Filosofar no Ensino Médio como experiência de humanização e olhar crítico para a sociedade
Philosophizing in High School as an experience of humanization and a critical perspective on society
Secretaria de Educação do Paraná e Universidade Estadual do Norte do Paraná, Jacarezinho – PR, Brasil.
Secretaria de Educação do Paraná, Wenceslau Braz – PR, Brasil.
Recebido em 12 de fevereiro de 2025
Aprovado em 29 de outubro de 2025
Publicado em 24 de novembro de 2025
RESUMO
Neste artigo, objetiva-se discutir o ensino de filosofia no Ensino Médio como um momento oportuno para que o estudante possa humanizar-se e conscientizar-se de sua dimensão política na sociedade. Trata-se de uma revisão bibliográfica de autores que convergem para uma leitura do ensino de filosofia como uma experiência que se relaciona diretamente com a vida das pessoas em seu cotidiano, superando uma visão enciclopédica de filosofia e de educação. Os resultados indicam que a redução da carga horária de filosofia (assim como de outras disciplinas das Ciências Humanas) impactou diretamente o desenvolvimento da área. Ademais, conclui-se que a filosofia pode contribuir significativamente para a humanização e para o desenvolvimento de um olhar crítico, essencial para interpretar as situações cotidianas da sociedade.
Palavras-chave: Filosofar; Experiência filosófica; Humanização; Criticidade.
ABSTRACT
This article aims to discuss the teaching of philosophy in High School as an opportune moment for students to humanize themselves and become aware of their political role in society. It is a bibliographic review of authors who converge on the view of philosophy teaching as an experience directly related to people’s everyday lives, moving beyond an encyclopedic view of philosophy and education. The results indicate that the reduction of philosophy teaching hours (as well as those of other disciplines in the Humanities) has directly impacted the development of the field. Furthermore, it concludes that philosophy can significantly contribute to humanization and the development of a critical perspective, essential for interpreting everyday situations in society.
Keywords: Philosophizing; Philosophical experience; Humanization; Critical thinking.
Introdução
Se entendermos que a Filosofia oferece alguma contribuição para a superação da barbárie, da opressão, da dominação, da desumanização, esta contribuição está em seu compromisso de desvelar esta realidade opressora, em apontar seus limites e pilares, em colaborar para a formação, em sentido amplo, de uma nova cultura, nova educação, fazendo a crítica da economia e da política, problematizando a ética que as constitui, para repensar o processo de construção do conhecimento e da racionalidade que o sustenta (Horn, 2009, p. 49).
À luz da epígrafe deste artigo, vemos que Horn (2009) nos oferece uma reflexão sobre a importância da filosofia como força motriz para operar transformações efetivas na sociedade, contribuindo para o processo humanizador. A partir da experiência filosófica, que vai muito além do simples contato enciclopédico com a filosofia, defendemos um ensino que dialogue com o cotidiano do aluno, buscando sua emancipação. É nessa experiência do filosofar que se abre espaço para que o estudante de filosofia do Ensino Médio crie conceitos de maneira crítica ao observar a sociedade.
Diante dessa contextualização inicial, nosso problema de pesquisa se delineia a partir da seguinte questão: Quais as características de uma metodologia de ensino de filosofia no Ensino Médio que contribua para que o estudante tenha uma experiência crítica, que desencadeie nele um processo de humanização? A escolha dessa temática se justifica porque vivemos imersos em situações de desumanização, especialmente com o advento das tecnologias e do discurso — e prática — de que os próprios professores podem ser substituídos por inteligências artificiais. Não pretendemos ser retrógrados ao defender a rejeição das tecnologias, mas acreditamos que não podemos prescindir da humanização, da sensibilidade e do afeto no âmbito escolar, para que as futuras gerações sejam sensíveis não apenas ao progresso científico, mas também à necessária sensibilidade humana.
Na próxima seção deste artigo, apresentamos reflexões sobre o conceito de filosofia e a compreensão de que o filosofar é, antes de tudo, um problema filosófico, mais do que meramente pedagógico. Defendemos que ensinar filosofia deve ser compreendido como um problema filosófico, enfatizando a necessidade de uma experiência filosófica que supere todo e qualquer enciclopedismo, o qual limita a filosofia a um sistema de ideias e não a vincula a uma oficina de conceitos. Em seguida, discorremos sobre possíveis princípios epistemológicos e metodológicos para pensar o ensino de filosofia de maneira a promover a emancipação humana, contribuindo para a humanização e superando visões reducionistas desse ensino. Apontamos, ainda, para uma possível contribuição de Paulo Freire ao se pensar um ensino de filosofia humanizador, partindo do princípio de uma educação que não seja bancária, mas, sim, libertadora.
Filosofias e experiência do filosofar
Indubitavelmente, o conceito de filosofia que adotarmos influenciará diretamente nossa compreensão e abordagem dessa disciplina. É certo, por exemplo, que o ensino de filosofia promovido pelos jesuítas no Brasil Colônia tinha seu mérito, mas estava intrinsecamente ligado a um objetivo de catequização. Como tal, implicava doutrinação. Nesse sentido, é fundamental considerarmos que uma característica essencial de um ensino de filosofia humanizador é respeitar a subjetividade do estudante, convidando-o a pensar por si mesmo e rejeitando toda e qualquer forma de doutrinação.
Se a filosofia não é doutrinação, tampouco se limita à defesa de um ceticismo absoluto; ela é, antes, uma postura de interrogação que busca avançar nas perguntas, oferecendo respostas não definitivas, mas suficientemente esclarecedoras para ajudar na compreensão da existência. Defendemos, neste artigo, um ensino de filosofia que tenha como meta a humanização, possibilitando ao estudante do Ensino Médio um olhar crítico para a realidade que o cerca. No entanto, qual seria o caminho metodológico para tal empreendimento? Antes de tudo, sustentamos a ideia de um ensino de filosofia entendido como uma experiência filosófica. Isso significa propor um ensino que busque contribuir, de todas as formas, para a vivência do filosofar no cotidiano, superando uma abordagem meramente memorizadora.
Conceitualmente, ao longo da história do pensamento, identificamos diversas definições de filosofia. Contudo, o que nos move neste artigo é a compreensão de que, embora não seja a única, se alinha de maneira especial a uma proposta metodológica de ensinar filosofia como experiência filosófica. Nesse sentido, tomamos como referência a definição de Deleuze e Guattari (2010, p. 11):
O filósofo é o amigo do conceito, ele é conceito em potência. Quer dizer que a filosofia não é uma simples arte de formar, de inventar conceitos ou de fabricar conceitos, pois os conceitos não são necessariamente formas, achados ou produtos. A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos. O amigo seria o amigo de suas próprias criações? Ou então é o ato do conceito que remete à potência do amigo, na unidade do criador e de seu duplo? Criar conceitos sempre novos é o objeto da filosofia. É porque o conceito deve ser criado que ele remete ao filósofo como àquele que o tem em potência, ou que tem sua potência e sua competência.
Pensar a filosofia como criação de conceitos nos permite enxergar a aula de filosofia como uma verdadeira oficina de conceitos, onde se realizam experimentos do filosofar. Nesse contexto, não é o conteúdo assimilado que está em jogo, mas, sim, as vivências e as experiências do filosofar que se tornam centrais. Conceituar, a nosso ver, é algo próprio do ser humano. Os animais vivem de maneira instintiva, sem elaborar significações transcendentes sobre o mundo material (ao menos sob a perspectiva antropocêntrica), enquanto nós, seres humanos, temos o potencial de atribuir sentido e significado à vida, à existência e às relações interpessoais.
Nietzsche (1978), entre suas diversas críticas à cultura ocidental, denuncia a filosofia de seu tempo por ser excessivamente enciclopédica e por não dialogar com a existência. De maneira análoga, entende-se que o contexto brasileiro sofreu um grande impacto com o advento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que reduziu, em muitos estados, a carga horária das disciplinas de Humanas. Esse cenário acarreta o risco de condensar, em um único ano, todo o conteúdo que anteriormente era trabalhado ao longo de três anos no Ensino Médio. Em consequência, o ensino de filosofia pode se tornar ainda mais enciclopédico, priorizando a transmissão de conteúdos em detrimento do exercício do filosofar.
Nesse contexto, pensar em metodologias de ensino de filosofia deve ser visto muito mais como um problema filosófico do que como uma característica pedagógica do ato de ensinar filosofia. É necessário problematizar filosoficamente o ensino de filosofia, o que pressupõe reflexões tanto sobre a própria filosofia quanto sobre o processo contínuo de filosofar. Se consideramos um ensino de filosofia na Educação Básica que seja humanizador e contribua para uma visão crítica da sociedade, é de grande relevância buscarmos, das mais diversas formas, um exercício do filosofar que seja emancipador e carregado de uma sensibilidade humanizadora. Assim, os alunos do Ensino Médio não concluiriam o curso apenas com conhecimentos filosóficos, mas também com uma práxis de sensibilidade em relação ao humano e uma vivência democrática que permita a convivência com o diferente, sem perder sua identidade, mantendo seus princípios e valores.
Cerletti (2009, p. 63) defende que a necessidade de “[...] converter a questão ‘ensinar filosofia’ em um problema filosófico modifica também a sequência tradicional da didática da filosofia, que privilegia o ‘como’ ensinar, para colocar, então, em primeiro lugar, a análise do ‘que’ ensinar”. Sendo a filosofia um exercício de criação conceitual, torna-se essencial que a sala de aula de filosofia no Ensino Médio se transforme em um laboratório de experiências do filosofar. Nessa perspectiva, é fundamental encontrar um equilíbrio no ensino da história da filosofia. Quando a desvalorizamos, a filosofia pode se reduzir a um diálogo superficial sobre situações oriundas do senso comum, sem uma problematização filosófica. No entanto, ao supervalorizá-la, corremos o risco de tornar o ensino de filosofia excessivamente enciclopédico.
Pensando no exercício do filosofar em sala de aula, é indispensável utilizar textos dos próprios filósofos como base. A partir de fragmentos selecionados, os alunos exercitam a exegese (interpretação e análise detalhada de um texto) e a compreensão, sendo, posteriormente, guiados a refletir sobre problemas atuais da sociedade à luz desses textos. Vale destacarmos que, em uma visão de experiência filosófica, não existe uma resposta única e definitiva a ser dada pelos alunos para determinada problemática. Ao contrário, diversas respostas são possíveis e, com seu caráter emancipador, podem contribuir significativamente para uma prática humanizadora e para a vivência da criticidade.
Há um polo objetivo na dinâmica do ensino de filosofia, mas também existe um polo subjetivo, relacionado ao fato de que a experiência filosófica é profundamente pessoal e subjetiva. Conforme afirma Cerletti (2009, p. 810):
Filosofar depende, em última instância, de uma decisão subjetiva, e não apenas em relação ao querer ser filósofo, mas porque supõe colocar em ato um pensamento e isto implica a novidade de quem o tenta. Não há planejamento de aula que possa dar conta da irrupção do pensamento do outro. Esse traço do ensino de filosofia não deve ser tomado como uma debilidade pedagógica, mas, pelo contrário, como uma fortaleza filosófica, já que constitui o momento em que, a partir da emergência de algo diferente, pode-se quebrar a [sua] repetição [...].
É válido ressaltarmos a dimensão do filosofar como um exercício da criticidade. Em um contexto interdisciplinar, no qual todas as disciplinas colaboram para o pensar filosófico, a filosofia pode contribuir para a vivência prática da criticidade. Observando como os filósofos da tradição foram críticos diante das situações históricas e do cotidiano, os alunos do Ensino Médio também têm a oportunidade de refletir conceitualmente sobre seus dilemas e desafios, pensando criticamente em situações que ocupam seu cotidiano na atualidade.
Carrilho (1987) aponta que a filosofia é sempre uma forma de ver o mundo em sua pluralidade, e não de maneira dogmática. Para esse filósofo português, é de grande importância considerar a aula de filosofia como um laboratório de pensamento, onde os alunos realizam experimentos. Nesse sentido, é fundamental que o professor de filosofia tenha vivenciado experiências de filosofar antes de mediar essa vivência junto aos alunos. Quando a aula de filosofia, conforme Carrilho (1987), é conduzida como um laboratório de conhecimento, possibilita-se que os estudantes experimentem o processo filosófico e desenvolvam conceitos novos. Esse processo é, em outras palavras, a capacidade de enxergar o mundo sob diferentes perspectivas, para além do que é óbvio.
Carrilho (1990) apresenta a filosofia como uma forma de olhar para o mundo com um olhar não dogmático, mas problematizador:
A filosofia é sobretudo uma das formas que pode tomar o interesse pelo conhecimento do mundo, tomando estas três palavras no seu sentido mais lato, de modo a acolher a diversidade dos interesses, a variedade das formas do conhecimento e a multiplicidade dos fenômenos e acontecimentos do mundo. [...]. Direi que o valor e o interesse da filosofia decorrem do seu poder de aumentar a nossa inteligibilidade do mundo, e que ele o faz através de uma atividade de problematização, de tratamento de problemas filosóficos, isto é, de problemas que não têm, no sentido estrito do termo, soluções, mas respostas, que mais não são que tematizações dos próprios problemas (Carrilho, 1990, p. 23-24).
Esse olhar problematizador da realidade contribui para que a filosofia seja humanizadora e potencialize a criticidade dos estudantes. Potencializar a criticidade é essencial em uma sociedade frequentemente marcada pela massificação e pela valorização de uma cultura do efêmero em diversas perspectivas. Humanizar é um exercício paradoxal, mas necessário, especialmente em uma sociedade frequentemente hiperconectada a telas e, ao mesmo tempo, desconectada das relações humanas, nas quais a proximidade e o valor do contato humano deveriam ser experimentados.
Em uma perspectiva de exercício da criticidade, a dinâmica da avaliação no ensino de filosofia também precisa ser repensada, em coerência com o filosofar por conceitos, entendido como um laboratório conceitual. Em vez de cobrar apenas conhecimentos históricos da filosofia, a avaliação deve oferecer um espaço em que o estudante tenha a oportunidade de dissertar sobre sua cosmovisão a respeito de determinado problema filosófico. Além disso, a avaliação deve ser concebida mais como um momento de aprendizagem do que como um instrumento de punição ou de classificação dos estudantes.
Outro aspecto relevante é o potencial da filosofia para contribuir com esforços interdisciplinares no ensino como um todo. Desde seus primórdios, a filosofia valoriza a interdisciplinaridade e questiona a segmentação limitada dos conhecimentos. Nesse contexto, ela pode desempenhar um papel significativo ao colaborar em projetos e atividades interdisciplinares, unindo saberes diversos de diferentes disciplinas em prol da emancipação humana e do desenvolvimento humano e cultural das futuras gerações.
De um filosofar “bancário” para um filosofar emancipador
Nesta seção, propomo-nos refletir sobre a necessidade de um ensino de filosofia que vá além do enciclopedismo, sendo validado como uma experiência filosófica. Por experiência filosófica, entendemos um ensino que não se limite à memorização de sistemas filosóficos, mas que permita aos alunos experimentarem o filosofar por meio da criação de conceitos, ideias e afetos. Nos dizeres de Gabriel (2022, p. 28),
[...] a experiência filosófica é um processo vivo em que os pensamentos dos filósofos da tradição são novamente recriados e assumem novas perspectivas. E um dos elementos importantes no ensino de Filosofia é despertar para a autonomia; sem autonomia não é possível pensar por si mesmo e nem vislumbrar os horizontes da experiência filosófica.
Assim, compreendemos que um ensino emancipador deve necessariamente convidar os alunos ao exercício da autonomia e do pensar por si mesmos, superando visões meramente enciclopédicas. O enciclopedismo, embora tenha seu valor, não é suficiente. O filosofar, como defendemos metodologicamente, deve transcender o simples conhecimento de sistemas filosóficos, permitindo que os estudantes vivenciem a criação de conceitos e reflitam sobre o valor de seus próprios valores, bem como sobre aquilo que consideram mais importante em suas vidas.
Evidentemente, isso não exclui a importância e a necessidade da história da filosofia. É possível assumir que a filosofia, como caminho de busca ou estudo da tradição filosófica, não se exclui mutuamente; ambas as abordagens podem agregar elementos valiosos ao ensino. A história da filosofia tem o potencial de despertar o interesse por questões filosóficas ao possibilitar o contato com as obras dos grandes pensadores que as formularam. A forma como esses pensadores abordaram os temas pode servir como fonte de inspiração para nossa própria jornada, mesmo que de maneira crítica (Favaretto, 2008).
Nas palavras de Gallo (2013, p. 57), sobre a configuração da sala de aula como uma oficina de conceitos:
A aula de Filosofia precisa ser vista como uma “oficina de conceitos” e nunca uma sala de museu, na qual se contemplem conceitos criados há muito tempo e que são vistos como meras curiosidades. Deve-se, sim, atuar como um meio de trabalho em que os conceitos se ofereçam como ferramentas manipuláveis, como um laboratório em que se permita e ofereça condições e meios para experiências e experimentações de acordo com os conceitos de que esse estudante se apropria.
Quando a sala de aula é entendida como uma oficina de conceitos, ela pode contribuir para superar uma educação filosófica de caráter bancário. A educação bancária foi criticada pelo educador Paulo Freire, que, como patrono da educação brasileira, defende a superação de toda prática educacional que se limite a depositar conhecimentos na mente dos alunos para, posteriormente, recolhê-los de forma mecanizada (Freire, 2016).
Para Paulo Freire (2021), a educação deve ser humanizadora e transformar a realidade daqueles que a recebem. Analogamente, podemos pensar na superação de um ensino filosófico bancário. O itinerário final, segundo Freire (2021), é a busca pela autonomia, em que o professor não transmite conhecimentos prontos e acabados para serem memorizados pelos alunos, mas, ao contrário, auxilia-os na formulação de seus próprios conceitos e na leitura crítica da existência humana.
Freire (2016) teve uma experiência extremamente exitosa em Angicos, onde alfabetizou 300 adultos em 40 dias utilizando seu “método” de alfabetização voltado para a realidade de seus educandos. Ele não gostava da expressão “método”, termo que aqui utilizamos apenas de maneira didática para indicar um procedimento por meio do qual ele buscava ensinar. Paulo Freire propunha um ensino significativo, que tivesse relevância na vida de seus estudantes. Assim, o educador defendia um ensino que superasse toda forma de enciclopedismo. Para Freire (2021), alfabetizar não era apenas decodificar símbolos, mas uma forma de “ler” a existência humana.
Nesse sentido, conforme Freire (2021), filosofar não é apenas ler os filósofos e falar sobre eles, mas também usar o conhecimento e a experiência filosófica para dar sentido à própria vida e existência. É um processo de ressignificação da existência. Sua contribuição é especialmente relevante na medida em que, por meio de palavras geradoras, ele incentivava os educadores a não utilizarem, no ensino da alfabetização, palavras prontas e descontextualizadas, mas, sim, aquelas que fossem significativas para a vida dos educandos, promovendo, assim, a emancipação humana.
Nas palavras de Freire (2016, p. 145) sobre a superação de estruturas desumanizadoras:
O projeto revolucionário conduz a uma luta contra as estruturas opressoras e desumanizadoras. Uma vez que ele busca a afirmação de homens concretos que se libertam, toda concessão irrefletida aos métodos do opressor representa sempre um perigo e uma ameaça ao projeto revolucionário. Os próprios revolucionários devem exigir de si mesmos uma coerência muito forte. [...]. A conscientização é mais que uma simples tomada de consciência, pressupondo ao mesmo tempo a superação “da falsa consciência”, ou seja, de um estado de consciência semi-intransitviva ou transitivo-ingênua e uma melhor inserção crítica da pessoa conscientizada numa realidade desmitificada.
Nesse contexto, o ensino de filosofia, sob uma perspectiva freireana, pode ser um espaço privilegiado para o exercício do filosofar que possibilite a conscientização das condições humanas em que professor e alunos estão inseridos. Como afirma Freire (2016), o grande desafio da educação é criar condições para que os oprimidos não sonhem em ser opressores. Indubitavelmente, o pensar por conceitos e a operacionalização da aula de filosofia como um laboratório do pensamento podem contribuir significativamente para a conscientização e para o combate às estruturas que desrespeitam a dignidade humana.
Pensando em passos didáticos que podem ser seguidos em uma sala de aula de filosofia para promover a humanização e o desenvolvimento do espírito crítico, apresentamos os seguintes elementos, que não precisam ser lineares:
a) Leitura de um fragmento de texto filosófico: trata-se de um momento inicial de leitura, cujo objetivo é conhecer o que determinado filósofo sonhou e buscou concretizar em sua vida.
b) Exegese do texto do filósofo: com a mediação do professor, os alunos analisam o texto do ponto de vista do contexto histórico e filosófico, refletindo sobre o significado das afirmações do autor.
c) Diálogo com a realidade atual: momento que pode ser trabalhado, em algumas ocasiões, em grupos, no qual os alunos contextualizam o texto do filósofo em relação aos dias de hoje, explorando como as ideias do autor poderiam contribuir para compreender as transformações que a sociedade vivencia.
d) Produção de conceitos filosóficos: etapa culminante, em que os alunos são convidados a escrever parágrafos sobre a questão estudada, propiciando uma experiência de pensar por conceitos. Essa etapa permite exercitar o pensamento e, por meio da produção textual, comunicar os resultados das reflexões realizadas na oficina de conceitos.
Freire (2023) pontua algo essencial no processo histórico de produção conceitual: a convivência democrática entre aqueles que são diferentes. Respeitar as diferenças é fundamental para a vida em sociedade e para a consolidação de uma democracia que, ao mesmo tempo, preserva as convicções individuais. Nesse contexto interdisciplinar, a filosofia pode contribuir para a construção de uma visão de sociedade que respeite as diferenças. A democracia fundamenta-se no respeito às diferenças, mas sem que isso implique a renúncia às próprias convicções. Segundo Freire (2023, p. 49):
As convicções devem ser profundas, porém nunca impostas aos demais; através do diálogo se tratará de convencer com o amor; o contrário será sectarismo. O sectarismo não é crítica, não ama, não dialoga, não comunica, não faz comunicados. No processo histórico, os sectários comportam-se como inimigos; consideram-se donos da história. O sectarismo pretende conquistar o poder com as massas, mas estas depois não participam do poder. Para que haja revolução das massas é necessário que estas participem do poder.
A filosofia, à luz de Freire (2023), pode fomentar uma atitude de abertura ao diálogo com aqueles que pensam de forma diferente. Dialogar não significa abandonar as próprias convicções, mas abrir-se ao outro com reverência e respeito, compreendendo sua visão de mundo e seu modo de interpretar-se como ser político na sociedade.
Nessa perspectiva, é fundamental reconhecer o legado de Paulo Freire ao pensar uma proposta de ensino de filosofia que, além de transmitir conhecimentos teóricos e filosóficos, incentive os estudantes a refletirem por si próprios, elaborando conceitos próprios e respeitando a alteridade. Oxalá o ensino de filosofia não seja reduzido a uma visita a um museu de ideias antigas, mas se torne um laboratório conceitual dinâmico e transformador.
Considerações finais
Retornamos ao nosso problema de pesquisa, formulado da seguinte maneira: Quais as características de uma metodologia de ensino de filosofia no Ensino Médio que contribua para que o estudante tenha uma experiência crítica, que desencadeie nele um processo de humanização? A partir disso, identificamos princípios que podem auxiliar o ensino de filosofia a tornar-se humanizador e a despertar a criticidade dos alunos.
Um aspecto fundamental desse ensino é a problematização filosófica, ou seja, a superação do enciclopedismo e da mera memorização de teorias filosóficas, em favor da experimentação do filosofar por conceitos. Nessa acepção, é essencial buscar superar uma educação filosófica “bancária”, conforme nos alerta Paulo Freire.
Outra característica proposta para o ensino de filosofia é sua dimensão interdisciplinar. A filosofia, por si só, não deve ser a única responsável pelo desenvolvimento da criticidade na vida e existência dos alunos. Embora tenha um papel crucial, deve buscar estabelecer trabalhos interdisciplinares com outras disciplinas, de modo a ampliar o alcance do pensamento crítico e integrar diferentes áreas do conhecimento nesse esforço educativo.
Ainda, vale ressaltarmos que uma filosofia humanizadora deve ser ensinada como um esforço para constituir um laboratório do pensamento, e não apenas como um acúmulo de conhecimentos memorizados. A tarefa do professor de filosofia deve incluir a mediação e a facilitação para que novos conceitos filosóficos possam ser criados e recriados pelos estudantes, promovendo um espaço de inovação e reflexão crítica.
Enfim, a filosofia pode ser humanizadora e problematizadora da criticidade ao deixar de apenas oferecer respostas e ao se firmar como um campo de questionamento sobre a história da humanidade. Seu referencial deve estar ancorado na racionalidade e no respeito aos direitos humanos, buscando maximizar os esforços pela emancipação humana. Esperamos que, com essa abordagem metodológica, os estudantes concluam o Ensino Médio com uma visão ampla sobre a importância do filosofar por conceitos e, politicamente, sejam sujeitos críticos, capazes de “ler” a realidade para além da mera decodificação de textos, superando a aceitação passiva do óbvio.
Referências
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