Da filosofia própria e apropriada à didática filosófica mínima: notas introdutórias

From proper and appropriate philosophy to minimal philosophical didactics: introductory notes

 

Alexsandro da Silva Marques

Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil

amarques89@hotmail.com

 

Recebido em 27 de maio de 2024

Aprovado em 28 de maio de 2024

Publicado em 10 de julho de 2024

 

RESUMO

O artigo apresenta as contribuições do pensamento filosófico de Dante Galeffi em defesa de uma didática filosófica mínima para o ensino de filosofia e o conceito de filosofia própria e apropriada, inseridos no contexto da formação humana. A metodologia utilizada é teórico-bibliográfica, de natureza qualitativa de abordagem analítico-hermenêutica. As questões mobilizadoras são: qual o significado de uma filosofia própria e apropriada e como se relaciona com o aprendizado filosófico? Como a Didática Filosófica Mínima se diferencia ou avança em relação à Didática Geral? Diante dessas questões, o texto é estruturado em três partes: inicialmente, localiza-se a perspectiva poemático-pedagógica da filosofia própria e apropriada, abordando suas influências teóricas e conceitos fundantes. Em seguida, examina-se a didática em filosofia, tratando-a como um problema filosófico. Por último, interpela-se a didática filosófica mínima, considerando-a uma via de acesso ao aprendizado filosófico em diferentes níveis de ensino. Nas considerações finais, revisita-se a problemática discutida e destaca-se a importância de uma didática que seja flexível e aberta ao acontecimento da prática filosófica. Assim, a didática filosófica mínima, fundamentada na compreensão poemático-pedagógica de uma filosofia própria e apropriada, é uma possibilidade de vivência conectiva gestada no espaço de liberdade poética, enfatizando a necessidade de promover o florescimento humano em direção a uma sustentabilidade triética: social, mental e ambiental.

Palavras-chave: Ensino de filosofia; Didática filosófica mínima; Filosofia própria e apropriada; Aprendizagem filosófica; Compreensão poemático-pedagógica.

 

ABSTRACT

The article is to present the contributions of Dante Galeffi philosophical thought in defense of a minimal philosophical didactics for the teaching of philosophy and the concept of own and appropriate philosophy, placed in the context of human formation. The methodology used is theoretical-bibliographical, qualitative in nature with an analytical-hermeneutic approach. The guiding questions are: what is the meaning of an own and appropriate philosophy and how does it relate to philosophical learning? How does Minimal Philosophical Didactics differ or advance in relation to General Didactics? Given these questions, the text is structured in three parts: initially, it locates the poemmatic-pedagogical perspective of own and appropriate philosophy, addressing its theoretical influences and founding concepts. Then, the didactics in philosophy is examined, treating it as a philosophical problem. Lastly, the minimal philosophical didactics is questioned, considering it a pathway to philosophical learning at different levels of education. In the concluding considerations, the discussed problematics are revisited, and the importance of a didactics that is flexible and open to the occurrence of philosophical practice is highlighted. Thus, the minimal philosophical didactics, grounded in the poemmatic-pedagogical understanding of an own and appropriate philosophy, is a possibility of connective experience conceived in the space of poetic freedom, emphasizing the need to promote human flourishing towards a triethical sustainability: social, mental, and environmental.

Keywords: Teaching Philosophy; Minimal Philosophical Didactics; Proper and Appropriate Philosophy; Philosophical Learning; Poemático-Pedagogical Understanding.


 

Introdução

Compreendemos o ensino de filosofia como um campo de conhecimento distinto, com seu próprio estatuto epistemológico dentro da área de Ensino de Filosofia. Apesar de sua íntima relação com as questões fundamentais da Filosofia, da Educação e da Filosofia da Educação, é necessário reconhecer que o Ensino de Filosofia se distingue por ter seu objeto, problemas e metodologias específicos, conforme apontam as pesquisas de Velasco (2020), (2019). No contexto atual, a educação filosófica é confrontada com um cenário complexo e desafiador. A busca por abordagens filosóficas e interdisciplinares que responda às exigências contemporâneas do ensino da filosofia, bem como as condições do ensino nas escolas, em toda a sua complexidade: metodologias, avaliação, currículo, relação dos alunos com a filosofia, tem estimulado o desenvolvimento de perspectivas propositivas e criativas, entre as quais apresentamos a “Filosofia Própria e Apropriada” e a “Didática Filosófica Mínima”.

Nesse sentido, o presente texto objetiva refletir sobre as contribuições da Didática Filosófica Mínima para o ensino de filosofia. Aborda-se também o conceito de filosofia própria e apropriada, desenvolvidos pelo professor e filósofo Dante Galeffi. Destacam-se caminhos e reflexões do autor no campo da Didática Filosófica, que inverte, de modo criativo, a centralidade do ensinar para o aprender. Isso é feito tendo como fio condutor a investigação do pensamento pelo próprio pensamento situado, com atenção às coisas mesmas, numa atitude aprendente radical.

A reflexão do artigo está ancorada sobretudo na obra de Galeffi (2001), Galeffi (2017), Galeffi (2019) e obras que discutem o enfoque de uma Didática Filosófica, como Ensayos para una didáctica filosófica (2020) do filósofo Alejandro Cerletti. O texto, fundamentado em uma revisão teórico-bibliográfica de método analítico-hermenêutico, está organizado em três seções: na primeira, apresenta-se de modo geral, conceitos como a filosofia própria e apropriada, o sioumu e a compreensão poemático-pedagógica, destacando a importância de uma aprendizagem filosófica radical em conectividade aos problemas sociais reais e a valorização da experiência individual-coletiva, reconhecendo a validade e a importância das formas de conhecimento de experiências marginalizadas. Em seguida, compreendendo a Didática Filosófica como um problema filosófico, são apresentadas as principais metodologias empregadas no ensino de filosofia: a sistemática, a temática e a histórica. Compreende-se a evolução da Didática Geral, sublinhando a transição de abordagens universais para estratégias que incorporam a subjetividade dos estudantes, visando o desenvolvimento de um educar polilógico, portanto, poemático-pedagógica. A terceira seção, discute-se a Didática Filosófica Mínima como abordagem que transcende métodos tradicionais ao colocar a singularidade e a experiência direta no centro do aprendizado filosófico, onde os conteúdos filosóficos históricos servem como condição de possibilidade para o aprendizado, mas não como seu fim, propondo uma educação que seja ao mesmo tempo poética, dialógica e polilógica. Por último, concluímos a urgência em adotar caminhos educacionais que promovam o desenvolvimento humano em uma perspectiva triética, integrando dimensões sociais, mentais e ambientais, marcando uma transição paradigmática nas práticas pedagógicas que reconheçam a subjetividade e a polilogia como elementos centrais na construção do conhecimento e na aprendizagem da/de filosofia.


 

Fundamento e compreensão poemático-pedagógica da filosofia própria e apropriada

Adentrar no campo da Didática Filosófica Mínima, exige inicialmente compreender o entendimento de filosofia, especialmente no contexto de uma abordagem didática. Questões como “o que é ensinar filosofia” e “como ensinar filosofia” surgem, todas vinculadas, de forma explícita ou implícita, à compreensão da filosofia, do ato de filosofar, do aprender e do ensinar filosofia.

A atitude filosófica não se limita a uma definição conceitual; trata-se de uma postura diante da própria existência do aprendente. É uma aprendizagem contínua de singularização, uma “disposição humana que consiste em querer conhecer para ser-mais. Um espanto!” (Galeffi, 2017, p. 114). Estamos lidando com o ser-sendo em interação com o mundo e os outros, o que implica um constante processo de autodescoberta no contexto da vida cotidiana. Essa aprendizagem não ocorre de forma isolada do ambiente social; ao contrário, o ser humano se projeta em sua realidade, exigindo um profundo autoconhecimento. A filosofia se revela como um caminho para a singularização do indivíduo. A compreensão de si mesmo está ligada à apreensão do mundo cultural, político e profissional do qual faz parte, formando uma unidade indivisível.

O filósofo Dante Galeffi na obra O Ser-sendo da Filosofia: uma compreensão poemático-pedagógica para o fazer-aprender filosofia sustenta a proposição de uma abordagem radical do conceito de filosofia, visando o desenvolvimento de uma cultura de pensamento autônomo e criativo. Isso implica em um pensar que se abre para a multiplicidade de sentidos, de forma poética e polifônica, ou seja, polilógica. Nesse novo paradigma, o filosofar transcende as limitações de uma eurocentricidade baseada apenas na razão lógica e na causalidade linear, permitindo um fazer-aprender filosófico criativo e autônomo. A compreensão poemático-pedagógica amplia as possibilidades de desenvolvimento humano, proporcionando uma nova pedagogia que busca cultivar a vida em sua plenitude. O filósofo explora de forma radical o conceito de “compreensão poemático-pedagógica”, visando um fazer inventivo que, ao mesmo tempo, gera novas possibilidades de formação para uma vida plena e incessante em sua expressão.

Em Galeffi (2001), o conceito de poemático-pedagógica surge a partir das contribuições fenomenológicas de Edmund Husserl e da ontologia heideggeriana. Essa expressão se baseia na perspectiva do Dasein heideggeriano traduzido por “ser-aí” como o ser no mundo. O Dasein, segundo Heidegger (2009), refere-se à existência humana como um ser-no-mundo, enfatizando a abertura e a capacidade de compreensão do ser. Essa noção destaca a importância da consciência e da responsabilidade individual diante da própria existência e da verdade do ser. O Dasein é central para compreender a relação entre o ser e o tempo, a autenticidade e a finitude. Todavia, Galeffi, inspirando-se nessa concepção, introduz o conceito de sioumu para ampliar a discussão sobre a existência. Sioumu manifesta a atitude aprendente radical a partir das dimensões mais imediatas da experiência humana: a relação consigo mesmo, com o outro e com o mundo. Galeffi argumenta que compreender a verdade ou a realidade como um evento relacional de diferença sugere uma abertura radical para novas formas de aprendizado e existência. Assim, o sioumu enfatiza uma abertura amplificada para o entendimento da aprendizagem filosófica como um processo contínuo e dinâmico na vida.

Desse modo, observamos no pensamento galeffiano o desenvolvimento do que ele denomina de epistemologia do educar centrada no autoconhecimento, concebido como uma transformação radical da mente humana em relação com a realidade concreta da existência. Essa revolução interna e externa marca o caminho de retorno ao “eu” sem fundamentos pré-estabelecidos, onde o “conhecimento de si mesmo” emerge do âmago do “ser-aí”, aberto a uma multiplicidade de significados compartilhados e projetado em contínua interação com os outros. O autoconhecimento, assim, se revela como a percepção aguçada das condições específicas da própria existência enquanto indivíduo humano inserido na experiência comum da humanidade.

A compreensão envolve movimentos no fazer poético e no aprender a agir poeticamente. Sob a perspectiva semântica, a expressão “compreensão” adquire uma natureza poético-pedagógica. Na concepção de Galeffi, o termo poemático-pedagógica denota a criação de sentido interpretado como obra de arte. Ainda na obra O ser-sendo da filosofia, o autor aborda o conceito de poiésis com base em pensadores como Heidegger e Aristóteles. Com Heidegger, Galeffi (2001) busca compreender o fazer como arte. Desse modo, “poemático” refere-se ao conhecimento específico da poesia, enquanto “pedagógica” remete ao método de aprendizado que revela o sentido. A poesia representa “a aprendizagem do ser-no-mundo-como criador de uma obra de arte: é a revelação e a ocultação do ser humano como o próprio resultado de sua apropriação” (Galeffi, 2001, p. 39). Nessa perspectiva, a preservação da obra (o fazer, a práxis) é base ao aprender a ser, a realizar, a conviver, a refletir, entre outros aspectos da existência.

É fundamental entender que o ato de criar não se resume apenas a imitar o que já existe, mas sim a cultivar e desenvolver uma expressão única e autêntica que reflita a natureza intrínseca do ser. Galeffi (2001, p. 282) destaca que “a dimensão poética da obra reside em sua criação como arte”. Dessa forma, o filósofo estabelece os fundamentos para uma pedagogia que reconhece a aprendizagem como um processo complexo, onde diferentes perspectivas se entrelaçam, assemelhando-se à elaboração de uma obra de arte. Nessa perspectiva, a arte é um meio e não o fim para revelar a essência do ser no mundo. Com arte, é possível expressar e compreender de forma mais ampliada a existência humana. Portanto, a educação é concebida como processo de desvelamento, onde a arte expressa a revelação da complexidade e da beleza do ser no mundo.

O movimento poético-poemático de compreensão representa a própria manifestação do sentido existencial - o acontecimento da vida com sentido. Segundo a filosofia galeffiana, compreender também implica interpretar, pois só se compreende algo quando se interpreta. Portanto, a compreensão é um processo interpretativo que tem o potencial de moldar formativamente, sendo que a interpretação surge a partir de uma compreensão prévia do ente aprendente: aquele que do ponto de vista aprendente, elabora e atribui sentido de modo próprio e apropriado.

O “próprio e apropriado” introduzido por Galeffi, é inspirado na ideia de personagens conceituais de Deleuze e Guattari. Esses personagens conceituais funcionam como potências de conceitos, atuando em um plano de imanência ou numa representação do pensamento - o númeno. Por outro lado, os personagens estéticos emergem como potências de afetos e perceptos, operando em um plano de composição ligado a uma representação do Universo - o fenômeno. Galeffi (2019) argumenta que, no campo da filosofia, parece que tudo já foi dito sobre a existência humana, sugerindo a necessidade de reinventar e ressignificar continuamente o sentido do ser e seu plano de imanência. Ele propõe uma revolução espiritual e cultural, destacando a importância da diferença ontológica e antropológica na transformação individual e coletiva.

O “próprio e apropriado” é a manifestação do ser-sendo do pensamento filosófico, onde cada pessoa desenvolve sua própria compreensão e apropriação do conhecimento filosófico. Nesse sentido, a filosofia não deve ser adotada de forma passiva, mas reinterpretada e utilizada de maneira singular, pessoal e contextualizada, levando em conta as experiências e perspectivas do sentido do ser de cada um(a). O próprio e apropriado apresenta uma filosofia construída de forma única por cada indivíduo, refletindo sua singularidade e contribuindo para uma compreensão do mundo e de si mesmo. Assim, segundo Galeffi (2019), o ato filosófico é sempre radical, questionador e volta-se sempre para o aprendizado de si. Sendo atitude descentrada de uma verdade definitiva, é experiência de descoberta e reflexão constante, aberta ao acontecimento da existência. Essa compreensão não é ensinada nos manuais tradicionais de filosofia, mas surge de um profundo questionamento sobre o sentido do ser.

Conforme Oliveira e Marques (2020, p. 414), “uma filosofia própria e apropriada é filosofia no acontecimento”, desse modo, a imagem convencional da filosofia e do filósofo muitas vezes os limita a um sistema de articulações teóricas consolidadas formalmente, relegando a filosofia a um domínio de competência profissional reservado apenas àqueles que passaram por uma formação específica na academia. Isso cria uma divisão entre os eruditos em filosofia e os leigos, excluindo estes últimos da discussão sobre verdades filosóficas. Para Galeffi (2019) a filosofia vai além do conhecimento intelectual complexo e da erudição acadêmica, envolvendo a disposição para o diálogo e atenção ao momento presente. Desse modo, é necessário desafiar as normas estabelecidas da filosofia autorizada, enfatizando uma abordagem radical e uma postura de aprendizado constante, que transcende as fronteiras da razão tecnocientífica. A verdadeira filosofia reside na capacidade de permanecer aberto ao espanto originário e ao diálogo interrogante, em vez de apenas demonstrar erudição acadêmica. Conforme sinaliza Galeffi (2019, p. 175):

 

A filosofia é uma questão de experiência do pensar apropriador e não faz sentido sem o sentido-ser-sendo de cada aprendiz/mestre. Desse modo, a filosofia não pode negar a vivência do aprender em nome de uma falsa especificidade conceitual. Como se os conceitos fossem independentes da totalidade existencial de todo ser vivente e fosse necessário negar a sensibilidade e o engenho para filosofar [...]. Todo educador poder ser filósofo sem ser profissional da filosofia. É preciso que se aprenda a observar e investigar os próprios pensamentos. Isso pode e deve ser feito de muitas maneiras, através de múltiplos e imprevisíveis caminhos e combinações dialógicas.

 

O próprio e apropriado se manifesta em língua de si. É assim que Galeffi (2017) compreende a filosofia e o filosofar. “E por que só se pode filosofar em língua de si, todo filosofar começa pela escuta como experiência do que se mostra pensando” (Galeffi, 2017, p. 25). Essa linguagem é desenvolvida a partir da criação de conceitos e distinções fundamentais, refletindo a experiência e a trajetória única do indivíduo. A “língua de si” é uma expressão histórica e socialmente constituída, influenciada pelos processos culturais e pela interação com a tradição filosófica. É por meio dessa linguagem singular que o pensador explora e investiga seu próprio ser e o sentido da existência, promovendo seu desenvolvimento ontológico. Na filosofia, a “língua de si” é a ferramenta primordial para a expressão do pensamento criativo e a busca por uma compreensão mais apurada da realidade. Assim, ela não é uma construção deliberada, mas expressão autêntica e intrínseca do processo do aprendizado filosófico.

Na relação entre academia, prática filosófica e produção-reprodução-recriação de conhecimentos é imprescindível considerarmos a noção de “língua de si” em uma sociedade marcada pelo colonialismo eurocentrado e pelas disparidades sociais. Grada Kilomba (2019), ao destacar que o espaço acadêmico é frequentemente dominado por uma cultura branca privilegiada, onde as vozes das pessoas negras são silenciadas, nos alerta para a violência subjacente a esse ambiente. Nesse sentido, torna-se evidente que a academia nunca foi neutra, mas sim um espaço onde as relações de poder e exclusão são reforçadas. Diante disso, há necessidade de uma epistemologia que reconheça o caráter pessoal e subjetivo do discurso acadêmico, levando em consideração as múltiplas perspectivas históricas e sociais. A pergunta de Kilomba sobre quais conhecimentos são reconhecidos e privilegiados nas agendas acadêmicas ressoa como um convite à reflexão crítica sobre as estruturas de poder que moldam a produção e difusão do conhecimento.

Segundo Grada Kilomba (2019), o conhecimento valorizado e incorporado às agendas acadêmicas geralmente é legitimado pelo poder dominante, muitas vezes associado a estruturas de privilégio, colonialismo e opressão. Essas estruturas determinam quem tem voz e é ouvido, criando desigualdades e hierarquias sociais. Assim, o que é considerado científico é determinado pelos detentores do poder, reforçando a marginalização das vozes subalternas. A comunicação é sempre uma negociação entre falantes e ouvintes, e apenas quando alguém é ouvido pode falar. Aqueles que são ouvidos são considerados como pertencentes, enquanto os marginalizados são vistos como não pertencentes, perpetuando categorizações como universal/específico, objetivo/subjetivo, racional/emocional e imparcial/parcial, que favorecem as posições privilegiadas em detrimento das marginalizadas.

Em Galeffi (2017) a língua do pensamento é uma interlíngua resultante das interações entre os sujeitos humanos nos muitos momentos históricos da humanidade. Kilomba (2019) também evidencia a íntima relação entre os conceitos de conhecimento, erudição e ciência com o poder e a autoridade racial. Segundo a autora, o fenômeno do silenciamento de algumas vozes como detentoras de conhecimento é resultado sistemático da desvalorização de pessoas participantes de grupos minoritários, contextos geográficos fora dos eixos econômicos prestigiados, sendo dessa forma caracterizadas como inferiores social, cognitiva e culturalmente. Este cenário suscita a reflexão sobre quem detém o saber, quem é excluído deste acesso, e qual é o motivo dessa exclusão. Para Kilomba, as vozes marginalizadas não estão silentes por falta de expressão, mas sim devido a um processo sistemático de desqualificação promovido por estruturas racistas. Tais vozes são frequentemente desacreditadas como portadoras de conhecimento válido, ou são representadas por indivíduos brancos, que ironicamente assumem a posição de “especialistas” nas culturas alheias, inclusive em suas próprias vivências. Destaca-se, assim, a existência de uma epistemologia excludente que relega a perspectiva negra ao papel de objeto, em detrimento de sujeito. O poder e a autoridade desempenham um papel crucial na determinação do que é considerado como conhecimento legítimo e em quem é reconhecido como seu portador.

Diante desse cenário, torna-se necessário desafiar as estruturas opressivas e considerar as diversas formas de conhecimento que surgem das experiências marginalizadas. Ao confrontar a epistemologia excludente, que marginaliza certas perspectivas, torna-se necessário repensarmos os métodos pedagógicos, a produção filosófica, seu ensino e suas concepções teórico-prática. A seguir, abordaremos a problemática que nos vincula, considerando a didática do ensino de filosofia não apenas como um problema voltado às questões pedagógicas, mas também como um problema filosófico.


 

A didática do ensino de filosofia como problema filosófico

A didática no ensino da filosofia transcende à questão de ordem pedagógica e metodológica, posicionando-se como um problema filosófico (prática filosófica) que exige reflexão e posicionamento crítico por parte dos educadores. Historicamente, a didática tem sido reconhecida como uma técnica e arte de ensinar, fundamentada no acúmulo de saberes, técnicas e conhecimentos que os seres humanos desenvolveram ao longo de sua trajetória histórica. Este entendimento da didática como um meio de transmissão cultural ganha uma dimensão sistematizada na Idade Moderna, especialmente com a contribuição de Jean Amos Comenius e sua Didática Magna, tratado que propõe a universalização do ensino, com o objetivo de ensinar tudo a todos. Esse marco na história da pedagogia denominada Didática Geral corresponde a um componente essencial na formação de educadores, moldando as práticas pedagógicas subsequentes.

À medida que a filosofia começou a investigar suas próprias metodologias de ensino, ela teve que se ajustar a esse modelo, tentando incorporar práticas didáticas gerais ao ensino específico da filosofia. Com o passar do tempo, a didática, sob a perspectiva educacional, tem se afastado de um modelo universalmente prescritivo para adotar abordagens teóricas mais originais atenta a especificidade das diversas disciplinas, incluindo a filosofia. Isso permitiu que a filosofia explorasse mais detalhadamente as questões sobre como ela é ensinada, integrando essas reflexões ao seu corpo de estudo e dando um passo significativo para entender a educação filosófica como parte integrante do discurso filosófico.

Alejandro Cerletti, filósofo argentino, em sua obra Ensayos para uma didática filosófica (2020), levanta questões fundamentais sobre a didática da filosofia, explorando a possibilidade e a natureza de uma abordagem didática específica para o ensino de filosofia. Ele questiona não apenas o que significa “didática” e, de forma mais aprofundada, “didática filosófica”, mas também como entendemos a própria "filosofia" quando usada para qualificar um potencial didático. Cerletti destaca que tais questionamentos nos levam a dilemas filosóficos centrais, especialmente no que diz respeito ao ensino da filosofia de uma perspectiva filosófica: é possível ensinar filosofia, e, se sim, o que exatamente significa “ensinar” e “aprender” filosofia?

Ao examinar o significado do termo “didática” e o que se entende por “didática filosófica”, Cerletti (2020) toca numa questão fundamental sobre a interpretação da “filosofia” quando utilizada para qualificar um potencial didático. Esses questionamentos levam a reflexões filosóficas sobre o ensino da filosofia, incluindo a possibilidade de ensinar filosofia, o que implica “ensinar” e “aprender” filosofia, e a distinção entre ensinar conteúdos filosóficos e ensinar a filosofar. Cerletti abre um leque de tensionamentos, destacando a complexidade e os desafios inerentes à didática aplicada à filosofia, apontando um campo fértil para a investigação e reflexão filosófica sobre a educação, nos levando a reconsiderar as práticas e concepções que norteiam a atividade filosófica em sala de aula.

No contexto educacional brasileiro, a contribuição de filósofos como Velasco (2020), Gallo (2012), Rocha (2008), Gelamo (2009), Palácios (2004), Galeffi (2001), Tomazetti (2000), Favaretto (1993) tem sido fundamental para a problematização do ensino de filosofia, tratando-o como problema filosófico. Esses estudiosos têm trabalhado na construção de um campo dedicado à Filosofia do Ensino de Filosofia, com foco nas experiências vivenciadas na Educação Básica. Este campo abrange uma ampla gama de elementos, desde planos de aula e metodologias de ensino até materiais didáticos, currículos de cursos de licenciatura, e projetos de pesquisa e extensão, englobando diversas concepções sobre formação, ensino e a natureza da filosofia.

A pesquisa realizada por Velasco (2022) evidencia uma compreensão comum compartilhada na área[i]: o ensino de Filosofia é um território de investigação próprio, enriquecido por questões e abordagens metodológicas que nascem da experiência educacional, abrangendo desde a educação básica até o ensino superior, e se estendendo a modalidades de ensino fora do ambiente tradicional escolar ou em colaboração. As questões-objeto da área de Ensino de Filosofia são basicamente as seguintes:

 

que conteúdos devem ser ministrados? Que metodologias de ensino devem ser adotadas? Para qual nível de ensino? De que escola estamos falando? Que recursos didáticos serão adotados? Que tipo de avaliação será realizada? Qual a formação filosófica pretendida? Qual a contribuição desta formação para a formação integral do(a) estudante? E, por fim: que formação docente é necessária para que a futura professora e o futuro professor possam responder de maneira própria e apropriada a todas essas perguntas? (Velasco, 2022, p. 8)

 

Ao observar o campo do ensino de filosofia e seu desenvolvimento ao longo dos anos, nota-se que três abordagens principais têm influenciado tanto o currículo quanto a formação em filosofia: abordagem temática, abordagem histórica e abordagem sistemática. De modo geral, a abordagem temática foca em temas fundamentais da filosofia, como Ética, Política e Conhecimento, explorando as contribuições de diversos filósofos sem se prender a uma linha do tempo específica. Esta metodologia permite ao professor a partir de questões centrais que mobilizaram o pensamento filosófico ao longo dos tempos, destacando a diversidade de métodos e perspectivas.

Por outro lado, uma abordagem histórica prioriza a sequência cronológica dos pensadores e movimentos filosóficos, enfatizando a importância da contextualização e da coerência histórica. Embora essa metodologia valorize o conhecimento canônico da filosofia, enfrentam limitações, pois a simples recapitulação de autores e ideias não garante a compreensão profunda do pensamento filosófico.

A abordagem sistemática, embora reconheça a importância da sistematização inerente ao saber filosófico, critica a simplificação encontrada em muitos manuais didáticos. Essa crítica aponta para a necessidade de recuperar o pensamento filosófico a partir da argumentação que o sustenta, evitando reduzi-lo a esquemas simplificados que não capturam sua riqueza e complexidade. Independentemente da abordagem escolhida, o ensino de filosofia enfrenta o desafio de como envolver os alunos com a disciplina de maneira significativa. Considerando a subjetividade inerente ao saber filosófico, não há garantias de sucesso absolutas para qualquer metodologia adotada. A escolha do educador reflete sua concepção sobre o modo mais adequado de facilitar a aprendizagem filosófica, ressaltando a importância de uma afetividade genuína pelo conhecimento, que deve emanar do aluno e não ser imposta. Portanto, a didática no ensino da filosofia exige um compromisso com a criação de um espaço de aprendizado que respeite e fomente a curiosidade intelectual e a capacidade crítica dos estudantes, adaptando-se às suas necessidades e interesses.

Desse modo, uma Didática Geral acaba padronizando o processo educacional, muitas vezes negligenciando as singularidades, a sensibilidade e a afetividade inerentes à condição humana. A ênfase em métodos de ensino replicáveis ​​e uniformes pode comprometer a capacidade de atender às necessidades individuais dos estudantes e de reconhecer sua maneira única de interagir com o mundo e com os outros.

Diante disso, surge a necessidade de revisão crítica das práticas pedagógicas tradicionais, envolvendo a complexidade da subjetividade humana no processo educativo. Um educar polilógico com aspiração à didática filosófica mínima compreende a aprendizagem de técnicas e saberes, a partir da valorização e cultivo do potencial singular de cada professor em seu ser aprendente, reconhecendo e respondendo às suas necessidades, aspirações e capacidades. A transformação da didática contemporânea implica em reconhecimento da subjetividade dos aprendentes – em relação aos saberes e práticas que são organizados para ser ensinados e, consequentemente apreendidos de modo próprio e apropriado – buscando meios que promovam o seu desenvolvimento e a sua realização como seres pensantes, autônomos e sensíveis no contexto da aprendizagem.

 

A Didática Filosófica Mínima

Conforme Cerletti (2020), a natureza de uma Didática Filosófica transcende a preocupação comum de outras didáticas, que se concentram nas dinâmicas ocorridas dentro de um contexto educacional. Sendo “filosófica”, ela vai além da seleção de métodos ou estratégias pedagógicas e das teorias de aprendizado a serem aplicadas. Seu plano focal está em criar e nutrir um ambiente propício ao desenvolvimento filosófico. Isso implica não somente em equipar o espaço de ensino com ferramentas adequadas, mas também em promover espaços de trocas e reflexões filosóficas.

A didática filosófica mínima emerge como arte-ciência fundamentada na compreensão poemático-pedagógica, onde a ética da arte de aprender a pensar de modo próprio e apropriado se entrelaça com o movimento existencial do ser-sendo. É criação didática como saber técnico, artístico, filosófico, sensível e científico que coloca a singularidade de cada aprendente no centro do processo educacional, afastando-se de modelos padronizados para enfatizar um aprendizado que é profundamente enraizado nas experiências e contextos específicos de cada indivíduo. Seu plano focal está em criar e nutrir um ambiente propício ao desenvolvimento filosófico e ao florescimento humano (Galeffi, 2017). Isso implica não somente em equipar o espaço de ensino com ferramentas adequadas, mas também em promover espaços de trocas e reflexões filosóficas. Ouçamos o que afirma Galeffi (2017, p. 18):

 

A Didática Filosófica Mínima visa lançar a investigação filosófica para além dos limites dos seus territórios conquistados ao longo do seu tempo glorioso, retornando às coisas mesmas para, a partir daí, investigar radicalmente a condição humana em sua inteireza constitutiva com o mundo da vida espiritualmente reconhecido, tendo em vista a participação na transformação humana para a plenitude vivente. A Didática Filosófica Mínima, assim, apresenta o próprio da aprendizagem filosófica, compreendida como caminho humano para sua autorrealização inteligente, sensível, criadora e comum-pertencente. Não é manual de como ensinar filosofia através dos múltiplos recursos didáticos disponíveis, e sim a indicação de como fazer-aprender filosofia a partir das coisas mesmas, através da experiência própria e apropriada do pensamento interrogante compartilhado. Trata-se de uma Didática poética, dialógica, polilógica, portanto, também criado de novos campos temáticos [...] Não é, portanto, uma didática mínima em geral e sim uma didática mínima como disposição aprendente aberta ao acontecimento do pensar apropriador, próprio e apropriado.

 

A disposição aprendente da Didática Filosófica Mínima prioriza o diálogo e a diversidade de perspectivas, propiciando o desenvolvimento do pensamento crítico, criativo e autônomo a partir da interação direta com o mundo vivido. Conforme Cerletti (2020), os saberes e práticas, advindos dos conteúdos filosóficos históricos, não são o fim nem a garantia do aprendizado filosófico, mas condição de possibilidade. É na condição de possibilidade, abrangendo dimensões metodológicas, éticas, estéticas, poéticas, epistemológicas e políticas, que a Didática Filosófica Mínima busca superar as limitações tradicionais de educação, promovendo uma conexão entre o aprendente e o mundo, respeitando e valorizando a experiência humana em sua diversidade. O mínimo aqui não é sinônimo de pouco, raso, superficial ou limitado no sentido de conteúdos específicos; ao contrário, é amplo e abrangente no sentido que compreende, ao lado da tradição de conhecimento existente, a possibilidade de outros conhecimentos a serem inventados e apreendidos. Isso significa a proposição construtiva de um caminho para que todos e todas possam experienciar o próprio e apropriado de uma atitude aprendente radical.

Atualmente, enfrentamos uma crise de paradigma que tensiona o modelo de formação tradicional, incapaz de abordar a complexidade cognitiva característica da sociedade contemporânea, marcada pelo conhecimento e pela informação. Diante dessa mudança de paradigma, surge a necessidade de uma nova consciência humana planetária que promova uma formação humana sustentável em três dimensões: triética: ambiental-social-mental (Galeffi, 2017). A passagem do paradigma disciplinar moderno para um paradigma interdisciplinar e transdisciplinar pós-moderno reflete essa transição.

Basarab Nicolescu (2014) cunhou o termo paradigma cosmoderno para descrever a nova realidade onde o conhecimento é coproduzido e conecta-se a redes de relações colaborativas, enfatizando a expansão do pós-moderno para uma dimensão cósmica. Pois, as redes de relações buscam revisar e superar o primado da individualidade operante na produção de conhecimento para a coparticipação e coprodução no complexo processo de subjetivação e nas interações transubjetivas. Não é possível pensarmos na produção de conhecimentos fora da rede de compartilhamento e difusão. A revolução em marcha exige uma reformulação radical do paradigma educacional existente, exigindo uma epistemologia capaz de catalisar essa transformação. Tal epistemologia, enraizada na transdisciplinaridade e na polilógica, encontra suporte no vasto conjunto de ferramentas fornecidas pela epistemologia da complexidade visando superar o paradigma moderno limitado e unidirecional.

O modelo educacional atual, focado na preparação para exames em detrimento do aprendizado independente e contínuo, evidencia a urgência dessa mudança. Conforme Galeffi (2017), no século XXI, o papel do educador evolui para o de um mediador cognitivo complexo, exigindo uma formação ampla e profunda, capaz de acompanhar o desenvolvimento de indivíduos únicos em suas especificidades. Assim, a educação do presente-futuro deve ser orientada por uma compreensão abrangente e integrada, valorizando o aprender a aprender como princípio fundamental do pensamento situado, preparando os indivíduos para os desafios de um mundo em constante transformação.

Uma mudança do enfoque disciplinar tradicional de “ensinar” para uma perspectiva interdisciplinar e transdisciplinar centrada no “aprender” sinaliza a demanda por uma Didática Geral renovada. Essa nova didática não mais centrada na concepção clássica como “arte de ensinar”, passa a ser entendida como “arte de aprender”. Tal transformação traduz uma alteração significativa nos princípios educacionais, onde a Didática do aprender a fazer-saber incorpora também uma dimensão sensível e lúdica ao aprendizado, promovendo uma integração entre aprender e o prazer da prática.

Galeffi, ao refletir sobre a transição dos verbos “ensinar” para “aprender”, redefine a Didática Filosófica como um trajeto metodológico que combina aspectos poéticos com a pedagogia, reimaginando a didática como uma técnica do fazer-aprender. Dessa forma, a educação se afasta de abordagens centradas na replicação de modelos impostos externos, privilegiando a criatividade, a inovação e a participação ativa.

O aprendizado da filosofia se converte em um ato de filosofar radical, caracterizado pela abertura do ser-sendo-com-outro-no-mundo, “uma atitude aprendente radical” (Galeffi, 2017, p. 26). O poemático-pedagógica atua como um meio criador-compreensivo tanto de ação pedagógica quanto de investigação filosófica, abrindo-se para os sujeitos em formação. Surge, então, a necessidade de assegurar meios para o aprendizado da filosofia a partir da atitude aprendente radical: “atenção às coisas mesmas – a si, ao outro, ao mundo – sioutrumundo, um construto agora batizado sioumu no lugar de Dasein” (Galeffi, 2017, p. 26).

A intenção de promover uma Didática Filosófica Mínima acessível a todos pode parecer uma aspiração fora de contexto. No entanto, é fundamental uma compreensão profunda da condição humana, visando desmistificar a sensação de impotência ontológica que muitos enfrentam em relação a produção e apropriação do conhecimento. Galeffi defende a importância de uma educação filosófica básica para todos, não apenas para aqueles que optam por seguir a profissão de filósofos. Esta proposição é um passo importante para desfazer os obstáculos que contribuem para uma sensação generalizada de impotência, os quais tendem a reprimir o potencial humano em formas de existência alienadas e insustentáveis. Isso sugere a possibilidade de adotar uma didática filosófica atenta ao presente, ao cuidado com o ambiente, os valores espirituais e a condição humana planetária, conforme sintetiza a Figura 1:


 

Figura 1. Horizonte da Didática Filosófica Mínima.

Diagrama

Fonte: Elaboração do autor inspirado em Galeffi (2017; 2001)

 

A didática filosófica mínima atua como um metaponto de interações, pois, em sua força tensiva semelhante a um átomo composto por partículas, abrange epistemologia (saber conhecer), metodologia (saber fazer), ontologia (saber ser), ética (saber agir), ecologia (saber viver, saber nutrir), e estética (saber fazer-como-se).Conforme ilustrado na Figura 1, com abordagem transdisciplinar engajada no processo de ser e tornar-se, a didática filosófica mínima enfatiza o desenvolvimento de habilidades fundamentais como pensar, argumentar, mediar, decidir e viver. O plano articulador da didática filosófica mínima articula o desenvolvimento da sensibilidade, o desenvolvimento da ética, o desenvolvimento do pensamento e o desenvolvimento da vitalidade.

No desenvolvimento da sensibilidade, essencial para a atitude aprendente radical e a elaboração de sentidos, incentiva-se a intuição, o reconhecimento e a identificação de emoções, além de fomentar percepção ampliada do mundo, superando os desafios impostos por uma sociedade que alimenta valores mercadológicos e competitivos. Nesse contexto, o lúdico (como princípio formativo) e o artístico, nas diversas linguagens do florescer humano, ampliam nossa capacidade de vivenciar emoções para além de uma razão provida de certezas e verdades absolutas. A ludicidade conforme Luckesi (2004) é um fenômeno de natureza subjetiva, um estado de consciência pleno e experiência interna. A ludicidade está ligada a diferentes estados de consciência durante a prática de atividades lúdicas.

O desenvolvimento da ética fomenta o diálogo solidário e empático para o convívio com as diferenças e cooperação coletiva. Esse aprendizado abrange a tomada de posições éticas contra ações nocivas como conflitos, violências, vinganças, punições, barbaridades, discriminações e a disseminação de notícias falsas, salvaguardando a dignidade dos direitos humanos. Compreendemos o desenvolvimento da ética como autotranscedência que congrega ideias, escolhas, percepções e valores. Ademais, considerando-se o comportamento humano modulado por diversas relações e contextos, sublinha a importância de um aprendizado radical que combina discurso e ação.

O desenvolvimento da vitalidade é fundamental para promover uma sociedade acolhedora e inovadora, incentivando a criatividade e a capacidade de enfrentar desafios contemporâneos. É essencial nutrir o bem viver (mental, social, ambiental). Isso significa manter-se vivo por meio de ações, comportamentos e pensamentos que respeitem a dignidade humana em seu sentir, pensar e agir, potencializando o vigor de estar atento e presente no aqui e agora, mesmo quando confrontados pelas dispersões e disjunções da vida material e simbólica.

Por fim, o desenvolvimento do pensamento visa a autonomia e liberdade do indivíduo, reconhecendo a interdependência dos contextos físico, biológico, cultural, psíquico e espiritual. Destaca a importância das circunstâncias imediatas, o acontecimento e a intencionalidade (planejamento de ações), oferecendo base para o pensamento crítico, criativo e responsável na apreensão sensível e inteligível dos objetos do conhecimento. Aqui, mobiliza-se a noção do pensamento complexo, pautado na religação dos saberes, na problematização e na diversidade, ciente das inter-relações e implicações mútuas entre os fenômenos, sempre atento para evitar disjunções e reduções.

O pensamento filosófico galeffiano segue a empreitada crítica de desconstrução epistemológica europeia, a fim de pensar a questão do lugar da filosofia, onde o horizonte filosófico não pode ser limitado apenas às tradições ocidentais, muitas vezes negligenciando a capacidade de pensamento de povos colonizados, como os das regiões africanas e latino-americanas. Desse modo, Galeffi (2019) promove uma radical revolução na maneira como compreendemos e praticamos a filosofia. Sua proposição envolve a desconstrução dos conceitos filosóficos estabelecidos por pensadores influentes ao longo da história, com o intuito de possibilitar a criação de uma filosofia que seja genuinamente pessoal e enraizada no contexto específico de cada indivíduo. Essa perspectiva descentraliza a filosofia dos domínios exclusivos dos filósofos profissionais, democratizando-a como uma expressão do conhecimento, da capacidade de ser e da responsabilidade compartilhada inerentes a todo ser humano. Galeffi (2001) sugere que a definição de filosofia como a criação de conceitos, embora ampla e aparentemente imprecisa, reflete a diversidade e a riqueza do pensamento filosófico, enfatizando que os processos cognitivos envolvidos na formulação de conceitos são acessíveis a todos, em todos os momentos da vida. Assim, o verdadeiro horizonte é aquele de cada indivíduo em sua singularidade e contexto específico, sendo o pensamento uma condição inerente à humanidade em todas as suas manifestações culturais e históricas. Tudo começa com o lugar de existência de cada um, pois cada indivíduo é um projeto em constante transformação.

A Didática Filosófica Mínima enfatiza uma inclusão total, rejeitando qualquer forma de exclusão ou comparação, pois reconhece a existência tecida por relações interconectadas. Esta didática filosófica visa cultivar um novo paradigma humano, pautado no cuidado incondicional pelo mundo da vida e sua riqueza poética, contrastando com métodos educacionais que buscam uniformidade e são insensíveis às nuances da experiência individual. Galeffi propõe um engajamento com a filosofia em contraponto à mera absorção de seus conteúdos, promovendo um diálogo que permite a cada ser-sendo construir significados a partir de sua própria realidade e circunstâncias. Este processo não subestima o legado filosófico, mas encoraja uma apropriação pessoal dos conceitos filosóficos, de modo que o aprendizado se torne relevante e significativo na vida cotidiana de cada estudante. É o princípio do cuidado incondicional pelo mundo da vida, destacado na sua natureza florescente e poética como contraponto às abordagens educacionais tradicionais, focadas na homogeneização e na disciplinarização estática do saber. A Didática Filosófica Mínima sugere, portanto, uma reconceituação radical do papel humano no mundo, privilegiando a necessidade de aprender a pensar como a mais fundamental das necessidades humanas, vista como um projeto ontológico em transformação.

Para Galeffi (2017) o propósito primordial da educação é estimular o desenvolvimento espiritual integral nos indivíduos, uma vez que aqueles que têm plena consciência de sua situação existencial e estão capacitados para realizar tarefas produtivas de natureza complexa e independente possuem o potencial de atuar como agentes de cura no mundo, em toda a sua diversidade e complexidade. A responsabilidade central da educação está, portanto, alinhada com o zelo pelo mundo da vida, seguindo uma ética tripartida ou “triética”, que abrange as dimensões ambiental, social e mental (espiritual) de nossa existência planetária. Atriética sublinha a importância de uma consciência holística que transcende o cuidado ambiental isolado, enfatizando a necessidade de atenção simultânea aos aspectos sociais e aos valores espirituais que definem a condição humana.

Na Didática Filosófica Mínima, o conceito de curador trivalente, introduz uma nova compreensão do ser humano como um mediador inteligente e sensível de si mesmo e a totalidade que o envolve. Esta noção desafia a visão antropocêntrica tradicional, que coloca o ser humano como dominador da natureza, propondo, em vez disso, uma postura de humildade, cuidado e mediação. Ser um curador trivalente significa reconhecer-se como parte integrante de um todo maior, assumindo uma responsabilidade que abrange dimensões de uma vida trivalente: social, ambiental e mental:

 

Ser curador trivalente é fazer-se morada temporária do que não tem ocaso em sua impermanência porque o mundo da vida vive de aparecer e desaparecer, e o ser humano encontra o seu sentido em cuidar do mundo da vida trivalente: ambiental, social, mental. [...] O único compromisso é com o mundo da vida e seu cuidado triético. E o triético é o ético em suas frentes de ação. A ênfase no triético se dá como maneira de chamar a atenção para a condição humana planetária em toda a sua extensão e intensidade. [...] O curador (educador) é o que cuida do florescimento circunstancial dos florescentes. E por ser curador não lhe cabe imprimir formas nas almas suspostamente vazias dos aprendentes inocentes. Seres humanos não são tabulas rasas e sim potências aprendentes vivas (Galeffi, 2017, 31; 38-39).

 

 Assumir o papel de curador trivalente significa reconhecer a impermanência e a dinâmica de aparecimento e desaparecimento que caracteriza a existência, encontrando sentido na tarefa de cuidar de um mundo intrinsecamente trivalente. No âmbito da Didática Filosófica Mínima o educador é um curador (mediador) cuja missão é nutrir o desenvolvimento das capacidades dos aprendizes, em vez de tentar moldar mentes presumivelmente vazias. O papel do educador transcende a mera transmissão de conhecimento, focando no estímulo ao crescimento pessoal, na mediação e criação de um ambiente que permita o florescimento da disposição aprendente ao diálogo.

A Didática Filosófica Mínima é aberta ao novo, ao imprevisível, criando um espaço de aprendizagem que nutre o cuidado triético essencial à convivência entre todos os seres. Os conhecimentos estabelecidos e instituídos no cenário filosófico não são descartados, todavia são apropriados de modo próprio e apropriado por cada profissional em sua prática critico-criativa. Desse modo, é por natureza, uma atividade criativa que valoriza o conhecimento singular e compartilhado, incentivando cada indivíduo a seguir o que o potencializa e a redescobrir suas paixões fundamentais na construção colaborativa do conhecimento. A Didática Filosófica Mínima é tanto utópica quanto heterotópica, possui muitas entradas e saídas, buscando projetar-se na alteridade, no diálogo com o diferente, e celebrando a diversidade da diferença. Assim, o foco não está na quantidade de conteúdo ou no cumprimento da reprodução dos conteúdos canonizados, seguidos fielmente pela administração do planejamento, mas no modo como o conhecimento (conteúdo) pode ser inventado, operado e internalizado, promovendo uma apropriação inteligente, planejada e inventiva da atitude filosófica em processo contínuo e apaixonante de descoberta e criação.

 

Considerações finais

A Didática Filosófica Mínima desafia os vínculos tradicionais entre o ensino e a aprendizagem, destacando a importância de redefinir as relações entre mestres e aprendizes dentro e fora dos espaços educacionais convencionais como escolas, universidades. Esses ambientes, embora formais e regulamentados pelo Estado, não são os únicos possíveis para a difusão filosófica, mas permitem uma estrutura específica à educação filosófica. A Didática Filosófica Mínima ultrapassa a simples transferência de conhecimento, exigindo uma reapropriação singular do saber filosófico que permita a subjetivação do aprendiz dentro de um processo de objetivação mais amplo. Tal aprendizado está intrinsecamente ligado à imprevisibilidade da imersão do pensamento crítico, desafiando qualquer tentativa de programação estrita, pois, lida-se sempre com uma atitude aprendente radical.

Conforme Cerletti (2020), (2009) e Galeffi (2017), (2001), uma aula de filosofia só pode ser considerada como tal se transpor a simples exposição de conteúdos pelo professor, envolvendo uma reapropriação criativa do conhecimento pelos participantes. Tal processo possui um caráter também aleatório e incerto, pois estimula o pensamento que, por sua natureza, vai além da repetição ou da transferência de informações. Essa dimensão imprevisível exige uma didática flexível que valorize e acolha tais ocorrências, registrando-as não como desvios, mas como possibilidades da/para prática filosófica.

A Didática Filosófica Mínima, forjada na compreensão poemático-pedagógica aflora como espaço de liberdade poética, endereçado a urgência de caminhos que favoreçam o desenvolvimento humano em direção a sustentabilidade triética: social, mental e ambiental. Ela marca a transição do paradigma educacional disciplinar para um modelo transdisciplinar polilógico, caracterizando além de mudança de grau, uma transformação essencial na natureza do conhecimento monológico, reintegrado “a subjetividade no interior do conhecimento da natureza” (Galeffi, 2017, p. 114). Conforme a filosofia galeffiana, este salto paradigmático impulsiona os indivíduos a tornarem-se educadores (curadores) triéticos, comprometidos com a disposição da atitude aprendente radical – atitude filosófica. Uma educação que envolve a complexidade e incentiva uma sabedoria polilógica para espíritos livres na contingência dos encontros.

 

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Notas



[i]A pesquisa realizada pela profª. Drª. Patrícia Velasco abrangeu profissionais da área do ensino de filosofia, abarcando desde integrantes do Grupo de Trabalho Filosofar e Ensinar a Filosofar, afiliado à Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), até docentes envolvidos com os programas de Pós-graduação em Filosofia e Ensino (PPFEN/CEFET-RJ) e o Mestrado Profissional em Filosofia (PROFFILO).