Sociedade de consumo e emancipação: desafios a educação crítica

Consumer society and emancipation:

Challenges to critical education

 

Rodrigo Danúbio Queiroz https://lh7-us.googleusercontent.com/h9Ojv87ptVEgwx8PXehJNWB6RbeDlpXgP9wEPNuQgEiN1MWZqOYypeCQ59qJzbAdKq2NWcCoCxu9ig7Uxj9DQGeZQd62p5GHyOeol1sBa83pp3fhKd6TWJ4p1GJxaptf9Bd5r7OgGMw4FOSfvYdyTA

Secretaria Municipal de Educação de Piúma, Piúma, ES, Brasil

rdanubioq@yahoo.com.br

 

Recebido em 10 de novembro de 2024

Aprovado em 20 de novembro de 2024

Publicado em 21 de março de 2025

 

RESUMO

Este artigo explora a interação entre a indústria cultural, a sociedade de consumo e os desafios que essas dinâmicas impõem à educação crítica, à luz das ideias de Theodor W. Adorno. Analisa como a indústria cultural molda a sociedade de consumo e, por consequência, influencia a formação de indivíduos, o estudo destaca obstáculos específicos enfrentados pela educação crítica nesse contexto. Inspirando-se nas perspectivas de Adorno, o artigo propõe reflexões sobre como a educação pode atuar como agente de resistência e emancipação, capacitando os alunos a desenvolverem pensamento crítico diante das influências dominantes do consumismo. O objetivo é fornecer estratégias para a educação crítica em um cenário permeado pelos valores da sociedade de consumo, visando formar indivíduos mais conscientes e aptos a questionar e resistir às normas estabelecidas.

Palavras-chave: Theodor W. Adorno; Educação; Teoria Crítica.

 

ABSTRACT

This article explores the interaction between cultural industry, consumer society, and the challenges these dynamics pose to critical education, in light of the ideas of Theodor W. Adorno. It analyzes how the cultural industry shapes consumer society and, consequently, influences individual formation. The study highlights specific obstacles faced by critical education in this context. Drawing inspiration from Adorno's perspectives, the article proposes reflections on how education can act as an agent of resistance and emancipation, empowering students to develop critical thinking in the face of dominant influences of consumerism. The objective is to provide strategies for critical education in a scenario permeated by the values of consumer society, aiming to shape individuals who are more aware and capable of questioning and resisting established norms.

Keywords: Theodor W. Adorno; Education; Critic Theory.

 

Introdução

            O pensamento de Theodor W. Adorno (1903-1969) está profundamente relacionado às reflexões sobre o nazifascismo, uma das maiores tragédias morais da história. Seu exílio nos Estados Unidos, durante o auge do capitalismo, também o expôs à sociedade norte-americana e à cultura como objeto de consumo. Essas experiências foram cruciais para que, em colaboração com Max Horkheimer (1895-1973), Adorno desenvolvesse, na década de 1940, o conceito de indústria cultural. Introduzido na obra Dialética do Esclarecimento, o termo substituiu "cultura de massa", que sugeria, equivocadamente, uma origem espontânea nas classes populares. A crítica da Escola de Frankfurt à indústria cultural evidencia como a cultura se tornou uma mercadoria na sociedade moderna. Esse fenômeno transfere características da dominação tecnológica para os produtos culturais, moldando-os para atender a um público de massa, frequentemente alinhado aos interesses do capital. A tecnologia e a economia tornam-se forças dominantes nesse sistema, influenciando amplamente a produção cultural. Na "sociedade administrada", a transformação de produtos artísticos em mercadorias busca atender às demandas comerciais, comprometendo a capacidade crítica da cultura. Ao submeter-se à lógica do mercado, a arte perde sua autonomia e sua capacidade de expressar visões inovadoras. A produção cultural passa a ocultar a realidade, submetendo os indivíduos aos interesses do capital e promovendo a conformidade, em vez do pensamento autônomo. O avanço tecnológico intensifica esse processo, permitindo a reprodução em massa de produtos culturais, que perdem sua autenticidade e se tornam padronizados. Adorno argumenta que essa padronização contribui para a alienação e a conformidade, refletindo uma preocupação semelhante à de Freud (1856-1939) sobre a perda da individualidade na psicologia das massas, onde os indivíduos são facilmente influenciados pela produção em massa de ideias e valores.

 

A massa é extraordinariamente influenciável e crédula; é desprovida de crítica; para ela o improvável não existe. Ela pensa por imagem que se evocam associativamente umas às outras, tal como ocorre ao indivíduo nos estados do livre fantasiar, e nenhuma instância razoável afere a sua correspondência com a realidade. Os sentimentos da massa são sempre muito simples e muito exagerados. Assim, a massa não conhece nem dúvida nem a incerteza (Freud, 2020, p. 50).

 

Nesse contexto, uma das principais preocupações que direciona as reflexões de Adorno e Horkheimer é compreender por que uma sociedade altamente avançada em termos de tecnologia, que celebra seu triunfo sobre um passado marcado por explicações mitológicas para o mundo, enfrenta um profundo caos cultural. Em outras palavras, por que a era do Iluminismo, que testemunhou avanços tecnológicos sem precedentes, não conseguiu cumprir sua promessa original de emancipação e, em vez disso, muitas vezes se transformou em um projeto autoritário em diversos aspectos? Um elemento central desse contexto é a forma como as demandas do mercado submetem os indivíduos aos produtos culturais criados por eles mesmos. Apesar do avanço tecnológico, a tecnologia frequentemente serve às dinâmicas do mercado, moldando o consumo cultural. Segundo Adorno, a indústria cultural tem como principal objetivo impedir a conscientização, estabelecendo uma dominação técnica sobre a sociedade. O capitalismo utiliza essa indústria para promover um comércio enganoso, atraindo consumidores com promessas vazias e tornando-os manipuláveis pelos interesses econômicos. A exploração dos desejos e expectativas dos consumidores cria um ciclo em que ilusões substituem a busca pela verdade e pelo pensamento crítico, reforçando a dominação técnica e ideológica. Nesse cenário, a educação, em vez de promover autonomia e pensamento crítico, reproduz valores que atendem aos interesses da elite, marginalizando os que se opõem a esse sistema. Assim, a educação se transforma em um mecanismo de controle social, tratando os indivíduos como objetos passivos, em vez de sujeitos críticos e pensantes.

Diante das reflexões apresentadas, nosso objetivo é explorar como a cultura de massa influencia o ambiente educacional e como seus efeitos podem impactar o processo emancipatório do estudante. Para realizar essa análise, consideramos necessário compreender a cultura sob a perspectiva de mercadoria e suas implicações na educação, tendo como base o conceito de indústria cultural fundamentado na teoria crítica de Adorno.

 

Cultura como mercadoria

Para uma análise sobre a cultura enquanto mercadoria, é necessário delimitar o contexto de uma sociedade industrial. Essa sociedade pode ser definida por três elementos específicos, todos originados de um princípio comum, a saber: a aplicação de conhecimentos científicos e tecnológicos nas práticas de produção, o substancial aporte de capital fixo em instalações e maquinaria, e a produção em massa, ou seja, em larga escala. A sociedade industrial se caracteriza pela transformação radical que trouxe às relações sociais e econômicas. A aplicação dos avanços científicos e tecnológicos na produção industrial permitiu uma eficiência sem precedentes, aumentando a produtividade e moldando as bases da economia moderna (Hobsbawn, 1977, p. 45). Nesse contexto, o conceito de cultura como mercadoria se torna ainda mais relevante. A cultura, antes um aspecto intrinsecamente ligado às tradições e identidades culturais, sofreu uma transformação significativa nesse cenário. Sob essas circunstâncias, a cultura não é apenas um conjunto de valores e práticas compartilhadas, mas também uma mercadoria a ser consumida e comercializada. Essa mudança é impulsionada pelos mesmos princípios que definem a sociedade industrial: a aplicação de tecnologia na produção cultural, o investimento maciço em instalações culturais e a produção em massa de conteúdo cultural.

A sociedade industrial representa uma evolução social intimamente ligada àquilo que se denominou de Revolução Industrial, um fenômeno que teve seu epicentro nas profundas transformações ocorridas na Inglaterra, especialmente nos Séculos XVIII e XIX. Este período de transição foi marcado por mudanças significativas em diversos setores da sociedade. A Revolução Industrial marcou um afastamento do entendimento tradicional de indústria. Anteriormente, o termo estava associado a habilidades individuais, perseverança e diligência na produção artesanal. Contudo, durante esse período, a noção de indústria se alterou notavelmente. Ela deixou de ser uma expressão de destreza individual para se tornar uma instituição social ligada a todas esferas da sociedade, eliminando progressivamente as características distintivas da produção artesanal. A essência da indústria se tornou eminentemente técnica à medida que a Revolução Industrial trouxe avanços tecnológicos e a aplicação sistemática da ciência nas práticas de produção. Máquinas e processos mecanizados passaram a ser os pilares da produção em larga escala, relegando os métodos artesanais a um papel secundário. Essa transição não apenas transformou a produção de bens, mas também reconfigurou radicalmente as relações sociais, a economia e a estrutura de classes. A sociedade industrial emergiu como resultado dessas mudanças e se estabeleceu como uma característica marcante do mundo moderno, moldando a vida das pessoas e a organização da sociedade de maneira profunda e duradoura.  

 

A antiga organização feudal da indústria, em que esta era circunscrita a corporações fechadas, já não podia satisfazer às necessidades que cresciam com a abertura de novos mercados. A manufatura a substituiu. A pequena burguesia industrial suplantou os mestres das corporações, a divisão do trabalho entre as diferentes corporações desapareceu diante da divisão do trabalho dentro da própria oficina [...] A grande indústria criou o mercado mundial preparado pela descoberta da América. O mercado mundial acelerou prodigiosamente o desenvolvimento do comércio, da navegação, dos meios de comunicação. Esse desenvolvimento reagiu por sua vez sobre a extensão da indústria; e à medida que a indústria, o comércio, a navegação, as vias férreas se desenvolviam, crescia a burguesia, multiplicando seus capitais e relegando a segundo plano as classes legadas pela Idade Média (Marx; Engels, 2009, p. 25-26).

 

Assim, a tomada de decisões na sociedade industrial se caracteriza por uma abordagem mais calculada e planejada, em contraste com as abordagens mais improvisadas e espontâneas de épocas anteriores. Nesse cenário, a sociedade industrial se baseia fortemente na aplicação do conhecimento científico e tecnológico, que desempenha um papel fundamental na configuração de práticas de produção, organização social e tomada de decisões. A ciência e a tecnologia se tornam as principais forças impulsionadoras do progresso em todos os aspectos da vida, orientando as ações com base em fatos, dados e métodos científicos. Em comparação com abordagens mais tradicionais, as escolhas na sociedade industrial são pautadas em princípios racionais e visam à otimização de recursos, buscando soluções objetivas para os desafios enfrentados. A sociedade industrial redefine a forma como as pessoas se percebem e se relacionam com o mundo, moldando as experiências cotidianas e exercendo influência significativa sobre o desenvolvimento da cultura.

Esse contexto de mudanças, é marcado o período em que começaram a surgir as bases para a distinção entre as esferas pública e privada, uma característica notável da sociedade industrial. “O cidadão individual tornou-se enredado nas maquinarias burocráticas e administrativas do estado moderno” (Hall, 2001, p. 30). Nessa época, a indústria emergia como uma atividade que desafiava a tradicional produção doméstica, transformando-a em uma atividade de cunho privado, orientada pelo modelo individual e guiada pela busca pelo lucro. Essa mudança na organização da produção criou as condições para o surgimento da família burguesa, um exemplo emblemático da ênfase dada ao indivíduo nessa transformação. À medida que o século XIX avançava, a sociedade industrial se consolidava, caracterizando-se pela acentuada fragmentação e separação que permeavam todas as esferas da vida. Essa mesma divisão também se manifestava na polarização entre o trabalho e o lazer, refletindo uma lógica similar à que havia sido implementada nas fábricas.

A ênfase na especialização e na divisão de tarefas, uma característica central da sociedade industrial, se expandia para diversas áreas da vida cotidiana. Como resultado, ocorre a fragmentação das esferas de trabalho e lazer, bem como a segregação entre os domínios público e privado. Essas transformações tiveram um impacto marcante na maneira como as pessoas viviam e se relacionavam com o mundo na sociedade industrial. “Os próprios seres humanos se tornaram parte de mundo reificado, e sua subordinação à lógica da dominação é realçada pela mercantilização da força de trabalho dentro do capitalismo” (Thompson, 1995, p. 131). Essa divisão continua a influenciar a organização social e cultural na contemporaneidade. Sob essa perspectiva, Adorno e Horkheimer promovem uma análise crítica da produção em massa de bens culturais, destacando o amplo movimento que transforma a cultura em uma mercadoria. Os produtos culturais, como filmes, programas de televisão e revistas, são tratados como exemplos evidentes de uma abordagem técnica e de uma estrutura organizacional que se assemelham à produção em série de automóveis ou aos projetos de urbanismo. Adorno observa que cada setor de produção na sociedade industrial tende a seguir um padrão uniforme, com a cultura contemporânea enfatizando a homogeneização. A indústria cultural, em resposta a diversas demandas, tende a criar produtos padronizados, considerando tais demandas como variações que devem ser atendidas pelos mesmos princípios de produção. Através do uso de métodos industriais, surge uma cultura de massa composta por uma série de objetos que ostentam claramente a marca da indústria cultural, caracterizada pela serialização, padronização e divisão do trabalho.

 

O fato de que milhões de pessoas participam dessa indústria imporia métodos de reprodução que, por sua vez, tornam inevitável a disseminação de bens padronizados para a satisfação de necessidades iguais. O contraste técnico entre poucos centros de produção e uma recepção dispersa condicionaria a organização e o planejamento pela direção. Os padrões teriam resultado originariamente das necessidades dos consumidores: eis por que são aceitos sem resistência (Adorno, 1985, p. 100).

 

Na sociedade industrial, o elemento que unifica esses polos é a técnica, que desempenha um papel central e preponderante. A técnica se torna o principal ator, e não apenas um meio para atingir objetivos. Até mesmo a cultura passa por uma transformação notável, tornando-se uma mercadoria em meio a esse contexto. Theodor Adorno argumenta que, no âmbito da indústria cultural, o consumidor não é tratado como rei ou sujeito, mas sim como um objeto. Isso significa que, na lógica da indústria cultural, os consumidores são vistos principalmente como alvos de manipulação e controle, em vez de serem considerados indivíduos autônomos com poder de escolha e influência sobre a cultura que consomem.

A racionalidade técnica desempenha um papel de destaque na sociedade alienada, impondo uma influência que pode ser percebida como coercitiva. A indústria cultural é um exemplo paradigmático dessa dinâmica, uma vez que consolida a transformação da cultura em uma mercadoria. Esse processo acarreta a perda de sua função crítica e a diluição dos elementos que compõem uma experiência cultural autêntica. Paralelamente, a produção industrial em larga escala contribui para a degradação do papel filosófico e existencial da cultura. Em sua análise dos meios de comunicação, Theodor Adorno destaca o caso do rádio, que, em seu ímpeto democrático, transforma os ouvintes em receptores passivos. Isso ocorre porque os programas radiofônicos, independente da estação, são uniformizados e autoritariamente impostos a todos os ouvintes. “Democrático, o rádio transforma-os a todos igualmente em ouvintes, para entrega-los autoritariamente aos programas, iguais uns aos outros, das diferentes estações” (Adorno, 1985, p. 100). Esse cenário resulta na transformação dos indivíduos em meros objetos da indústria cultural. A economia exerce um papel de absoluto predomínio, e essa realidade é destacada por Adorno em sua análise. Ele aponta para a notável dependência de setores proeminentes da sociedade, como a radiodifusão, em relação à indústria elétrica, assim como a dependência da indústria cinematográfica em relação aos bancos. “Os diversos ramos assemelham-se por sua estrutura, ou pelo menos ajustam-se uns aos outros. Eles somam-se quase sem lacuna para constituir um sistema. Isso graças tanto aos meios atuais da técnica, quanto à concentração econômica e administrativa” (Adorno, 1971, p. 287).

Esses exemplos ilustram como as esferas econômicas estão profundamente entrelaçadas, criando um emaranhado de relações que se estende por toda a economia. Essa interconexão demonstra a concentração de poder que transcende as barreiras tradicionais que separavam diferentes empresas e setores técnicos. Tal fenômeno sublinha a profunda interdependência entre o poder, o controle e o funcionamento da economia, afetando diversas áreas da vida moderna. A análise de Adorno destaca a concentração de influência e recursos que desafia as fronteiras tradicionais, suscitando questões críticas sobre a autonomia e a diversidade em uma sociedade onde o fator econômico prevalece de forma dominante. A tal ponto que altera até mesmo as relações afetivas, conforme revela Bauman (2021, p. 28):

 

Guiado pelo impulso (‘seus olhos se cruzam na sala lotada’), a parceria segue o padrão do shopping e não exige mais que habilidades de um consumidor médio, moderadamente experiente. Tal como outros bens de consumo, ela deve ser consumida instantaneamente (não requer maiores treinamentos nem uma preparação prolongada) e usada uma só vez, ‘sem preconceito’. É, antes de mais nada, eminentemente descartável.

 

No que se refere questão da universalidade, é pertinente observar que, na esfera da indústria cultural, o estilo, que permeia todas as manifestações artísticas, assume uma posição de destaque. A linguagem musical, visual e verbal, representada pelo estilo, almeja traduzir a ideia de uma universalidade genuína. “Com efeito, a música atual, na sua totalidade, é dominada pela característica de mercado: os últimos resíduos pré-capitalistas foram eliminados” (Adorno, 1989, p. 86). Entretanto, é importante ressaltar que na indústria cultural, a imitação se estabelece como um elemento de primordial relevância. Ao direcionar o foco exclusivamente ao estilo, revela-se a sua natureza: a conformidade com a hierarquia social. A barbárie estética, nos dias atuais, se consolida como uma ameaça concreta que paira sobre as criações intelectuais, desde o momento em que estas foram reunidas e uniformizadas sob a égide da cultura. Nesse contexto, é importante observar que a indústria cultural, considerada como o estilo mais inflexível, ironicamente, emerge como o próprio objetivo do liberalismo, sistema frequentemente criticado por sua suposta falta de estilo.

A aceitação do indivíduo está condicionada à sua capacidade de se afastar de uma identidade estritamente universal. Isso resulta em uma pseudo-individualidade, que permeia diversos campos, como a música, exemplificada na improvisação padronizada do jazz, e o cinema, onde personagens muitas vezes necessitam de características distintivas para serem reconhecidos como únicos (Adorno, 1985, p. 128).   O que prevalece nesse contexto é uma ilusão de individualidade, na qual o indivíduo é reduzido à sua habilidade de se alinhar com o universal de forma a ser integrado de maneira coerente ao todo. “O comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas. Tal indivíduo não já consegue subtrair-se ao jugo da opinião pública [...]” (Adorno, 1989, p. 79). O sistema industrial, em sua busca pela harmonia global, muitas vezes promove essa falsa celebração da individualidade em prol de seus próprios interesses.  Na esfera industrial, emerge uma complexa relação entre o indivíduo e a sociedade de massas, caracterizada por uma ilusão que transcende a simples padronização do processo produtivo. “A tecnicização como tal pode operar a serviço da mais crua reação, assim que se estabeleça como fetiche, e por sua perfeição técnica, apresente o socialmente fraturado com perfeito” (Adorno, 2020, p. 97).

A individualidade, embora superficialmente aparente, oculta a realidade subjacente de conformidade e uniformidade que caracterizam um sistema que frequentemente prioriza a eficiência em detrimento da verdadeira expressão e autenticidade individual.  Sob essa perspectiva, Adorno e Horkheimer sustentam que a indústria cultural não apenas comercializa a cultura, mas também molda as percepções e experiências culturais, contribuindo para a uniformidade e a superficialidade da sociedade contemporânea. A crítica deles aponta para os desafios e as implicações dessa transformação, questionando a perda de singularidade e profundidade que pode resultar desse processo de produção cultural em massa.

 

Indústria cultural e sociedade de consumo

O conceito de indústria cultural está fundamentalmente ligado a uma ideologia que visa controlar e influenciar a sociedade de forma a obter conformidade sem questionamento. Essa ideologia é projetada para que a população aceite passivamente o que lhe é oferecido, sem reflexão crítica, reproduzindo ideias e valores que atendem aos interesses daqueles que detêm o poder. Infelizmente, essa mesma lógica é muitas vezes aplicada à educação, transformando-a em um meio de incutir a ideologia dominante, impondo valores e normas alinhados ao sistema capitalista.

 

Na verdade, a ideologia encontra-se tão colada à realidade que qualquer comportamento que não se atrele ao atendimento das necessidades do consumo é rotulado como desviante. Não obstante, tem-se a impressão de que não há qualquer tipo de padronização ou uniformização do produto. Parece que vivenciamos uma identidade única, já que nos diferenciamos de todos os outros que não usam nossas marcas sociabilizadoras, tais como as marcas dos tênis e grifes de roupas famosas (Zuin, 2001, p. 12).

 

A mídia desempenha um papel fundamental nesse processo, ao destacar as avançadas tecnologias que prometem criar uma sociedade igualitária e inclusiva. A televisão, como uma das principais ferramentas de disseminação da indústria cultural, exerce um papel significativo na formação e influência de indivíduos desde cedo. Ela apresenta uma ampla gama de temas e culturas, acessíveis a qualquer hora e idade, atendendo a diversos públicos, de acordo com as percepções das empresas sobre o que é considerado "melhor" para cada grupo, pois “[...] é pela TV que as crianças ingressam no mundo do consumo, aprendendo a desejar mercadorias” (Bucci, 1997, p. 11). Essa influência, muitas vezes, leva os telespectadores a internalizarem os conteúdos oferecidos, acreditando que aquilo é representativo do que é desejável ou aceitável. A televisão é capaz de transmitir mensagens de forma direta, mas também pode utilizar mensagens subliminares, que escapam à percepção consciente, mas que têm o potencial de influenciar o subconsciente. Essas mensagens sutis podem contribuir para a alienação, uma vez que moldam as percepções e crenças dos indivíduos sem que eles estejam cientes disso. Isso pode resultar em comportamentos e pensamentos alinhados com a mensagem que lhes é imposta, sem espaço para questionamento ou argumentação crítica.

No entanto, a televisão pode também ser vista como uma ferramenta cultural de dupla natureza. Por um lado, pode ser uma fonte de entretenimento e informação valiosa, capaz de revelar e enriquecer a compreensão do mundo e do desenvolvimento humano. Por outro lado, quando utilizada de maneira manipulativa, pode alienar os telespectadores, levando-os a adotar crenças e comportamentos sem questionamento. No contexto atual, qualquer informação falsa, popularmente conhecida como fake news, pode competir de igual para igual na internet com informações baseadas em dados científicos, o que significa que a sociedade está exposta a informações incorretas que podem influenciar as escolhas políticas que, por sua vez, moldam o futuro da humanidade. A indústria cultural apresenta uma diversidade de abordagens, não se caracterizando como um conjunto homogêneo de produções. É notável que muitas vezes essa indústria privilegia temas, assuntos e culturas estrangeiras em detrimento da valorização da história e das tradições nacionais. O foco na indústria cultural tende a ser mais comercial, direcionado para a criação de produtos para venda, afastando-se de seu propósito original de promover a cultura. A produção de conteúdo é frequentemente voltada para a busca de lucro, o que pode resultar na padronização de temas e narrativas, reduzindo a diversidade cultural e influenciando os espectadores a adotarem uma postura passiva e acrítica. “Em muitos programas televisivos, impera a lógica de formar os futuros cidadãos-clientes” (Loureiro, 2003, p. 62).

Essa abordagem comercial da indústria cultural é responsável por colocar o interesse econômico à frente da preservação e promoção da cultura local e nacional. A padronização de conteúdo muitas vezes leva à produção de programas e produtos que não incentivam a reflexão crítica e a apreciação da própria cultura, contribuindo para a alienação do público. “Essa mesmice regula também as relações com o que passou. O que é novo na fase da cultura de massas em comparação com a fase do liberalismo avançado é a exclusão do novo. A máquina gira sem sair do lugar” (Adorno, 1985, p. 111). Theodor Adorno sustenta a ideia de que a cultura da sociedade capitalista estabelece um mecanismo que promove a heteronomia, ou seja, a submissão do indivíduo à vontade de terceiros, em detrimento de sua autonomia. Essa dinâmica leva o ser humano a se assemelhar ao coletivo, resultando na perda de sua individualidade. Como consequência, o indivíduo perde a capacidade de pensar e agir de forma independente e, por extensão, de demonstrar solidariedade e respeito pelo próximo, tornando-se o homo oeconomicus.

 

Em vez de fazer ao inconsciente as honras de elevá-lo à consciência, para satisfazer com isso seus impulsos e pacificar suas forças destrutivas, a indústria cultural, principalmente na televisão, reduz os homens a comportamentos inconscientes, atendendo assim às precondições de uma existência que ameaça com sofrimento aqueles que enxergam seu fundo falso e promete recompensas àqueles que a idolatram. A rigidez se intensifica em de abrandar (Adorno, 2020, p. 217).

 

No atual cenário tecnológico, é inegável que a prevalência das inovações tem intensificado a distância entre as pessoas, exacerbando o isolamento social e fomentando preconceitos em relação a qualquer forma de individualidade que não esteja alinhada aos padrões estabelecidos pela mídia. Esse fenômeno culminou em um processo preocupante de exclusão, representando uma regressão do esclarecimento à reificação. Nesse contexto, os indivíduos se encontram alienados, incapazes de se manifestar contra essa barbárie social, o que configura um estado de negação da razão. A presença avassaladora da tecnologia nas interações sociais não apenas contribui para o sofrimento, mas também perpetua a injustiça social. Isso ocorre porque a cultura é imposta aos indivíduos durante seu processo de socialização, e escapar dessa influência torna-se uma tarefa árdua. Os processos da indústria cultura e a alienação, conforme Adorno, é fundamental para compreender questões essenciais na sociedade, como a presença da barbárie. A ideia subjacente é que, quando os indivíduos são desprovidos de sua capacidade de pensamento autônomo e de empatia, tornam-se mais suscetíveis a comportamentos brutais e desumanos, uma vez que agem de acordo com a vontade de terceiros e carecem da empatia necessária para reconhecer o valor da vida humana. É, portanto, um lembrete importante sobre os perigos da perda da individualidade e da capacidade crítica em um contexto cultural que prioriza a conformidade e a submissão. Nesse sentido, a “[...] desbarbarização da humanidade é pressuposto imediato da sobrevivência” (Adorno, 2022, p. 126).

A indústria cultural desencadeou uma série de transformações na sociedade, impulsionando o desenvolvimento de tecnologias e fortalecendo as indústrias no contexto capitalista. Contudo, essa evolução também deu origem a um consumo incessante, no qual a maioria é influenciada por uma elite detentora do poder por meio dos meios de comunicação, como rádio, TV, internet, entre outros. Esse cenário cria uma dependência de consumo, muitas vezes imposta à sociedade sem que o indivíduo perceba que está sendo manipulado. Essa dinâmica é perpetuada na educação familiar, em que as crianças absorvem a cultura de seus pais, que por sua vez receberam essa influência de gerações anteriores. A Modernidade, centrada na cultura de massa, reflete-se pela monetização dos bens culturais, priorizando a produção em larga escala em detrimento da transmissão dos valores históricos de um povo. O foco é reproduzir o que é mais rápido e facilmente absorvido pelas massas, gerando lucro para os empresários.

 

A experiência, a continuidade da consciência em que perdura o não presente e em que o exercício e a associação fundamentam uma tradição no indivíduo, fica substituída por um estado informativo pontual, desvalorizado, intercambiável e efêmero e que se deve destacar que ficará borrado no próximo instante por outras informações (Adorno, 1992, p. 51).

 

Tudo na sociedade contemporânea é permeado pelo consumo, e cada indivíduo desempenha o papel de consumidor. Esse processo é um aspecto de nossa interação com o mundo, visto como uma forma de gerar lucro para a indústria. Toda a subjetividade e criatividade são canalizadas com o intuito de servir a esse propósito. Qualquer elemento cultural afetado pela influência da indústria cultural adquire um novo objetivo: gerar lucro. O foco passa a ser o engajamento dos sujeitos em jogos e atividades que, quanto mais viciantes, melhor atendem aos interesses da indústria. Isso se traduz em uma ampla veiculação de propagandas e um aumento nos ganhos. Assim, a base da indústria cultural é o consumo, sem buscar necessariamente o desenvolvimento dos consumidores como finalidade, mas sim gerar um ciclo contínuo de consumo, transformando essa em massa.

 

O efeito do conjunto da indústria cultural é o de uma antidesmistificação, a de um anti-iluminismo [anti-Aufklärung]; nela, como Horkheimer e eu dissemos, a desmistificação, a Aufklärung, a saber a dominação técnica progressiva, se transforma em engodo das massas, isto é, em meios de tolher a sua consciência. Ela impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente. Mas estes constituem, contudo, a condição prévia de uma sociedade democrática, que não se poderia salvaguardar e desabrochar senão através de homens não tutelados. Se as massas são injustamente difamadas do alto como tais, é também a própria indústria cultural que as transforma nas massas que ela depois despreza, e impede de atingir a emancipação, para qual os próprios homens estariam tão maduros quanto as forças produtivas da época o permitiriam (Adorno, 1971, p. 294).

 

A indústria cultural, muitas vezes, tenta nos convencer de que a verdadeira felicidade é alcançada através do encantamento do consumismo desenfreado. Ela promove a ideia de que possuir mais coisas é a chave para a realização pessoal, criando uma narrativa de felicidade baseada no consumo constante. Esse paradigma do consumismo é reforçado não apenas nas mídias, mas também, em certo grau, dentro das escolas, onde a repetição do trabalho e do consumo são ideologicamente transmitidos. É importante destacar que a produção cultural carrega consigo valores que frequentemente promovem o individualismo na sociedade. Desde a idade infantil, os indivíduos são expostos a mensagens publicitárias que enfatizam o desejo individual, levando-os a perder a noção de coletividade em prol do interesse particular. O progresso da indústria cultural constitui uma dimensão fundamental do desenvolvimento da racionalização e reificação nas sociedades contemporâneas. Esse processo gradativo reduz sistematicamente a capacidade dos indivíduos para o pensamento independente, tornando-os cada vez mais dependentes dos sistemas sociais sobre os quais têm escassa ou nenhuma influência. Neste contexto, a teoria da indústria cultural de Adorno e Horkheimer oferece uma perspicaz análise da transformação da cultura e sociedade na época da padronização industrial e da reificação mercantil. Ao destacar os desafios à emancipação e autonomia individual, ela ressalta a urgência de uma educação que capacite as pessoas a desenvolverem pensamento crítico e a resistirem às influências prejudiciais da cultura de massa.

 

Indústria cultura e emancipação: desafios a educação crítica

No contexto da sociedade de consumo, a indústria cultural, como observamos, constituiu-se como um dos elementos principais que, em todos os momentos, procurou impedir o desenvolvimento do pensamento crítico individual. Ao representar o mundo, ela obstruiu o verdadeiro encontro entre o indivíduo e a realidade, gerando, assim, uma pseudo-individualidade. A indústria cultural determina o que o indivíduo deveria ou não consumir, bem como o que ele deveria ou não considerar em seu pensamento. Todas essas questões essenciais exigem uma abordagem no campo da educação. A falta de engajamento diante dos desafios apresentados pode conduzir a um futuro sombrio, marcado pelo declínio cultural e ambiental de nossa sociedade. As tecnologias contemporâneas têm expandido o alcance da informação, mas também da desinformação. Dessa forma, em um cenário de sociedade administrada, a importância de fomentar o pensamento crítico e a autonomia individual se destaca como uma necessidade cada vez mais premente. Aqui reside o grande desafio da educação: capacitar os indivíduos a desenvolverem uma reflexão crítica e promover a autonomia em suas decisões.

Ao revisitar a herança iluminista, Adorno se concentrou primordialmente na conexão entre a intenção emancipatória e a razão reflexiva. A emancipação, quando impulsionada pela ilustração, demanda uma disposição para ser racional. A concepção de razão incorpora não apenas a vontade de atingir a autonomia, mas também a responsabilidade na condução da própria existência. O conceito de autonomia, nos remete ao conceito de Esclarecimento (Aufklärug) elaborado pelo filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804).  Em “Resposta à pergunta: o que é Esclarecimento?” (“Beantwonrtung der Frage: Was ist Auflkärung?”), Kant (1985, p.100) define que: “Esclarecimento [Auflkärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo”. A menoridade para Kant, não é falta de entendimento, mas a incapacidade que cada indivíduo possa eventualmente ter de fazer uso do seu próprio entendimento, enquanto a maioridade, por sua vez, é a capacidade de utilizar-se do próprio entendimento. O termo Esclarecimento está totalmente vinculado à autonomia. Tornar-se esclarecido é buscar a libertação dos preconceitos e amarras, que impedem os sujeitos de pensarem por si[1]. Autonomia ou Esclarecimento torna-se um ideal de emancipação do sujeito, pois a educação, enquanto formação integral, o prepara para tornar-se um cidadão, uma vez que lhe confere um valor público. A respeito da autonomia, Lima Filho (2019, p. 73) nos diz que:

 

Por esse motivo, esse ideal de razão, que se compromete com o aperfeiçoamento permanente do indivíduo – porque, no limite, o problema da educação equivale ao problema do aprimoramento do humano em direção de sua perfeição como homem -  não pode se esquivar do problema da autonomização do sujeito, da formação do indivíduo, no sentido de o incentivar à vivência da sabedoria verdadeira: a educação, afinal, deve cuidar da promoção do “lema do Esclarecimento”, do “sapere aude!” ou, o que é o mesmo, do “aprender a pensar por si mesmo”, de sua “autonomização”.

 

Ora, ser autônomo é ser esclarecido. Ser autônomo e esclarecido é se tornar emancipado. Considerando que os indivíduos estão inseridos em um contexto histórico e social, é possível realizarmos uma leitura acerca da autonomia, compreendida no sentido de esclarecimento, com o conceito de emancipação a partir do da teoria crítica de Adorno. Para este, a educação tem por objetivo principal a emancipação humana. Emancipar, significa criar condições para que cada um possa viver livremente, ter uma consciência verdadeira e assim ser capaz de desenvolver todas as suas potencialidades.

 

A seguir, e assumindo o risco, gostaria de apresentar a minha concepção inicial de educação. Evidentemente não a assim chamada modelagem de pessoas, porque não temos o direito de modelar pessoas a partir do seu exterior; mas também não a mera transmissão de conhecimentos, cuja característica de coisa morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma consciência verdadeira. Isto seria inclusive da maior importância política; sua ideia se é permitido dizer assim, e uma exigência política. Isto é: uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado (Adorno, 2022, p. 154).

 

Para Adorno, quando a educação não é capaz de possibilitar a autonomia dos indivíduos ela se torna um perigoso instrumento de manipulação. A autonomia é a condição fundamental para que a reflexão se torne possível. Condição em que cada um mediante a vontade livre seja capaz de realizar suas próprias escolhas. Portanto, o espaço escolar é local quem tem o espaço privilegiado de acesso a socialização do conhecimento elaborado, espaço de mediação entre o saber espontâneo e sistematizado. Contudo, conforme nos apontam Loureiro, Della Fonte e Oliveira (2017, p. 11):

 

A autonomia, condição primordial da formação, não teve tempo de se constituir em todos os homens e mulheres (muito em função dos próprios interesses da burguesia) e a consciência passou de uma heteronomia (feudalista, comandada pela religião) para outra, agora ditada pelos valores da razão instrumental do modo de produção capitalista.

 

Isso resulta naquilo que Adorno convencionou de semiformação. Ele aponta que a formação deveria ser aquela que dissesse respeito ao indivíduo livre e radicado em sua própria consciência. A formação era tida como condição implícita a uma sociedade autônoma: quanto mais lúcido o singular, mais lúcido o todo (Adorno, 2010, p. 8). A semiformação é o resultado de certo tipo de formalização da educação, da massificação cultural. Ela ocorre quando a educação deixa de ser capaz de esclarecer – no sentido kantiano – os educandos, servindo, desse modo, aos propósitos da indústria cultural. Na lógica da semiformação, o mediato tende a se transformar rapidamente em imediato.  Assim, uma perspectiva educacional vinculada a um projeto social de emancipação tende a recusar o imperativo categórico da aplicabilidade, da imediaticidade de tendência barbaramente anti-intelectual. No entanto, se considerarmos ser uma das funções da escola a mediação entre o saber espontâneo e o saber elaborado, parece-nos inevitável que os produtos da indústria cultural adentrem o espaço escolar e se imponham como ponto de partida do processo educativo. Isto é, a indústria cultural age contra o movimento de emancipação, pois impede que os sujeitos desenvolvam sua consciência e exercite sua capacidade de imaginação e livre criação. Dentro desse contexto de formação humana (Bildung), Pucci (1998, p. 90) faz a seguinte afirmação:

 

Ser autônomo sem deixar de se submeter; submeter-se sem perder a autonomia. Aceitar o mundo objetivo, negando-o continuamente; afirmar o espírito, contrapondo-lhe a natureza. É essa tensão constitutiva da cultura enquanto instrumental negativo e emancipador do sujeito que Adorno quer reavivar em pleno capitalismo tardio.

 

Portanto, na sociedade administrada guiada pela lógica mercantil, alcançar a emancipação do sujeito torna-se urgente desafiador para educação, do contrário, a autonomia se restringirá somente ao campo do utilitarismo.  Com efeito, no que diz respeito à educação, a teoria crítica visa submeter o próprio sistema educacional ao âmbito da crítica, isso quer dizer, questionar em que medida a própria educação estaria proporcionando a emancipação dos estudantes. Nesse sentido, a teoria crítica permite que se indague tanto acerca das propostas elencados e desempenhados pelos sistemas educacionais, como também analise o aprendizado dos educandos que diretamente estão envolvidos com as práticas de ensino. Adorno aborda a questão da emancipação com a perspectiva de que a conquista da liberdade necessita não apenas da busca pela autonomia, mas também do fortalecimento do eu. Inspirado pelas ideias de Kant, ele destaca que vivemos em um período não de esclarecimento consolidado, mas sim em um contínuo processo de esclarecimento. Nessa ótica, a emancipação é vista não como uma condição estática, mas como um percurso dinâmico, um vir-a-ser.  Alcançar a autonomia, a emancipação e atingir a maioridade são esforços conscientes que envolvem a conquista pessoal. O autor nos permite avançar e compreender o tema da formação para emancipação, pois “[...] a única concretização efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nessa direção orientem toda a sua energia para que a educação seja educação para contradição e para a resistência” (Adorno, 2022, p. 200). Nesse contexto, a educação desempenha um papel fundamental, uma vez que é responsável por cultivar o senso crítico dos indivíduos. A formação deve conscientizá-los sobre a padronização cultural resultante do consumo em massa e fornecer as ferramentas necessárias para promover valores humanos, como criatividade e senso de coletividade. Dessa forma, a sociedade pode evitar a imersão em um ciclo de consumo irrefletido e o aprofundamento do individualismo, promovendo uma convivência equilibrada e consciente.

 

Considerações finais

Theodor Adorno defende que o ensino deve ser uma ferramenta de resistência à influência da indústria cultural, contribuindo para o desenvolvimento de uma consciência crítica que permita ao indivíduo desvendar as contradições da sociedade de consumo. A falta desse discernimento crítico diante dos desafios atuais, como o consumo em massa e o impacto das redes sociais na formação dos indivíduos, tende a reduzir os educandos a meros seguidores da cultura predominante. Indivíduos que não questionam são mais suscetíveis e submissos. Para promover uma formação que valorize a cultura, os valores coletivos e a subjetividade para além do consumismo, é essencial educar para a emancipação. Isso implica encorajar a busca por conhecimento genuíno, ultrapassando o escopo meramente educacional para se tornar uma necessidade política na atualidade. É importante reconhecer o papel da educação na formação de cidadãos conscientes e críticos diante dos desafios da sociedade contemporânea. Não se trata apenas de seguir um currículo básico; é fundamental integrar o ensino de um conhecimento crítico que aborde as novas dimensões da indústria cultural nas redes sociais e nas tecnologias modernas.

 

Especificamente em relação à educação escolar, contrapor-se à ordem vigente significa submeter-se a questionamentos constantes: que diretrizes políticas eleger como norteadoras da tarefa educativa? Quais saberes estão excluídos? Por quê? Como esses saberes são tratados no tempo e no espaço escolares? (Loureiro, 2003, p. 94).

 

A educação crítica permite que aos indivíduos discernirem entre o que é uma genuína expressão cultural e o que é uma estratégia comercial destinada a estimular o consumo. O excesso de valores culturais impostos sobre as crianças, seja através de desenhos animados, propagandas, filmes ou outros meios, frequentemente cria uma cultura do consumismo exacerbado. Essas mensagens têm o potencial de manipular as crianças, influenciando-as a adquirir produtos como uma forma de satisfazerem seus desejos. Esse ciclo vicioso é perigoso, pois perpetua a ideia de que a felicidade e a satisfação estão intrinsecamente ligadas ao consumo constante. A escola deve possibilitar uma reflexão a esse respeito, ajudando os alunos a desenvolverem a capacidade de avaliar de forma crítica as mensagens publicitárias e a entender que o consumismo desenfreado não é a única forma de realização pessoal. Ela pode ajudar os alunos a desenvolver uma compreensão mais profunda sobre a verdadeira fonte de satisfação e realização pessoal, destacando a importância de valores como a empatia, a solidariedade e a responsabilidade social. Ao fornecer ferramentas para que os alunos avaliem de forma crítica as mensagens consumistas e as influências da indústria cultural, a escola capacita os jovens a fazer escolhas informadas e a resistir à pressão do consumismo.

A democracia depende fundamentalmente de uma população com capacidade crítica em relação à realidade que a cerca. É imprescindível que informações verdadeiras, embasadas em pesquisa e critérios científicos, estejam ao alcance de todos. Apenas com esse conhecimento genuíno, os cidadãos podem tomar decisões verdadeiramente democráticas, contribuindo para um futuro mais esclarecido e justo. “[...]uma democracia com dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado” (Adorno, 2022, p.141). Assim, a formação dos educandos desempenha função indispensável na promoção de uma sociedade democrática e emancipada. Adorno destaca a importância de uma formação que seja capaz de apresentar a realidade de maneira objetiva e, ao mesmo tempo, promover uma análise crítica do que é observado. Dessa forma, a educação se torna uma ferramenta essencial para capacitar os indivíduos a compreender e questionar o mundo ao seu redor. Portanto, a busca por uma formação equilibrada que promova a conscientização e o julgamento crítico é imprescindível para o desenvolvimento de cidadãos autônomos e ativos em uma democracia.

A formação de cidadãos, uma das principais responsabilidades da escola, envolve necessariamente a capacitação dos alunos para entender os meios de comunicação. Isso implica fornecer aos educandos as ferramentas necessárias para identificar e compreender os subtextos ocultos nas mensagens midiáticas. Logo, os alunos podem discernir entre os valores promovidos pelos meios de comunicação e aqueles que se alinham com sua própria identidade e visão de mundo. Isso requer o reconhecimento dos posicionamentos ideológicos que mantêm o status quo e a promoção de uma sociedade mais justa e igualitária. A educação crítica desempenha a capacitação dos indivíduos para compreender as estruturas ideológicas que moldam a sociedade. Ela permite que os alunos analisem criticamente as mensagens e os valores presentes na mídia, nas instituições e na cultura em geral. Isso os capacita a tomar decisões baseadas em seu próprio julgamento e a agir de acordo com seus valores e crenças, em vez de serem simplesmente influenciados por forças externas. A emancipação do indivíduo desse sistema perverso requer uma educação que promova a reflexão, o pensamento crítico e a capacidade de questionar a atual condição. Somente através de uma educação que incentiva a autonomia intelectual e a liberdade de escolha é possível criar uma sociedade mais justa e igualitária, na qual todos os indivíduos tenham a oportunidade de participar plenamente e contribuir para o bem-estar comum.

 

Referências

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Desenho de rosto

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

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Notas



[1] É bom que se note, inicialmente, que Aufklärung não é apenas um conceito histórico-filosófico, mas uma expressão familiar da língua alemã, que encontra um correspondente exato na palavra portuguesa esclarecimento, por exemplo em contextos como: sexuelle Aufklärung [esclarecimento sexual] ou politische Aufklärung [esclarecimento político]. Neste sentido, as duas palavras designam, em alemão e em português, o processo pelo qual uma pessoa vence as trevas da ignorância e do preconceito em questões de ordem prática [religiosas, políticas, sexuais, etc.] (Adorno, 1985. p. 7).