O nascimento do/a professor/a de filosofia no Estágio Curricular Supervisionado
The birth of the philosophy teacher in the Supervised Curricular Internship
Willian Xavier Lopes
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil
willian.xavier@acad.ufsm.br
Vitória Albert Sauzem
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil
vitoria.sauzem@acad.ufsm.br
Recebido em 28 de junho de 2023
Aprovado em 05 de dezembro de 2023
Publicado em 03 de março de 2025
RESUMO
Este artigo apresenta algumas reflexões acerca da experiência do Estágio Curricular Supervisionado em Filosofia em uma escola pública de Santa Maria/RS. Seu objetivo é problematizar o nascimento do ser professor/a nesse contexto, pois ao decorrer desse percurso foi possível diagnosticar uma crise de identidade docente, movido por uma dualidade de pertencimento entre um Eu docente e um Eu discente. O Eu discente apreende algumas teorias, conteúdos e metodologias que incorporam táticas e redes de compreensão para as novas práticas do Eu docente, isto é, no momento do Estágio Curricular Supervisionado a formação do professor/a estagiário está na ordem do duplo, entre a institucionalidade e a cotidianidade do escolar. Em consequência, na formação inicial do/a professor/a de filosofia veremos que constantemente precisa refletir suas concepções de ensinar filosofia e o seu próprio papel no processo de ensino. Neste texto, sobretudo sob o olhar da experiência, pretende-se relatar os dispositivos pedagógicos que produziram os/as novos/as professores/as de Filosofia, veremos que em parte imersos na complexidade da escola sociocultural, em outra parte mobilizados a exercitarem uma Experiência de Si.
Palavras-chave: Ensino de Filosofia; Estágio Docente; Experiência de Si; Escola; Formação.
ABSTRACT
This article presents some reflections on the experience of the Supervised Curricular Internship in Philosophy at a public school in Santa Maria/RS. The objective is to problematize the birth of being a teacher in this context, because along the way it was possible to diagnose a teacher identity crisis, moved by a duality of belonging between a teaching self and a student self. The student self grasps some theories, contents and methodologies that incorporate tactics and networks of understanding for the new practices of the teacher self, in other words, at the time of the Supervised Curricular Internship, the teacher-training in the order of the double, between institutionality and the daily life of the school. As a result, in the initial training of philosophy teachers we will see that they constantly need to reflect on their conceptions of teaching philosophy and their own role in the teaching process. In this text, above all from the point of view of experience, we intend to report on the pedagogical devices that produced the new philosophy teachers, who were partly immersed in the complexity of the socio-cultural school, and partly mobilized to exercise an Experience of Self.
Keywords: Philosophy Teaching; Teaching Internship; Experience of Self; School; Formation.
Introdução
O Estágio Curricular Supervisionado (ECS) realizado através do Curso de Filosofia - Licenciatura, da Universidade Federal de Santa Maria, aconteceu em uma escola pública de Santa Maria no ano de 2022, espaço em que foi possível atuar com o ensino da Filosofia, numa turma de segundo ano do ensino médio. Esse espaço constituiu-se como um momento de experimentações, uma vez que o/a estagiário/a professor/a viu-se diante da necessidade de enfrentar embates na escola pública, movido/a por suas escolhas didáticas e metodológicas, por suas escolhas de temas e problemas a serem desenvolvidos em suas aulas.
A partir dessas considerações, enquanto estagiário/a, ao voltar o olhar para mim mesmo, observei-me como sujeito em um processo de formação docente, processo que ao longo da história das licenciaturas, se deu distante, apartado do cotidiano e das experiências do fazer pedagógico na escola¹. Nesse sentido, há um sentimento de dicotomia (do duplo) no momento do estágio, ou seja, de estranheza em relação ao pertencimento àquele ambiente escolar. Pois ao mesmo tempo em que é preciso realizar ações de ensino que visam a aprendizagem dos/as alunos/as pelos quais somos responsáveis, como por exemplo, oferecer condições para que os estudantes tenham contato com a Filosofia e com as experiências filosóficas, simultaneamente, se está em (auto)formação atravessado pela herança filosófica.
Em vista disso, inevitavelmente alguns questionamentos surgem: “quero ser professor/a de filosofia?”, "Quero fazer parte desse modo de vida?", “Estou disposto/a seguir filosofando?”. Esses e outros tantos problemas levantados com o tempo perfazem a minha ‘crise de identidade’, uma crise de identificação com o ser professor/a-filósofo/a. Assim, constato uma dualidade de pertencimento entre um Eu docente e um Eu discente. Estas duas condições estão implicadas em procedimentos e ações realizadas no período de estágio, pois as teorias, os conteúdos e as metodologias aprendidas pelo Eu discente possibilitam a formação de esquemas e redes de compreensão para novas práticas do Eu docente.
Os questionamentos levantados acima sofrem uma modificação: de uma ordem ética para uma ordem prática; do “quero” para o “como”. Surge, então, a questão base desse artigo: como se dá o processo de construção da identidade docente do/a professor/a-filósofo/a? Inicialmente, compreendo que tal identidade é construída e lapidada ao longo da experiência de professor/a, influenciada pelo contexto cultural, social e político, e lapidada ao longo da nossa trajetória inacabada. No contexto do ECS, a constituição dessa identidade se dá através da relação entre o/a professor/a estagiário/a e os alunos/as, por meio de elementos mediadores. Portanto, a questão que orienta este artigo diz da emergência do meu próprio processo em ‘ser professor/a’ de Filosofia e as diversas faces que implicam este fenômeno, a partir dos dispositivos pedagógicos-filosóficos acionados durante o Estágio Curricular Supervisionado, entre eles o dispositivo ético, isto é, as mediações se dão através do compartilhamento do mundo comum com os/as alunos/as (Arendt, 2008), e o dispositivo metodológico, que possibilita trabalhar com as práticas sociais e a filosofia a partir de seus problemas (Saviani, 2018). Tais mediações se encontram na cotidianidade e institucionalidade da escola, que é um espaço sociocultural, diversificado, conflituoso e plural, mas também através da experiência de Si, de minhas reflexões sobre o ser professor/a em filosofia, sobre as frustrações e inquietudes que atravessaram meu período de estágio e me produziram como sujeito professor/a.
Com o objetivo de compreender o processo de construção da identidade docente, o artigo está organizado da seguinte forma: em um primeiro momento investiga os tensionamentos advindos da própria cotidianidade na escola sociocultural (Dayrell,1996), bem como reflete de que maneira esses esquemas teóricos e práticos formam um arcabouço da prática do Eu docente ao longo do percurso formativo como estudante (Cerletti, 2009). A segunda parte investiga o processo de subjetivação docente, analisa através do conceito de experiência de Si (Larrosa, 1994, 2017) como o ECS produz alguns dispositivos que medeiam entre um Eu do passado e um Eu do presente. Por último investigamos um mecanismo ético desenvolvido no estágio, em que, por meio da relação pedagógica, foi possível a mediação e compartilhamento do mundo comum (Arendt, 2008) ao desenvolver um mecanismo metodológico que conceba uma prática pedagógica centrada nas práticas sociais e pelos problemas filosóficos.
A escola como espaço sociocultural e a formação docente
O estágio foi realizado em uma escola pública localizada no bairro Camobi, na cidade de Santa Maria/RS em dois momentos distintos: Estágio I e Estágio II. No Estágio I, o contato com a comunidade escolar se deu inicialmente através das observações das aulas de Filosofia do ensino médio, juntamente com a construção da Cartografia, cuja finalidade foi conhecer o cotidiano escolar nas suas diversas facetas e dinâmicas: quem eram esses/essas alunos/as, os/as professores/as e profissionais que compunham a comunidade escolar e como estabeleciam as relações entre si, com sua dinâmica própria. Em um segundo momento, no Estágio II, durante a regência docente, foi possível experimentar tal universo em condições de professor/a estagiário/a. Como síntese do primeiro momento, segue o excerto do Projeto de Estágio2 sobre as impressões da escola, a qual, para
[...] além da sua construção material e humana possui seus signos de sentidos, o que é isso? Algo que personaliza a Escola com a identidade que ela possui. [...] retirar do conceito Escola, a ideia de que possui seus meios iguais, do estático e do monótono, mas pelo contrário; ao desnaturalizar-lá encontramos neste ambiente o novo, o dinâmico, o entusiasmo, o corpo-vivo, um organismo repleto de dimensões e funções (Willian, p. 12, 2022).
Estar inserido no contexto escolar possibilitou investigar a instituição para além da sua representação material e das materialidades que a definem. Isso significou olhar para escola para além dos seus muros, ressignificá-la a partir das circunstâncias fenomênicas e simbólicas e, ao desnaturalizá-la como algo já dado e conhecido, sugeri-la de modo novo e, talvez, ainda impensado. De modo igual, na relação com os/as alunos/as foi possível perceber a diversidade deste ambiente vivo, pois os/as alunos/as e professores/as que fazem parte daquele lugar não são meras coisas, quer dizer, não são objetos inanimados, possuem propriedades e características singulares, e são quem formam os sentidos e os objetivos do escolar.
Os/as alunos/as que formam esse espaço são heterogêneos, ou seja, são marcados por sua classe social, sua origem étnica, sua sexualidade, sua própria maneira de ser e se relacionar, etc. Também se diferenciam pelas músicas que escutam, pelas preferências culturais, tudo isso certamente tem grande influência das tradições familiares, dos processos sociais e costumes das comunidades. Os/As estudantes são sujeitos da dinâmica escolar; criam uma lógica própria de relações interpessoais entre educadores/as, alunos/as e funcionários/as, permitindo que a escola seja um espaço de relações autênticas e singulares. Segundo Dayrell (1996), a instituição escolar é síntese de um confronto de interesses, de um lado a organização formal de um sistema escolar, que “define conteúdos da tarefa central, atribui funções, organiza, separa e hierarquiza o espaço, a fim de diferenciar trabalhos, definindo idealmente, assim, as relações sociais” (Ezpeleta; Rockwell, 1986, p. 58 apud Dayrell, 1996, p. 2, §1). Por outro lado, e aqui o que gostaríamos de dar maior ênfase, a escola se caracteriza também por um fazer cotidiano, por isso os/as alunos/as são sujeitos ativos da própria estrutura e responsáveis por sua contínua construção, transgressão e negociação com a institucionalidade determinada. Nesse sentido, para Dayrell (1996) a escola como espaço sociocultural
[...] é entendida, portanto, como um espaço social próprio, ordenado em dupla dimensão. Institucionalmente, por um conjunto de normas e regras, que buscam unificar e delimitar a ação dos seus sujeitos. Cotidianamente, por uma complexa trama de relações sociais entre os sujeitos envolvidos, que incluem alianças e conflitos, imposição de normas e estratégias individuais, ou coletivas, de transgressão e de acordos. Um processo de apropriação constante dos espaços, das normas, das práticas e dos saberes que dão forma à vida escolar. Fruto da ação recíproca entre o sujeito e a instituição, esse processo, como tal, é heterogêneo (Ezpeleta; Rockwell, 1986, p. 58 apud Dayrell, 1996, p. 2, §1).
Nessa perspectiva, a escola é uma constante troca entre esses dois pólos: a institucionalidade e o cotidiano. A sua heterogeneidade se dá na singularidade das relações dos sujeitos descoisificados imersos na institucionalidade e no cotidiano do escolar. A institucionalidade não é dada, por depender das decisões dos/as gestores escolares e dos professores/as, e o cotidiano é pluricultural/conflituoso, e por isso, ao mesmo tempo o “processo educativo escolar recoloca a cada instante a reprodução do velho e a possibilidade da construção do novo” (Dayrell, 1996, p.2, §3). O/a professor/a estagiário/a em filosofia, marcado pelas tarefas e pela responsabilidade para com seu Plano de Ensino (a institucionalidade), ao longo do semestre, é implicado por esse espaço heterogêneo, de forma que agora é necessário refletir sobre os modos que compreendemos a escola, como avaliamos os processos de ensino e aprendizagem em filosofia, e quais são os métodos e os recursos mais adequados para oferecer-lhes o conteúdo filosófico e a experiência filosófica
Os procedimentos tomados acima, visto que são ações desenvolvidas no ambiente dinâmico da própria escola, são perpassados também pelas concepções, crenças e valores que me atravessaram enquanto sujeito, de maneira eu diria, espontânea, devido ao próprio processo de aprendizagem dos conteúdos de filosofia, – ou seja, conforme os estudos desses conteúdos ao longo do curso filosófico, foi possível além de aprendê-los também adotar acriticamente planos de ações, medidas pedagógicas e formas de ensiná-los. De acordo com isso, nesse cenário – marcado pelo espaço do estágio, – é necessário tomar ações de autoridade docente, por exemplo, estar disposto a criar um espaço de orientação para uma atividade avaliativa, por julgar ser necessário para o melhor desempenho da turma3. Enquanto responsabilidade pedagógica creio ser essa medida necessária, e este valor e esta ação, não estão ‘soltos’ no espaço e no tempo, pois não existem fórmulas especificando a maneira correta de tomar medidas enquanto professor/a no seu percurso formativo, mas pelo contrário, é também influenciado por mecanismos teóricos e práticos apreendidos na vida escolar (e no curso de Filosofia), não na autoridade de professor/a, mas na subserviência de aluno/a.
Dessa forma, tenho indícios de uma dicotomia na minha experiência docente. O pertencimento ao escolar está no eixo do duplo4: a institucionalização do fazer e o cotidiano do fazer. Enquanto mobilizo as ações e os procedimentos para oferecer as condições necessárias de acesso a matéria filosófica aos/as alunos/as, sou atravessado pelas questões da discência como professor/a em formação de um curso de licenciatura em Filosofia, ou seja, pelos “esquemas práticos” apreendidos na trajetória de estudante que percorreu o ensino superior. Dessa forma, como afirma Alejandro Cerletti (2009),
Ao longo dos anos de estudante, vão sendo internalizados esquemas teóricos, pautas de ação, valores educativos, etc., que atuam como elementos reguladores e condicionantes da prática futura. De tal modo que um professor dispõe- quase que "espontaneamente"- de uma multiplicidade de teorias, em geral desconexas, instáveis, desarticuladas, algumas até contraditórias entre si, que foram sendo incorporadas, fundamentalmente, em sua experiência inicial como aluno, em seguida como estudante de licenciatura e depois, finalmente, como professor regente (Cerletti, 2009, p. 56).
Em grande parte acaba sendo professor/a do mesmo modo como foram os próprios professores da experiência como aluno/a, isto implica afirmar que a prática docente é um panorama diverso de confluências e condicionantes que vão permitindo uma continuidade da institucionalidade, que lá na experiência de estágio vão sendo incorporadas quase instantaneamente, visto que é um momento emergente da prática pedagógica. A prática docente conta um grande panorama de procedimentos influenciados de forma inconsciente, uma gama de “configurações de pensamento e ação que, construídas historicamente, se mantém com o passar do tempo, enquanto estão institucionalizadas, incorporadas às práticas e à consciência dos sujeitos” (Davini, 1995, p. 20 apud Cerletti, 2009, p. 56). Espera-se com isso, tomar ações autênticas que são caracterizadas como função do/a professor/a, mesmo ainda sendo apenas um/a estagiário/a (estudante), e por isso mesmo, são atravessadas por algumas questões.
A primeira questão envolve a influência das atividades acadêmicas que articulam os repertórios e os esquemas práticos do/a professor/a estagiário/a. Esses esquemas são fundados no intuito de promover continuidades institucionais, visto que essa prática pedagógica é realizada em escolas públicas do Estado e prevê funcionamentos normativos. A segunda questão, é a maneira de ser e se constituir no espaço educativo como aluno/a no ensino superior. Quando ocupamos os espaços da academia e estudamos as diferentes teorias e conceitos filosóficos, a relação com esses conteúdos e esse modo de se relacionar com a filosofia constituem um tipo de “imagem turva”, que é convocada como um dos recursos usados quando implicado pelas práticas docentes na regência de estágio. A “imagem” que nos vêm enquanto repertório de esquemas teóricos e práticos, pode ser incorporada nas metodologias e conteúdo da prática filosófica, entretanto esta imagem é turva, isso porque os esquemas práticos que possibilitam uma atividade própria do/a professor/a é realizada no contexto de sala de aula, na institucionalidade da escola pública, no cotidiano e na diversidade cultural e social dos seus integrantes, e não apenas na abstração passional dos conteúdos filosóficos de dentro da academia.
Isto significa dizer que cria-se uma dualidade de pertencimento escolar no âmbito do ECS. O Eu docente precisa assumir a autoria, precisa não só se colocar como agente produtor de conhecimento filosófico, mas também pensar as formas práticas dessa produção e construção na sala de aula. Isto só é possível com o Eu discente pois, mesmo que este conjunto de saberes e práticas estejam desarticuladas entre si, é inalienável o conjunto e o repertório de esquemas teóricos e práticos apropriados nas práticas como aluno/a. Em síntese, nessa prática docente “é preciso levar em conta a bagagem de teorias implícitas, crenças pedagógicas, hábitos institucionais [...] que conformam os saberes e as práticas que servem para manter uma coerência pessoal [...]” (Cerletti, 2009, p. 58), o que acarreta é a dimensão curricular dos cursos de licenciatura, atribuírem espaços que garantem um viés crítico e reflexivo acerca do caminho percorrido do Eu discente, o que forma as redes e os esquemas apropriados para contribuir que o Eu docente constitua uma proposta filosófica-pedagógica fundamentada nas suas concepções.
Portanto, nesse processo formativo, cria-se uma concepção do o que é ser um/a “bom/boa” professor/a, na posição de estudante a formação decorre da apreensão, introjeção e exclusão de determinados pressupostos, práticas e formas de ensino, de forma que se adere às práticas através da afetação e das crenças daquele/a e de outro/a professor/a. Isso também vale para a concepção e os modos de se relacionar com a filosofia, à maneira pela qual o/a docente ensinou filosofia e os meios que me concederam o acesso ao conteúdo filosófico, acarreta na forma de ensinar de maneira singular. Tal relação significa que os conteúdos formam aquela “imagem turva” atravessada no Eu, e isto, nos “formam” como professores/as filósofos/as.
Experiência de Si e subjetivação docente
Neste texto, as questões da experiência advindas com as atividades do ECS na escola pública ocupam um lugar central, tendo como pressuposto um/a professor/a-estagiário/a implicado/a nesse organismo, descobrindo-se nesse lugar como um Eu docente. O seu nascimento está imbricado em parte pela escola, nos conflitos que vêm da relação com os/as alunos/as, com os conteúdos e com o mundo. Por outro lado, se nasce professor/a na reflexão de si, sobre os esquemas (filosóficos) internalizados no Eu e sobre as diversas aflições pessoais e existenciais quando comovido pela posição de docente. O nascimento tem duas dimensões, uma externa, relacionada a institucionalidade, às tarefas formais de ensino no âmbito do ECS, e outra interna, que se apresentou na subjetivação da minha condição de professor/a.
Pressupõe-se que quando tratamos das atividades no contexto do estágio, que vamos falar apenas sobre métodos, habilidades e procedimentos. Porém, cabe questionar: os saberes do professor/a na vida escolar são apenas mecânicos? Se realizarmos as atividades elaboradas em cima de uma fórmula, de modo que a cada estagiário/a apropria-se, a fim de atingir uma sucessão melhorada da sua prática, teríamos uma ‘boa’ prática pedagógica e uma ‘boa’ formação de professores/as? A questão é superar esse viés da experiência do estágio. Em compensação, não se trata de negar a importância dos saberes da formação inicial de professores/as, mas penso com Freire (2015) quando afirma que “[...] os modos de fazer de um professor não podem ser reduzidos a competências obtidas por meio de técnicas.” (Freire, 2015, p.16). Portanto, é necessário abstrair daquele lugar a afetação, a cada passo em direção aos alunos/as, uma fricção. No desenvolvimento deste texto é fundamental o principal elemento do estágio: a experiência docente.
Em “Notas sobre a experiência e o saber de experiência” (2017), Jorge Larrosa propõe uma mudança de sentido na educação, pois ainda “costuma-se pensar a educação” em uma dicotomia entre os partidários da pedagogia-ciência e os partidários da pedagogia como uma prática política (Larrosa, 2017, p. 15). Há outra possibilidade, segundo o autor, para além do par ciência/técnica e teoria/prática – numa perspectiva existencial e estética – é o par experiência/sentido. Pensamos essa outra perspectiva, como uma experiência que dá sentido à escritura e que dá sentido à educação (2017, p. 5), concebemos a experiência como um sentido de transcendência de si mesmo, pois ao passo em que a experiência move o sujeito com o dizer, se constitui como um mecanismo de subjetivação.
Essa perspectiva do conceito de experiência faz desse espaço –, no qual ocorrem as práticas iniciais da docência de estagiários e estagiárias, – ganhar novas dimensões de sentido, pois
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação [...] (Larrosa, 2017, p. 25).
Esse espaço, como afirma o autor, é “o que se passa” é o “que nos toca”, na medida em que é possível essa suspensão, um tempo livre para refletir sobre si, também possibilita a reflexão sobre os/as próprios/as alunos/as e sobre a sua prática pedagógica; permite também problematizar o que é filosofia, o que é ensino, o que é educação, etc. O sujeito dessa experiência seria como um “território de passagem” (Larrosa, 2017, p. 25) uma forma de superfície sensível; onde tudo que acontece deixa uma “marca”, um “sinal”, um “sentir”. Ainda nesse sentido, essas marcas nos afetam, nos tiram dos trilhos, pois deixam vestígios, causam afetos e alguns efeitos.
Esse sujeito da experiência, seja como território de passagem, seja como superfície sensível, é definido por sua atividade receptiva, por estar sempre aberto e disponível. O sujeito da experiência se apresenta exclusivamente exposto, no sentido de estar de maneira aberta e não dada, por se apresentar vulnerável, correndo um risco o tempo todo. Esse sujeito é o que se propõe, o que se arrisca, o que opõe ou põe, é um sujeito disponível para a escuta. O sujeito da não-experiência é o que está tudo correto, nada lhe passa, nada lhe sucede, nada o afeta, tudo é automatizado. O professor que chega na sala de aula, aplica seu conteúdo, os/as seus/suas alunos/as mais ou menos absorvem este conteúdo, o/a professor/a volta para a sua casa, e esta é a sua práxis. Não há reflexão sobre a sua prática nem uma prática que parta da sua reflexão.
Na experiência de estágio, é possível refletir sobre os/as alunos/as, no sentido das escolhas de conteúdos e teorias filosóficas que farão mais sentido às suas realidades e, portanto, mais adequadas para a transmissão/exercício desse saber, isso depende, é claro, de crenças substanciais, como por exemplo, a concepção de ensino e aprendizagem; a concepção de filosofia; o que entendo por escolar; como compreendo a relação pedagógica, e etc. Escrever sobre essas crenças se constitui como um dispositivo pedagógico das disciplinas de ECS, o que possibilita nos ‘moldar’ professores/as e filósofos/as.
Por conta disso, este sujeito da experiência vive imerso numa crise5, pois não basta olhar para fora, sobre ensino e aprendizagem em filosofia, escolas e alunos/as. Para compreender a emergência do Eu docente é necessário um olhar sobre si mesmo, de voltar-se para si, isto exige o “olho da mente ser capaz de voltar-se sobre si mesmo" (Larrosa, 1994, p. 20). Sob tal ótica, o sujeito estaria disposto e visível em sua própria interioridade, isto porque os dispositivos permitem e guiam esse olhar. Segundo Larrosa, o sujeito,
[...] na medida em que mantém uma relação reflexiva consigo mesmo, não é senão o resultado dos mecanismos nos quais essa relação se produz e se medeia. Os mecanismos, em suma, nos quais o ser humano se observa, se decifra, se interpreta, se julga, se narra ou se domina. E, basicamente, aqueles nos quais aprende (ou transforma) determinadas maneiras de observar-se, julgar-se, narrar-se ou dominar-se (Larrosa, 1994, p. 20).
Esse tempo/espaço no qual percorre-se o estágio, é marcado por essas ações e reflexões em que é necessário se transformar; para tanto, é preciso sensibilidade, disposição, abertura e etc. É um tanto ‘doloroso’ observar-se, julgar-se, narrar-se e dominar-se6, mas o tempo de estágio nos possibilita esse exercício, resultado de diversos mecanismos que medeiam entre o Eu do passado e o Eu do presente. Estes dispositivos incorporados através das atividades do ECS, são os potencializadores para compreensão – imbricado na recente prática pedagógica do/a professor/a estagiário/a – da dualidade entre o Eu discente e o Eu docente. A compreensão do duplo.
Um dispositivo pedagógico será, então, “qualquer lugar no qual se constitui ou se transforma a experiência de si” (Larrosa, 1994, p. 20). Um exemplo desses espaços mediadores é falar sobre si mesmo, numa sessão de terapia, ou uma prática pedagógica voltada às questões éticas, ou uma fala no seu grupo político ou no seu grupo religioso. Este mecanismo se orienta sempre que é possível reinventar-se, transformar-se através da possibilidade de narrar, julgar e controlar a si mesmo, de atribuir significado através do mundo das palavras. Os dispositivos pedagógicos atravessados no ECS são as escritas dos Projetos de Estágios, o Diário da Prática Docente6 e a troca de relatos e conversas com o grupo de colegas e orientadora de ECS (Tomazetti, 2020), o que podem ser caracterizados como mecanismos que não só realizam a mediação entre o Eu e o ambiente, como também impulsionam a emergência da prática pedagógica na escola, com os alunos e alunas no/com mundo.
Experiência docente: do compartilhamento do mundo aos problemas filosóficos
O conhecimento filosófico acumulado ao longo da história, para além da sua riqueza carrega consigo algumas dificuldades, entre elas, a de promover o ensino e a aprendizagem da nossa disciplina, que na história ocidental conta com uma tradição de mais de dois mil anos, considerada por muito tempo como um saber para poucos. Dito isso, o que devemos ensinar? É possível a transmissão e exercícios desses conhecimentos? Devo ensinar apenas a filosofia ocidental?
Estar disposto a trabalhar com esse saber, ainda de modo inicial, requer um trabalho árduo de pesquisa, sistematização e planejamento. O planejamento marca um compromisso com a docência, pois coloca o professor/a estagiário/a no tempo presente, requer parar para pensar, refletir, estar no momento concentrado na produção filosófica, e ao mesmo tempo, ao acesso à filosofia. Esta tarefa é um desafio, pois implica oferecer as condições de acesso a esse saber para jovens que não possuem nenhum interesse prévio, não escolheram se profissionalizar em filosofia, são estudantes iniciais. Este desafio, implica levar em conta o universo de interesse dos/as estudantes, suas características, suas potencialidades e suas limitações e quais os conhecimentos prévios que já possuem acerca dos conteúdos.
O compromisso com a docência fica explícito no trabalho do/a professor/a filósofo/a, que deve promover o acesso à filosofia e trazer os/as alunos/as para o momento presente e, nesse sentido, para o mundo. Os/As alunos/as, a partir da abstração das coisas deste lugar e a criação de ferramentas para ressignificá-las, transformam o seu próprio mundo. Esta tarefa – ensinar filosofia e a filosofar, – não é passiva de contradição e de inconstância, pois é marcada por diversas resistências por parte dos/as alunos/as. Tal atividade por muito tempo foi considerada uma tarefa perigosa, pois, “[...] Sem dúvida, a filosofia foi retirada por razões ideológicas e estratégicas inspiradas na segurança nacional [...] A disciplina era considerada perigosa, pois poderia desviar a juventude do pensamento oficial” (Pegogaro, 1979, p. 15). Olhando para nosso contexto, observamos que a justificativa para banir a filosofia dos currículos das escolas públicas na ditadura civil-militar de 1964, é que a disciplina tinha um caráter transgressor para as juventudes, e era uma ameaça para a ordem vigente. Ademais, esse conjunto de saberes implica suspender algumas crenças e valores que são, para a maioria que entra em contato com a filosofia, temas muito caros e substanciais, no sentido de lidar com uma parte de si que é muito sensível; são valores arraigados do imaginário social e pressupostos da cultura familiar privada, por exemplo: a existência de Deus, a liberdade, a sexualidade, etc.
Nesse sentido, na minha experiência marcada pelo estágio, enfrentei alguns momentos que podem ser significativamente apontados por esta resistência. Por exemplo, em uma aula sobre ética e estética africana, com objetivo de compreender de que modo a normatividade dos valores dos povos de África implica em um modo de ser e se expressar, havia um questionamento de que, no momento em que mostrava a dança dos povos Iorubás7 o conteúdo não era significativo para uma aula de Filosofia, ou também, o julgamento de que a manifestação artística apresentada não era arte e que não era entendido como expressão.
A resistência estava no fato de que os/as alunos/as não possuíam interesse (ou motivação) em arte, nem em filosofia e nem em estética, e a concepção que tinham sobre a arte beirava apenas em elementos técnicos. Colocado isso, o que eu gostaria de destacar dessa experimentação foi a intenção de interdisciplinaridade entre filosofia e arte e a resistência (ou fricção) causadas pelas percepções dos/as alunos/as. A estética, portanto, que reside entre essas duas ‘áreas’ exige um tipo de exercício reflexivo juntamente com outros elementos perceptivos. Penso também, que essa resistência deriva de um tipo de subjetividade letrada em declínio, amparada num contexto contemporâneo da fluidez e de velocidade nas operações do pensamento, mediados pelas novas tecnologias digitais (Sibilia, 2012). Dessa experiência, o intuito da aula proposta era mostrar que a arte, a estética e a filosofia são matérias do mundo, necessárias para que os/as estudantes sejam inseridos/as nesse mundo comum, compartilhado por todos, independentemente das crenças que mantém reservadas para si. Entendo por mundo comum, numa concepção arendtiana, em que “[...] todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos”, e por isso “Só a ação depende inteiramente da constante presença de outros” (Arendt, 2008, p. 31).
Os/as professores/as estagiários/as de filosofia não têm os subsídios didáticos para tudo e possuem mais dúvidas do que respostas, mas percebo que é entre o mundo, o mundo do/a professor/a e o mundo dos/as alunos/as que está a possibilidade da experiência filosófica. O acesso à experiência não se dá passivamente, mas sim nestes mundos citados acima, através das fricções – na qual se geram e se engendram por meio do conflito, da admiração, das dúvidas, da negação, do (des)interesse e etc – na relação pedagógica, aquele espaço livre que proporciona ao professor/a se reconhecer professor/a e aluno/a se reconhecer aluno/a (Freire, 2015). Portanto, é uma responsabilidade pedagógica do/a professor/a inserir os seus/suas estudantes no mundo comum. Nas atividades de ECS somos movidos a seguir esta experimentação. A experiência com a Filosofia Africana mostra que para além do interesse dos estudantes, o ‘pensamento’ estético dos Iorubás também faz parte do mundo comum – assim como a estética em Kant – e é necessário que o/professor/a transmita-o e exercite-o.
Para que ocorra fricções pedagógicas é necessário que o professor/a vá além da qualificação diante da sua área de conhecimento. Nessa direção, Arendt afirma que “[...] A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo” (Arendt, 2007, p. 239). Deste modo, é necessário que o/a professor/a de filosofia conheça as matérias e os conteúdos do mundo para reconstruí-lo com seus/suas estudantes, para que possa ter a autoridade necessária para oferecer o interesse pela matéria do mundo e renová-lo. O ofício do/a professor/a, além da sua responsabilidade pelo o que é comum, também é uma relação específica com o mundo e com os outros.
O sujeito dessa relação pedagógica é um sujeito cognoscente (Freire, 201, p. 45) de modo que o/a próprio/a professor/a coloca o objeto de estudo em pauta, isto é, o objeto de estudo filosófico não é algo alheio a realidade do/a professor/a, tendo em vista que é assunto da sua relação estudiosa com o mundo. Também não é alheio ao aluno/a, conforme o/a professor/a vai colocando o problema para seus/suas alunos/as, estes vão modelando-o conforme as próprias inquietudes existenciais com o mundo da vida. O objeto cognoscível não é exclusividade do/a professor/a filósofo/a, mas é objeto gerador de investigação crítica, dentro da oficina da sala de aula. A partir disso, nas aulas de filosofia professores/as e alunos/as são sujeitos da produção do conhecimento filosófico, e por isso precisam “lidar” com a filosofia (Gallo, 2013, p. 93).
No decorrer desse processo, a ação do/a professora/a é permeada pela reflexão da sua prática, e a partir das suas práticas se problematiza a própria docência, e por isso “toda formação docente deverá ser, em sentido estrito, uma constante auto-formação [...] uma trans-formação de si” (Cerletti, 2009, p.10). Esta é uma ação humana, singular, porque faz emergir algo novo, um nascimento. Segundo Arendt,
A ação é a mais intimamente relacionada com a condição humana da natalidade; o novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque os recém chegados possuem a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir (Arendt, 2008, p.17).
Nesse sentido, ao agir o/a professor/a estagiário/a possibilita para os alunos/as não apenas a conservação do velho mundo e a reprodução dos velhos pensamentos filosóficos – do cânone tradicional – mas também a transformação do velho mundo, possibilitando o surgimento de um outro mundo e a criação de novos pensamentos filosóficos. Em consequência, o/a professor/a estagiário/a nasce na maneira em que ele/a consegue proporcionar, na oficina da sala de aula, novas provocações e questionamentos acerca do seu objeto de conhecimento: a matéria filosófica.
Conforme a escrita do Projeto de Estágio e a realização da Cartografia na escola, vamos delineando nossas concepções de ensino e aprendizagem em filosofia, nossas concepções de educação e de escola e o que consideramos ser um/a professor/a de filosofia. Nesse instante, também vamos classificando as melhores formas de oferecer o acesso ao conteúdo filosófico e, com isso, as escolhas metodológicas para as nossas aulas. As escolhas não são definitivas, com o decorrer das unidades didáticas e com a sucessão das aulas, as metodologias vão sendo incorporadas sobre a própria prática, transformando-a através do engajamento dos/as estudantes com as discussões propostas em sala de aula.
Nesse processo inicial de docência, reconhecer o erro é fundamental, é um movimento que também está atrelado com a experimentação das nossas metodologias de ensino.
O que esperamos é que nossa metodologia pensada, refletida, embasada teoricamente sobre as luzes dos referenciais, pressupõe estarmos no caminho certo [...] Afirmar que a metodologia de ensino tem que estar atrelada com a prática social e no processo de síncrese do saber, não significa dizer que há uma metodologia pronta, mas é uma metametodologia (Willian, p. 8, 2022)8.
No trecho fica evidente o reconhecimento que há uma metodologia inacabada, pois é refletida permanentemente sob a luz da prática. Um dos elementos despercebidos pelos/as estagiários/as no momento de regência é tratar o erro como uma empregabilidade imediata, por exemplo, conceber que determinada estratégia didática ‘não deu certo’ porque não foi visto seu resultado imediato, entretanto, num futuro, que se passa despercebido de si mesmo, tal resultado poderá aparecer sob outras formas e outros elementos.
A minha escolha metodológica teve dois eixos: a primeira se concentrou na proposta da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) inspirado por Dermeval Saviani (2018), onde o foco do fazer pedagógico não está no/a aluno/a, nem na figura do/a professor/a, mas o ponto de partida do processo de ensino é a prática social. Sob a ótica do ensino e
[...] do ponto de vista pedagógico, a uma diferença essencial, se encontram em diferentes graus de compreensão da prática social no que se refere às experiências e conhecimentos. O professor possui uma síntese precária, isto é, é sintético porque possui um certo grau de articulação do que seriam esses conhecimentos e experiências, porém, por mais que o embasamento que possui desses saberes fosse em grau maior ou menor, no seio da sua prática pedagógica, envolve algum tipo de planejamento/antecipação do que fazer com o alunado, cujo esses graus de conhecimento a priori ele não conhece, então do ponto de partida não poderia pensar além dessa precariedade. O aluno possui uma compreensão sincrética, ou seja, por mais conhecimentos e experiências que este tenha, do ponto de partida da relação pedagógica as práticas sociais caracterizam uma impossibilidade, porque no movimento de compreensão do todo (de maneira autônoma) não consegue desvendar esse todo sozinho, sem um “guia” pedagógico (Willian, p. 70, 2022)9.
Isso significa que o processo de aprendizagem filosófica não é possível com o/a aluno/a no centro do processo, muito menos centrado apenas na figura do/a professor/a – embora seja papel essencial de produtor na prática pedagógica – a condição de acesso ao filosofar se dá nesse meio comum, cercado de experiências, vivências e conhecimentos.
A segunda perspectiva metodológica, foi a escolha em trabalhar a filosofia na escola através dos seus problemas específicos, isso vai além de trabalhar seus/suas autores/as, ou a história das ideias de filósofas e filósofos. Os problemas são o motor do pensamento, pois estão situados na ordem do ainda não-pensado e, portanto, “[...] nos move a pensar justamente porque não somos capazes de compreendê-lo de antemão; ele não nos oferece uma resposta pronta, mas se apresenta para nós como um desafio a ser enfrentado, para o qual uma resposta precisa ser construída” (Gallo, 2013, p. 72-73). Por fim, penso que trabalhar a filosofia a partir dos seus problemas é uma rede complexa de convergências e conceitos próprios da especificidade dessa disciplina e, nesse sentido, é permitido acessar a história da filosofia como uma referência, de acordo com os problemas inerentes às práticas sociais, muito embora, a natureza do problema está no plano do acontecimento e da singularidade.
Os alunos e as alunas ao irem para a escola, levam os saberes, os preceitos e experiências da comunidade local. A escola também é lugar que espelha as práticas contidas no funcionamento social, e por isso, nada mais ‘rico’ do que trabalhar uma disciplina em que, como ponto de referência e especificidade, é potente para o pensamento crítico e reflexão problematizadora acerca de alguns hábitos e costumes sociais. Na experiência de estágio, proporcionar uma condição de experiência filosófica no sentido acima foi de difícil mediação e aceitação por parte dos/as alunos/as, pois percebemos nas camadas da sociedade, a não intervenção em assuntos considerados desagradáveis, e por isso não movimentam ações que provocam questionamentos e transformações nas suas crenças e costumes. Todavia, esta resistência é subvertida em pequenos momentos e por alguns/mas estudantes, quando não estão contidos em ‘levar a tarefa a sério’ – no sentido rigoroso da disciplina filosófica – e ao pautarem o objeto cognoscível, tornam público um problema que transcende a própria aula. Nesse ponto, nas aulas de filosofia, alguns elementos surgiram.
Em uma aula sobre ética, investigando de que modo as indústrias inculcam uma velocidade de consumo no modo de vida atual, o que resulta na forma de conduzirmos nossos corpos e desejos, um aluno interveio, expressando a maneira em que se coloca nessa problemática: sentia que cada vez ao procurar algo que o fazia feliz, no momento em que a encontrava se transformava em outros desejos. O aluno, com essa intervenção, torna público um problema que o incomodava profundamente, um problema que atinge a complexidade da sua existência, cujo fenômeno também é reflexo no comportamento geral da nossa sociedade. Tal problema se ressignifica na escola, podendo ser investigado sobre a luz dos problemas filosóficos. Ainda no assunto da aula, no sentido de proporcionar problematizações para um momento posterior de investigação, questionei a turma: “mas será que podemos controlar nossos desejos?”; “O que faz procurarmos algo que nunca conseguimos alcançar?”.
Percebemos através desse acontecimento, que acessar o conteúdo filosófico não é uma tarefa amena, requer crer que a filosofia está empreendida na realidade, na vida cotidiana. Necessita agir de maneira a transpor um problema singular, atravessado no Eu, para que tenha um acesso público, ou seja, retirá-lo do sujeito – aluno/a ou mesmo professor/a – e colocá-lo sobre a mesa, para o livre manuseio do problema na oficina da sala de aula.
Dado ao que delineamos na seção anterior, encarar esta condição carrega desafios e possibilidades, produzi-los é uma responsabilidade pedagógica. No entanto, na experiência descrita acima, na minha relação com o/a aluno/a, foi possível gerar contatos e fricções, o que possibilitou a ressignificação do mundo, isto é, a capacidade de podermos encontrar outros sentidos e significados para os nossos problemas existenciais – que podem ser os mesmos de outros. Possibilitar que os/as alunos/as assumam uma responsabilidade pelo mundo e adotem uma postura comprometida com o espaço da aula, desvia-se, na sua totalidade, dos alcances do/a professor/a, entretanto, diante do nosso ofício, apenas cabe oferecermos as condições para o acesso a esta experiência.
O contexto abordado até aqui foi enfrentado no estágio, com o testemunho dos problemas transpostos na sala de aula e na relação professor/a-aluno/a. Através desse processo (ou metamorfose), percebemos que podemos enxergar não mais como um/a discente, mas enfrentar o escolar como um/a docente em Filosofia. Refletir sobre a emergência dessa nova condição implica a necessidade de realizar pesquisa, de voltar a atenção pelo caminho percorrido e reconhecer esse acontecimento num espaço de (auto)formação de si.
Considerações finais
As reflexões elaboradas neste texto nos possibilitaram entender o que é a crise de identidade docente, em que espaço se dá e de que forma ela ocorre. Estas mesmas problematizações nos indicam a constituição de um tipo de professor/a de filosofia que, diante do compartilhamento do mundo e da metodologia centrada nas práticas sociais, emerge uma proposição de ser docente. O problema que percorreu ao longo deste escrito é o processo de formação da subjetividade docente, diante do espaço formativo de estágio vimos que é um constante ‘se ver consigo mesmo’, um permanente processo de auto-atualização de si.
Em um primeiro momento apresentamos o espaço dessa experiência ao realizarmos um exercício de ressignificação dos sentidos do escolar, compreendendo a escola como viva, dinâmica e ao mesmo tempo pluriversal e conflituosa. Desse modo, ação do/a professor/a estagiário/a é um constante diálogo entre a sua cotidianidade e institucionalidade. No segundo momento, consideramos que os/as estagiários/as implicados pelos dispositivos desenvolvidos no ECS, produzem um tipo de tecnologia interna que possibilita se auto-regular e narrar sobre si mesmos, quando isso ocorre, produzem as condições para uma metamorfose, uma saída de si mesmo, o que potencializa o encontro com a docência. Por último, através da experiência docente, analisamos os mecanismos produzidos pelo/a estagiário/a que provocaram as fricções pedagógicas-filosóficas com os/as seus/suas alunos/as. Essa inflexão, ao cumprir com a responsabilidade pedagógica de tornar público um problema relacionado à singularidade dos/as alunos/as, impregnado no funcionamento social, transforma a sala de aula em uma oficina onde podemos produzir experiências filosóficas.
A formação filosófica entendida neste texto é interpelada por dois eixos, pois como vimos com Cerletti (2009) ao mesmo tempo em que é uma projeção do interior também é a introjeção do que é exterior. A problemática da filosofia e seu ensino decorre do modo de interpelar o ensino de conteúdos do próprio curso de Filosofia, o que faz afirmarmos a impossibilidade da construção de uma proposição de ensinar filosofia sem a dimensão subjetiva do/a estagiário/a em formação. Em virtude disso, esse/a docente que nasce no berço do ECS, refletindo e construindo uma proposta didático-filosófica, consegue distinguir esse esfacelamento entre filosofia e seu ensino e, agora não mais na subserviência, consegue identificá-la e denunciá-la na sua própria trajetória formativa. Em razão disso, esse espaço conduz a encontrarmos um sujeito que produz filosofia e produz um professorar na medida em que olhamos, escrevemos e narramos sobre nós mesmos, sobre os/as estudantes e sobre filosofia.
Nesse sentido, os espaços conduzidos na experiência de estágio, possibilitaram o exercício de auto-identificação com a docência. O nascimento também se dá com a ação humana, com a singularidade da prática pedagógica do/a estagiário/a, e em contato com os/as seus/suas alunos/as possibilitam diversos atritos, estes ‘contatos pedagógicos’ faz surgir um novo Eu, agora professor/a. Ao compartilhar o mundo com os/as alunos/as, percebemos que a nossa identidade não se constitui no isolamento, mas nas coisas incomuns e comuns entre si, no atrito inter relacional, entre a igualdade e a diferença.
Referências
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ARENDT. Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2007.
CERLETTI, Alejandro. O ensino de filosofia como problema filosófico. Belo Horizonte. Autêntica, 2009.
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DELEUZE, Gilles. Dobra (a): Leibniz e o Barroco. Papirus Editora, 1991.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
GALLO, Sílvio. Metodologia do ensino de filosofia: uma didática para o ensino médio. Papirus editora, 2013.
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PEGORARO, Olinto. Política da filosofia no Brasil. Zero Hora. Porto Alegre, 1979.
SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. Autores associados, 2018.
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TOMAZETTI, Elisete Medianeira. ESTÁGIO EM FILOSOFIA E PRÁTICAS DE EXPERIÊNCIA DE SI (DOCENTE). Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação (RESAFE), n. 34, p. 71-92, 2020.
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Notas
1 Tal modelo está ancorado no pressuposto de que na formação do/a professor/a seriam necessários três anos de formação em uma área específica do saber (conteúdos propedêuticos) e, em compensação, basta apenas um ano para a formação pedagógica (conteúdos pedagógicos).
2 Projeto de Estágio elaborado pelo autor na disciplina “Estágio Curricular Supervisionado I” do curso de Licenciatura Plena em Filosofia, em 2022. Todas as fontes do autor e recursos textuais como o Projeto de Estágio e Diário da Prática Docente referidos neste texto, estão disponíveis no Laboratório de Ensino e Aprendizagem em Filosofia (LEAF), no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria, prédio 74A, 3° andar, sala 2353.
3 O que compreendo por autoridade docente é um tipo de responsabilidade assumida no processo de ensino e aprendizagem.
4 A formação filosófica entendida nesse texto é interpretada como a temática do duplo, em que “[...] o duplo nunca é uma projeção do interior, é, ao contrário, uma interiorização do lado de fora”. (Deleuze, 1991, p. 105).
5 Crise no sentido de que a experiência proporciona não apenas traçar momentos no tempo externos a si, mas infere-se no indivíduo a condição de analisar a si mesmo, um momento de decisão sobre si mesmo.
6 Pensamos o dispositivo Diário da Prática Docente como uma ferramenta pedagógica que possibilita “olhar para dentro”, na medida em o estagiário/a no decorrer de suas práticas de ensino, narra as suas experiências ao escrever sobre si e suas estratégias assumidas no fazer pedagógico em sala de aula. Conferir Tomazetti (2020, p. 72).
7 Grupo étnico do continente africano, presentes na Nigéria, Benim, Togo e Costa do Marfim. Disponível em: https://www.infoescola.com/sociologia/povo-ioruba/ Acesso em 07 de jan. de 2025.
8 Trecho retirado do Diário de Aula, produzido pelo autor na disciplina de Estágio Curricular Supervisionado II nas suas atividades de regência, a fim de escrever e refletir sobre si e sua imersiva prática pedagógica na escola.
9 Esse excerto é fonte do próprio autor, retirado do Projeto de Estágio Curricular Supervisionado, na seção intitulada “Metodologia para as aulas de Filosofia” página 70, produzido no ano de 2022.