Quando o professor sobe ao palco: contribuições da narratologia e da teoria da motivação humeana para a educação

When the teacher goes up to the stage: contributions of narratology and humean theory of motivation to education

 

Matheus Cenachi image001.gif

Pós-graduando em filosofia na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Pelotas, RS, Brasil cenachimatheus@gmail.com

 

Rafaela Nunes image001.gif

Pós-graduanda em filosofia na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Pelotas, RS, Brasil, rafaelaantunesnunes@gmail.com

 

Recebido em 23 de julho de 2024

Aprovado em 30 de outubro de 2024

Publicado em 20 de dezembro de 2024

 

RESUMO

Ensinar é motivar. Essa breve sentença condensa a ideia central do presente ensaio, a saber, que o ofício do professor se concentra sobremaneira na produção de ações nos estudantes. Uma aula bem-sucedida depende disso. De alguma forma, precisamos ser capazes de estimular a interação verbal entre os colegas, a realização de exercícios, reflexões, e assim por diante. A questão que se coloca, então, é: como fazer isso? Quais são as ferramentas e conhecimentos que devemos deter para que a nossa tarefa motivacional seja cumprida? Neste ensaio, defendendo uma perspectiva segundo a qual o professor é um ser eminentemente performático, mostraremos que a teoria da motivação humeana opera enquanto uma resposta contundente ao problema colocado. Por fim, a nossa investigação se encerra com a elaboração de um plano de aula que leva em consideração as reflexões de David Hume sobre agência e motivação, mobilizando, também, o conhecimento oriundo dos estudos narratológicos, como o Paradigma de Syd Field, enquanto ferramentas auxiliares.

 

Palavras-chave: Educação; Teoria da motivação humeana; Paradigma de Syd Field; Performance.

    

ABSTRACT

Teaching is to motivate. This brief sentence condenses the central idea of ​​this essay, namely, that the teacher's job focuses heavily on producing actions in students. A successful class depends on it. Somehow, we need to be able to stimulate verbal interaction between classmates, to carry out exercises, reflections, and so on. The question that arises, then, is: how to do this? What are the tools and knowledge that we must have in order for our motivational task to be accomplished? In this essay, defending a perspective according to which the teacher is an eminently performative being, we will show that the humean theory of motivation operates as a forceful answer to this problem. Finally, our investigation ends with the elaboration of a lesson plan that takes into account David Hume's reflections on agency and motivation, also mobilizing knowledge from narrative studies, such as Syd Field's Paradigm, as auxiliary tools.

 

Keywords: Teaching; The humean theory of motivation; Syd Field’s paradigm; Performance.

 

Introdução


           
Não há nenhuma questão mais importante para a Filosofia da Educação do que a “produção de ações”. Um professor pode ter tudo: experiência, qualificação, boa vontade e até mesmo vocação. Todas essas qualidades se tornam vazias na sala de aula, se essa mesma pessoa for incapaz de incitar ações em seus alunos, sejam ações estritamente corpóreas, como um gesto físico, sejam ações menos concretas, como o pensamento ou a interação verbal com os colegas1. Dessa forma, embora muitos predicados componham a natureza da docência, certamente é essa aptidão persuasiva a que mais se sobressai e, portanto, a que merece mais atenção nas reflexões sobre ensino e aprendizagem.

Se a alegação anterior parece trivial – o que, de certa forma, é o caso –, considere, por alguns instantes, a Educação Básica brasileira. O que infelizmente pode ser observado de forma recorrente, tanto no contexto público quanto no privado, é um ceticismo a respeito da educação, quando não um pessimismo agudo e explícito. Isso fica claro, por exemplo, a qualquer pessoa que frequente uma sala de professores.

Como bem retratado no filme Escritores da liberdade (2007), em diversos momentos as sentenças proferidas pelos próprios docentes entre si são do seguinte tipo: “Esqueça, eles não aprendem”, “Aquela turma não tá a fim de nada, não quer aprender” ou “Não sei mais o que fazer com aquele aluno, é um perdido”. É verdade que os conteúdos semânticos de tais afirmações variam; algumas podem conter tristeza, enquanto outras uma dose severa de niilismo. Entretanto, o que todas elas carregam, mesmo que indiretamente, é um mea culpa: um atestado de impotência relativo à produção de ações nos alunos. Afinal, se “os alunos não conseguem aprender”, bem ou mal são os professores que não estão conseguindo ensinar.

Naturalmente, é preciso ter cautela ao representar a educação dessa forma. Em primeiro lugar, é importante frisar que as considerações aqui apresentadas não são generalistas: é evidente que há muitos professores que, além de otimistas, são bem-sucedidos em seu ofício. Em segundo lugar: não estamos ignorando o quão complexa e árdua pode ser a vida de um professor. Sabemos como é isso, na pele. Ensinar não é fácil, lidar com pessoas não é fácil, sobretudo em condições extremas, as quais se fazem presentes na rede pública de ensino. Portanto, o nosso objetivo com essa caracterização – que nada tem de original, pois essa é uma realidade conhecida pelo senso comum – é ressaltar a relação causal robusta entre a capacidade de gerar ações em outrem e o aprendizado, e o quanto os professores têm a cultura de não perceber a ausência dessa habilidade, pois, falhando em seu objetivo, em geral culpabilizam o aluno ou as condições de ensino.

É no mínimo curioso perceber que, no Ensino Básico, a dinâmica professor-aluno seja de ódio. Docentes desenvolvem um temperamento agressivo para com os discentes porque estes, ao que parece, desdenham as aulas. Será que o mesmo ocorre no Ensino Superior, ambiente educacional notadamente mais “elevado e saudável”? Sob certo aspecto, sim.

Em diversas universidades brasileiras, o conflito professor-aluno, tão comum no Ensino Médio, de fato não é tão saliente. Adultos, os discentes já não contam com a mesma rebeldia da adolescência, e a atmosfera acadêmica, por sua vez, enaltece o poder simbólico2 do professor, o qual, agora, é visto como grande autoridade. Pode-se dizer, portanto, que a tônica afetiva do alunado universitário não é, no mais das vezes, o desdém. Isso quer dizer que os professores, bem capacitados, conseguem desencadear ações nos seus interlocutores? Não necessariamente, pois uma nova emoção, igualmente passiva, pode ser observada amiúde nas salas de aula: a apatia.

Como seria um ambiente ideal de aprendizado? Para muitos, um espaço calmo, seguro, com infraestrutura satisfatória e poucos alunos, de modo que, a cada encontro, o pequeno grupo pudesse discutir e se aprofundar em algum tema valioso para todos os envolvidos. Num contexto quase perfeito como esse, é de se esperar que a interação da turma seja, se não acalorada, fluida, como quando as pessoas se encontram, ordinariamente, e conversam sobre algo de que gostam.

Ora, essa é, precisamente, a realidade de diversas aulas de pós-graduação de grandes universidades brasileiras. Porém, os efeitos educativos esperados de tal circunstância não se concretizam: o que muito se observa são encontros nos quais o professor não consegue efetivamente engajar os discentes nas discussões, os quais permanecem indiferentes ao assunto abordado, causando repetidas situações constrangedoras de silêncio. Consequentemente, não obstante a expertise irrevogável de diversos professores no que tange a sua área de conhecimento, é notável a corriqueira dificuldade dos mesmos de construir um ambiente pedagógico ativo, estimulante, vívido e produtivo, no qual os alunos são incitados à ação reflexiva e motivados a construir, coletivamente, novos conhecimentos.

Entre os principais motivos observáveis para essa inércia está o fato de que, salvo casos excepcionais, a abordagem pedagógica mais recorrente dos professores universitários é estritamente a “razão”. Não importa a área de conhecimento. O que está no horizonte pedagógico dos docentes de literatura russa, física moderna ou metaética é uma e a mesma coisa: oferecer uma exposição racional, se possível organizada logicamente, do conteúdo programático, de forma que o aluno possa capturar o tema proposto de maneira analiticamente encadeada. Assim, a crença de fundo de tais profissionais parece ser a ideia de que um discurso dessa natureza – claro, objetivo, científico – contém tudo o que um aluno necessita para aprender e desenvolver as suas competências investigativas. Essa herança do ensino tradicional de orientação positivista é claramente ressaltada por Behrens e Oliari: “A ação docente concentra-se em criar mecanismos que levem a reproduzir o conhecimento historicamente acumulado e repassado como verdade absoluta” (BEHRENS; OLIARI, 2007, p. 60).

Evidentemente, não está em questão a necessidade de tal metodologia. O rigor científico é indispensável. Porém, o que precisa ser considerado é o seguinte: essa abordagem é suficiente, sobretudo considerando que parte do intento da academia é produzir novos pesquisadores e, assim, conhecimento? Provavelmente, não.

Uma forma interessante de avaliar qualquer pesquisa científica consiste em verificar sua originalidade. Um bom pesquisador deveria ser aquele que produz ensaios, artigos e monografias minimamente capazes de proporcionar uma nova e bem fundamentada perspectiva sobre determinado objeto de estudo, por menor que ela seja. Porém, o que muitos relatórios de desempenho acadêmico mostram é que, nos últimos anos, inúmeras universidades renomadas, do Brasil e do mundo3, têm tido um ótimo desempenho quantitativo, porém uma baixa performance qualitativa.

Um aspecto fundamental para se pensar o ensino universitário é como o corpo docente tem se mostrado ineficaz em produzir um tipo de sentimento genuíno e essencial em qualquer ambiente de ensino: o pertencimento. Tal sentimento quando desencadeado nos alunos, por sua vez, cria um ambiente social adequado para a sensação coletiva de comunidade. É essa sensação de comunidade que Ronai Rocha defende no livro Ensino de Filosofia e Currículo como aquilo que caracteriza a escola como tal, já que é na escola que a criança tem a primeira experiência de convivência social com outros “iguais” a ela, ali “ninguém mandará nela pela força do parentesco, do braço ou da idade” (ROCHA, p. 119, 2015). A grande maioria dos professores universitários acredita ou sustenta uma espécie de inconsciente coletivo no qual julgam que criar o sentimento de pertencimento ou comunidade nas suas turmas não é função deles, uma vez que, na teoria, esse sentimento é função exclusiva da escola básica e direcionado apenas a crianças e adolescentes. Porém, defendemos aqui o contrário, a criação desse cenário é fundamental para que em qualquer ambiente de ensino haja envolvimento e produção significativa de conhecimento.

Assim, o que podemos inferir do rápido sobrevoo sobre alguns fenômenos significativos da educação no Brasil é que o professor ainda não dispõe de um sólido conhecimento prático relativo à produção de ações. Em suma, ele não sabe como despertar e reter a atenção dos alunos, como modular o seu discurso a fim de produzir tensão e curiosidade, e, por fim, não tem familiaridade com a elaboração de planos e sequências de aulas que, além de “claros” e “compreensíveis”, sejam estimulantes.

Nesse sentido, se há uma comparação poderosa a ser feita, ela é entre o professor e o escritor. Um romancista pode ter em mãos uma grande história a ser contada; repleta de personagens surpreendentes e acontecimentos que chocariam até mesmo a pessoa mais indiferente às artes literárias. Devemos, por isso, considerá-lo um grande escritor? É claro que não. Se ele não for capaz de estruturar e apresentar essas grandes ideias de forma que o leitor deseje sempre ler a próxima página, então, talvez, essa pessoa não deva receber o título de contadora de histórias.

Isso posto, a questão que imediatamente ganha destaque é: como produzir ações em outras pessoas? Será essa uma habilidade misteriosa, um dom comunicativo que poucos afortunados têm, ou uma qualidade passível de aquisição? Apostamos na última opção.

Da mesma maneira que linguistas e roteiristas contemporâneos, como Umberto Eco e Robert McKee, preconizam que a arte da escrita possui “leis”, as quais, quando dominadas, permitem ao escritor elaborar narrativas eficientes, temos razões para acreditar que a regência de aulas, como qualquer performance discursiva, envolve a expertise de certos princípios, os quais são assentados na observação da psicologia humana em um nível fundamental. O objetivo central deste ensaio é explorar um princípio que se apresenta, possivelmente, enquanto o mais essencial e valioso no campo docente: o que a filosofia moral contemporânea conhece como a “Teoria da Motivação Humeana”.

 

A Praticalidade da Moral e da Docência


            A conexão entre ética e educação de orientação progressista é robusta. Professores e filósofos morais se reportam, cada um à sua maneira, à questão socrática
4, isto é, ambos procuram compreender o que devemos fazer para viver bem, tanto como indivíduos quanto sociedade. Nesse viés, testemunhando de perto as atrocidades do nazifascismo – uma época em que a ética “fracassou” e o mal assombrou o mundo –, Adorno afirmou categoricamente: “Para a educação, a exigência que Auschwitz não se repita é primordial. Precede de tal modo quaisquer outras, que, creio, não deva nem precise ser justificada” (ADORNO, 1986, p. 1). Considerando, portanto, que são muitos os interesses compartilhados pela ética e a educação, não é de se admirar, por exemplo, que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) inclua em suas diretrizes valores típicos da filosofia moral, tais quais empatia, autoconhecimento colaboração (BRASIL, 2018).

As semelhanças envolvendo a figura do filósofo e a do professor, entretanto, não se esgotam aqui. Vamos imaginar que algum pensador encontrasse o “santo graal da filosofia moral”, ou seja, descobrisse, pelas vias racionais mais sofisticadas e inquebrantáveis, o “certo e o errado”, de sorte que todas as discussões sobre condutas éticas pudessem ser dissolvidas. No cotidiano, todas as pessoas iriam conhecer, claramente, os seus deveres. Em suma, esse filósofo teria descoberto um novo e definitivo decálogo, documento que, seguramente, aplacaria muitas das angústias da humanidade.

Não obstante tal feito grandioso, seria adequado concluir que a tarefa do pensador foi cumprida?

Na história da filosofia moral, há um consenso mínimo segundo o qual a ética se apresenta enquanto um campo investigativo dotado de dois grandes componentes: o descritivo e o prático. Isso quer dizer que parte do esforço da ética, como mostramos na metáfora anterior, é o de “descobrir”, “revelar” ou “conhecer” o certo e o errado. Consequentemente, o conteúdo de conceitos morais como “coragem”, “vileza” ou “autenticidade”, ao invés de forjado arbitrariamente por alguma pessoa ou grupo, possuiria valor objetivo. Se “x é certo” – onde “x” descreve ações ou traços de caráter de uma pessoa – idealmente deve sê-lo não por minha vontade ou percepção peculiar, mas por razões externas a qualquer sujeito, sob pena de relativismo. Assim, a filósofa contemporânea Alice Crary diz: “(...) é natural considerar que os julgamentos morais estejam essencialmente preocupados com a forma como as coisas são” (CRARY, 2016, p.15, tradução nossa)5, ou seja, enquanto descrições da realidade objetiva.

Simultaneamente, no entanto, o que se espera de tais juízos é que não sejam meras palavras soltas ao vento, mas que convençam uma pessoa de agir levando o seu conteúdo em conta. A ideia de que o assassinato configura uma brutalidade abominável precisa ser absorvida pela mente dos indivíduos de modo que eles não cometam tal barbárie. Novamente, diz Crary: “(...) quando eu faço um julgamento no sentido de que, digamos, alguma ação é correta ou corajosa, (...) eu normalmente considero que estou dizendo alguma coisa que é, simplesmente, pertinente para o que eu tenho razão de fazer” (CRARY, 2016, p.15, tradução nossa)6. Em outras palavras, espera-se que a ética tenha como traço intrínseco o poder de gerenciar ativamente a vida prática das pessoas.

Podemos perceber, então, que, no experimento de pensamento proposto, o pensador não foi bem-sucedido, haja vista que a sua teoria realiza somente uma das demandas da ética, a epistemológica. Dizendo de outra maneira, tudo o que a sua investigação consegue ofertar à sociedade é uma “bússola estéril” que sabe qual é a direção certa da vida – pode nos mostrar os valores essenciais da conduta humana –, porém é incapaz de nos convencer a seguir esse caminho. Por conseguinte, nesse caso, a ética teria mais uma vez fracassado lamentavelmente, já que o mundo seguiria carente do que é mais decisivo no que diz respeito a sua construção e transformação: ações.

Ao traçar um paralelo entre ética e educação, o nosso objetivo foi o de sublinhar que a praticalidade é um tema de relevância ímpar para ambos os projetos, na medida em que é conditio sine qua non para as suas execuções. Em verdade, a tese que advogamos neste ensaio a respeito da docência é muito próxima daquela preconizada pela filósofa contemporânea Elizabeth Anscombe no território da ética. Ela diz: “(...) não nos é proveitoso fazer filosofia moral na situação presente: essa empreitada deve ser deixada de lado pelo menos até dispormos de uma filosofia adequada da psicologia, de que conspicuamente carecemos” (ANSCOMBE, 1958, p.19).

Podemos teorizar a escola enquanto instituição, especular sobre currículo, o papel do professor, do aluno, em um mundo contemporâneo, e assim por diante. Porém, nada disso terá valor até que compreendamos como aplicar com êxito tais princípios educacionais, o que envolve ouvir e absorver o que a filosofia e a psicologia têm a dizer sobre a agência humana.

 

A Escrava das Paixões

 

Considere a seguinte situação cotidiana. Um pai tenta convencer o filho adolescente de que este precisa fazer exercícios físicos. Para efeitos da nossa análise, é indiferente a condição física do jovem: ele pode ter boa saúde, ainda que seja sedentário, ou já apresentar sinais de alerta relativos à sua condição física, como sobrepeso. Em ambos os casos, o pai teria razões suficientes para acreditar que o filho deveria praticar alguma atividade física, haja vista que o esporte, a título de exemplo, entrega benesses corporais, emocionais e sociais.

Apesar da boa intenção, tato e raciocínios engendrados pelo progenitor, o filho agradece, mas não se interessa pelos convites do pai. Logo, uma vez que a figura paterna não está disposta a lançar mão de qualquer estratégia coercitiva, nenhuma ação é produzida.

Analogamente, podemos lembrar de outra típica situação delicada entre pais religiosos e jovens: a tentativa de incitar a fé no coração dos filhos. Outra vez, para fins de argumentação, não importa se a prole é ateia, agnóstica ou indiferente, mas o denominador comum: a falta de interesse por assuntos divinos. Um tanto desesperados, os pais tentam explicar a existência e a importância de Deus aos rebentos. Raramente com sucesso.

Por fim, recordemos o contexto comum em todo Ensino Básico, aquele em que, agora, é o professor que tenta “arrancar” alguma ação dos jovens “desinteressados”. O que muito se observa é que o fracasso torna a aparecer. E o que mais nos intriga, enquanto educadores: isso ocorre mesmo nos contextos mais inusitados. O professor de química, por exemplo, pode amar incondicionalmente a sua disciplina e tentar transmitir essa vivacidade aos estudantes. Infelizmente, toda essa energia não produz o que mais se deseja. Ações.

Naturalmente, a nossa questão essencial é: por quê? Onde estamos errando?

Muitos não fazem ideia da resposta, motivo pelo qual culpabilizam o interlocutor, às vezes com notável agressividade. O pressuposto operante, na mente do docente, é que ele obviamente está fazendo tudo o que deveria, da forma que deveria, e, portanto, se o efeito esperado educativo não surge, o problema é da classe, que não está “fazendo a sua parte”.

Como dissemos anteriormente, a educação não goza, no mais das vezes, de condições ideais de realização. De modo que é possível pensar que o professor é um profissional que frequentemente entra em campo já em desvantagem: ele precisa lidar com alunos que vivenciam diariamente barbaridades, nas ruas e dentro de casa; alunos que sentem ódio pela escola, porque sentem ódio pelo mundo. Sem dúvida, além de pedagogicamente difícil, enfrentar tais circunstâncias exige uma preparação emocional sólida. Contudo, nem sempre as condições de trabalho são tão extremas, de sorte que poderíamos dizer que, sim, os alunos “fazem a sua parte” em muitos contextos.

Pensando principalmente nesse tipo de caso, a postura do professor acusador é tão infundada quanto a de um escritor que, ao receber o desdém da audiência, sequer busca examinar as fraquezas da sua narrativa, alegando que a sua prosa é “mal compreendida”. Ou seja, a tese de fundo compartilhada pelo escritor e professor é esta: “eles vão gostar do que digo, quando entenderem o que o digo”. E aqui reside grande parte do problema.

Vamos retomar um conhecimento importante do senso comum. Nós sabemos, pela experiência ordinária, que um leitor pode não compreender nada do que está lendo, porém, se gostar ou sentir mínima curiosidade pela história que lê, ele continuará a leitura: as páginas naturalmente serão viradas, quase sem esforço, por mais abstrusas que sejam a sua forma e conteúdo. Essa é a experiência relatada amiúde por leitores de Clarice Lispector, Vladimir Nabokov ou Samuel Beckett. Poucos terminam a leitura de Krapp’s Last Tape7 tendo uma visão clara sobre a mensagem da peça: as falas são confusas, a coreografia executada pelo personagem parece não ter sentido e outros elementos dramáticos são pouco acessíveis. No entanto, há um notável “magnetismo” na obra, um prazer ao acompanhar a vida interior do protagonista, o qual promove reflexão e, por último, conhecimento. Terminada a peça, muitos querem entender quem é o velho Krapp, o que aconteceu realmente com ele, etc.

            Ora, não é o mesmo o que acontece em sala de aula? Intuitivamente, sabemos que sim. Sabemos que maior será a chance dos alunos “fazerem a sua parte” e aprenderem depois de vivenciarem sensações semelhantes ao longo do encontro. E o que tal dado trivial nos sugere? Paradoxalmente, que compreensão não é um fator decisivo para o sucesso de uma aula ou obra literária, que, possivelmente, ela seja um fim de valor altíssimo, porém não um fim imediato, a ser almejado desde o início, mas um “fim final”8, obtido somente ao cabo do processo – estético ou de aprendizagem. Logo, se isso efetivamente for o caso, devemos salientar a existência de uma inversão de raciocínio feita por esses profissionais, já que eles usualmente tomam causa por efeito, e vice-versa.

As considerações anteriores reagem bem à nossa questão essencial. Professores não engajam os estudantes em ações quando estruturam planos de aulas e sequências didáticas de modo equivocado. Assim, o problema parece ser da ordem da “montagem”: como um cineasta que erroneamente aloca no início do filme a cena mais importante da história, o clímax, muitos professores esperam que uma exposição, dinâmica ou exercício surta efeito em momentos inadequados, comprometendo a sucessão de eventos didáticos da aula.

Contudo, observações baseadas na experiência corrente devem ser submetidas a uma avaliação teorética criteriosa. E é neste momento que as ideias de David Hume serão cruciais.

Hume foi um grande filósofo escocês do século XVIII que, assim como os seus colegas da Modernidade, interessava-se sobremaneira pela natureza humana. Lançando mão de uma analítica empirista extremamente sofisticada e original, Hume tentou desvendar quais mecanismos ou processos psicológicos estão por detrás de uma ação, desafiando, sobretudo, a perspectiva até hoje influente, segundo a qual é a razão a faculdade que determina as ações.

Isto é o que dizemos no dia a dia, especialmente quando queremos aconselhar alguém que se encontra em situações complexas: “Aja racionalmente”, “Tenha calma e não se deixe levar por impulsos”, “Acho melhor esfriar a cabeça e repensar a decisão, senão irá se arrepender”, como se de alguma forma o pensamento pudesse refrear os nossos desejos ou inclinações e alterar o rumo do comportamento. Não resta dúvidas de que essa intuição é atraente. Se saímos das situações intensas pressupostas pelas frases anteriores e analisamos contextos mais “brandos” de decisão, como a definição de um projeto de vida, a impressão que temos é de que literalmente fazemos cálculos; raciocínios lógicos que balanceiam prós e contras de uma atitude. Com isso em mente, faz todo o sentido concluir que a razão comanda, ou pode comandar, as ações. Hume, contudo, discorda disso contundentemente.

No segundo livro do Tratado da natureza humana, Hume despende sua energia na edificação da sua mecânica das paixões. A sua tarefa consiste em mapear e analisar minuciosamente as nossas paixões (ou emoções), de modo a compreender suas especificidades, origens e o seu papel motivacional. Nesta obra, após um longo e cuidadoso exame, Hume profere uma das sentenças mais paradigmáticas da filosofia: “A razão é, e deve ser, apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir e obedecer a elas” (HUME, 2000, p. 451). Aos olhos do escocês, a razão disso seria: “Uma vez que a razão sozinha não pode produzir nenhuma ação nem gerar uma volição, infiro que essa mesma faculdade é igualmente incapaz de impedir uma volição ou de disputar nossa preferência com qualquer paixão ou emoção” (HUME, 2000, p. 450).

Prima facie, a posição de Hume soa extravagante e equivocada. Isso porque ela pode sugerir que não somos livres, mas, sim, organismos que agem no mundo exclusivamente em função dos seus desejos. De fato, Hume não é um partidário do libertismo irrestrito, como filósofos ao estilo de Jean-Paul Sartre pretendem ser. Porém, tampouco é um defensor do determinismo rígido. O problema do livre-arbítrio não é o nosso foco atual, então diremos apenas que na filosofia de Hume há um espaço considerável para a ação livre. Em todo caso, o que nos interessa é dissipar essa sensação de estranhamento relativa à tese de Hume. Portanto, é hora de esclarecer o que exatamente o autor prevê enquanto “função da razão”.

Retomemos o caso supracitado da pessoa que elabora um projeto de vida. Vamos supor que ela é uma mulher de 19 anos que deseja ser artista. Ela precisa decidir se realmente vai embarcar nessa jornada, se vai ingressar na universidade, se vai mudar de cidade, se terá mais de um emprego para sobreviver, etc. Nesse complexo processo de decisão, a razão é a habilidade responsável pelos raciocínios hipotéticos do tipo “Se eu fizer x, ganharei y. Porém, Se fizer z, ganharei y, w, o que é ótimo, mas perderei k”. Ou seja: a razão levanta, organiza e computa informações sobre o mundo. Porém, essa é apenas uma parte do processo.

O que efetivamente finaliza uma deliberação, ou seja, o que determina o que será feito são estados desiderativos. Independente das informações conferidas pela razão, cabe somente aos desejos, às volições o veredito prático. Nesse sentido, alguém pode dizer à jovem: “Você tem plenas condições de disputar uma bolsa de estudos no exterior. Vá, será uma experiência incrível!”. Certamente, as benesses da ação são inquestionáveis, mesmo para a nossa jovem. Todavia, isso não significará nada caso, em seu íntimo, ela deseje permanecer no seu país.

Este é o ponto da Teoria da Motivação de David Hume. A razão pode e deve nos auxiliar tanto no processo de deliberação como na execução da ação. Ela encontra e define os melhores meios para que alcancemos os objetivos. Porém, quem fixa os objetivos são emoções, desejos, paixões. Logo, o valor da razão é meramente instrumental.

            Referência até os dias atuais, o pensamento de Hume endossa a nossa análise comparativa entre as atividades do professor e do escritor. Se são paixões a base de qualquer ação, professores e escritores devem se preocupar, talvez antes de qualquer outra coisa, em como incitá-las nos seus interlocutores.

            Além disso, dispondo da teoria de Hume, podemos retomar os outros casos hipotéticos entre pais e filhos – e esse é um ótimo momento para destacar um corolário relevante da tese humeana. Paixões, emoções e desejos são sempre de uma pessoa ou grupo. Se os pais pretendem despertar ações nos filhos, eles não podem apenas construir um discurso emotivamente carregado, carismático. É necessário, também, que esse discurso se comunique e toque as emoções dos filhos, porque, ao fim e ao cabo, são esses os estados mentais que poderão causar alguma atitude. O que acontece, porém, é que nem sempre os pais, e os professores, olham, verdadeiramente, para o que os jovens sentem, valorizam e desejam. Muito pelo contrário: criticando esses valores, os mais velhos buscam impor os seus objetivos e paixões. O que, como sabemos, não funciona.



Plano de Aula

 

Assim como na arte da atuação, são muitos os fatores que impactam a performance docente. Infraestrutura, conhecimento prático do professor e humor individual e coletivo dos alunos são exemplos. Em face de tal complexidade, não seria viável, neste artigo, realizar uma investigação integral e pormenorizada sobre didática à luz da Teoria da Motivação Humeana. Contudo, considerando que, dentre todos os fatores, o planejamento seja talvez o mais decisivo, pois é o que orienta, refletidamente, as ações docentes em aula, o que faremos agora é a construção de um plano de aula de filosofia, buscando aplicar as lições de Hume.

            Para este exercício, vamos considerar que a aula terá 50 minutos. Ela ocorrerá na rede pública, logo, para uma turma de aproximadamente 30 alunos. E o tema será “livre-arbítrio”.

            Como ocorre frequentemente em aulas de filosofia, é possível abordar este assunto de maneiras muito diversas. Para mobilizar a atenção dos estudantes, podemos utilizar filmes e livros que tematizam o nosso objeto, como Matrix (1999) ou Into The Wild (2008). De maneira análoga, ainda que existam autores canônicos, como Jean-Paul Sartre e Kant, há uma miríade de filósofos que trataram do tema e que, por isso, poderiam ser apresentados em aula. Em suma, à nossa disposição temos várias opções. Qual delas escolher?

Neste estágio do planejamento, as sentenças de Umberto Eco em Seis passeios pelos bosques da ficção são valiosas. Neste livro, que compila seis conferências dadas em Harvard em 1993, a tese central defendida por Eco é a de que, ao ler um livro, o que todo leitor faz é adentrar num bosque, logo, não uma mera região de floresta, mas uma área verde dotada de trilhas distintas e misteriosas. Passear no bosque, portanto, implica necessariamente que o caminhante faça decisões durante a sua trajetória. Ele acredita que “tal caminho é o correto”, então arrisca ir por ali e, por fim, descobre se estava certo ou errado.

Eco acredita que essa experiência interativa e deliberativa é peça essencial da experiência estética da leitura. De fato, o que muitas vezes torna a leitura de Dostoiévski fascinante é o fato de não sabermos, exatamente, o que está acontecendo nas tramas. A partir disso, passamos a analisar, ativamente, a narrativa em busca de respostas.

Ora, se antes não tínhamos um critério claro para iniciar o plano de aula, agora temos. Pois se o que desejamos é elicitar ações nos estudantes, parece ser muito produtivo tentar criar uma atmosfera dialógica que favoreça a “experiência do bosque”.

Com isso em mente, sabemos de duas coisas. Primeira: a nossa aula precisa operar em cima de dúvidas; pequenas incertezas lançadas à turma que propiciem espaço para os alunos pensarem por si mesmos sobre o tema e, aos poucos, construam suas interpretações. Segunda: por essa razão, a aula não pode ser baseada na análise tradicional de conceitos, porque isso tende a não gerar o campo de incerteza desejado.

Muitos professores de filosofia, ao lidarem com esse tema, montam as aulas de forma excessivamente lógica e concatenada. Eles começam dizendo quem foi Sartre, onde viveu, que impacto teve na França do século XX, quais obras escreveu, quais conceitos desenvolveu, etc. É claro que essa estratégia tem a vantagem de funcionar como um “passo a passo”: o encadeamento de informações facilita a compreensão. Porém, a desvantagem dessa abordagem consiste nisto: o professor está apresentando um caminho a ser seguido pelos alunos; não um bosque; não vias tortuosas com bifurcações, mas uma linha reta; o que, em termos de interatividade, naturalmente convoca menos a classe a pensar, pois não há mistério a ser desvendado, e sim “uma aula que precisa ser ouvida, memorizada e aturada”.

            Eco nos ajuda muito, mas ainda temos mais dúvidas do que respostas. Afinal, como criar o passeio no bosque? Agora, as reflexões de Syd Field podem iluminar a nossa jornada.

            Roteirista, produtor e professor, Syd Field foi uma das figuras mais marcantes do século XX no que diz respeito ao estudo formal de narrativa fílmica. Até hoje, os conceitos de Manual do roteiro são referência a literatos, dramaturgos e roteiristas. O que abordaremos en passant são os elementos essenciais da ideia central da obra: o “Paradigma de Syd Field”.

O paradigma preconiza que, para obter sucesso, uma narrativa precisa seguir uma certa estrutura, composta de 3 atos. Cada ato possui extensão e características distintivas. O ato 1, por exemplo, que corresponde aproximadamente a 25% da história, deve apresentar o protagonista, o seu universo e terminar com o “Incidente Incitante”, isto é, o evento que abala a ordem natural da vida do protagonista e faz a história, efetivamente, começar.

Abordemos certas obras de renome para que algumas ideias fiquem mais claras. O Incidente Incitante de Interestelar (2014), por exemplo, são as anomalias gravitacionais que ocorrem no quarto de Murphy. Esse é o evento que leva Cooper, o protagonista, a embarcar numa jornada nas estrelas para salvar a vida na Terra. Até esse instante, tudo o que o filme faz é nos apresentar o contexto da história: o mundo em decadência, a questão interior de Cooper, a saber, o desgosto de ser um piloto fracassado, e assim por diante.

Ao término do primeiro ato, a audiência deve estar familiarizada com os principais personagens e, principalmente, com o conflito do protagonista, pois, no segundo ato, o que descobriremos é como o protagonista irá reagir a tal conflito. Segundo a narrativa tradicional, o segundo ato deve corresponder à maior porção da narrativa: 50% do todo. E de fato isso é o que muito acontece, do cinema mainstream aos clássicos literários. Em Crime e Castigo, Dostoiévski dedica a maior parte das suas páginas à descrição do sofrimento de Raskólnikov ao enfrentar o seu conflito: o fato de ter assassinado uma senhora avarenta, mas inocente.

Enquanto “ato do conflito”, o segundo ato precisa ser moldado em vista de balancear avanços e derrotas do protagonista, por isso ele costuma ser dividido em duas partes. Na primeira, o protagonista reage bem ao conflito. O antagonista, figura que representa a força que ataca o protagonista, pode parecer vencido em alguns instantes. Porém, a arte de narrar é a arte de criar obstáculos ao protagonista, porque isso afeta o senso de expectativa da audiência. Um protagonista que só “perde” é tão tedioso quanto o que apenas “vence”. Portanto, em geral a segunda metade do segundo ato termina com o “Low Point”, momento em que o herói se vê encurralado, sem esperanças de superar o desafio que lhe foi colocado.

Em Matrix (1999), isso é muito claro. A primeira porção do ato 2 mostra a construção de Neo como protagonista, como herói superpoderoso: ele demonstra habilidades acima da média e surpreende os colegas, ou seja, ele confirma gradualmente a profecia segundo a qual ele é o messias, “o escolhido” que libertará a humanidade do domínio das máquinas.

Porém, essa crescente encontra resistências, problemas, até que o protagonista se vê como fraco, impotente e derrotado. O Low Point é representado pela captura de Morpheus, personagem que representa a luta por liberdade, a resistência diante das máquinas e, principalmente, a crença de que Neo é “o escolhido”. Ao ser raptado pelo agente Smith, a confiança de Neo e seus colegas é abalada drasticamente – assim como a da audiência.

Por fim, o ato 3 contém o clímax da história, instante em que o problema colocado pelo Incidente Incitante é resolvido. Aqui, o protagonista finalmente vence o desafio ou, em casos menos numerosos, perde. O clímax de Rocky (1976) é interessante pois justamente brinca com as noções de “sucesso” e “fracasso”. Nos momentos finais do filme, o herói da história, um pugilista de segunda categoria do subúrbio da Filadélfia, perde a luta para a qual se preparou durante meses. Porém, isso é a maior conquista de toda a sua vida, porque Rocky não é vencido por nocaute: ele resiste aos violentos ataques do campeão mundial durante 15 assaltos e, no fim da luta, continua de pé, mostrando bravura, determinação e dignidade.

Idolatrado e arduamente criticado, o Paradigma de Field não precisa ser visto como uma verdade absoluta. Muitas narrativas bem sucedidas se estruturam, a princípio, de forma diferente do que Field propõe. Porém, vale ressaltar que o número de histórias boas que se encaixam no paradigma é esmagador. Além disso, embora hoje o paradigma seja fortemente associado a Field, essa teoria não foi proposta originalmente por ele, mas por Aristóteles. O próprio Syd Field reconhece que o seu manual é profundamente ancorado nas reflexões que o grego desenvolveu em Poética, fato que denotaria certa atemporalidade do paradigma.

Não cabe aqui discutir em detalhe as benesses e as desvantagens do paradigma, mas, sim, observar no que ele está ancorado: a mente humana. O que os teóricos da narratologia sustentam, de Aristóteles a Field, é que a psicologia humana possui uma natureza, uma mecânica própria, e que o paradigma é uma das formas mais eficientes de contar uma história que leva em conta essa essência. Sobre isso, McKee é sucinto e categórico: “(...) o ritmo da narrativa em três atos foi a base da arte narrativa durante séculos, antes mesmo de Aristóteles notá-lo” (MCKEE, 1997, p. 218, tradução nossa)9.

Naturalmente, um contador de histórias pode, digamos, burlar o paradigma e construir uma narrativa sem o ato 1. Porém, precisa saber que estará comprometendo a ligação empática entre os eventos e personagens e o público, pois o primeiro ato tem exatamente essa função: proporcionar familiaridade e conexão. Sem esses fatores emocionais, a história perde potência: quem vai ouvir uma narrativa que não se comunica, que não “fisga” a audiência?

Isso posto, avancemos no plano de aula, utilizando o paradigma como diretriz.

Naturalmente, nossa aula terá três grandes partes, cada uma relacionada a um ato da estrutura dramática convencional. O primeiríssimo evento da primeira parte, o nosso primeiro beat10, é um convite. A aula começa com os alunos sendo convidados a narrarem, se quiserem, as suas rotinas. Esse evento é estratégico porque (1) causa um certo estranhamento curioso – afinal, muitos irão pensar “nenhum professor quer saber da nossa vida, por que estes querem?” –, (2) permite que o alunado assuma papel ativo na aula, via interação, e (3) explora a tendência natural do adolescente de sentir prazer ao falar de sua identidade. Como professores-dramaturgos, o que queremos obter são descrições cotidianas que mostrem que os dias dos alunos são feitos de inúmeras pequenas ações livres. Esse é o objetivo desse beat.

O segundo beat consiste em pedir a opinião da turma a respeito das descrições. As ações realizadas são livres? Os alunos dirão o que pensam. O nosso papel é tentar levar a convicção da turma para a ideia de que sim, somos livres. A essa altura, além de saber, mesmo que sutilmente, qual é o tema da aula, a turma já estará envolvida com ele.

O terceiro e último beat da primeira parte é a apresentação de uma história que põe em xeque a convicção da turma, a saber, de que são livres. Por conta do seu teor aventureiro e futurista, podemos contar o início da história de Matrix (1999), enfatizando que, neste mundo fictício – que poderia ser o nosso – os personagens vivem um profundo estado de ignorância a respeito de suas vidas e ações; todos têm a sensação de que são livres, mas, em verdade, são vigiados e controlados por máquinas. Com isso, o que pretendemos é desestabilizar a crença da turma, proporcionar incerteza e, assim, iniciar a discussão sobre a suposta liberdade. Esse beat é o Incidente Incitante: a partir daqui a investigação filosófica realmente começa.

Nossos alunos estão apreensivos. Alguns se sentem ofendidos pelo questionamento, outros se encontram em estado de negação e outra parcela vê sentido no determinismo. Essas emoções foram disparadas, desencadeando o envolvimento da turma, exatamente o objetivo principal do nosso primeiro ato. Agora, no segundo, o que teremos é puro conflito – de ideias.

O primeiro beat da parte 2 da aula deve ser desenhado a fim de dar esperança aos alunos, que são os nossos protagonistas. Então, vamos apresentar alguma evidência favorável à ideia de livre arbítrio, como pessoas famosas que tiveram sucesso na vida apesar das adversidades do seu meio. A ideia é mostrar que apesar da pressão de fatores externos, como condição financeira e estrutura familiar desfavorável, a liberdade dessas pessoas não foi aviltada: elas seguiram em frente e superaram os obstáculos. Os alunos mesmos são estimulados a pensarem casos dessa natureza e compartilhá-los com a turma.

Isso encerra a discussão? Certamente, não. A sensação de vitória do beat anterior é efêmera, pois rapidamente apresentaremos ideias que funcionarão como antíteses a essa tese. Podemos ilustrar o pensamento Karl Marx, no sentido de defender que o meio material às vezes pode ser vencido, mas em geral é devastador. No mundo capitalista, o requisito essencial da liberdade é o dinheiro, logo, poucos são plenamente livres. Ademais, o que ocorre se alguém da turma depredar um item da sala? Sem dúvida, uma punição, pois o meio social é articulado a partir de infinitas normas que constrangem a vontade livre da pessoa.

Em suma, a segunda parte termina com “más notícias” para os libertários. Trata-se do Low Point. Tudo indica que o livre-arbítrio não passa de uma falsa sensação. Mas chegamos à terceira parte, a etapa da solução do conflito, na qual é possível tanto reafirmar o diagnóstico anterior como questioná-lo, a fim de reacender a esperança nos alunos e estimular a dúvida. Optamos por seguir a segunda via, e o beat final é um experimento de pensamento.

Os professores apagam as luzes e, se possível, fecham as janelas, produzindo um ambiente escuro. Em seguida, a turma é convidada a pensar que está em uma prisão. A pergunta a ser lançada, seguindo o raciocínio de Sartre, é: apesar disso, eles continuam capazes de pensar, de refletir, de ter desejos, sonhos e planos? A resposta será “sim”. Isso posto, apresentamos aos jovens a figura de Sartre e explicamos que, para ele, a liberdade consiste, essencialmente, nisso, na possibilidade ao menos mental de se autodeterminar.

A aula termina com uma atividade em grupo, na qual os alunos deverão decidir pensar e eleger uma posição de preferência: determinismo ou libertismo.


Conclusão

 

Há um motivo pelo qual, durante este ensaio, realizamos tantas comparações entre a docência e o fazer artístico. O nosso objetivo foi mostrar que, antes de qualquer outra coisa, o professor é um ser performático. Tudo o que ele faz – desde pequenos gestos, falas, movimentos pela sala a expressões faciais – é observado, absorvido e avaliado pelos alunos da exata mesma forma que um público interage hermeneuticamente com atores de uma peça. Dessa forma, se faz parte das intenções do professor impactar uma classe de determinada maneira, ele tem o dever de compreender e dominar a dimensão performática de seu ofício. Do contrário, apenas acidentalmente sua missão será cumprida.

            Em nossa análise, salientamos como a práxis pedagógica, para ser assertiva, deve recorrer à psicologia, destacando a importância da Teoria da Motivação Humeana. Em seguida, buscamos refletir de forma um pouco mais concreta e prática sobre como um professor pode elaborar e executar um plano de aula conforme as recomendações de Hume, dessa vez recorrendo aos instrumentos discursivos apresentados pelos estudos narratológicos.

            Evidentemente, tudo o que o nosso esforço pode esperar alcançar é uma pequena reflexão para a Filosofia da Educação, haja vista que a tarefa de investigar novos caminhos para o ensino é longa e complexa. Em todo caso, acreditamos que este ensaio deu conta de enfatizar o que julgamos essencial. Algo que John Austin (1975) nos deixou como legado em How to do things with words: a compreensão de que palavras, discursos e toda sorte de ação carregada de linguagem possuem um caráter inescapavelmente performativo. Resta saber: sabemos usá-lo?

 

Referências


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Notas

1 Principalmente nos debates filosóficos contemporâneos, há uma sofisticada disputa em torno do conceito de “ação”. Por motivos de espaço, não adentraremos nessa controvérsia, pois a ideia de ação com a qual operaremos é acessível e cotidiana. Consideramos “ação” qualquer atividade humana intencional, livre, que vise um fim. Por último, cabe frisar que a nossa discussão gira em torno de ações livres, uma vez que ações realizadas por meio da coação não são desejáveis por inúmeros motivos - éticos e pedagógicos. Para uma abordagem rica sobre a ideia de ação, vide Anscombe (2023).

2 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

3  Forma de avaliar a excelência em pesquisa passa por transformações em âmbito global. Agência FAPESP, São Paulo, 22 de setembro de 2023. Disponível em: <https://agencia.fapesp.br/forma-de-avaliar-a-excelencia-em-pesquisa-passa-por-transformacoes-em-ambito-global/44908>. Acesso em 16.07.2024.

4  Vide Williams (1985) para uma abordagem aprofundada da questão socrática.

5 “(...) it is natural to take moral judgments to be essentially concerned with how things are” (CRARY, 2016, p.15).

6 “(...) when I make a judgment to the effect that, say, some action is right or courageous, (...) I ordinarily take myself to be saying something that is, just like that, pertinent to what I have reason to do” (CRARY, 2016, p.15).

7 BECKETT, Samuel. A última gravação de Krapp. Trad. Hugo Pinto Santos. Lisboa: Enfermaria 6, 2014.

8  A respeito dos diferentes fins que a ação humana pode galgar, conferir Aristóteles (1985).

9 “(...) the three-act story rhythm was the foundation of story art for centuries before Aristotle noted it” (MCKEE, 1997, p. 218).

10 Beat é o menor elemento dramático de uma cena. É um evento ou ação significante, que traz movimento à narrativa. Vide parte 2 do McKee (1997).

 

Desenho de rosto

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

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