução

          Materiais para o ensino de lógica formal como parte da disciplina de Filosofia, no Ensino Médio, são ainda um tanto escassos e, muitas vezes, fundamentados em uma metodologia de ensino que pode tornar tal disciplina pouco atrativa e inclusiva. Neste artigo, pretendemos mostrar que um jogo narrativo ou RPG projetado para auxiliar na introdução e no ensino de lógica formal pode ser uma ferramenta útil para a aplicação de metodologias lúdicas, interativas e inclusivas em tal contexto.

Na Seção 2, Role-playing games como ferramentas educacionais, faremos uma breve introdução aos RPGs e ao seu uso como ferramenta de ensino, ainda muito experimental no Brasil, embora já existam algumas experiências bem-sucedidas.

Em seguida, na Seção 3, Ferramentas e metodologias lúdicas no ensino de lógica, trataremos da crescente relevância do ensino de lógica e das dificuldades enfrentadas por tal disciplina, bem como de metodologias que podem ajudar a romper tais barreiras, a saber, metodologias lúdicas, que combinem elementos visuais, narrativas e gamificação. Daremos como exemplo o projeto LogLibras, que visa produzir material didático para o ensino de lógica voltado para o público surdo.

De tal modo, na Seção 4, Um RPG para o ensino de Lógica Proposicional Clássica, apresentaremos O Legado dos Lógicos, um jogo narrativo (analógico) desenvolvido exclusivamente para auxiliar no ensino de lógica proposicional clássica (embora este possa ser futuramente expandido para auxiliar no ensino da lógica de primeira ordem ou mesmo de diferentes lógicas não-clássicas). Por meio de dois “módulos” distintos, os participantes podem ter contato direto e ativo tanto com noções mais básicas, quanto com noções mais avançadas de lógica proposicional.

Assim, na Subseção 4.1, Proposição, conectivo e argumento; verdade, validade e correção, tratamos de noções lógicas mais básicas, cuja aquisição faz parte dos objetivos de curto e médio prazo da aplicação desse jogo, e que se dá por meio das regras centrais do jogo, que explicitam a lógica subjacente a uma parte da linguagem natural utilizada na narrativa. Já na Subseção 4.2, Consequência e equivalência lógica; tautologia e contradição; falácia, abordamos noções mais avançadas, cuja aquisição constitui os objetivos de longo prazo da aplicação desse jogo, e que se dá por meio do emprego de diversos tipos de enigmas lógicos; por fim, na Subseção 4.3, Formas de aplicação e limitações, tratamos de algumas das limitações da aplicação de tal jogo e das formas de superar algumas delas.

 

2. Role-playing games como ferramentas educacionais

          Um role-playing game (termo também grafado “role playing game” ou “roleplaying game”, traduzido como “jogo de interpretação de papéis”), ou apenas RPG (ou ainda TRPG ou TTRPG, “tabletop RPG”, a fim de se diferenciar do gênero de jogos eletrônicos de mesmo nome), é um tipo de jogo narrativo em que (em geral) cada jogador cria e controla um personagem e participa de uma história, alterando-a através das decisões e ações de seus personagens, ações estas que são mediadas por regras que (em geral) envolvem elementos aleatórios, como rolagens de dados.

A modalidade mais difundida de RPG é praticada com dois ou mais jogadores, sendo que um deles assume o duplo papel de narrador e juiz do jogo (função esta que em muitos RPGs é conhecida como “mestre de jogo” ou apenas “mestre”), o que inclui criar e controlar todos os personagens que não são personagens dos jogadores (personagens estes que são popularmente conhecidos como NPCs, do inglês “non-player characters”) enquanto que os demais jogadores criam e controlam um personagem cada um.

Existem, porém, outras modalidades de RPG, tal como o RPG solo, em que um único jogador cria e controla um personagem (ou grupo de personagens), randomizando todas as decisões que caberiam ao narrador, usando tabelas aleatórias e um mecanismo de decisão comumente chamado “oráculo”. Outras modalidades de jogos relacionadas aos RPGs incluem o LARP (live action role-playing), com características mais teatrais, e os livros-jogo, em que as escolhas do leitor o direcionam a determinados trechos, e que comumente servem como uma introdução aos RPGs, bem como os jogos eletrônicos do gênero RPG, diretamente influenciados pelos RPGs analógicos.

Cabe ressaltar que, ao contrário do que ocorre em um LARP, em um jogo de RPG “de mesa” os jogadores não necessariamente precisam atuar como seus personagens. Em uma sessão de RPG, os jogadores podem tanto descrever o que os seus personagens pensam, dizem e fazem, quanto representar seus personagens, em diálogos com personagens dos jogadores e do narrador. Assim, “interpretar” um personagem significa, nesse contexto, fazer escolhas narrativas fundamentadas pela caracterização do mesmo.

O RPG mais antigo, mais influente e mais jogado em todo o mundo é Dungeons & Dragons (ou D&D), no qual os jogadores criam e controlam personagens que são aventureiros em um mundo de fantasia e magia, enfrentando vilões e explorando ambientes desafiadores, em especial as chamadas “masmorras”, locais fechados e labirínticos, repletos de armadilhas, monstros e outros perigos, e que abrigam algum tipo de tesouro ou relíquia.

D&D se desenvolveu a partir de Chainmail, um miniature wargame, e o subtítulo da primeira edição de D&D (publicada em 1974) era “Regras para Campanhas de Jogos de Guerra de Fantasia Medieval Jogáveis com Lápis e Papel e Miniaturas” (EWALT, 2013). Tal origem, um tanto conflitante com a ideia de jogo narrativo, explica diversas características de D&D e de muitos outros RPGs por ele influenciados, tal como o foco no combate tático e o uso de mecânicas numerosas e complexas (Figura 1), características que se mostrarão relevantes em nossa análise. Tais características, cabe ressaltar, não estão presentes em diversos jogos de RPG mais modernos, desvencilhados dos conceitos e regras dos RPGs “tradicionais”.

 

Figura 1 – Ficha de personagem de D&D

Fonte: compilação do autor a partir de D&D Beyond (2024).

 

Embora exista grande variedade de estilos e modalidades de jogos de RPG, bem como diferentes definições do que é um RPG (ver HITCHENS & DRACHEN, 2009; ARJORANTA, 2011), entendemos que uma característica importante dos RPGs, que se mostrará relevante em nossa análise, é o seu caráter narrativo e colaborativo, tratando-se de um tipo de jogo em que as regras e procedimentos são altamente flexíveis e customizáveis, sendo inclusive famosa a chamada “regra de ouro” ou “regra zero”, comumente encontrada em manuais de RPG, segundo a qual “[...] o narrador é a autoridade máxima acerca do jogo, podendo ignorar ou alterar qualquer regra; ou ainda que, em nome da diversão, qualquer regra do jogo pode ser ignorada ou alterada” (CAVASSANE, no prelo). O RPG, em certa medida, está muito próximo de uma brincadeira de “faz de conta” coordenada e mediada por regras, muitas delas implícitas.

O emprego de jogos de RPG ou de técnicas emprestadas dos RPGs como ferramentas educacionais tem sido explorado, no Brasil, pelo menos desde o fim dos anos 1990 (VASQUES, 2008). Em 2002, por exemplo, ocorreu o I Simpósio de RPG e Educação (ver ZANINI, 2004); em 2004, foi publicada em forma de livro a primeira tese de doutorado sobre o assunto defendida no país (ver RODRIGUES, 2004). Desde então, o número de trabalhos acadêmicos, como dissertações, teses e artigos a respeito do tema tem crescido (SILVA, SOUZA, UVINHA, 2023). Fora do Brasil, em especial nos países nórdicos, o uso de jogos de RPG em contextos educacionais também é explorado, porém com um foco maior em LARPs e “[...] em aspectos artísticos ou de game design” (SCHMIT & MARTINS, 2011, p. 7078).

Muitos dos trabalhos sobre esse tema desenvolvidos no Brasil se apoiam na obra de Vygotsky (SCHMIT & MARTINS, 2011), em especial no conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal, a saber:

[...] a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes (VYGOTSKY, 1984, p. 97).

Um exemplo é o trabalho de Pereira (2004), com o objetivo de auxiliar crianças surdas na aquisição da Libras (a Língua Brasileira de Sinais), português escrito e oral. O autor se apoia em Leontiev (1994) e Vygotsky (1984) para argumentar que a brincadeira de “faz de conta” exercita na criança a capacidade de abstração, agindo como uma zona de desenvolvimento proximal em que a criança se mostra, ao mesmo tempo, cada vez mais capaz de abstrair situações e papéis imaginários, bem como de seguir regras concretas, concluindo que

 

Uma brincadeira sob a forma de uma história interativa, em que a criança “faz de conta” que está vivendo uma aventura com uma personagem, portanto, se justifica diante dos pressupostos sócio-interacionistas. A utilização da LIBRAS em todas as etapas, escolhas de ação e principais elementos da história permite sua inserção numa proposta bilingüista de auxílio à aquisição desta como primeira língua e o português como segunda língua (PEREIRA, 2004, p. 10).

Outro exemplo é o trabalho de Schmit (SCHMIT, MARTINS, FERREIRA, 2009), com o objetivo de ensinar adolescentes a jogar RPG e criar seus próprios jogos, como parte de um projeto cultural. Empregando a teoria do desenvolvimento de Vygotsky, o autor apresentou inicialmente aos participantes o jogo de tabuleiro Hero Quest, uma espécie de “proto-RPG”, com regras simples e menor liberdade de ação, e então introduziu, gradativamente, conceitos e regras cada vez mais complexos. No curso da atividade, os participantes aprimoraram suas capacidades de leitura e escrita e seu desempenho escolar melhorou significativamente.

A partir de tal experiência, os autores concluem que o uso de jogos de RPG em contextos educacionais vai além do desenvolvimento das habilidades cognitivas envolvidas nas tarefas propostas, envolvendo também aspectos sociais e afetivos (SCHMIT, MARTINS, FERREIRA, 2009, pp. 93-94). Os autores concluem também que, em tais contextos, o emprego de tais jogos deve ter objetivos claros: “Os proponentes devem ter uma ideia clara dos motivos que dão suporte ao uso dessa atividade, o que implica uma posição teórica clara com uma visão educacional como base da atividade” (SCHMIT, MARTINS, FERREIRA, 2009, p. 94, tradução nossa).

Tais exemplos refletem também o duplo aspecto do emprego de RPGs na educação brasileira: por um lado, enquanto ferramenta de ensino a ser aplicada em uma determinada disciplina e, por outro lado, enquanto objeto de estudo em si (SILVA, SOUZA, UVINHA, 2023, p. 368).

Em ambos os casos, os autores tiveram problemas na aplicação inicial do RPG como ferramenta pedagógica/objeto de estudo. No primeiro exemplo, o autor optou por utilizar como base para a atividade proposta uma estrutura similar a de um livro-jogo e, no segundo exemplo, o autor optou por começar por um jogo de tabuleiro inspirado em RPGs de fantasia e então introduzir noções de RPG gradualmente, devido às dificuldades iniciais dos participantes, que os autores atribuem a limitações nas capacidades de leitura e escrita dos mesmos (SCHMIT, MARTINS, FERREIRA, 2009, p. 92).

Gostaríamos de ressaltar, no entanto, que, sob a forte influência de D&D, e devido à pouca oferta de jogos projetados especificamente para uso educacional (ver SCHMIT, MARTINS, FERREIRA, 2009, pp. 82-91), há tanto a necessidade de usar em contextos educacionais jogos desenvolvidos para fins de entretenimento, tal como D&D e outros jogos afins, quanto uma tendência de, ao desenvolver um RPG com fins educacionais, reproduzir diversas das características de D&D, tal como o foco no combate e o uso de regras desnecessariamente complicadas, o que pode afastar os participantes e prejudicar na inclusividade.

Assim, entendemos, concordando com os autores supracitados, que jogos de RPG podem ser ferramentas bastante úteis para a educação, e que é preciso “[...] buscar o desenvolvimento de um embasamento teórico e de práticas sólidas e úteis” (SCHMIT, MARTINS, FERREIRA, 2009, p. 95, tradução nossa); mas nos parece também que é preciso, ao desenvolver jogos de RPG com fins educacionais, abandonar certos pressupostos dos RPGs tradicionais e procurar desenvolver jogos com regras simples e que propiciem o melhor aproveitamento de tais jogos como ferramenta pedagógica.

 

3. Ferramentas e metodologias lúdicas no ensino de lógica

          O ensino de lógica no nível Médio, como parte da disciplina de Filosofia, se faz cada vez mais necessário, em razão da sua importância para o desenvolvimento do pensamento crítico, que envolve a habilidade de identificar sentenças declarativas e seus possíveis valores de verdade (TESTA, BIZIO, MORAES, 2022, p. 3), bem como a construção e a identificação de argumentos válidos e corretos, mas também de argumentos inválidos, isto é, de falácias lógicas, que podem estar presentes, por exemplo, em conteúdos que visam disseminar desinformação (CARNIELLI & EPSTEIN, 2010).

O pensamento crítico faz inclusive parte de uma das competências gerais da nova BNCC (Base Nacional Comum Curricular). Segundo o MEC, o Ensino Médio deve ser pautado pela busca do “[...] aprimoramento do educando como ser humano, sua formação ética, desenvolvimento de sua autonomia intelectual e de seu pensamento crítico” (BRASIL, 2018).

Embora cada vez mais relevante, o ensino de lógica no nível Médio enfrenta diversas dificuldades. Uma delas diz respeito ao caráter abstrato e formal da lógica e ao desafio de conectar tal disciplina ao cotidiano dos estudantes e à sua linguagem natural (EPP, 2003). Assim, a lógica é muitas vezes vista como complicada, excessivamente abstrata e “dura”, o que pode ser desmotivador (SECCO, 2013), em especial quando abordada por métodos tradicionais de ensino, que não exploram todo o potencial transdisciplinar da lógica (TESTA & DEMARCHI, 2025) que faz dela uma ferramenta valiosa para as mais diversas áreas do conhecimento (GROARKE, 2014). Além disso, a forma pela qual a lógica formal é apresentada em livros didáticos de filosofia é problemática e pouco didática (SECCO, PUGLIESE, 2016). Há, assim, demanda por métodos que “[...] integrem efetivamente o ensino da lógica ao currículo, promovendo um aprendizado significativo e alinhado com as diretrizes educacionais contemporâneas” (TESTA & ONGARATTO, 2024, p. 3), e por ferramentas apropriadas a tais métodos.

Somam-se ainda as dificuldades relativas à acessibilidade e inclusão, tais como, por exemplo, em relação ao estudante surdo (objetivo do projeto LogLibras: Elaboração de material didático de Lógica para surdos em uma perspectiva bilíngue e intercultural, que motivou o presente trabalho). O estudante surdo frequentemente não consegue acessar muitos dos conhecimentos transmitidos nos espaços escolares, usualmente pensados para uma linguagem áudio-verbal (GIROTO, MARTINS, BERBERIAN, 2012), de modo que incluí-lo requer, para além do uso da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), a utilização de outros recursos gesto-visuais para um processo de ensino-aprendizagem significativo. No caso específico da lógica, tais dificuldades se impõem com maior força:

Tendo em vista que o surdo apresenta um pensamento e uma construção de realidade mais concretos [...], o aspecto formal abstrato e conceitual da disciplina de Lógica não é satisfatoriamente transmitido a partir de uma simples interpretação em Libras dos conteúdos existentes, sendo necessária a elaboração de materiais efetivamente preocupados com a utilização de recursos pedagógicos imagéticos (TESTA, BIZIO, MORAES, 2022, p. 4).

O projeto LogLibras busca preencher estas lacunas ao fornecer ferramentas e metodologias lúdicas, interativas e inclusivas para o público surdo (muito embora tais ferramentas e metodologias se mostrem benéficas também para alunos fora do público-alvo original), destacando a relevância de uma pedagogia visual e multimodal (Figura 2), além do uso de narrativas e gamificação (TESTA, MORAES, BIZIO, 2025).

Figura 2 – Introdução à noção lógica de argumento válido

Fonte: TESTA et al., 2021.

A pedagogia visual, ancorada na teoria de Vygotsky (1962, 1978), e que portanto compreende o caráter social da aprendizagem, se utiliza de elementos da cultura surda e da Língua de Sinais para permitir aos alunos surdos, uma efetiva compreensão e internalização de conceitos, integrando ferramentas como a contação de histórias, jogos educativos, metáforas visuais e mapas conceituais, adaptando o conteúdo aos modos de aprendizagem característicos da comunidade surda (CAMPELLO, 2007). Tal abordagem permite que os alunos surdos, cuja relação com a linguagem e os símbolos é distinta daquela dos não-surdos, aprendam mais naturalmente, ao se engajarem com recursos visuais, mais compatíveis com sua experiência linguística (TESTA, MORAES, BIZIO, 2025, p. 135).

A seguir, trataremos de dois elementos fundamentais a tal abordagem, as narrativas e os jogos, que são também elementos centrais à aplicação de RPGs como ferramentas educacionais, ao ensino de lógica.

A contação de histórias (ou storytelling) é uma metodologia que pode ser aplicada com grande eficácia no ensino de lógica, especialmente através de situações problema e enigmas. O emprego de narrativas no ensino de tal disciplina facilita a compreensão de conceitos complexos e abstratos, além de promover um aprendizado mais duradouro e envolvente, permitindo que os alunos façam conexões significativas entre o conteúdo e suas experiências, melhorando a retenção de informações, permitindo também a utilização de conceitos abstratos tais como o da lógica formal em contextos imaginários e visuais, auxiliando na compreensão de tais noções (TESTA & ONGARATTO, 2024).

Ao se utilizar de problemas e enigmas como base para o ensino de lógica, cria-se um contexto narrativo no qual as construções formais da lógica deixam de ser meramente abstratas e se tornam desafios imersivos. Isso conecta os conceitos abstratos ao mundo real, conforme destaca Green (2004), ao fornecer um cenário onde os alunos podem aplicar raciocínio crítico e resolver problemas formais. Note que o aspecto ativo e imersivo é ainda mais forte em jogos narrativos como os RPGs, em que os jogadores se colocam como personagens participantes de um universo e de uma narrativa na qual eles estão emocionalmente investidos.

Além disso, o uso de narrativas como metodologia educacional ajuda a desenvolver habilidades tais como comunicação, colaboração e resolução de problemas. Ao inserir os alunos em uma narrativa de descoberta, onde os personagens enfrentam desafios e mistérios, modela-se a própria jornada de aprendizado dos alunos. Conforme argumenta Bruner (1977), o aprendizado é mais eficaz quando o aluno participa ativamente da construção do conhecimento, e as narrativas proporcionam essa oportunidade ao introduzir desafios que incentivam a exploração autônoma. As narrativas não somente cativam os alunos, mas também permitem que eles se vejam como agentes ativos na solução dos enigmas.

Enigmas e problemas inseridos em narrativas também carregam consigo elementos de jogos ou gamificação, desafiando os alunos a resolver enigmas lógicos em um ambiente interativo e lúdico. No contexto educacional, a gamificação refere-se à introdução de tais elementos típicos dos jogos, tais como níveis de progresso, desafios e recompensas, no processo de ensino-aprendizagem. Essa abordagem visa aumentar a motivação intrínseca dos alunos e promover um aprendizado ativo e colaborativo, tornando os conceitos abstratos mais acessíveis e dinâmicos (HAMARI, 2019). De acordo com a UNESCO, a gamificação pode auxiliar no desenvolvimento de habilidades essenciais para alcançar educação inclusiva e de qualidade, como a resolução de problemas e o pensamento analítico (UNESCO MGIEP, 2019).

A relevância da gamificação no ensino de lógica se evidencia por seu potencial para tornar mais acessíveis e dinâmicos conceitos abstratos e muitas vezes percebidos como desafiadores. Conforme apontado por Piaget (1952), alunos do ensino médio se encontram no estágio das operações formais, fase em que começam a lidar com o pensamento abstrato e hipotético. Isso significa que eles são capazes de analisar e manipular proposições de forma lógica, porém, o desafio está em como apresentar esses conceitos. A gamificação aproveita essa capacidade cognitiva ao criar cenários onde os alunos possam resolver enigmas progressivamente mais difíceis, desenvolvendo habilidades de pensamento crítico.

Com base na fundamentação apresentada nesta seção e na seção anterior, apresentamos, na próxima seção, um RPG projetado especificamente para auxiliar no ensino de lógica proposicional clássica, que se utiliza, como qualquer RPG, de elementos lúdicos e narrativos, mas também de ferramentas visuais/táteis para introduzir as noções mais fundamentais e as dinâmicas principais da lógica proposicional.

 

4. Um RPG para o ensino de Lógica Proposicional Clássica

          O Legado dos Lógicos é um role-playing game desenvolvido para auxiliar na introdução e no ensino de lógica proposicional clássica (daqui em diante, LPC), preferencialmente a partir do nível médio. O objetivo é facilitar aos alunos participantes a aquisição das noções mais básicas da LPC, por meio tanto do jogo, através da própria aplicação da LPC, quanto da narrativa.

No âmbito mecânico, as regras e procedimentos do jogo traduzem na linguagem formal da LPC, na forma de argumentos válidos, em especial na forma modus ponens, as ações nas quais os personagens dos jogadores devem ser bem-sucedidos a fim de alcançar os seus objetivos dentro de jogo. Além disso, os jogadores terão que solucionar todo tipo de enigma lógico a fim de que seus personagens possam avançar na sua exploração.

Já no âmbito narrativo, os jogadores exploram um mundo ficcional no qual as ruínas de uma civilização perdida escondem conhecimentos filosóficos e científicos, protegidos, dentre outras coisas, por enigmas lógicos. A ambientação de O Legado dos Lógicos, chamada “Arquipélago dos Sábios”, pode também conscientizar os alunos acerca da importância da lógica e do senso crítico, uma vez que a civilização antiga cujos vestígios eles investigarão “foi levada à ruína pela disseminação de falácias, teorias conspiratórias e negação do conhecimento” (CAVASSANE, no prelo).

A linguagem formal da LPC é representada visualmente em jogo por cartões de símbolos lógicos (Figura 3), contendo algumas letras do alfabeto grego para simbolizar fórmulas, bem como símbolos de conectivos lógicos de negação, disjunção, disjunção exclusiva, conjunção, implicação e dupla implicação, e símbolos auxiliares de parênteses. Outros símbolos da linguagem e da metalinguagem de LPC também são representados nestes cartões, a saber, os conectivos zero-ários de tautologia e contradição, os símbolos de consequência semântica e não-consequência semântica, e os símbolos auxiliares de vírgulas que, embora não sejam necessários para jogar, podem ser usados pelo educador para ilustrar certas noções da LPC.

Embora seja benéfico que o educador, a fim de aplicar O Legado dos Lógicos em um contexto educacional, possua algum conhecimento prévio acerca de RPGs e de sua aplicação como ferramenta de ensino, bem como de LPC, o manual do jogo traz explicações detalhadas e exemplos ilustrativos de como uma sessão de jogo se desenrola, além de um pequeno manual de LPC voltado para o educador.

Figura 3 – Os cartões de símbolos lógicos de O Legado dos Lógicos

Fonte: compilação do autor a partir de CAVASSANE, no prelo.

 

Já os alunos, além de terem contato com a LPC por meio do jogo, recebem do narrador resumos das regras do jogo e da LPC, incluídos no manual de O Legado dos Lógicos, entregues aos jogadores conforme determinadas regras e noções são empregadas em jogo.

          Os objetivos de curto e médio prazo da aplicação de O Legado dos Lógicos como ferramenta de ensino consistem em facilitar a aquisição, por parte dos jogadores, das seguintes capacidades:

Traduzir proposições e argumentos da linguagem natural para a lógica proposicional, e vice-versa;
Determinar as condições de verdade de proposições;
Determinar se um argumento é válido ou não, e correto ou não (CAVASSANE, no prelo).

Já os objetivos de longo prazo da aplicação deste RPG consistem em facilitar a aquisição das seguintes habilidades:

Determinar se uma proposição é consequência lógica de um conjunto de proposições ou não;
Determinar se duas proposições são logicamente equivalentes ou não;
Identificar tautologias, contradições e falácias lógicas (CAVASSANE, no prelo).

          A aquisição de tais capacidades pelos jogadores, bem como a apreensão das noções lógicas nelas implicadas (respectivamente: proposição, conectivo, argumento, verdade, validade e correção, relativamente aos objetivos de curto e médio prazo; e consequência lógica, equivalência lógica, tautologia, contradição e falácia, relativamente aos objetivos de longo prazo) é propiciada pela aplicação, durante o jogo, de dois “módulos” das regras de O Legado dos Lógicos.

          O primeiro deles consiste na mecânica principal de qualquer jogo de RPG, por meio da qual os jogadores assumem o controle da narrativa, através das ações de seus personagens, se bem-sucedidas, limitando-se ao escopo narrativo de tais ações. Tal “módulo” será descrito em detalhes na Subseção 4.1. O segundo destes “módulos”, descrito na Subseção 4.2, consiste na aplicação de enigmas lógicos de diversos tipos.

 

4.1. Proposição, conectivo e argumento; verdade, validade e correção

A regra mais básica de O Legado dos Lógicos, e a primeira a ser introduzida aos jogadores, é a da chamada “ação direta”, que permite que um jogador narre que uma determinada uma proposição é verdadeira, introduzindo, assim, os conceitos de proposição/fórmula simples e valor de verdade.

Quando um jogador quer narrar que algo é o caso, mais especificamente algo que, de acordo com o narrador, pode resultar diretamente de uma ação do personagem deste jogador (e caso se trate de uma ação difícil e/ou relevante, caso contrário o narrador simplesmente narra que aquilo ocorre), o narrador coloca na mesa um cartão de proposição com a face preta para cima (cartões de proposição possuem uma face preta, simbolizando a sua falsidade, e uma face branca, simbolizando a sua verdade). O jogador então faz um teste, isto é, uma rolagem de dado(s), que pode ser bem-sucedido ou não. Caso o teste seja bem-sucedido, o personagem do jogador tem sucesso em tornar aquela proposição verdadeira, e o narrador então vira o cartão de proposição, colocando a face branca para cima (Figura 4).

Figura 4 – Exemplo de configuração inicial e final dos cartões de símbolos lógicos em uma ação direta

Fonte: compilação do autor a partir de CAVASSANE, no prelo.

 

          A segunda regra a ser introduzida aos jogadores é a da “ação indireta”, que permite que um ou mais jogadores narrem que uma determinada proposição é verdadeira ou falsa, porém tal proposição pode se tornar verdadeira ou falsa apenas mediante certas condições. Essa regra introduz os conectivos lógicos e as fórmulas complexas e, indiretamente, as noções de argumento, validade e correção.

          Quando um ou mais jogadores querem narrar que algo é ou não o caso, mas se trata de algo que, de acordo com o narrador, pode vir a ser ou não o caso mediante certas condições, sejam ações bem-sucedidas dos personagens dos jogadores ou eventos sob controle do próprio narrador, o narrador coloca na mesa ou cartão de conectivo de implicação (quando tais condições não são exclusivas) ou de dupla implicação (quando tais condições são exclusivas), com a face branca para cima, à direita do mesmo, os cartões que representam o consequente, isto é, aquilo que os jogadores querem narrar que é verdadeiro ou falso e, à esquerda do mesmo, os cartões que representam o antecedente, isto é, as condições para que o consequente possa se tornar verdadeiro ou falso.

          Considere, por exemplo, o caso em que os jogadores querem narrar que uma proposição é verdadeira, mas o narrador determina que duas ações dos personagens dos jogadores devem ser bem-sucedidas para que tal proposição se torne verdadeira. Nesse caso, o narrador coloca na mesa dois cartões de proposições com a face preta para cima, unidos por um cartão de conjunção com a face preta para cima e separados dos demais cartões por cartões de parênteses, representando as ações dos personagens (o antecedente da implicação); um cartão de implicação com a face branca para cima (representando a verdade do condicional, determinada pelo narrador); e um cartão de proposição com a face preta para cima, representando o resultado que eles querem alcançar (o consequente da implicação).

Caso ambas as ações sejam bem-sucedidas, o narrador vira não apenas os cartões de proposição que representam tais ações, mas também o cartão de conjunção. De tal modo, torna-se verdadeiro o antecedente da implicação e, uma vez que a implicação é verdadeira, o consequente também se torna verdadeiro. O narrador então vira o cartão de proposição do consequente, colocando a face branca para cima (Figura 5).

 

Figura 5 – Exemplo de configuração inicial e final dos cartões de símbolos lógicos em uma ação indireta

Fonte: compilação do autor a partir de CAVASSANE, no prelo.

 

          Note que, ao contrário da ação direta, que lida apenas com fórmulas simples, sem conectivos, e que permite apenas tentar narrar que uma proposição (atualmente valorada como falsa) é verdadeira, a ação indireta, que lida com fórmulas complexas, permite tentar narrar que a negação de uma proposição (atualmente valorada como verdadeira) é verdadeira, logo que a proposição é falsa, como no exemplo a seguir (Figura 6). Uma ação que permite negar uma proposição sem condições, isto é, sem um conectivo de implicação ou dupla implicação, pode ser introduzida posteriormente, uma vez que os conectivos já tenham sido introduzidos aos jogadores pelas ações indiretas.

 

Figura 6 – Exemplo de configuração inicial e final dos cartões de símbolos lógicos em uma ação indireta com negação

Fonte: compilação do autor a partir de CAVASSANE, no prelo.

 

Portanto, nas ações indiretas, o objetivo dos personagens é construir um argumento válido e correto na forma modus (ponendo) ponens, isto é, “(é verdade que) φ implica ψ, e (também é verdade que) φ, logo (é verdade que) ψ”, ou “φ ψ, φ ⊨ ψ”. Pois, uma vez que o narrador determina que uma certa implicação é verdadeira, os jogadores, objetivando tornar o seu consequente verdadeiro, precisam tornar o seu antecedente verdadeiro.

          Ainda como parte da mecânica central de O Legado dos Lógicos, existem outras formas possíveis de ação, tal como a chamada “ação proibitiva” em que, de dois ou mais eventos possíveis, os jogadores objetivam impossibilitar um ou mais desses eventos. Neste tipo de ação, os jogadores constroem um argumento válido e correto na forma modus (tollendo) ponens, também conhecida como silogismo disjuntivo: “(é verdade que) φ ou ψ, e (também é verdade que) não φ, logo (é verdade que) ψ”, ou “φ ∨ ψ, ¬φ ⊨ ψ” (Figura 7).

 

Figura 7 – Exemplo de configuração inicial e final dos cartões de símbolos lógicos em uma ação proibitiva

Fonte: compilação do autor a partir de CAVASSANE, no prelo.

 

Assim, por meio de tais regras, fragmentos da linguagem natural utilizada no decorrer do jogo, a saber, as sentenças e argumentos relativos à influência dos jogadores na narrativa, são formalizados na linguagem formal da LPC, permitindo assim que os jogadores apreendam algumas das noções e regras de LPC por meio do jogo narrativo e do apoio visual representado pelo uso dos cartões de símbolos lógicos.

Note que, embora o objetivo de O Legado dos Lógicos seja auxiliar no ensino, especificamente, de LPC, tal lógica não necessariamente é a lógica mais expressiva possível no contexto de tal jogo narrativo. Observe, por exemplo, que algumas ações podem envolver questões de caráter modal, como possibilidade ou necessidade (para uma breve introdução à Lógica Modal, ver MORTARI, 2001, pp. 357-373): em uma ação indireta, tornar o antecedente verdadeiro faz com que o consequente se torne necessariamente verdadeiro; e, em uma ação proibitiva, negar uma das proposições significa vetar uma possibilidade. Observe, ainda, que talvez a implicação tenha, no contexto das ações indiretas, um caráter relevante, isto é, que o narrador só possa narrar uma implicação caso o antecedente seja relevante para o consequente (ver MORTARI, 2001, pp. 382-385). Além disso, as regras básicas do jogo podem ser futuramente expandidas a fim de que o jogo possa servir também para o ensino de lógicas que expandem a LPC, tal como a lógica de predicados de primeira ordem ou uma lógica modal deôntica, por exemplo.

 

4.2. Consequência e equivalência lógica; tautologia e contradição; falácia

Em sua exploração narrativa das ruínas da civilização que outrora ocupou o cenário fictício do Arquipélago dos Sábios, os personagens dos jogadores frequentemente terão o seu caminho bloqueado por enigmas lógicos, colocados lá, em geral, para testar ou mesmo exercitar o raciocínio daqueles que futuramente viessem a encontrar tais ruínas, de modo a se mostrarem capazes de receber os segredos nelas guardados (CAVASSANE, no prelo).

Alguns enigmas empregam as noções de tautologia, contradição, consequência lógica e equivalência lógica, demandando que os jogadores identifiquem ou construam corretamente (ou ainda, no caso das contradições, evitem construir) fórmulas ou sequências de fórmulas de tais tipos ou com tais relações.

Em uma determinada ruína, por exemplo, poderia haver a seguinte inscrição, logo na sua entrada: “A verdade leva ao caminho correto, mas a falsidade leva à destruição”. Dentro da ruína, há diversas portas fechadas, e os personagens dos jogadores devem decidir em quais portas entrar, com base nas proposições inscritas sobre elas: as portas com tautologias permitindo-os avançar, e as portas com contradições levando a caminhos fechados, perigos e armadilhas.

Outro tipo de enigma que os personagens dos jogadores podem encontrar envolve fazer escolhas com base no conteúdo de duas ou mais sentenças em linguagem natural (ou mesmo fórmulas de LPC), bem como de informações acerca dos possíveis valores de verdades das mesmas (que também podem estar em linguagem natural ou formal).

Por exemplo: em uma sala de uma ruína, há duas portas: em uma delas, a inscrição “φ: Esta porta leva ao caminho correto, e a outra leva a uma armadilha”; na outra porta, a inscrição “ψ: Uma destas portas leva a uma armadilha, e a outra leva ao caminho correto”; por fim, entre as portas, a inscrição “φ ⊻ ψ” (adaptado de SMULLYAN, 1982, p. 15).

A solução a este enigma é a seguinte: “φ ⊻ ψ” significa que uma inscrição é verdadeira, e a outra falsa. A inscrição φ não pode ser verdadeira, ou a inscrição ψ teria que ser falsa, porém, a verdade de φ implicaria também na verdade de ψ; logo, a inscrição ψ é a verdadeira, e a inscrição φ é a falsa; portanto, não é o caso que a porta com a inscrição φ leva ao caminho correto, e os personagens devem escolher a porta com a inscrição ψ (SMULLYAN, 1982, pp. 23-24).

Um tipo similar de enigma envolve dois ou mais personagens que dizem apenas verdades ou apenas falsidades, denominados por Smullyan (1978), respectivamente, “knights” e “knaves” (em português, “cavaleiros” e “patifes”; em O Legado dos Lógicos, chamados “verazes” e “farsantes”). Por exemplo: os personagens entram em uma ruína com uma inscrição na sua entrada que diz que as criaturas que vivem ali têm duas cabeças, que algumas delas falam somente falsidades, e que outras delas falam somente verdades. Na primeira sala, eles encontram um minotauro de duas cabeças. A primeira cabeça diz: “Pelo menos um de nós só diz falsidades” (adaptado de SMULLYAN, 1978, p. 21). Os personagens precisam decidir se alguma das cabeças diz apenas verdades, a fim de poderem confiar nas informações que ela vier a lhes oferecer.

A solução a este enigma é simples: supondo que a primeira cabeça só dissesse falsidades, então a sentença “Pelo menos um de nós só diz falsidades” seria falsa, porém, por nossa suposição, ela teria que ser verdadeira. Logo, a primeira cabeça só diz verdades, o que torna sua sentença verdadeira, então a segunda cabeça só diz falsidades (SMULLYAN, 1978, p. 27).

Note que, em enigmas deste tipo, um personagem não pode dizer “eu digo apenas falsidades”: pois, se ele diz apenas verdades, essa sentença seria falsa, o que seria contraditório; por outro lado, se ele diz apenas falsidades, essa sentença seria verdadeira, o que também seria contraditório (logo, tanto um quanto o outro poderia apenas dizer “eu digo apenas verdades” se fosse falar apenas sobre si mesmo, o que tais personagens nunca fazem). De tal modo, esse tipo de enigma está relacionado ao chamado “paradoxo do mentiroso”, portanto podendo ser usado também para introduzir esse paradoxo, bem como a questão da trivialização da lógica clássica na presença de uma contradição, e até mesmo questões envolvendo a teoria semântica da verdade de Tarski (ver TARSKI, 2007) e lógicas paraconsistentes (ver D’OTTAVIANO & FEITOSA, 2003). Enigmas deste tipo podem também ser adaptados para contextos paraconsistentes e modais (ver TESTA & ONGARATTO, 2024).

          Por fim, os personagens dos jogadores podem se ver também em ruínas construídas para desinformar seus visitantes, que contenham enigmas feitos para enganá-los e levá-los a perigos e armadilhas, empregando falácias lógicas para tal fim, tal como a falácia de afirmação do consequente: “(é verdade que) φ implica ψ, e (também é verdade que) ψ, logo (é verdade que) φ”, ou “φ ψ, ψ ⊨ φ” (tal argumento é inválido, pois conclui que ψ φ, ou ainda que φ ψ, a partir apenas de φ ψ). Este tipo de enigma deve ser apresentado para jogadores mais experientes, pois eles provavelmente não saberão de antemão que estão sendo propositalmente enganados.

 

4.3. Formas de aplicação e limitações

Assim como na maioria dos RPGs, o número ideal de participantes de uma sessão de O Legado dos Lógicos é entre três e seis jogadores, cada um criando e controlando um personagem, mais um narrador. Trata-se de uma característica que, aliada à duração média de uma sessão de RPG, em geral em torno de duas ou três horas, limita a aplicação de um tal jogo a contextos educacionais extra-classe, em horário alternativo. O número de jogadores pode ser maior se cada personagem for criado e controlado por um grupo de jogadores, ao invés de um único jogador, mas isso limita a participação de cada jogador, além de tornar o jogo menos dinâmico.

Porém, o manual de O Legado dos Lógicos inclui também alguns planos de aula, que adaptam partes das regras e conceitos do jogo para o uso em sala de aula, visando auxiliar na introdução e explicação de determinadas noções da LPC (basicamente, dividindo os “módulos” descritos nas subseções anteriores em mais de uma aula cada um), permitindo assim que algumas das ferramentas de O Legado dos Lógicos possam ser aproveitadas para além do jogo em si.

 

5. Considerações finais

          Neste artigo, procuramos argumentar que o ensino de lógica formal no contexto do nível Médio se faz cada vez mais necessário, mas que o mesmo encontra dificuldades que residem principalmente na falta de ferramentas apropriadas a metodologias de ensino mais interativas e inclusivas; e que os role-playing games, já implementados como ferramenta educacional no Brasil (embora ainda muito experimentalmente), por combinarem narrativa e gamificação, podem ser ferramentas valiosas, inclusive para o ensino de lógica.

Com base em tal fundamentação, apresentamos os principais elementos de O Legado dos Lógicos, um RPG desenvolvido para auxiliar na introdução e no ensino de lógica proposicional clássica. Através de regras, dinâmicas e recursos visuais que explicitam a lógica subjacente às ações dos personagens dos jogadores, bem como da utilização de diversos tipos de enigmas lógicos, inseridos em um universo narrativo em que a lógica, a filosofia e a ciência ocupam um papel central, O Legado dos Lógicos pode propiciar a aquisição das noções e regras mais fundamentais da LPC, mas também de conceitos mais avançados e, potencialmente mesmo de noções de lógicas que expandem a LPC.

Entendendo que uma das dificuldades no uso do RPG como ferramenta pedagógica está na complexidade, muitas vezes desnecessária, de suas regras, O Legado dos Lógicos tem um sistema de regras extremamente simples, tanto no que diz respeito à criação de personagens, quanto relativamente à obtenção de controle narrativo por parte dos jogadores (que, no entanto, pode ser complexificado por um narrador experiente, se necessário, em especial se os participantes também possuem experiência prévia com tais jogos); e, devido às limitações relativas ao número de jogadores e ao tempo de jogo, características dos RPGs, elementos do jogo são também isolados em planos de aula sucintos que podem ser usados no contexto da sala de aula.

Assim, entendemos que um jogo narrativo tal como O Legado dos Lógicos, desenvolvido especificamente para uma disciplina de difícil acesso como a lógica formal, pode contribuir muito para o processo de ensino-aprendizagem, enquanto uma ferramenta que possibilite a aplicação de metodologias lúdicas, interativas e inclusivas.1

 

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Notas

1 Para a realização do presente trabalho, Ricardo Peraça Cavassane e Rafael Rodrigues Testa tiveram apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Brasil (processos nº 150915/2024-1 e 420284/2022-2, respectivamente). Os autores gostariam de agradecer também ao parecerista por suas valiosas contribuições a este trabalho.