Rosto em silício: a alteridade no espelho purista da tecnologia

 

Face in silicon: otherness in the purist mirror of technology

 

Uilson Melo Barbosa Monteiro

Universidade do Estado da Bahia, Barreiras – BA, Brasil.

uilsonmonteiro@uneb.br

 

Nilvo Luiz Cassol

Universidade do Estado da Bahia, Barreiras - BA, Brasil.

ncassol@uneb.br

 

Recebido em 29 de julho de 2025

Aprovado em 28 de novembro de 2025

Publicado em 08 de dezembro de 2025

 

RESUMO

A contemporaneidade marcada pelo purismo tecnológico, uma estética de objetividade, transparência e eficiência algorítmica, distância da proposta ética filosófica concebida por Levinas (2008), diante disso, observamos que a ética levinasiana é desfigurada pela lógica da redução do outro a dados, imagens e perfis; o rosto, símbolo da interpelação ética, torna-se reflexo plano nas superfícies digitais que espelham, mas não acolhem a infinita responsabilidade pelo outro. Neste texto, partimos da hipótese de que a lógica do purismo tecnológico, análoga ao cubismo na arte, ao buscar formas puras e inteligíveis, promove um tipo de esterilização da alteridade, no qual o outro deixa de ser um apelo ético e passa a ser um objeto de leitura, predição e controle algorítmico. Tal processo inviabiliza a ética do rosto proposta por Levinas (2008) e intensifica a liquidez das relações humanas já diagnosticada por Bauman (2001).  Assim, alinhando três vertentes (i) a alteridade ética radical de Levinas (2008), (ii) o purismo tecnológico como desdobramento de um pensamento estético moderno (via cubismo) e (iii) as inquietações da modernidade líquida baumaniana, a qual apresenta a sociedade em processos constantes de mudanças, ao passo, que se conservam. Deste modo, a discussão proposta neste artigo visa romper com a neutralidade aparente da tecnologia e investigar como ela afeta eticamente, a relação com o outro quando se trata da alteridade. Assim, consideramos que essa proximidade infinita (Levinas, 2008) tem como ponto de partida na construção da filosofia ética.

Palavras-chave: Rosto; Filosofia; Ética.

 

    

ABSTRACT

Contemporary times marked by technological purism, an aesthetic of objectivity, transparency, and algorithmic efficiency, distance themselves from the philosophical ethical proposal conceived by Levinas (2008). In this context, we observe that Levinasian ethics is disfigured by the logic of reducing the other to data, images, and profiles; the face, a symbol of ethical interpellation, becomes a flat reflection on the digital surfaces that mirror but do not embrace the infinite responsibility for the other. In this text, we start from the hypothesis that the logic of technological purism, analogous to cubism in art, by seeking pure and intelligible forms, promotes a type of sterilization of alterity, in which the other ceases to be an ethical appeal and becomes an object of reading, prediction, and algorithmic control. Such a process undermines the ethics of the face proposed by Levinas (2008) and intensifies the liquidity of human relationships already diagnosed by Bauman (2001). Thus, aligning three strands (i) the radical ethical otherness of Levinas (2008), (ii) technological purism as a development of a modern aesthetic thought (via cubism), and (iii) the anxieties of Bauman's liquid modernity, which presents society in a constant process of change while also retaining certain aspects. Thus, the discussion proposed in this article aims to break with the apparent neutrality of technology and investigate how it ethically affects the relationship with the other when it comes to otherness. Therefore, we consider that this infinite proximity (Levinas, 2008) serves as the starting point for the construction of ethical philosophy.

Keywords: Face; Philosophy; Ethics.

 

Introdução

          Em tempos em que a presença humana é mediada por telas, algoritmos e interfaces, o rosto, esse lugar de encontro, expressão e vulnerabilidade, parece cada vez mais capturado por filtros, padrões e silenciamentos digitais. A tecnologia, ao purificar a imagem, esvazia a alteridade, transformando o outro em dado, em perfil, em projeção. Nesse cenário, torna-se urgente revisitar o conceito de rosto como espaço ético, especialmente diante da crescente substituição da presença pela imagem. É nesse contexto que a filosofia de Levinas (2008) se impõe com força renovada.

A discussão acerca do rosto de outrem apresentado por Levinas (2008) é fruto da experiência brutal de que o pensador teve com a Segunda Guerra Mundial. Levinas compreende a relação ética como um encontro que gera compromisso, responsabilidade e comprometimento, destarte diante da experiência trágica vivida por ele, a proposta ética ultrapassa o campo da reflexão filosófica e intelectual, encarnada no cotidiano dos campos de concentrações, onde o rosto era assolado e esfolado pela indiferença e pelo desprezo.

Na contemporaneidade o outro é opaco e frio, é reflexo plano e ausente, encaixado pelas superfícies puristas das tecnologias. Diante disso, o vínculo ético é fragilizado; assim, sem rosto não há convocação e responsabilidade, apenas a imperializarão do silêncio.

Logo, diante da sociedade contemporânea o outro não existe, é engolido pela pressa, pela utilidade e pela imagem. Como na era do cubismo, a modernidade se constrói diante do purismo tecnológico. Esse movimento cubista que surgiu na França no século XIX, faz-nos recordar a contemporaneidade diante das tecnologias, gerando representações vazias e incapazes de representar o real. Os cubos, cilindros e figuras representava os objetos, gerando múltiplas perspectivas a partir do olhar subjetivo, porém sem profundidade. Segundo Argan (1992, p.45):

                                         O cubismo não é apenas uma técnica de decomposição da forma, mas uma nova maneira de conceber o espaço pictórico. Ao abandonar a perspectiva tradicional, os artistas cubistas propõem uma visão simultânea dos objetos, revelando múltiplas facetas em um mesmo plano. Essa abordagem rompe com a ilusão da profundidade e convida o observador a reconstruir mentalmente a imagem representada.

 

Este movimento inaugura o rompimento com a representação tradicional da realidade, especialmente quando se trata da perspectiva linear. A relação com o objeto ou com a arte é singular, criando inúmeras possiblidades simultâneas a partir da mesma representação.

O cubismo elimina a possibilidade de um mundo escancarado, cria um mundo plano no qual a tridimensionalidade é eliminada. Não há uma janela para o mundo, o que há são traços desconexos, onde o indivíduo constrói mentalmente uma imagem individual e subjetiva.

Assim, diante da reflexão proposta, através de revisões bibliográficas e reflexões teóricas, objetivamos examinar, sob uma perspectiva crítica e ontológica, os deslocamentos da estética e da subjetividade diante das tecnologias contemporâneas. Para isso, partimos da analogia entre a estética purista da arte e os discursos tecnológicos atuais, tensionando suas implicações na condição humana diante da alteridade.

Tal debate, faz-se necessário pois em um cenário marcado pela radicalização das formas tecnológicas de mediação da realidade, torna-se urgente refletir sobre os efeitos éticos da virtualização das relações humanas.

Diante disso, propomos investigar, sob a ótica da filosofia de Emmanuel Levinas (2008), os modos como a alteridade do outro, núcleo da responsabilidade ética, vem sendo deformada pelas lógicas do que denominamos aqui, como purismo tecnológico.

Referimos este conceito, elaborado a partir de uma analogia crítica com o cubismo artístico, a uma tendência contemporânea de busca por clareza, padronização e legibilidade total nos sistemas digitais, os quais tendem a reduzir o humano à perfis rastreáveis, imagens manipuláveis e dados operacionais.

Levinas (2008) propõe uma ética radical da alteridade fundada na presença do rosto, cuja interpelação convoca a responsabilidade infinita pelo outro, uma relação assimétrica que escapa à totalização conceitual ou ao domínio técnico.

No entanto, na contemporaneidade digital, onde o rosto é convertido em avatar, selfie ou dado biométrico, aquilo que há de irredutível e ético na experiência da alteridade, parece ser diluído em superfícies e algoritmos puristas. A substituição da presença real pela interface puramente visual ou funcional faz com que o outro, em vez de nos afetar, seja consumido ou ignorado. Essa dinâmica é agravada pela fluidez relacional da sociedade líquida, como descrita por Bauman (2001), na qual os vínculos humanos são frágeis, efêmeros e cada vez mais mediados por dispositivos tecnológicos.

Ao articular os referenciais da alteridade levinasiana do purismo tecnológico enquanto estética de controle e da liquidez baumaniana, buscamos evidenciar uma crise ética silenciosa: aquela que se revela no desaparecimento do outro como sujeito de relação. Em seu lugar, emerge uma figura abstrata, esteticamente idealizada, porém destituída de implicações éticas, que esvazia o encontro humano de sua potência transformadora e compromissos intersubjetivos.

Neste sentido, interrogar o rosto em tempos de silício é, ao fim, um gesto de resistência filosófica contra a padronização total da experiência humana, como a era digital está a fazer. Desse modo, este texto propõe, em uma organização de duas seções, discutir como se constitui a imagem do outro, precisamente, no que tange a negação da existência de outrem na contemporaneidade, e posteriormente, discorrer sobre o surgimento da ética do não-olhar, compreendida como a morte da alteridade. 

Neste viés, consideramos que, na contemporaneidade, não existe mais a dinâmica do olhar, pois, tal dinâmica se esvaziou da ética que nasce da relação com o rosto. Diante do vazio dos vínculos não seria possível reconhecer o outro e respeitá-lo a partir da alteridade, já que, no mundo tecnológico, não existe mais rosto, o que existe são imagens.

 

O espelho e a negação do outro

A modernidade é marcada por uma paradoxal abundância de conexões e um crescente desinteresse pelo outro. A sociedade contemporânea, embalada pela lógica do desempenho, da visibilidade e do consumo acelerado de informações, parece cada vez mais anestesiada diante do sofrimento.

Nesse contexto, emerge a ética do não-olhar, uma atitude de indiferença que não apenas ignora a alteridade, mas desumaniza o indivíduo. Essa falência do olhar ético revela o colapso de um dos princípios fundamentais da convivência humana: o reconhecimento da dignidade no rosto do outro, como propõe Levinas (2008).

A instauração da indiferença se dá dos mais variados modos que gradativamente a sociedade foi aprovando e reconhecendo como manifestações individuais a propósito de construir uma máxima universal (Kant, 2007). À títulos de exemplos, a sociedade do nosso século banaliza a violência e invisibiliza as misérias sociais, como as mortandades espalhadas pelo planeta. Neste sentido, as forças sutis apresentadas por Foucault (1979) se multiplicam como vírus e continua governado e determinado os rumos da humanidade.

Neste ínterim, há um desafio filosófico à luz da ética de Levinas (2008), para se encontrar e se descobrir no outro, já que é no outro que se descobre e se revela, ao mesmo tempo que se instaura a relação ética, assim, deve-se estabelecer o contato mútuo, pois: quem o indivíduo se tornará à medida que estabelece uma relação ética com uma boneca, com instrumento tecnológico ou um objeto qualquer?

Diante do questionamento, entendemos que a tecnologia cibernética não pode ser vista como ferramenta neutra. Ela também faz parte do modo como existimos e relacionamos com o mundo, influenciando não só o que fazemos, mas também quem somos e quem nos tornamos. Por isso, é essencial pensar a era digital a partir de uma perspectiva ética e existencial.

Segundo Simondon (2020), existe uma “coevolução” entre o ser humano e a máquina, em que ambos se transformam mutuamente ao longo do tempo, pois, a tecnologia e suas produções não se constituem como ferramentas aleatórias, mas sim sob influência, ligadas diretamente à vida do indivíduo, numa perspectiva ontológica e psicológica.

Nesta perspectiva, essa relação instaurada entre o indivíduo e o universo computacional não é estática, mas dinâmica, refletindo na forma como o indivíduo pensa, age e se relaciona, pois, à medida que os objetos, frutos de sistemas digitais, evoluem, eles consequentemente, provocam mudanças.

Diante dessa revolução digital há um processo de coevolução entre o indivíduo e o que ele produz e, desse modo, tudo aquilo que se constitui a partir do mundo. Assim, há uma relação coparticipativa entre o indivíduo e a tecnicidade produzida, compreendendo que Simondon (2020) atribui ao termo tecnicidade a natureza dos objetos resultados de toda produção tecnológica e a maneira como integram a vida humana. Com isso, tal processo de coevolução se constitui com e por aquilo que surge dessa produção técnica e a relação instaurada com o indivíduo como parte dos processos evolutivos oriundos dessas produções. 

Portanto, o grande desafio da contemporaneidade é encontrar um meio onde o homem e a indústria da tecnicidade se relacionam sem que seja alienado, controlado e aniquilado diante do desenvolvimento técnico-científico. Já que na contemporaneidade, os sistemas digitais assumiram o protagonismo diante do homem frente ao mundo.

O indivíduo moderno experimenta o dessabor de viver uma existência refém de uma construção orientada a partir de uma tela, que nos atravessa silenciosamente, moldando nossos hábitos, decisões e até nossos afetos.

A tecnologia, quando não compreendida em sua profundidade, deixa de ser aliada e passa a ocupar o lugar de protagonista, enquanto o sujeito se torna uma imagem opaca e diante disso, corremos o risco de perder o vínculo com aquilo que nos constitui como humanos: a capacidade de pensar, de escolher, de criar e de nos relacionar com o eu, o outro e o mundo.

Se é na relação com o outro que o indivíduo se descobre e desnuda, e, ao mesmo tempo estabelece relações de cuidado e respeito, fora do outro, precisamente fora do rosto não se constrói alteridade. Nesse viés suscitamos a hipótese de que a alteridade poderá será sepultada e, consequentemente, surgirá a falência da ética e do cuidado para com o outro, já que a relação ética não aconteceu, pois não houve manifestações de encontro, não houve o desnudamento do indivíduo e o reconhecimento de ambos, gerando comprometimento e responsabilidade ética. 

À luz da alteridade não se cria relação ética com uma boneca, porque não há responsabilidade e cumplicidade. Diante da Modernidade Líquida de Bauman (2001) e da sociedade da meritocracia e do desempenho, o Outro não existe, bem como o Eu, pois, o indivíduo só existirá no encontro e na relação que se manifesta e cria responsabilidade infinita.  

A indiferença contemporânea que podemos denominar a ética do não-olhar desqualifica o outro, cria barreiras que impedem a relação ética e assim, consequentemente, gera anulamento. Neste sentido, podemos observar que a indiferença impede o cultivo da responsabilidade e do cuidado, fazendo com que se abra ferida ao mundo, como o tratamento dispensado aos países pobres, a indiferença em relação à dor do outro, a frieza em relação ao rosto nu, acoitado pela injustiça institucional e social.

Com isso, observamos que de modo gradativo, cria-se uma supervalorização do Eu em detrimento do Outro, a indústria cibernética é responsável pela anulação do outro, afirmando a existência do Eu, que não se reconhece, já que não existe mais o outro para criar relação ética.  A alteridade não é mais a partir do olhar, que cria relações, mas a partir da mesmidade – termo o qual não aprofundamos o conceito neste texto, mas o utilizamos para embasar a discussão proposta.

Compreendemos que a mesmidade representa o domínio do Eu sobre o Outro, observando que há um contraponto em relação à alteridade, pois a alteridade é a presença do outro, não negando a singularidade em cada indivíduo (Levinas, 2008) e diante disso, surge a compreensão entre o mundo e o homem numa relação autocentrada à luz das planícies tecnológica. Segundo Han (2018, p. 22):

                                         A comunicação digital elimina o espaço entre os interlocutores, tornando impossível a distância contemplativa. A velocidade e a simultaneidade substituem o tempo da reflexão. A comunicação digital é desprovida de negatividade, de silêncio, de pausa. Ela não conhece o outro. A comunicação digital é comunicação sem comunidade. Ela não cria vínculos duradouros, mas conexões momentâneas. A ausência de distância e de demora destrói o espaço público, que depende da permanência e da estabilidade.

 

Não há tempo nem espaço para que o outro seja notado com profundidade, a comunicação digital é imediata, rápida e constante, fazendo com que a interação digital crie laços frágeis, breves e descartáveis, achatando as relações humanas e criando uma planície homogênea. A compreensão do outro perpassa pela compreensão que si próprio elegeu como absoluto, consequentemente, a alteridade é soterrada, já que fere o princípio que Levinas (2008) chama de experiência ética.

Essa “experiência” na qual compreendemos como construção ausente na contemporaneidade só é possível quando anunciada no rosto que ultrapassa a dimensão física e material, o que constitui mais uma epifania que nos apanha em responsabilidade e compromisso ético. “O rosto está presente na sua recusa de ser conteúdo. Neste sentido, não poderá ser compreendido, isto é, englobado. Nem visto, nem tocado" (Levinas, 2008, p.173).

Portanto, podemos compreender que a contemporaneidade assassina e naturaliza a indiferença à medida que a criminalidade, a violência, a mídia, com seus programas sensacionalistas, as comunidades periféricas, que são sentenciadas por julgamentos e preconceitos, pessoas em situação de rua, os que estão em privação de liberdade, são alguns exemplos do esquecimento do outro e sua anulação, cria uma política que alastra no inconsciente coletivo e gera um movimento que fere o grito que brada no rosto de outrem.  

Assim, o outro é rosto, que convoca o Eu à responsabilidade diante do olhar, e a ética, neste sentido, passa a ser entendida como refutação da espontaneidade do Eu pela presença do rosto.

O assassinato da alteridade através da anulação do outro pelas vias da liquidez de Baumann (2001) e as desfigurações dos rostos roubado pelas telas anuncia a modernidade em falência ética, e consequentemente, uma sociedade que conserva o que o rosto não revela.

Destarte, a ética do não olhar surge não apenas pela invisibilidade daqueles que estão à margem, mas também pela liquidez e pela pressa do mundo, voltado ao que gera lucro e à manutenção de tudo aquilo que produz dor e exclusão. Somamos a isso, a ausência dos rostos que nos faltam para estabelecer uma relação ética. Esse sistema adotado pela contemporaneidade não pode ser considerado um simples sintoma social, mas um projeto estruturado, intencional e sistêmico de desumanização do indivíduo.

Nesta mesma sociedade, o sujeito é envelopado num esquema, no qual o desempenho é a norma que molda e define o homem, que adotou o cansaço como critério fundamental para ressignificar a vida e fundamentá-la, num esquema de importância, pois nesse movimento, “o indivíduo se torna um empreendedor de si mesmo, responsável por seu sucesso e fracasso sem considerar as condições externas" (Dardot; Laval, 2016, p. 291).

O sujeito tem a obrigação de gerenciar a vida como uma empresa, vê-se como um projeto, um investimento no qual é responsável integralmente pelo sucesso ou pelo fracasso, sendo o fracasso consequência de uma má gestão ou pouco esforço dispensado àquilo que outrora havia empreitado.

Assim, o indivíduo será integralmente responsável por tudo que lhe cerca, colocando-o numa condição em que não há um orbe embebido de incongruências e de desafios que esteja para além do planeta que foi eleito como absoluto, sendo ele mesmo o capitão de sua vida, onde tudo está sobre o seu controle e segurança.

Neste sentido, podemos considerar que o espelho deixa de ser um espaço de reconhecimento e passa a ser um instrumento de negação. O indivíduo não se vê através do outro, mas apenas como reflexo turvo e míope de si mesmo, o que existe é apenas um reflexo idealizado, gerenciado e controlado. À medida que outro não é enxergado, aniquila também a possibilidade do vínculo, gerando vulnerabilidade e descompromisso ético.

 

A ética do não-olhar: a morte da alteridade na era da indiferença

A proposta filosófica apresentada por Levinas (2008) que se assenta a partir da ontologia e da fenomenologia no século passado, provoca a sociedade pós-moderna rediscutir a relação ética diante de um mundo que se apressa para não perceber o tempo, ao passo que camufla o rosto, tornando-o invisível, e quando o vemos, são suas cópias como fotografias nas telas das diversas tecnologias contemporâneas.

Levinas (2008) inaugura uma ética radicalmente orientada para o Outro. “O modo como o Outro se apresenta, ultrapassando a ideia do Outro em mim, chamamo-lo, de fato, rosto” (Levinas, 2008, p. 38). Esse outro não se confunde, nem deixa de ser na sua totalidade ao se relacionar com outros, que se manifesta no rosto transcendental, que se recusa e se escapa de qualquer definição, ele apenas é, enquanto revelação súbita e profunda que antecipa um código de regra. O rosto que não é estética, é um grito silencioso que suplica sem esboçar nenhuma manifestação, já que o rosto em si já se manifesta e exige através da relação ontológica a empatia, o cuidado e o compromisso ético.

É na relação com o rosto, que o outro é interpelado ao passo que se cria o convite, a responsabilidade e o cuidado. “Desde que o outro me olha, sou responsável por ele, mesmo sem ter assumido nada” (Levinas, 1997, p.90). Para Levinas (2008), é no rosto nu de outrem, desarmado e irredutível que se revela a exigência ética fundamental, que possibilita a responsabilidade incondicional.

O infinito apresenta-se como rosto na resistência ética que paralisa os meus poderes e se levanta dura e absoluta do fundo dos olhos, sem defesa na sua nudez e na sua miséria. A compreensão dessa miséria e dessa fome instaura a própria proximidade do outro. […] Manifestar-se como rosto é impor-se para além da forma, manifestada e puramente fenomenal, é apresentar-se de uma maneira irredutível à manifestação, como a própria retidão do frente a frente, sem mediação de nenhuma imagem na sua nudez, ou seja, na sua miséria e na sua fome. (Levinas, 2008, p. 178-179):

 

          À medida que nos deparamos com o rosto de outrem somos convocados a reconhecê-lo, ultrapassando qualquer dimensão física ou estética. O encontro com o rosto de outrem não é uma experiência cognitiva e investigativa, mas uma interpelação que desestabiliza o Eu e ao mesmo tempo convoca à justiça, ao cuidado e a responsabilidade.

Derrida (2003), ao dialogar com a ética de Levinas (2008), amplia esse olhar ao trazer a concepção que acolher o outro é também aceitar o imprevisível e o incômodo como movimento intrínseco da relação ética, mesmo que os alicerces do Eu segue abalado. Segundo Derrida (2007, p. 15):

                                         A justiça não é a legalidade. A justiça vai além do direito, ela é o próprio acontecimento do indecidível. [...] A justiça é o nome do impossível. [...] A justiça exige que se calcule o incalculável, que se decida o indecidível, que se responda por uma responsabilidade que não pode ser assumida plenamente. [...] A ética, nesse sentido, não é uma regra, mas uma abertura ao outro, uma hospitalidade incondicional que nos desestabiliza, que nos inquieta, que nos obriga a responder sem garantias.

 

A ética de Derrida é fruto do encontro do pensamento levinasiano, porém com um olhar radical, quando se trata da hospitalidade absoluta. Derrida (2003) apresenta a ética dentro de uma tensão ou um paradoxo entre a hospitalidade incondicional que acolhe o outro sem reservas, sem condições e sem troca. É um ideal ético absoluto que ultrapassa qualquer limiar, é um acolhimento que ultrapassa qualquer norma, lei ou reciprocidade. Rompe com a hospitalidade condicional que transveste de regras, de leis, de acordos, de gêneros, de permanência e de identidade fixa.

Derrida (2003) deixa essa ferida aberta, não apresenta uma possiblidade de resolução paradoxal apontando a hospitalidade como uma travessia feita à passos trêmulos sobre uma corda ligado a duas montanhas, é uma tensão constante entre o dever e o risco, entre a generosidade e a soberania, que gera inquietude, constitutivo da justiça e da responsabilidade.  

O dono da casa, ao tomar a maçaneta da sua porta e abrir, corre o risco de perder o controle e ser transformado em hóspede, porém a plenitude da ética acontece justamente na incerteza, no risco, no perigo. É no desequilíbrio, na vulnerabilidade, na impossibilidade de total controle que a ética surge na sua plenitude e grandeza. “A hospitalidade não pode se realizar a não ser que ela vá além da hospitalidade possível” (Derrida, 2003, p.210). 

Fazer-se do outro hóspede, exige a violação dos acordos que ultrapassa as condições que normalmente regulam o acolhimento, regras de identidade, de propriedade, de reciprocidade. Só é possível a hospitalidade ética quando se aceita o risco de perder o controle e de abrir-se ao imprevisível, ao impensável, ao estrangeiro e ao irreconhecível.

Enquanto Levinas (2008) traz em sua proposta ética, a alteridade como ideal radical de encontro e responsabilidade, tendo a história como uma ameaça quando se trata do sujeito, Ricoeur (1991), na obra O si-mesmo como um outro, explana a alteridade como condição constitutiva da identidade; “a identidade pessoal é uma construção narrativa” (Ricoeur, 1991, p. 138). O sujeito só se compreende a partir da escuta e da convivência com a diferença.

Desse modo, Ricoeur (1991) parte da hermenêutica da esperança, com intuito de reconstruir o sentido, compreende a história por meio da memória, da narrativa e da escuta dos esquecidos que foram silenciados:

A memória não é apenas a matéria-prima da história, mas também o lugar onde o passado é reapropriado por sujeitos que sofrem com o esquecimento e a exclusão. [...] A tarefa ética da história é dar voz aos que foram silenciados, aos esquecidos da narrativa oficial. A narrativa histórica, ao articular os testemunhos, os documentos e os vestígios, pode se tornar um espaço de justiça simbólica, onde o sofrimento passado encontra reconhecimento (Ricoeu, 2007, p. 15).

 

Assim, esses três pensadores convergem na ideia de que a ética não nasce da universalidade da razão, mas da singularidade do Outro. É na individualidade que se cria a multiplicidade, por outro lado, diante da cultura contemporânea, cada vez mais voltada ao espelho e menos à janela, parece complexo perceber o rosto de outrem que se macula nas telas e anula a relação ética, já que o outro não é outro como continuidade, pois não existe rosto, existe imagens.

O outro que surge espontaneamente e aleatoriamente com o rosto nu e desprovido de cuidado gera a obrigação ética entre o Eu e o Outro, simplesmente pelo fato da presença e da vulnerabilidade.

O rosto fala ao passo que convida outrem à relação ética, o rosto interpela, obriga e convoca à responsabilidade. “O rosto é o que não se pode matar, ou, ao menos, aquilo cujo sentido consiste em dizer: ‘Não matarás’. O rosto é a presença do outro como outro, como aquele que me interpela e me obriga, antes mesmo de qualquer contrato ou reciprocidade” (Levinas, 1997, p.70)

Esse encontro não é apenas uma experiência sensível, optativa, que demanda escolha, mas uma revelação ética que escapa à lógica do conhecimento e da objetividade, neste sentido, o rosto de outrem é interpelado pela fenomenologia que escapa dos acordos sociais, culturais e moral, segundo Levinas (2008, p. 78):

O rosto é significação, e significação sem contexto. Ele é o que não pode tornar-se conteúdo, o que o pensamento não pode abarcar totalmente, o incontível e o infinito que nos levam além. A visão é busca de adequação. Ora, o rosto é aquilo que não pode ser visto, o que não se reduz à percepção que dele temos. Há no rosto uma fragilidade e uma pobreza essenciais (o rosto fica exposto, nu), mas também uma primeira fala a enunciar uma ordem: “Não matarás.” O outro é ao mesmo tempo aquele contra quem posso tudo e a quem devo tudo.

 

A atualidade marcada por vínculos frágeis, efemeridade relacional e um culto à performance, faz-nos pensar o sujeito contemporâneo fora do encontro e da relação ética, o que se parece complexo a criação de uma ética que inclui e acolhe o outro na sua totalidade, o que faz Bauman (2001) descrever esse fenômeno como modernidade líquida, na qual os laços sociais escorrem por entre os dedos como água, dificultando compromissos éticos duradouros.

A consequência disso é uma sociedade que substitui o encontro pelo consumo, o diálogo pela invisibilidade e o Outro por um reflexo de si mesmo, o que Bauman traz não é uma simples mudança da sociedade ou a mudança constante das coisas, que estão em constância mudança de forma,não é somente falar que as coisas estão em processos constantes de mudanças, até porque Heráclito (2002) já havia dito há séculos. O que Bauman (2001) aponta é que o líquido muda de forma conforme o ambiente no qual está, mas não muda a natureza de ser, por tanto, a ideia de líquido, não é simplesmente transformação constante, mas a ambivalência entre a transformação e a permanência.

O líquido está em constante transformação, muda de forma, porém mantém suas propriedades, levando-nos a refletir sobre como nos responsabilizarmos e encontrarmos com o outro através do rosto. É neste sentido que a modernidade está em constante transformação. A modernidade líquida é a transformação pela transformação, as coisas se transformam, ao mesmo tempo em que se conservam. Para melhor compreender essa dinâmica, analogamente, observemos a evolução tecnológica, na qual todos os dias temos disponível um instrumento tecnológico no mercado, com novas tecnologias, ao mesmo tempo em que há uma explosão de racismo, misoginia e feminicídio. As coisas se transformam o tempo todo, porém, conservam-se.

A tecnologia avança como a velocidade da luz, mas os nossos pobres padrões sociais seguem os mesmos roteiros dos séculos passados. Assim, o mundo líquido está atrelado à impermanência, ao mesmo tempo, em que atuando em ambivalência constante com a permanência. Ou seja, a moral, a ética, a cultura, passam por processos constantes de mudanças, por outro lado, conservam e expandem diversos fatores, sejam eles, nobres ou não.

Ainda nessa direção, Han (2015) apresenta a sociedade atual mergulhada numa   cultura de positividade e narcisismo, onde tudo que é estranho, lento ou dissonante é silenciado ou invisibilizado. A hiperconectividade não significa abertura ao outro, mas retração ao diferente em nome da autorreferência. Segundo ele, há uma sutileza que ameaça os diferentes, enquanto ressuscita a uniformidade, como meio de aprisionamento.

A modernidade escolhe os contornos da sociedade atual, com proposta que parece salvadora e libertadora, colocando o sujeito como único e absoluto autor da história, movido pela emblemática proposta do poder. E quando o indivíduo percebe, diante das circunstâncias sociais, culturais e existenciais, as centenas de problemas enfrentados, muitas vezes intransponíveis, vê-se diante de si enlouquecido e frustrado, diante de uma verdade que não corresponde à vida vivida nas vielas escuras da existência humana, “a sociedade disciplinar é uma sociedade do dever” (Foucault, 1999, p. 126–135).

A sociedade do desempenho, por sua vez, é uma sociedade do poder, que “[...] produz depressivos e fracassados” (Han, 2015, p. 28). Destarte, o não-olhar se torna um gesto cotidiano e corriqueiro nas pequenas às grandes Metrópolis. O Outro que deveria nos convocar à responsabilidade é transformado em imagens opacas que camuflam e anulam a subjetividade humana.

Neste sentido, a ética levinasiana parece não resistir diante do mundo com homens sem rostos, já que suas cabeças foram arrancadas e esmagadas pela pressa, pelo cansaço e pela tela, sem rosto não há cumplicidade e nem alteridade.

 

Considerações Finais

Diante da indiferença institucionalizada e da estetização do sofrimento, resta-nos redescobrir o valor ético do olhar e do compromisso com o outro. Evidenciamos, desse modo, que o avanço das tecnologias digitais, ao promover uma estética purista e funcional, compromete a experiência ética da alteridade conforme apresentada na filosofia de Levinas (2008).

Destarte, o rosto enquanto epifania do outro, na sua nudez e pureza gera alteridade e convoca à responsabilidade, porém é substituído por interfaces que priorizam a legibilidade, controle e previsibilidade. Diante disso, o indivíduo não se vê interpelado pelo rosto do Outro, mas apenas é refletido em sistemas que reforçam sua própria imagem e desempenho, anulando a possibilidade de uma ética que transcende e inaugura a dignidade da pessoa humana através do olhar que é insubstituível e único.

Assim, o purismo tecnológico presente na humanidade líquida de Baumann (2001) não apenas redefine os modos de subjetivação, mas reconfigura um novo espaço ético, anulando o Outro e esvaziando-o de alteridade e transcendência. Desse modo, a filosofia de Levinas (2008) compreendida como proposta ética ao insistir na irredutibilidade do outro e na responsabilidade infinita, oferece um contraponto radical à lógica digital contemporânea.

Neste sentido, consideramos que cabe, portanto, à filosofia recuperar o valor da presença, da vulnerabilidade e do encontro através das relações, criando uma resistência simbólica à redução do humano a dados, funções e algoritmos. Assim, o desafio ético contemporâneo que se instaura é, enfim, reconhecer o outro fora da tela e da imagem, tornando urgente a busca pelo rosto concreto de outrem desconfigurado pela liquidez e pela pressa.

 

Referências

 

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