Ensinar as subjetividades digitalizadas a filosofar: pensando o ensino de Filosofia a partir de Paula Sibilia e Gerd Bornheim
Teaching digitized subjectivities to philosophize: thinking about philosophy teaching based on Paula Sibilia and Gerd Bornheim
Universidade do Vale dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil
brunobrnd@hotmail.com
Recebido em 13 de outubro de 2024
Aprovado em 09 de dezembro de 2024
Publicado em 23 de dezembro de 2024
RESUMO
Como forma de contribuir para a discussão sobre o ensino de filosofia e as tecnologias digitais é que se buscou explorar as novas visões sobre o ensino que a filósofa Paula Sibilia promove em um de seus estudos, que versa sobre o lugar da escola nos tempos digitais. Para somar a essa reflexão, pensou-se em adicionar uma das tarefas do ensino de Filosofia, que é o filosofar, para tanto foi desbravado três atitudes referentes ao filosofar que Gerd Borheim indica em uma de suas obras. A primeira atitude seria a admiração ingênua, certo espanto diante da grandeza do mundo e que participa de um horizonte pré-crítico do filosofar. A segunda atitude se refere ao dogmatismo, uma barreira ao filosofar que pode provir de uma hipervalorização das experiências ingênuas contidas no passo anterior. O último ponto que será explorado de Bornheim é o aspecto da negatividade, que expõe uma das instâncias a serem superadas para o cultivo da prática do filosofar. A metodologia corresponde à análise qualitativa dos conceitos a partir de uma revisão bibliográfica. O estudo indica que não somente a escola, mas a relação de professor-aluno está sendo impactada com as tecnologias digitais. Nessa mudança o filosofar também se alterou, exigindo assim novos esforços que consagrem o filosofar como crítica desses novos elementos digitais que acabam colaborando na constituição da subjetividade dos alunos.
Palavras-chave: Subjetividade; Tecnologias digitais; Filosofar; Ensino básico.
ABSTRACT
As a way of contributing to the discussion on philosophy teaching and digital technologies, we sought to explore the new views on teaching that philosopher Paula Sibilia promotes in one of her studies, which deals with the place of the school in digital times. To add to this reflection, we thought about adding one of the tasks of teaching philosophy, which is philosophizing. To this end, we explored three attitudes relating to philosophizing that Gerd Borheim indicates in one of his works. The first attitude would be naive admiration, a certain astonishment at the greatness of the world, which is part of a pre-critical horizon of philosophizing. The second attitude refers to dogmatism, a barrier to philosophizing that can come from overvaluing the naive experiences contained in the previous step. The last point to be explored from Bornheim is the aspect of negativity, which exposes one of the instances to be overcome in order to cultivate the practice of philosophizing. The methodology corresponds to a qualitative analysis of the concepts based on a bibliographical review. The study indicates that not only the school, but also the teacher-student relationship is being impacted by digital technologies. In this change, philosophizing has also altered, thus requiring new efforts to consecrate philosophizing as a critique of these new digital elements that end up collaborating in the constitution of students' subjectivity
Keywords: Subjectivity; Digital technologies; Philosophize; Basic School.
Introdução
Este estudo foi desenvolvido para problematizar uma questão atualmente relevante: como o ensino de Filosofia pode florescer dentro de uma perspectiva de horizonte digital promovida pelas novas tecnologias e de superficialidade das interações sociais? O método empregado na investigação se concentra em uma análise bibliográfica de dois pensadores que, cada qual a seu modo, contribuem para a reflexão dos pontos de emergência dentro do tema proposto. Para compreender como atua esse regime de atenção pautado pela dispersão e superficialidade é que será abordada a obra de Paula Sibilia[1] intitulada: Redes ou paredes: A escola em tempos de dispersão (2012). Através da análise e complementação dos textos bases, buscar-se-á avaliar como está posto o problema das tecnologias digitais em relação a escola. Este artigo não se concentra na inserção ou não das tecnologias digitais em sala de aula, mas mantém o foco sobre os efeitos dessas tecnologias sobre a subjetividade dos jovens alunos. A proposta é investigar alguns efeitos que a tecnologia digital implicou na relação professor-aluno a partir dos estudos de Sibilia.
Para a continuidade e aprofundamento do assunto houve uma distensão do problema. Isto é, a tentativa de dar um passo adiante na reflexão, ou seja, uma tentativa de contribuir junto da análise conceitual e, assim, pensar a Filosofia como relevante no ambiente escolar. Isso não significa que a Filosofia será reduzida à sua funcionalidade ou pura instrumentalização. Pelo contrário, a intenção é suscitar aquilo que é precioso à Filosofia e que permanece como marca de potencialidade do ser humano: o filosofar. Além do mais, a reflexão sobre o filosofar, como distensão ao problema mais central, poderá abrir caminhos para a compreensão de como o filosofar está posto diante de novos elementos. Como base de reflexão foi escolhido abordar um escrito do filósofo brasileiro Gerd Bornheim[2], justamente a partir de uma obra denominada Introdução ao filosofar: O pensamento filosófico em bases existenciais. (Ed. Globo, 1998) São três temas mais significativos referente ao pensamento de Bornheim: (i) admiração ingênua; (ii) comportamento dogmático; e (iii) negatividade. Haveria outros temas dentro da obra de Bornheim para ser usado, porém para que se mantenha uma linha mais abrangente e não tão conectada ao pensamento fenomenológico-existencialista é que foi optado por tais temas. Com esse caminho percorrido o objetivo é conseguir ampliar as possibilidades e potencialidades da Filosofia como potência transformadora no contexto da educação básica.
A proposta é poder situar o problema a partir da genealogia do dispositivo pedagógico que Sibilia realizou em sua obra Redes e Paredes, próxima seção. Depois, poder retomar uma característica muito própria da Filosofia que é o filosofar, assim como Bornheim explora o tema, terceira seção. Assim, realizar uma contribuição em paralelo ao pensamento agudo de Sibilia e Borheim, trazendo o filosofar como fonte próspera para uma abordagem atual sobre as tecnologias digitais, última seção que configura as considerações finais.
O artigo conta com a vantagem de não abordar as tecnologias digitais em sua execução. Não versará, também, sobre o modo de utilização ou não das tecnologias digitais. Essas questões parecem estar alocadas em outro ponto de reflexão, aqui se buscará entender a educação como atingida por essas mudanças e como podem haver meios para uma ressignificação do filosofar nesse novo regime de atenção difundido pela era digital.
As subjetividades escolares na era digital
No arcabouço conceitual, criado e aplicado por Foucault, os regimes veridicionais (régimes véridictionnels) são produtos de um modo de pensar e agir humano que se refletem em regras que se formulam através do lugar privilegiado do discurso/direito e, assim, podem ser considerados a partir da chave falso ou verdadeiro. (FOUCAULT, 2008, p. 49) Dentro desta perspectiva, Foucault (FOUCAULT, 2005, p. 28 e p. 29) examinou os efeitos de poder, ao invés de tentar estabelecer um conceito estanque de poder, pois a cada reformulação dos discursos novos regimes de verdade se insinuam. Este modo de abordagem pode apontar para os efeitos de poder dentro da escola, por exemplo. Portanto, parece propício à discussão proposta neste estudo adentrar ao pensamento de Paula Sibilia. Isto porque além de carregar fortemente as indicações de pesquisa que Foucault proporcionou, poderá ser compreendido como o regime de atenção atual caracterizado pela dispersão se projetam como regimes de veridição. É importante ressaltar que o que está em jogo nessas interações entre o pensamento de Foucault e Sibilia é como a subjetividade humana é formada a partir de um entrelaçamento continuo entre vários fatores, assim Sibilia logo no início de Redes e Paredes afirma:
A natureza não é imutável, constituída como uma entidade inalterável através das histórias e das geografias; pelo contrário, as subjetividades se constroem nas práticas cotidianas de cada cultura, e os corpos também se esculpem nesses intercâmbios. (Sibilia, 2021, p. 7)
Outro fator que contribuiu para a conexão entre Foucault e Sibilia foi a genealogia da escola que a pensadora faz em sua obra[3]. Demonstrando assim, como a escola, enquanto instituição, tem sua genealogia diretamente ligada a criação do Estado nação. (SIBILIA, 2021, p. 13) Essa emergência da escola, como indica Sibilia, surge durante o período de solidificação dos dispositivos disciplinares, tal qual descrito por Foucault (1999, p. 132-133) em Vigiar e Punir. Ainda que não será aprofundado esta tese, mas apenas referida como a escola surgiu numa emergência própria do Estado nação de realizar seus objetivos, vale destacar ainda um ponto no qual Sibilia (2021, p. 22) indica:
Essa estrutura colossal foi montada com o objetivo de conseguir algo sumamente improvável: transformar a carne tenra das crianças num ingrediente adequado para alimentar as engrenagens vorazes da era industrial. Algo muito trabalhoso, único na história da humanidade e surpreendentemente recente para a nossa compreensão.
Desse modo, é possível perceber como a escola foi pensada enquanto instituição associada ao Estado para disciplinar[4] as crianças, pretendendo assim garantir que ela obedecesse posteriormente aos objetivos do Estado e da Economia (política). Evidente que a filósofa Sibilia não se restringe aos aspectos puramente negativos da criação e estruturação da escola na modernidade. Para a pensadora um dos grandes objetivos da educação na época moderna era imbuir o aluno de valores humanísticos[5], nesse sentido que a pensadora situa uma época de belas artes sendo substituída por uma linguagem de civilização da imagem:
Entre os complexos desdobramentos que ainda estão por ser cartografados e estudados, esse movimento implicou certa crise das “belas artes” da palavra – tanto em suas manifestações orais como escritas – e a implantação gradual daquilo que alguns denominam “civilização da imagem”. (Sibilia, 2021, p. 53)
É identificado pela autora a irrupção das tecnologias digitais como principal vetor de mudança paradigmática. Uma característica importante, também, foi amplamente explorada pela pensadora nesse câmbio ocorrido. Se na era moderna a formação voltada aos propósitos do Estado imperou, na contemporaneidade o Mercado assumiu tal foco: “Tais atualizações devem ser articuladas graças a um bom gerenciamento de si mesmo sob moldes empresariais.” (SIBILIA, 2021, p. 37) Um complemento dessa mudança é caracterizado pelo filósofo Éric Sadin que aponta para um fator importante:
Todos os credos que, em uma inspeção mais minuciosa, correspondem exatamente ao dogma liberal siliciano que combina a realização individual e a rejeição de qualquer regulamentação considerada coercitiva. Uma visão “existencial-econômica” que remonta ao “segundo Vale do Silício” e continua até hoje. (Sadin, 2016, p. 62 Tradução nossa[6])
Sadin (2016, p. 60-101) faz um longo trajeto em suas obras, destacando o momento pós-guerra, principalmente, através dos movimentos de contracultura americana, como realização de dois efeitos do neoliberalismo (ou como denominou technoliberalism). O primeiro efeito é uma resistência à disciplina (normatividades em geral) e um segundo efeito é predominância da criatividade como elemento primordial do ser humano. O desligamento das presilhas da disciplina e a criatividade se condensam na atividade empreendedora, tendo as startups como modelos principais.
A escola não passou em vão nesse panorama, pois se, por um lado, a disciplina que era característica da Escola tradicional sofreu forte abalo[7], por outro lado, a criatividade como elemento básico provoca a Escola a se adaptar atualmente, ainda que o ambiente estrutural remonte ao paradigma disciplinar. Como exemplo, Sibilia (2021, p. 70) expõe como a Escola se tornou um lugar de tédio para os alunos e como, em contrapartida, os professores parecem carregar a responsabilidade de tornar a aula divertida. Esses sintomas indicam que o direcionamento atual da educação e, consequentemente da própria educação filosófica, têm se tornado cada vez mais voltado a um objetivo utilitário e mercantil.
Outra contribuição de Sibilia (2021, p. 103-104) para a compreensão do momento atual da educação é compara o aluno ao cliente e o professor ao mediador. O professor também poderia se equiparar ao vendedor, pois esse faz uma mediação com o produto final. O aluno teria então as opções diante de si e poderia escolher livremente por aquilo que gostaria de aprender[8], levando adiante assim não somente o projeto não-disciplinar como a exaltação da criatividade do futuro empreendedor, mas principalmente garantir um consumidor nato[9]. O fato dessa mudança de relação entre aluno e professor estar se transformando desperta um paradoxo.
Ao mesmo tempo que houve uma luta, principalmente a partir da segunda metade do século XX, para libertar o aluno do excesso de autoritarismo que a escola impunha através do professor e das normas da instituição, há um efeito oposto também, que é transformar o professor em uma figura meramente simbólica, correndo o risco de perder inclusive o seu sentido de importância[10]. Já como tentativa de superação desse panorama, Sibilia (2021, p. 105) indica que a ressignificação positiva dos laços entre professor e aluno transitam por uma dificuldade imensa, pois: “Trata-se de uma tarefa artesanal e angustiante: custa muito escorar as situações sem um aval institucional, exigindo um esforço enorme de pensamento e invenção.” Complementa ainda, já no sentido de dotar os profissionais da educação de alguns pontos de apoio para suas ações dentre desses novos horizontes de constituição do conhecimento:
Portanto, em vez de ativar o canal institucionalizado para transmitir a verdade, o desafio consiste em criar vínculos que sejam capazes de manter um diálogo e que não se apoiem na antiquada autoridade disciplinar, mas em algum tipo de confiança forjada para a ocasião. (Sibilia, 2021, p. 107)
Essa proposta vai de encontro com uma atualização da maneira de conduzir a aula, mas principalmente como forma de “adensar o fluxo”, pois é assim que Sibilia (2021, p. 176) argumenta sobre a possibilidade de pensar atualmente o desafio da educação. Porque do outro lado está o que chama de “superfluidez”, que seria fruto da efemeridade das informações que vêm e vão formando redes precárias, no entanto, não formam só redes, acabam formatando a própria subjetividade das pessoas. Essas redes e subjetividade, porém, sofrem de um contato real:
A subjetividade midiática não se sente ameaçada pela alienação do desconhecimento, mas pela sensação de vazio e pela desorientação: por certa perda de sentido derivada da falta de consistência daquilo que se lê ou se escreve nas redes, por exemplo. (Sibilia, 2021, p. 176)
Antes de prosseguir para a próxima seção ainda faz sentido citar o que a pensadora sugere como pista para que se possa pensar a educação nesses tempos em que não somente as relações mudaram, mas as condições materiais (artefatos tecnológicos) adentraram a escola, novas formas de ver o mundo (agora mais marcado pela inundação de informações) e como se apresenta o desafio de: “[...] redefini-las como espaços de encontro e diálogo, de produção de pensamento e decantação de experiências capazes de insuflar consistência nas vidas que as habitam.” (Sibilia, 2021, p. 190)
Assim está constituída parte do cenário complexo educacional que, mesmo não exaurido, já deixa evidente muitos desafios. Sobretudo, está posto uma nova subjetividade atravessada e implicada nestas transformações. Se essa seção teve o objetivo de um “diagnóstico do presente” ou ainda de uma investigação sobre os “regimes de verdades” como Foucault apontava como características importantes do filósofo contemporâneo. De algum modo, na próxima seção, será seguido as indicações da filósofa sul-americana, já que a proposta de pensar a Filosofia através do filosofar é uma tentativa de pensar a partir do ponto de adensamento da experiência do humano, bem como tal atitude constitui uma fonte para o desenvolvimento do ponto de visto crítico para enfrentar os desafios da aprendizagem de Filosofia na escola de ensino básico.
Pensando o filosofar a partir do pensamento de G. Bornheim
Quando se pensa sobre o ato de filosofar é fácil remeter a uma passagem clássica de Aristóteles, que logo no início de sua Metafísica[11]. Após fazer diversas pontuações e diferenciações sobre os particulares e os universais, das diferenças da condição voltada a prática e do espírito mais teorético, afirmou que os filósofos seriam aqueles que mais mantinham um interesse na espécie de conhecimento que não se destinasse a algo, mas que fosse buscado por si, assim afirma que:
De fato, os homens começaram a filosofar (φιλοσοφεῖν [philosophein]), agora como na origem, por causa da admiração (θαυμάζειν [thaumázein]), na medida em que, inicialmente, ficavam perplexos diante das dificuldades mais simples; em seguida, progredindo pouco a pouco, chegaram a enfrentar os fenômenos da lua e aos do sol e dos astros, ou os problemas relativos à geração de todo o universo. (Aristóteles, 2002, p. 11, 982b 10-15)
Não é objetivo aprofundar às análises tipicamente aristotélicas, ainda que férteis até nossos dias. Mas é importante perceber como o filosofar enquanto prática é um elemento que está presente desde o início da Filosofia grega. Inclusive, esta citação de Aristóteles, não é somente para demonstrar a amplitude do filosofar, mas é um apontamento que levará a pensar na mutação do filosofar em relação à atualidade, bem como tal atitude pode se relacionar com o ensino de filosofia no ensino básico frente as tecnologias digitais.
Refletindo, ainda sobre a citação, é possível perceber que Aristóteles estava falando dos filósofos da physis, que principiaram as investigações através do escopo racional como se comportavam a natureza e assim puderam fazer propostas sobre o próprio fundamento e funcionamento geral da natureza[12]. Nesse sentido, há que pontuar que a atitude filosófica inicial seria esse espanto ou admiração (thaumázein) em relação a grandeza dos fenômenos naturais. Com efeito, é a partir deste instante que os estudos de Bornheim se tornam profícuos.
Logo no início de sua Introdução ao filosofar, Bornheim, faz menção para um tipo de admiração que surge, mas ainda não está moldada totalmente à Filosofia, ele denomina tal atitude como admiração ingênua. Fazendo um contrabalanço com o pessimismo ingênuo, que segundo o pensador brasileiro seria diametralmente oposto à admiração ingênua, afirma: “Se o pessimismo é a vontade que teima sobre si própria, na admiração brota o primeiro gesto de abertura do homem para uma realidade que o transcende.” (Bornheim, 1998, p. 38) Essa realidade não transcende por ser paralela, mas sim por representar a grandeza da natureza.
Bornheim destaca três características que seriam marcantes desta admiração ingênua. A primeira seria a constatação do outro: “Assim, a primeira característica da admiração ingênua é a afirmação, compreendida como abertura, do outro como outro, que releva do sentimento de pura disponibilidade, amorosa e desinteressada.” (Bornheim, 1998, p. 41) Aos poucos a intenção é buscar no filosofar essas particularidades que podem revelar alguns indícios de mudanças sobre aquilo que Sibilia estava alertando, ou seja, um combate ao conhecimento como mercadoria[13]. Uma segunda característica seria a descoberta da consciência, Bornheim (1998, p. 42-43) indica esse momento que, não apenas diferencia os humanos dos outros animais, mas principalmente possibilita a constituição da subjetividade a partir das experiências de si com o mundo (reflexividade). Novamente, parece contribuir para a discussão sobre as tecnologias digitais e a escola, pois é justamente a abertura para constituir a própria subjetividade é que o aluno pode transformá-la. Cabe salientar que nessa característica de descoberta da consciência está um fator importante:
Própria da consciência humana é a experiência da heterogeneidade, isto é, a experiência do radicalmente outro, do diferente de si e em si mesmo. Pois na interioridade do próprio ato de tensão da consciência para o exterior, de coincidência com o mundo, este exterior me repele, e me repele na medida exata em que consigo penetrá-lo. (Bornheim, 1998, p. 44)
Isso representa não um dualismo, pois anteriormente a esta citação, Bornheim (1998, p. 43) situa a complexidade humana através de um jogo de palavras: “[...] uma interioridade exterior e uma exterioridade interior – presença ausente e ausência presente.” Esse seria um dos motivos, segundo Bornheim (1998, p. 44), de uma certa “inadaptação profunda” do humano, fruto da própria reflexão filosófica-existencial. Muito menos indica que o professor de Filosofia deve causar tal conflito junto ao aluno, porém isto é próprio da condição humana.
A partir da análise feita de Introdução ao filosofar é perceptível notar como, a partir do esclarecimento sobre a Admiração ingênua, Bornheim se concentra em expor os estudos fenomenológicos que realizou. Não será seguido tais estudos, apenas algumas indicações que possibilitem uma completude do pensamento de Bornheim.
Uma das razões que justificam continuar explorando a obra de Bornheim é porque ele aborda uma questão que foi remodelada a partir das tecnologias digitais: o dogmatismo. Um pouco antes de começar nesse ponto é curioso como Bornheim diferencia a admiração do espanto. Se em Aristóteles o conceito de thaumázein sugere intercambiações possíveis entre os termos admiração e espanto, Bornheim (1998, p. 48) já é mais enfático[14] e diferencia os dois termos. Basicamente o espanto remeteria, segundo Bornheim, a um susto ou alguma forma de surpresa, que de alguma forma anularia a potência de refletir a admiração unida ao filosofar: “No mais, tanto o pasmo quanto a surpresa processam-se indiferentemente em relação a um significado afirmativo ou negativo.” (Bornheim, 1998, p. 48) O pensador brasileiro usa o exemplo de um assassinato ou algum fato que cause estupefação, que nem por isso torna-se uma abertura para o filosofar. Desse modo, a admiração ingênua é muito mais sobre uma atitude afirmativa frente as diversas coisas existentes, sendo possível a partir disso (re)constituir a si mesmo dentro da perspectiva mundana.
O que coloca em xeque a postura da admiração ingênua é o dogmatismo. Pois, para Bornheim, a ingenuidade pode gerar uma forma de dogmatismo que se prenda apenas à admiração do mundo em geral[15]. O problema dogmático, neste caso, seria se prender as atitudes que revelem apenas uma postura exclusivamente estática frente ao mundo. Ou seja, ver-se em um contexto já dado e que independente das ações ele continuará tal como foi:
Tudo o que de excepcional aconteça, será como destaque sobre o fundo inabalável do mundo desde sempre dado: a excepcionalidade do excepcional supõe precisamente aquele mundo familiar. Este excepcional, portanto, longe de abalar a postura natural, não faz mais que confirmá-la. (Bornheim, 1998, p. 57)
Uma das preocupações é que o dogmatismo tome novas formas através das tecnologias digitais, mais precisamente através das redes sociais. Somando-se aquilo que foi dito anteriormente, a saber, pela perda de referência do professor como figura importante de compreensão do conhecimento, se forme assim novos dogmas que apenas afirme novas verdades e não tenha pontos de referências[16]. Criar essas referências e esses sentidos ainda estão no seio do desafio atual e, portanto, propiciam pontos de partida de investigações relevantes.
Esse efeito dogmático que Bornheim descreveu frente a natureza da ingenuidade é uma base pré-crítica, pois é na busca por superar a faceta das certezas supostamente fixas que se poderá realmente ter o filosofar como efeito do pensamento crítico: “O homem só abandona a postura dogmática a partir do momento em que julgar, por razões suficientemente radicais, que a realidade, basicamente, deixou vacilar ou perdeu o seu sentido.” (Bornheim, 1998, p. 59) Uma das preocupações tendo em vista esse perder-se do sentido é a falta de razões para a ação, mas:
Isto não quer dizer, porém, que, uma vez abandonada a postura dogmática, a ação perca a sua razão de ser. Bem ao contrário, a postura crítica dará à ação um outro fundamento, aceito explicitamente e destituído de dogmatismo e ingenuidade. A postura crítica caracteriza-se pelo ato de questionar estes fundamentos da ação, de pô-los em dúvida. (Bornheim, 1998, p. 61-62)
Encarar a postura crítica como potencialidade do ensino de Filosofia no ensino básico enfrenta muitas barreiras. Uma das maiores delas é vivida na perspectiva polarizada que o Brasil na segunda década do século XXI experienciou, principalmente, a partir do debate sobre a neutralidade da escola. Uma das posturas que defendiam a Escola sem partido (ESP) indicava o perigo e o medo dos pais de seus filhos serem doutrinados, apenas por sentirem que não estão satisfeitos com a condição da educação no Brasil e de uma suposta educação marxista posta em prática pelos professores, revelando, porém, uma postura antipluralista e nada neutra em tal defesa contra a doutrinação[17]. Vale ressaltar que neste postulado sobre a reavaliação do mundo e das ações da pessoa não se limita ao escopo político, a não ser como efeito profundo das implicações éticas possíveis, que não é o caso de análise deste estudo. Mesmo havendo ou não doutrinação, fica a indicação de como é possível ver atualmente um dos entraves do começo da postulação de um filosofar como postura crítica diante do mundo.
Voltando-se para esse desencanto com o mundo e com o sentido que o filosofar como ruptura com a dogmaticidade acarreta, Bornheim (1998, p. 52) destaca que, somente na superação dessa negatividade com o mundo que surge uma empreitada filosófica que se volte à problematização: “A filosofia é impensável sem sentido de problematização, de espírito crítico, daí que outros caminhos, que não a admiração ingênua, deverão ser percorridos, para que se atinja o problema filosófico.” Esse é uma das contribuições que Bornheim (1998, p. 75) pretende ao realizar em sua Introdução ao filosofar uma tentativa em postular uma metodologia[18] de superação desse efeito de negatividade que pode incidir do ambiente pré-crítico. Antes de prosseguir é necessário situar a principal característica destrutiva dessa negatividade que pretende ser superada. Em seu extremo, a negatividade, pode ser vista como um esvaziamento de sentido, de maneira mais niilista e relativista possível, deixando o humano entregue a uma forma de egocentrismo. (Bornheim, 1998, p. 84) Uma passagem explica bem o sentido desse egocentrismo:
Com isto, o seu aspecto de relacionamento com o mundo se enfraquece, pois na medida em que o mundo é vivido como negativo, a própria relação com o mundo se torna negativa. E na medida em que a relação se torna negativa, acentua-se a consciência ou a vivência da separação. (Bornheim, 1998, p. 98)
Existem outras características que legam a negatividade um sentido mais amplo, tal como dúvida metódica e a consciência da ignorância podem, em menor ou maior grau, despertarem formas de ser no mundo, como aborda Bornheim (1998, p. 87). Uma das maiores influências de Bornheim é Hegel, por isso o pensador brasileiro coloca a negatividade como uma das etapas da dialética. Seria nesse desembaraço entre negar as qualidades do mundo e de reatribuir valores que o filosofar tem sua capacidade aumentada. Mesmo abdicando de uma análise mais hegeliana, é possível identificar como propícia às indicações de Bornheim em Introdução ao filosofar que percorrem o caminho de uma admiração ingênua, que se não for refletida pode se tornar uma forma de dogmatismo. Há, também, o fator de negatividade durante a reflexão crítica, que pode gerar um efeito paralisante no humano. Essa paralisia só é ressignificada com a conquista de si e com a tomada de uma porcentagem de responsabilidade inerente ao viver, que desperta com a conscientização da problemática filosófica e da percepção do aspecto relacional que incide sobre a humanidade. (Bornheim, 1998, p. 119, 123 e 145)
A proposta de conclusão será somar esses aspectos a um fator atual, que mudou completamente essa dinâmica do filosofar: as tecnologias digitais. Isso porque agora há uma forma de ser no mundo que difere muito daquele vivido no século passado e sobre o qual Bornheim ambienta suas pesquisas. Há atualmente uma nova forma de negar o mundo que não se restringe a perda de sentido do mundo natural, ainda que os valores continuem podendo ser negados. As redes digitais propiciam uma nova fuga da realidade e, consequentemente, a negação da realidade mais imediata[19]. Assim, por exemplo, é fácil nutrir na internet perfis em redes sociais em que se é feliz e se tem muitos amigos enquanto a realidade fora dela pode ser o oposto. Essa situação é enfrentada pelos alunos atualmente e implica pensar em novas formas de pensar o filosofar inserido na educação básica como início de um olhar crítico sobre si e sobre o mundo digital que cada vez mais contribui para a formação da subjetividade.
Considerações finais
Se há indicações sobre uma mudança gradativa em relação ao regime de verdade que envolve a escola, o ensino de filosofia e as subjetividades, foi priorizado neste artigo um objetivo mais específico. Toda a estrutura do artigo foi desenvolvida para refletir como o filosofar pode desempenhar um papel importante para o ensino de Filosofia diante dos diversos artefatos tecnológicos que perpassam a realidade estudantil. Foi possível constatar que está havendo uma mudança profunda da relação entre professor e aluno.
Assim como Sibilia argumenta, os papéis estão cada vez mais horizontais em relação à hierarquia. Outro fator importante que a pensadora destaca é como o Mercado adentrou à sala de aula e está tornando o ensino não somente um produto, mas parece criar uma exigência que o professor (vendedor) torne o conteúdo atrativo e divertido para o aluno poder escolher entre o que mais gosta. Como forma de estancar alguns efeitos adversos, Sibilia afirma uma postura mais artesanal que o professor pode aplicar, moldando as diretrizes das suas aulas através da confiança e de acordos forjados nesse ambiente. Como modo de abordar mais a temática do ensino de Filosofia no ensino básico e, assim, contribuir com algo além da análise é que foi optado por abordar as pesquisas de Gerd Bornheim.
Dentro da perspectiva traçada por Borheim sobre o que consiste em filosofar é possível fazer alguns paralelos com o tema geral do artigo. Bornheim afirma que teria uma fase pré-crítica no filosofar que é o da admiração ingênua. Essa admiração, resumidamente, consiste em um deslumbre que a consciência humana pode despertar diante da grandeza da natureza. Poderia aqui ser traçado outro paralelo, que se aproxime mais das perspectivas atuais, a admiração ingênua pode ser despertada pelo uso das tecnologias digitais. Para uma mente mais nova, como são as dos alunos no ensino básico, as tecnologias digitais podem representar algo maior do que são realmente, ou seja, uma nova perspectiva pré-crítica que o filosofar se depara. O segundo momento que foi destacado nesse artigo sobre a Introdução ao filosofar de Bornheim foi a dogmaticidade. O argumento de Bornheim é que a ingenuidade da admiração pode se tornar dogmática, desse modo a grandeza da natureza seria mais relevante que qualquer outro fator que venha a ser confrontado na consciência. Novamente o paralelo com temas atuais pode ser feito, pois nutrir um discurso e moldar a subjetividade do pensante de modo a compreender a tecnologia digital como panaceia, que pode resolver todos os problemas humanos já é um indício de dogmatismo. O outro elemento escolhido a partir de Bornheim foi o que o filósofo chamou de negatividade. Seguindo a linha de pensamento, o filosofar que supera a admiração ingênua e o dogmatismo, ainda tem de se deparar com a negatividade. Essa negatividade surgiria do rompimento do dogmatismo que poderia deixar a pessoa em um estado de paralização completa ou mesmo de pessimismo acrítico, ambos os casos trazendo bloqueios ao filosofar. Pode surgir um paralelo com a configuração atual regido pelas tecnologias digitais nesse último ponto também. O principal ponto de semelhança seria a negação da realidade física pela digital, isso de modo a ampliar o afastamento da pessoa com o mundo, de modo geral desconfiar da possibilidade de ação conjunta (basicamente a corrosão da política em tempos contemporâneos).
Outro fator a ser levado em consideração seria o isolamento da pessoa no mundo digital, no qual é nutrido um "perfil" que corresponde aos padrões que não encontra na vida real. A proposta de pensar o filosofar como guia do ensino básico seria uma ferramenta para a superação dessas barreiras. Uma ferramenta, mas não única, nem a última. As realidades sociais, geográficas e mentais exigem adaptações dos professores na maioria dos casos.
Pensar o filosofar no ensino básico é uma forma de juntar as contribuições de Sibilia e de Bornheim. Se Sibilia aponta como eixo principal de solução o adensamento da experiência do aluno, já o pensamento de Bornheim pode contribuir ressaltando que o nutrimento de uma reflexão crítica amparada pelo filosofar altera a visão sobre o mundo e, consequentemente, sobre si mesmo, não admitindo manter a consciência no raso. Por isso Bornheim argumenta que no filosofar a consciência de si e do outro estão alinhados, bem como uma possibilidade de uma nova responsabilização de si perante com o mundo durante o filosofar.
Outro fator que une Sibilia e Bornheim é sobre a confiança, pois a superação da negatividade (já unidos nessa conclusão e não se restringindo apenas a um modo de filosofar) exibe as características propícias que o professor pode aplicar em aula. Assim os argumentos de Sibilia concordam com o fato de a confiança ser desenvolvida, através do filosofar, como modo de aproximar professor e aluno diante de um objetivo em comum. Ocorre de os desafios só aumentarem para o professor, ainda mais para o professor de Filosofia que muitas vezes só é encontrado na fase final do ensino básico e com poucos períodos/horários para desenvolver suas aulas. Além das barreiras convencionais, o professor de filosofia, ainda encontra outras, como aquela destacada no artigo (sobre a Escola Sem Partido), ainda existem outros mais, como a baixa remuneração, desvalorização social da função e outros que podem ser destacados, mas que remetem a outras e novas pesquisas.
Cabe finalizar indicando que o ensino de filosofia pelo filosofar no ensino básico de educação não tem um caminho pronto, mas demonstra que pode ter frutos promissores. Mesmo que o professor não alcance todos os alunos, mesmo que nem todos os alunos irão nutrir um filosofar enquanto modo de vida, os que forem impactados, seguindo ou não a Filosofia enquanto carreira, poderão estar mais lúcidos e preparados para uma mudança substancial da realidade. A subjetividade é o que está em jogo, como vai ser formada e quais conteúdos serão relevantes para essa formação é que pode definir o futuro da interação dos humanos com as tecnologias digitais.
Referências
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Notas
[1] “Ensaísta e pesquisadora argentina residente no Rio de Janeiro, dedica-se ao estudo de diversos temas culturais contemporâneos sob a perspectiva genealógica, contemplando particularmente as relações entre corpos, subjetividades, tecnologias e manifestações midiáticas ou artísticas.” Informações retiradas de sua página na internet.
[2] “Gerd Albert Bornheim (Caxias do Sul RS 1929 - Rio de Janeiro RJ 2002). Filósofo, professor e ensaísta.” Informações retiradas da internet.
[3] Inclusive elegendo o título de “dispositivo pedagógico”, lembrar que o termo dispositivo foi usado por Foucault em suas pesquisas e Agamben conseguiu explicar de maneira sintética que: “Comum a todos a esses termos é a referência a uma oikonomia, isto é, a um conjunto de práxis, de saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo é de administrar, governar, controlar e orientar, em um sentido em que se supõe útil, os comportamentos, os gestos e os pensamentos dos homens.” (AGAMBEN, 2005, p. 12)
[4] A autora faz uma recomposição longa sobre o pensamento kantiano sobre educação, apenas fica o registro da indicação da autora que afirma que: “Desse modo, já convenientemente disciplinados, instruídos, civilizados e moralizados – para retomar os quatro pilares pedagógicos destacados por Kant -, os sujeitos podiam ingressar em cada uma dessas instituições munidos das premissas que as guiavam” (SIBILIA, 2021, p. 19)
[5] Aquilo que já era embrionário no renascimento, a saber, a intenção de uma cultura humanística remetendo aos gregos, se torna na modernidade conveniente continuar. A busca por uma formação mais integral foi objetivo dos mecanismos disciplinares modernos, bem como uma forma de ensinar o aluno a abdicar do desejo individual em prol do Estado ou ainda em prol de uma ação universal. É possível aferir tais afirmações tanto com os estudos da própria Sibilia (2021, p. 48) quanto em obras próprias da modernidade como o Emílio ou Da Educação de J-J. Rousseau.
[6] “Autant de credo qui, à y voy de plus près, correspondent exactament au dogme libéral siliconien mêlant épanouissenment individuel et refus de toute régulation jugée coercitive. Vision "existentialo-économique" qui remonte à la "seconde Silicon Valley" et qui court jusqu'á aujourd'hui.” (SADIN, 2016, p. 62)
[7] A filósofa afirma (SIBILIA, 2021, 125), a partir de Lewkowisky e Corea, que a Escola corre o perigo de se tornar mais um depósito um galpão no qual os pais deixam os alunos para realizarem suas atividades rotineiras do que um local de diálogo e conhecimento.
[8] A autora, inclusive, faz alusão a diversos métodos alternativos de educação que têm sido exaltados por cumprirem tais premissas, mas que, também, acentua as desigualdades sociais, pois geralmente são frutos de um ensino privado. (SIBILIA, 2021, p.)
[9] “Quando o jovem deixa de ser aluno por excelência e se converte, antes de mais nada, num usuário dos meios de comunicação e num consumidor mais ativo que muito adultos, constata-se uma obviedade que não deveria sê-lo: a lógica do mercado se generalizou.” (SIBILIA, 2021, p. 55)
[10] Sibilia (2021, p. 20) faz menção à certa forma de horizontalidade da relação aluno e professor (e mesmo a relação de pai e filho) que ocorreu após a propagação em massa dos artefatos tecnológicos e da internet.
[11] Atualmente causa certo receio falar de Metafísica devido a sociedade científica secularizada ser tão difundida, mas sempre cabe retomar o que Hans Reiner (2005, p. 93) afirma, num dos artigos que compõem o livro Sobre a Metafísica de Aristóteles, organizado pelo prof. Marcos Zingano. Explica Reiner que primariamente o nome Metafísica era relativa à organização das obras de Aristóteles por Andrônico de Rodes, sendo mais tarde referenciada como um conteúdo próprio de reflexão. Portanto, Metafísica (ta meta ta physika) indicaria a localização da obra diante das outras obras do estagirita, mas não foi um termo explorado pelo próprio Aristóteles.
[12] “Essa teoria é racional porque procura explicar o mundo não por uma luta entre elementos, mas por uma luta entre as realidades “físicas” e a predominância de uma sobre as outras. Essa transformação radical resume-se, aliás, na palavra grega physis, que, em sua origem, significa ao mesmo tempo o início, o desenvolvimento e o resultado do processo pelo qual uma coisa se constitui.” (HADOT, 2014, p. 28-29)
[13] Aqui também é possível ver o quanto essa discussão remonta a tempos distantes, afinal, não seria semelhante a luta dos filósofos gregos contra os sofistas?
[14] Inclusive, Borheim (1998, p. 33) alerta que se deve permanecer atento “[...] contra juízos fáceis e apressados em relação a este aspecto da doutrina aristotélica.” E acrescenta na mesma página que analisar os aspectos da melancolia na Metafísica aristotélica seria tão ou mais profícuo que especular sobre a admiração.
[15] Borheim (1998, p. 55) faz algumas indicações mais específicas sobre as teorias de Husserl (Generalthesis) e da fenomenologia, não será o caso de adentrar aqui, preferiu-se apenas indicar o caráter dogmático contido na admiração ingênua que fica presa ao mundo em geral.
[16] Conferir o tema tão importante como é o da pós-verdade e que está relacionado a certa forma de dogmatismo, aqui fica uma das inúmeras indicações para leitura: MCINTYRE, LEE C. Post-truth. MIT Press. Estados Unidos: Cambridge, 2018.
[17] Ver OLIVEIRA, Ana Cláudia Rodrigues de; STORTO, Letícia Jovelina; LANZA, Fabio. A educação básica brasileira em disputa: doutrinação versus neutralidade. Revista Katálysis, v. 22, n. 3, p. 468–478, set. 2019; SANTOS, Rayani Mariano dos; BIROLI, Flávia. ESCOLA SEM PARTIDO E O PROCESSO DE DESDEMOCRATIZAÇÃO NO BRASIL. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 120, p. 247–286, set. 2023. Uma publicação do Fundação Getúlio Vargas (FGV) que também é conveniente citar intitulada: A batalha pela educação: Uma análise do termo 'doutrinação' na nova Frente Parlamentar da Câmara dos Deputados. Disponível em: https://midiademocracia.fgv.br/estudos/batalha-pela-educacao-uma-analise-do-termo-doutrinacao-na-nova-frente-parlamentar-da-camara.
[18] Muito das práticas de superação são postas por Borheim através da sua veia existencialista e fenomenológica e por isso não serão seguidas de perto. Porque a intenção não é postular um método ideal de superação, mas provocar os educadores a pensarem a partir de seu próprio espaço e de suas possibilidades diante do filosofar como prática relevante no ensino básico.
[19] “Hoje, através do recurso aos meios digitais, produzimos uma enorme quantidade de imagens. Esta produção maciça de imagens pode ser interpretada como uma reação de defesa e fuga. O delírio da otimização apodera-se também da produção de imagens. Já não são as religiões, mas as técnicas de otimização, aquilo cuja ajuda procuramos contra a facticidade, tanto dos corpos, como do tempo, da morte, etc. O meio digital desfaz a facticidade.” (HAN, 2016, p. 41)