Filosofar como uma atividade de autoformação em Kant

To Philosophize as an activity of self-formation in Kant

    

Rodrigo Rosa

Instituto Federal de São Paulo – IFSP, São Paulo, SP, Brasil

rosa.rodrigo.a@gmail.com

 

Recebido em 17 de março de 2025

Aprovado em 10 de junho de 2025

Publicado em 17 de junho de 2025

 

 

RESUMO

O objetivo deste artigo é argumentar que a noção de filosofar de Kant é uma atividade de autoformação, condição essencial para o desenvolvimento da autonomia. Os argumentos propostos pretendem contribuir com as discussões no campo do Ensino de Filosofia, sobretudo com as questões acerca da função e do objeto do ensino de filosofia. De acordo com Kant, a atividade filosófica deve ser estritamente não-doutrinária. Ao filosofar, os indivíduos devem conceber ideias (regulativas) por si mesmo, tais representações promovem uma visão a partir da qual os indivíduos agem e se posicionam no mundo. Nesse sentido, na perspectiva kantiana, a função do ensino de filosofia é promover a autonomia dos indivíduos a partir da autoformação, a qual contribui com o pluralismo, na medida que cada indivíduo deve produzir a sua visão de mundo.

Palavras-chave: Kant; autoformação; ensino de filosofia.

    

ABSTRACT

The aim of this paper is to argue that, in Kant's philosophy, to philosophize is an activity of self-formation, an essential condition for the development of autonomy. The proposed arguments seek to contribute to discussions in the field of Philosophy Teaching, particularly regarding the function and object of teaching philosophy. According to Kant, philosophical activity must be strictly non-doctrinal. When philosophizing, individuals must conceive (regulative) ideas by themselves; such representations promote a perspective from which individuals act and position themselves in the world. In this sense, in the Kantian perspective, the function of philosophy teaching is to foster individuals' autonomy through self-formation, which, in turn, contributes to pluralism, as each individual must develop their own worldview.

Keywords: Kant; self-formation; Philosophy Teaching.

    

 

 

 

Introdução

A área de ensino de filosofia sempre se depara com duas questões fundamentais quando reflete a presença da disciplina de filosofia no Ensino Básico: 1) O que a filosofia deve ensinar? 2) Qual a função do ensino de filosofia? São questões próximas, em geral, a resposta da segunda determina a primeira. Por outro lado, é bastante comum, quando se debate essas questões, fazer referência a filosofia de Kant, seja para rejeitar ou adotar teses kantianas. Ao abordar as duas questões acima em uma perspectiva kantiana, podemos ter as seguintes respostas: Com base na famosa passagem da Crítica da Razão Pura (A 837/B 865), pode-se responder a 1ª questão afirmando que não é possível aprender a filosofia, mas apenas é possível aprender a filosofar. Se entende, nesse caso, que é necessário ensinar uma certa forma de pensar, um método ou uma habilidade. E com base na filosofia prática de Kant é possível responder a 2ª questão com a tese de que é necessário aprender a filosofar a fim de se produzir seres humanos autônomos. Embora muitos autores apontem a relação entre autonomia e a atividade de filosofar, no presente trabalho pretendemos compreender como a concepção kantiana sobre atividade filosófica se relaciona estritamente com a sua concepção de autonomia. Abordaremos a filosofia de Kant a partir dos temas e problemas concebidos no recente campo da Filosofia do Ensino de Filosofia. Pretendemos compreender três pontos fundamentais para pensarmos o ensino de filosofia na perspectiva kantiana: 1) Qual é o objeto do filosofar, ou em qual campo ocorre a prática do filosofar? 2) De que forma a atividade de filosofar está associada à noção de autonomia? 3) A autonomia promovida pela atividade filosófica é necessária para todos os seres humanos?

A partir desses pontos, pretendemos esboçar o papel da filosofia no ensino básico. Como veremos, é possível pensar uma concepção de ensino de filosofia em uma perspectiva kantiana em consonância com uma sociedade plural. Com efeito, de acordo com Kant a atividade filosófica não pode ser doutrinária, na verdade a filosofia deve promover justamente a possibilidade de se conceber visões de mundo de acordo com ideias e princípios construídos por cada indivíduo, autonomamente. Nesse sentido, filosofar é uma atividade de autoformação, é o campo em que os seres humanos podem e devem construir sua própria visão de mundo.

 

Kant e a Filosofia do Ensino de Filosofia

Os temas desenvolvidos neste artigo têm como referência a problemática pensada pelos autores da América do Sul que podem ser considerados referência no campo da Filosofia do Ensino de Filosofia. Walter Kohan, Silvio Gallo, Alejandro Cerletti entre outros têm desenvolvido e colocado os contornos das questões acerca do ensino de filosofia no ensino básico. Não faremos contrapontos às propostas desses autores com base na filosofia de Kant. Na verdade, pretendemos abordar as questões elaboradas por eles para refletirmos a partir de uma perspectiva kantiana.

Em geral, nas discussões sobre ensino de filosofia, Kant é citado no contexto da famosa dicotomia entre aprender a filosofar (atividade) e aprender filosofia (conteúdo). É bastante famosa a passagem da Crítica da Razão Pura em que Kant propõe que não é possível aprender a filosofia, mas apenas é possível aprender a filosofar (Kant, 2008, p.660). Nesse caso, pode-se entender que o ensino de filosofia deve ser orientado para o desenvolvimento de uma habilidade intelectual e formal e a história da filosofia ficaria em segundo plano, ou nem mesmo seria base para qualquer currículo de filosofia. No entanto, autores como Guilhermo Obiols (2002, p.74-77),  Cesar Augusto Ramos (2007), Luiz Fernando Barrére Martin e Patrícia Del Nero Velasco (2019)  já discutiram esse ponto e mostraram que há textos em que Kant deixa claro que é necessário recorrer à própria história da filosofia para o aprendizado do filosofar. De qualquer maneira, autores importantes da área da filosofia do ensino de filosofia consideram que ensinar a filosofar como uma atitude (Alejandro Cerletti, 2008), atividade ou experiência (Gallo, 2012) deve ser um dos principais propósitos do ensino de filosofia no ensino básico. Isto é, se considerarmos que o ensino básico não forma especialistas ou historiadores da filosofia, o papel do ensino de filosofia deve ser o de desenvolver uma atitude ou promover experiências filosóficas com os estudantes.

Gallo e Kohan entendem que a noção de filosofar kantiana se refere a uma habilidade de pensar e julgar (2000, p.179) e, de acordo com os autores, isso não responde às questões contemporâneas acerca do ensino da filosofia: “A distinção faz sentido na concepção kantiana da filosofia e concomitantemente do filosofar. Mas perde significação sem essa concepção e sem o sujeito transcendental que a fundamenta” (Gallo; Kohan, 2002, p. 183). Para os autores, a noção kantiana de filosofar está estritamente vinculada às noções da filosofia de Kant e favorece uma distinção da transmissão e produção do conhecimento, que também proporciona uma concepção de professor de filosofia como transmissor do conhecimento, ao passo que Gallo e Kohan defendem que a filosofia deve ser uma vivência partilhada por professores e alunos (2000, p.182). Com base principalmente na filosofia de Deleuze e na concepção de filosofia como criação de conceito, os autores propõem que o ensino de filosofia no ensino básico deve promover experiências de pensamento, em que as vivências compartilhadas por estudantes e professores devem marcar transversalmente suas existências (2000, p. 191).

De fato, para compreendermos a concepção kantiana de filosofar, precisamos compreender uma série de noções que pertencem à filosofia crítica. No entanto, discordamos de Gallo e Kohan em relação à concepção kantiana de filosofar. Não se trata de uma mera habilidade ou técnica que conduz o processo de produção filosófica. Acreditamos que explorar o interior da filosofia de Kant pode ser proveitoso para as discussões sobre ensino de filosofia na contemporaneidade, isto é, devemos ir além da famosa passagem sobre aprender a filosofar (KrV, A 837/B 865) e compreendermos os fundamentos propostos por Kant para a atividade filosófica.

 

O caráter não doutrinário da atividade filosófica

A famosa passagem de Kant sobre aprender a filosofar está na Arquitetônica da Razão Pura, mais especificamente na parte em que Kant busca caracterizar o conhecimento racional puro. Ou seja, o conhecimento racional é aquele que não depende de dados empíricos, mas é extraído apenas da razão. Nesse sentido há duas formas de conhecimento, “[...] um é conhecimento por conceitos ou por construção de conceitos; o primeiro chama-se filosófico e o segundo matemático” (Kant, 2008, p.660). Kant continua o texto defendendo que, diferentemente da filosofia, é possível aprender a matemática, pois os princípios matemáticos possuem um campo, a saber, a intuição pura, de modo que os conhecimentos produzidos pelo mestre, estão à disposição do aprendiz no campo da intuição sensível. Em outras palavras, as proposições matemáticas podem ser decididas a partir do campo da intuição pura, nesse caso o aprendiz aprende o conhecimento matemático a partir dos dados da intuição pura e não apenas dos ensinamentos do mestre. Dessa forma, “Entre todas as ciências racionais (a priori) só é possível, por conseguinte, aprender matemática, mas nunca a filosofia (a não ser historicamente): quanto ao que respeita à razão, apenas se pode, no máximo, aprender a filosofar” (Kant, 2008, p.660). Se considerarmos essa comparação entre o aprendizado em filosofia e em matemática, podemos inferir que não é possível aprender a filosofia, pois ela não possui um campo em que seja possível decidir se as suas proposições são verdadeiras ou falsas. Com efeito, é possível aprender historicamente a doutrina deste ou daquele filósofo, mas o aprendiz, nesse caso, apenas imita o raciocínio do mestre (Kant, 2008, p. 659-660), não tem como, a partir da sua própria razão, decidir se as proposições são verdadeiras. A concepção de Kant sobre não ser possível aprender filosofia está diretamente relacionada à tese fundamental da Crítica da Razão Pura, nomeadamente, que não é possível conhecer objetos supra-sensíveis. “Deste ponto de vista, a filosofia é a ciência da relação de todo conhecimento aos fins essenciais da razão humana (teleologia rationis humanae) e o filósofo não é um artista da razão, mas o legislador da razão humana” (Kant, 2008, p.661). A atividade filosófica busca estabelecer princípios sobre os fins essenciais da razão humana, e tais fins não são dados na experiência. Assim, a filosofia só é possível como ideia e não como ciência. Mas então por que filosofar? Por que realizar essa atividade? E se a filosofia não possui um campo, em qual domínio se realiza a atividade de filosofar? Por exemplo, a matemática ocorre na intuição pura, a física, no campo da experiência. O campo da filosofia não é acessível à razão humana. Mas, afinal, se não é possível a filosofia, por que filosofar?

O campo do filosofar

 Segundo Kant, a faculdade da razão é a responsável pela atividade filosófica, pois é a razão que busca os princípios de todo conhecimento e os fins essenciais da razão humana. Nas primeiras seções da Dialética Transcendental, Kant apresenta a concepção de racionalidade definindo o uso da razão (lógico e puro) e as ideias. O uso dialético da razão leva em direção às ideias, conceitos da razão, que transcendem a experiência. Do ponto de vista lógico, a razão é caracterizada como a faculdade lógica dos raciocínios, e como razão pura é a fonte de conceitos incondicionados (dialéticos). O emprego lógico da razão procura as condições para o conhecimento, isto é, dada uma afirmação deve se encontrar as suas condições (premissas). Por outro lado, a premissa maior está também submetida a mesma exigência da razão de encontrar as suas condições, de modo que a razão exige a procura do princípio incondicionado. A razão pura assume que dado um conhecimento condicionado, também é dada a série total das condições, isto é, o incondicionado (Kant, 2008, p.303-304). Uma ideia da razão é um conceito incondicionado que satisfaz a série total das condições. As ideias da razão são conceitos discursivos, obtidos a partir de noções, contraposto à intuição (Kant, 2008, p.313). As ideias são um tipo de conhecimento puramente discursivo, na medida que não se relacionam com nenhum tipo de intuição, são obtidas pelo processo de raciocínio lógico (dialético). Enfim, as ideias têm origem na estrutura-lógica formal do pensamento. Ideias são conceitos que não possuem nenhuma intuição correspondente. No entanto, as ideias precisam de um conteúdo. Com efeito, as ideias só podem ser pensadas a partir de analogias e metáforas. Não há espaço para desenvolvermos esta tese aqui, mas é bastante claro no Apêndice à Dialética Transcendental e na Terceira Crítica que as ideias da razão, como princípios subjetivos e reguladores, são hipóteses como se, que só podem ser concebidas a partir de analogias com o mundo sensível. Assim Kant descreve como podemos pensar a ideia de Deus:“[...] por analogia com as realidades do mundo, com as substâncias, causalidade, necessidade, terei de pensar um ser que as possua a todas na mais alta perfeição e posto que esta ideia assenta apenas na minha razão [...]” (Kant, 2008, p.555).

As ideias não se referem a objetos possíveis, mas são pensamentos sobre os fins essenciais da razão que estão em campo desconhecido, mas que podem ser expressos a partir de analogias com o mundo sensível. Enquanto a experiência possível é a

 

terra da verdade (nome aliciante), rodeada de um largo e proceloso oceano, verdadeiro domínio da aparência, onde muitos bancos de neblina e muitos gelos a ponto de derreterem, dão a ilusão de novas terras e constantemente ludibriam, com falazes esperanças, o navegante que sonha com descobertas, enredando-o em aventuras, de nunca consegue desistir nem jamais levar a cabo” (Kant, 2008, p.257).

 

O campo da filosofia é um oceano completamente desconhecido, que nunca desistimos de navegar, mas nunca encontramos novas terras. Os fins essenciais da razão transcendem a nossa capacidade de conhecer, no entanto o postulado da razão nos obriga a navegar pelo campo do desconhecido e a pensar nesses objetos. Tais pensamentos são representados não por objetos reais, mas por analogias que permitem o filósofo navegar pelo oceano desconhecido, o campo da filosofia.

Filosofar é justamente a atividade de navegar pelo desconhecido e nunca encontrar um porto, e devemos sempre nos guiar pela razão nessa atividade, só podemos nos orientar neste oceano desconhecido com os princípios subjetivos da razão. Esta é exatamente a tese que Kant propõe no opúsculo O que significa Orientar-se no Pensamento? Nesse texto, Kant propõe qual deve ser a forma adequada para atividade filosófica, isto é, como é possível pensar objetos supra-sensíveis, sem ser dogmático e sem cair no ceticismo. Ou seja, considerando a atividade de filosofar, nesta obra Kant se opõe a Mendelssohn, representante do dogmatismo e Jacobi, representante do ceticismo[i]. Mendelssohn, de acordo com Kant, defende o uso especulativo da razão a partir de uma orientação da sã razão, que pode estabelecer o conhecimento de objetos supra-sensíveis (Kant, 1993, p.41). Ou seja, a perspectiva de Mendelssohn propõe o conhecimento de objetos transcendentes. Nesse caso a atividade filosófica teria um campo e seria possível decidir, a partir da sã razão, quais princípios são verdadeiros. Trata-se justamente de uma concepção doutrinária de filosofia que Kant rejeitou na Primeira Crítica.  Já Jacobi era cético quanto à capacidade da razão. Para ele, a razão produzia apenas contradições e seus princípios não representavam o conhecimento verdadeiro. Assim, Jacobi propôs o abandono da razão e a orientação, nesse caso, seria com base em outra forma de intuição que ele chamava de fé. Jacobi representava esse abandono da razão com a ideia de um salto para um abismo. A tese de Jacobi é a negação da atividade filosófica na perspectiva de Kant, pois os fins essenciais da razão não seriam objeto de reflexão, mas apenas de sentimentos e da fé. Contra postura de Jacobi e Mendelssohn, Kant propõe que:

 

[...] somente a razão, e não um pretenso e misterioso sentido da verdade, nenhuma intuição esfuziante sob o nome de fé, na qual se possam enxertar a tradição ou a Revelação, sem a consonância da razão, mas, como firmemente e com justo fervor asseverou Mendelssohn, apenas a autêntica e pura razão humana é que, de fato, se afigura necessária e recomendável para servir de orientação; no entanto, a elevada pretensão do seu poder especulativo, sobretudo o seu aspecto puramente imperativo (por demonstração), deve decerto rejeitar-se e, na medida em que é especulativa, nada mais se lhe deve deixar do que a função de purificar o conceito da razão comum das contradições, e de defender as máximas de uma sã razão contra os seus próprios ataques sofísticos. – O conceito alargado e mais exatamente determinado do orientar-se pode ajudar-nos a expor com clareza a máxima da sã razão, nas suas adaptações ao conhecimento dos objetos supra-sensíveis (Kant, 1993, p.41).

 

Para Kant, deve-se rejeitar a pretensão especulativa que Mendelssohn atribuiu à razão, a qual, conforme a passagem, tem pretensões demonstrativas, o que podemos entender como uma alusão à maneira como o método dogmático procura provar proposições puras a priori, vale dizer, imitando o método demonstrativo axiomático da matemática. Em contrapartida, Kant rejeita o irracionalismo de Jacobi, ao propor que a razão não se orienta segundo princípios verdadeiros a priori, mas segundo a fé racional, que é a nossa única bússola para nos orientarmos no campo especulativo. Ou seja, para não ceder ao irracionalismo, Kant lança mão de um conceito de razão que atua segundo máximas puramente subjetivas. Conforme o final da passagem acima, Kant caracteriza a natureza subjetiva da razão mediante a expressão “orientar-se”.

Segundo Kant “Orientar-se, no genuíno significado da palavra, quer dizer a partir de uma dada região cósmica (uma das quatro em que dividimos o horizonte) encontrar as restantes, ou seja, o ponto inicial. Se vejo o Sol no céu e sei que agora é meio-dia, sei encontrar o Sul, o Oeste, o Norte e o Oriente” (Kant, 1993, p.41). No caso da orientação geográfica, Kant diz que para, a partir de uma dada região, encontrarmos as outras é necessário o “sentimento de uma diferença quanto ao meu próprio sujeito, a saber, a diferença entre a direita e a esquerda” (Kant, 1993, p.41). Essa diferença (entre esquerda e direita) Kant chama de sentimento, pois, segundo ele, os objetos dados na intuição exterior não apresentam nenhuma diferença entre a esquerda e a direita. Assim, a orientação é baseada num sentimento subjetivo de orientação. “Portanto, oriento-me geograficamente em todos os dados objetivos do céu só por meio de um princípio subjetivo de diferenciação [...]” (Kant, 1993, p.42). Então, o que Kant propõe é uma ampliação do termo “orientar-se” aplicando-o ao pensamento em geral, de modo teórico. Segundo Kant, “Orientar-se no pensamento em geral significa, pois, em virtude da insuficiência dos princípios objetivos da razão, determinar-se no assentimento segundo um princípio subjetivo da mesma razão” (Kant, 1993, p.43n). Ainda de acordo com Kant “Este meio subjetivo, que então ainda lhe resta, é apenas o sentimento da necessidade (Bedürfnis) da própria razão” (Kant, 1993, p.44). Tal sentimento de necessidade da razão é apenas o discernimento da sua deficiência (Kant, 1993, p.48n). A deficiência da razão é não possuir princípios objetivos incondicionados, e na falta destes a razão orienta-se mediante princípios subjetivos, isto é, as ideias regulativas da razão, apresentadas no Apêndice à Dialética Transcendental e empregada em diversas obras de Kant.

Assim, o filosofar é orientado por princípios subjetivos da razão. Se atividade filosófica fosse dogmática, o aprendiz de filosofia jamais seria autônomo e pensaria por si mesmo, já o ceticismo abre margem para superstição e para o pensamento místico. E aqui começamos a entender a necessidade do filosofar. A autonomia dos indivíduos está estritamente associada à capacidade de se orientar no oceano do desconhecido a partir da sua própria razão. Isto é, conceber os princípios da razão dogmaticamente, faz o aprendiz de filosofia apenas repetir o que o mestre pensou, por outro lado, o ceticismo leva a uma perspectiva mística do mundo. Filosofar é uma atividade essencial para quem quer se orientar e se posicionar no mundo autonomamente.

 

Ideias da razão e posicionamento no mundo

Para Kant a autonomia está estritamente vinculada à capacidade dos indivíduos se posicionarem a partir de ideias da razão. As ideias da razão não devem explicar como o mundo é, mas devem ser princípios a partir dos quais os seres humanos agem no mundo. As ideias da razão não possuem objetos correspondentes na experiência, no entanto, a partir do filosofar, os seres humanos concebem ideias que, como valores, orientam a ação e o pensamento, produzem efeitos sensíveis no domínio da experiência. Neste caso, ideias não serão representadas a partir de objetos inteligíveis, mas como valores que orientam o posicionamento dos seres humanos. No contexto da filosofia kantiana, há diversos exemplos do emprego de ideias da razão como princípios reguladores. Aqui apresentaremos alguns exemplos de como ideias caracterizam valores e orientam o posicionamento dos seres humanos.

No opúsculo Ideia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita de 1784, Kant propõe que o progresso político do homem é garantido pelo desenvolvimento dos germes contidos na espécie humana, de acordo com a intenção da Natureza (Kant, 1993, p.22). Tanto a noção de intenção da Natureza como a noção de germes que constituem a natureza humana são meras ideias da razão, a fim de explicar os fins essenciais da vida em sociedade. Neste texto de 1784 Kant propõe que a natureza humana é caracterizada “ [...] por antagonismo a sociabilidade insociável dos homens, isto é, a sua tendência para entrar em sociedade; essa tendência, porém, está unida a uma resistência universal que, incessantemente, ameaça dissolver a sociedade [...]” (Kant, 1993, p.24). Como a passagem propõe, Kant se posiciona sobre temas que caracterizam o debate antropológico moderno acerca da relação entre a natureza humana e as tensões sociais. Mas diferentemente dos filósofos modernos, Kant não propõe uma ontologia acerca das paixões humanas para explicar os conflitos sociais, mas propõe apenas uma ideia para pensarmos e nos posicionarmos sobre o destino da sociedade (se há progresso, por exemplo).

Em O Conflito das Faculdades, de 1798, podemos encontrar com clareza a tese kantiana de como as ideias expressam valores que determinam a posição dos indivíduos no mundo. Nesta obra, Kant discute o progresso político – o progresso em direção a uma constituição civil perfeita. Aqui a tese de Kant é diferente do texto Ideia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita de 1784, Kant não supõe a ideia reguladora de uma Natureza que age segundo um propósito. Na obra de 1798, a ideia de uma República Perfeita representa um valor a ser perseguido pelos seres humanos a partir de princípios subjetivos da razão, a ideia de uma República Ideal afeta os sentimentos e orienta o posicionamento dos indivíduos. Como Kant propõe, o entusiasmo desinteressado dos vários povos pela revolução francesa dá sentido à proposição a priori de que a humanidade progride para o melhor, quer dizer, o entusiasmo revela uma disposição da natureza humana em favor da ideia da constituição civil perfeita (Kant, 1986, p.103). Tal ideia representa um valor que explica as paixões despertadas nos espectadores da revolução francesa.  Kant estabelece um modelo antropológico de comportamento para explicar o entusiasmo pela revolução francesa: a ideia de uma constituição civil perfeita afeta os espectadores desinteressados e produz um sentimento, o que faz com que estes tomem o partido dos revolucionários (Kant, 1986, p.101-103). Ou seja, Kant pretende explicar o entusiasmo dos espectadores a partir da pressuposição de que a ideia de uma constituição republicana é um valor que orienta o posicionamento político dos espectadores. Conceber a ideia de uma República Perfeita, como ideal a ser perseguido, exige dos indivíduos a capacidade de abstração, e se é, como Kant propõe, uma ideia concebida autonomamente pelos sujeitos, isso só possível a partir de reflexões filosóficas. Nesse sentido, para se tomar partido da perspectiva republicana é necessário filosofar.   Evidentemente as pessoas podem tomar partido de ideais sem filosofar, apenas de maneira heterônoma, seguindo ideias dogmáticas ou místicas. Mas se o posicionamento político é derivado de princípios da razão, concebidos pelo indivíduo, então foi necessário navegar pelo oceano desconhecido da filosofia.

Em Opus Postumum, Kant apresenta a ideia de Deus como produzida por valores adotados por homens livres. Ao filosofar, homens livres concebem a ideia de Deus a fim de representar o seu posicionamento moral.  O homem determina o significado da ideia de Deus segundo o ponto de vista dos seus valores. Para Kant, o homem livre deve adotar o seguinte ponto de vista sobre Deus: “Há um Deus, a saber, na razão moral prática humana, como determinação das ações no conhecimento dos deveres humanos como se fossem comandos divinos – “nós somos originariamente uma raça divina” com respeito à nossa vocação e disposições” (Kant, 1999, p. 233-234). De acordo com essa passagem, assumir deveres como comandos divinos significa que a humanidade tem vocação e disposição para se constituir como uma raça divina. Do ponto de vista (valores) do homem submetido à lei moral, Deus é a expressão ampliada do dever, ou um ponto de vista que coloca o homem como pertencente a uma raça divina. Neste caso, a ideia de Deus é um modo de avaliar os objetivos da espécie humana, fazer tal avaliação é uma atividade filosófica. Em outra passagem significativa do Opus Postumum, Kant diz o seguinte:

 

Há dois modos no qual os homens postulam a existência de Deus; eles dizem algumas vezes: existe um juiz divino e vingador, pois a vilania e o crime requerem a extinção dessa raça repugnante. O outro modo [de postular], a razão pensa em um empreendimento do qual o homem é capaz – ser capaz de colocar a si mesmo na mais alta classe, a saber, aquela dos seres autônomos (através da razão moral prática), e elevar-se a si mesmo acima de todos seres meramente sensíveis (e ele tem vocação para fazer isso); ele é um tal ser, não apenas hipoteticamente, mas está destinado a entrar naquele estado, de ser o originador (criador) da sua própria posição (Kant, 1999, p.201).

 

A passagem é clara: os homens podem construir modelos distintos para representar a noção de Deus. Podemos assumir a noção de Deus como um juiz vingador, o que explica a representação da espécie humana como decadente, ao passo que podemos pensar Deus como uma forma de representar o homem como ser livre que se autoposiciona. A ideia de Deus tem a função de explicar duas maneiras de se conceber a natureza, e o destino humano na terra. Ou seja, a ideia Deus tem o objetivo de caracterizar a forma como o homem se enxerga no mundo, quais valores adota como base das suas ações. Ao conceber filosoficamente a ideia de Deus, os homens têm clareza sobre seus valores e propósitos no mundo, isto é, filosofar sobre Deus permite se posicionar autonomamente no mundo.

Propomos que Kant tenha desenvolvido uma concepção de orientação racional em que a atividade filosófica é fundamental. Em Opus Postumum e nas obras tardias isto é bastante claro. Essa concepção de racionalidade fica mais clara na medida em que Kant apresenta uma concepção pragmática de natureza humana na década de 1790.[ii] Nesta perspectiva de racionalidade, as ideias representam fins exequíveis segundo a natureza humana, neste caso as ideias são representadas como valores constituídos pelo homem. Defendemos que Kant assume que as ideias devem ser caracterizadas como valores que conduzem o comportamento do homem, ou dão sentido a este. Neste caso, as ideias deixam designar objetos metafísicos e passam a expressar valores concebidos por homens como habitantes da terra. Assim, filosofar sobre os fins essenciais da razão é uma atividade fundamental para todos os seres humanos não só para navegarem pelo oceano desconhecido, mas para se posicionarem na terra. Como Kant expressa em O Conflito das Faculdades, a natureza humana é a capacidade “[...] de realizar fins pelas suas próprias forças” (Kant, 1986, p.51). Tais fins só podem ser concebidos pela atividade filosofar.

Com base nesta perspectiva de racionalidade em Kant, assumimos que filosofar representa a capacidade de autoformação dos seres humanos[iii]. Como Kant expressa em Opus Postumum: as ideias representam o modo como o homem pode ser originador da sua posição no mundo (Kant, 1999, p.245), isto é, as ideias expressam o que o homem pode ou deve fazer de si mesmo. As ideias permitem ao homem assumir um ponto de vista sobre si mesmo e sobre o mundo. Neste caso, o homem “[...] como habitante do mundo, constrói uma visão de mundo [weltbeschauung] na ideia” (Kant, 1999, p.235). A autoformação dos seres humanos a partir de ideias produz uma visão de mundo a partir da qual os indivíduos agem e se posicionam no mundo.  Aqui podemos contrapor a autoformação promovida pelo filosofar de uma formação doutrinária ou de um posicionamento baseado em uma perspectiva mística. Uma formação doutrinária dirige os indivíduos a assumir certos valores e princípios como dados, nesse caso os seres humanos são moldados com base em ideias impostas, seja pela tradição, ou por uma formação escolar. Numa perspectiva escolar, os estudantes devem assumir os princípios e valores abordados no ensino sem questionamento (como postulados e axiomas matemáticos), de modo que apenas aprendem a ver o mundo como o mestre ou Estado propõem. Por outro lado, ver o mundo a partir de uma perspectiva mística é a justa negação da atividade filosófica, nessa perspectiva os valores e princípios são concebidos puramente a partir de sentimentos. Os indivíduos estariam sujeitos às volatilidades das paixões e sentimentos. Por outro lado, filosofar exige que construamos conceitos ou ideias para representar os fundamentos racionais da nossa visão de mundo. Aprender a filosofar é justamente aprender a conceber valores e princípios que constituem o estudante, uma autoconstrução de si.

 

Filosofar no Ensino Básico

Dada a interpretação acima da noção de filosofar kantiana, podemos assumir duas conclusões que podem contribuir para as reflexões acerca da filosofia no ensino básico: 1) A atividade filosófica e seu ensino devem ser, pela natureza do filosofar, não doutrinárias e 2) filosofar não é uma atividade restrita à uma pequena comunidade de intelectuais, filosofar é uma condição fundamental para o desenvolvimento da autonomia, uma vez que todos os seres humanos podem e devem refletir filosoficamente sobre os pressupostos das suas visões de mundo, vale dizer, ser autônomo supõe conceber os pressupostos que guiam seu posicionamento no mundo.

Se considerarmos o debate contemporâneo acerca da presença da filosofia no ensino básico, as duas conclusões apontam para uma justificativa da presença da filosofia no ensino básico e também indicam o que deve ser ensinado na disciplina de filosofia. Aqui vale a pena cotejarmos a nossa interpretação do filosofar kantiano com a proposta de Walter Kohan de ensino de Filosofia, que em O Ensino de Filosofia Frente à Educação como Formação propõe que a filosofia no ensino básico deva ter um caráter não formativo. De acordo com Kohan, a educação e a filosofia são marcadas fortemente por modelos formativos, em que a educação tem em vista moldar a infância segundo pressupostos de uma utopia: “A filosofia tem sido ensinada, basicamente, para formar pessoas, para fazer algo de alguém. Esta estratégia supõe a ideia de infância ligada à maleabilidade, à ausência de forma e à consequente necessidade de ser informada” (Kohan, 2003, p.44). Kohan propõe que desde Platão a utopia tem dirigido o pensamento dos filósofos e sendo base para a proposição da educação (2003, p.46). Como alternativa, Kohan propõe o modelo de filosofia socrática para uma concepção de ensino de filosofia não-formativa. Sócrates é o filósofo da aporia, que propõe sempre uma experiência de problematização sobre valores e conceitos, antes do que uma doutrina filosófica (2003, p.46).

Propomos que a partir de Kant podemos conceber uma proposta de ensino de filosofia que seja autoformativa. Como vimos, para Kant a atividade filosófica deve ser por natureza não doutrinária, nesse sentido o ensino de filosofia não deve impor um modelo de formação e nem de ideais que devem ser perseguidos por uma formação filosófica. Não existe a filosofia que deva ser ensinada e que possa ser base de uma formação humana[iv]. Por outro lado, o propósito do aprender a filosofar é justamente que, cada estudante, a partir de sua própria experiência e uso do pensamento filosófico, conceba os princípios que o permitam navegar no oceano desconhecido da filosofia.  A filosofia não pode ser um exercício doutrinário. O filosofar não estabelece a moldura de um tipo de cidadão, mas é uma atividade fundamental para a noção de emancipação kantiana. Não, se trata de uma mera emancipação política, mas emancipação no modo de pensar e agir no mundo. Como Kant enuncia várias vezes no primeiro fascículo do Opus Postumum, as ideias, objeto do filosofar, são produtos do homem enquanto habitante do mundo no qual ele opera (Kant, 1999, p.240-254).

A presente interpretação da noção de filosofar de Kant permite pensar o ensino de filosofia como o espaço que fomenta a pluralidade de visões de mundo, pois aprender filosofar envolve questionar os valores e crenças aprendidos heteronomamente e conceber princípios e valores por si mesmo. Ou seja, a principal função do ensino de filosofia é que o estudante compreenda que não há uma teoria definitiva sobre o que é o mundo, o que é o ser humano, ou sobre o sentido da nossa existência. E as respostas a essas questões devem ser buscadas pelo próprio estudante, não em outra fonte externa ao seu pensamento, para que possa se posicionar e agir no mundo com base em sua própria visão de mundo. 

 

Considerações finais

O filosofar é fundamental para a concepção de autonomia de Kant. Ser autônomo implica necessariamente na capacidade de conceber uma visão de mundo a partir de ideias filosoficamente concebidas. A autonomia supõe, portanto, a capacidade de se autoconstituir a partir de ideias da razão; aprender a filosofar é uma atividade de autoformação, em que os seres humanos podem e devem navegar pelo oceano da filosofia para adquirir uma visão de mundo autônoma. As ideias regulativas, a partir das quais é possível filosofar, representam posicionamentos e formas de enxergar o mundo. Certamente, a atividade de filosofar não deverá produzir nenhum consenso doutrinário, pelo contrário, a atividade filosófica promove a pluralidade de formas de se conceber racionalmente os problemas que transcendem à experiência. Nessa perspectiva, o ensino de filosofia, em uma perspectiva kantiana, não tem a função de prover os estudantes com conteúdos ou habilidades específicas, mas de conduzi-los a produzirem conteúdos e habilidades por si mesmos, através da atividade de filosofar.

 

Referências

 

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MARTIN, Fernando Barrére; VELASCO, Patrícia Del Nero. Filosofia e método em Kant: para além da dicotomia entre aprender filosofia e aprender a filosofar, In: Ensino de – qual? – filosofia : ensaios a contrapelo. VELASCO, Patrícia Del Nero, organizadora. – Marília : Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura Acadêmica, 2019, p. 139-162.

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[i] A oposição entre Moses Mendelssohn e Friedrich Heinrich Jacobi faz parte da famosa disputa sobre o panteísmo (Pantheismusstreit) no final do século XVIII. Bem entendido, trata-se de um debate entre românticos e iluministas sobre limites da razão.

[ii] Kant, em seus escritos tardios, concebe uma antropologia que visa explicitar o domínio de aplicação dos princípios a priori. Esta é a tese de Loparic, segundo a qual a antropologia pragmática abarca todos os domínios em que o homem pode agir segundo representações a priori.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                Como Loparic bem define, trata-se de uma “teoria não fisiológica e portanto não naturalista da natureza humana” (Loparic, 2003, p.9). Sendo assim, “ [...] o objeto da antropologia pragmática é, portanto o homem ou a natureza humana compreendida como conjunto de condições subjetivas – faculdades, predisposições, propensões, tendências, caráter – favoráveis ou desfavoráveis para a execução de regras tanto teóricas como práticas” (Loparic, 2007, p.86).

[iii] Ricardo Machado Santos (2015) apresenta de forma bastante clara como o Kant tardio concebeu a noção de autoformação a partir de ideias da razão. 

[iv] Não pertence ao escopo deste trabalho discutir como é possível ensinar a filosofar. Mas temos pistas para pensarmos uma metodologia de ensino numa perspectiva kantiana. Certamente os problemas filosóficos concebidos ao longo da história da filosofia devem ser uma das bases do ensino, como já apontamos acima, há passagens claras em que Kant aponta a necessidade do diálogo com filósofos para aprendizagem do filosofar, no Manual de Lógica. Por outro lado, é necessário que os estudantes concebam princípios subjetivos por si mesmo. Como vimos, as ideias regulativas só podem ser concebidas a partir de analogias. A construção de uma visão de mundo a partir de ideias supõe, necessariamente, produzir analogias que permitam o estudante navegar pelo oceano desconhecido da filosofia. Assim, tanto para o professor apresentar conceitos filosóficos, como para o estudante pensar por si mesmo ideias filosóficas, é necessário o emprego de analogias e metáforas.  Nesse sentido a aula de filosofia pode ser permeada pelo emprego de analogias e metáforas. E não se trata apenas de mera sensibilização ( no sentido de mobilizar os estudantes), mas no sentido de ser a forma como podemos expressar temas filosóficos. As representações artísticas, as interações interdisciplinares, a construção de exemplares são elementos fundamentais na aula de filosofia. Seja a partir da exposição do professor, ou pela atividade dos estudantes. Claro, tal concepção metodológica precisa ser melhor desenvolvida, aqui sugerimos apenas um esboço.