Carta para as crianças nas escolas do Brasil


Letter to children in schools in Brazil

 

Ana Cláudia Magnani Delle Piaggeimage001.gif

Doutoranda em Educação Escolar pela UNESP FCLAR, Araraquara, SP, Brasil. anaclmagnani@gmail.com

 

 

RESUMO

Inspirada pela carta de Glória Anzaldúa às mulheres escritoras do terceiro mundo, peço licença poética à autora para tecer uma carta direcionada às infâncias que tenho escutado pelas escolas do Brasil. Nessa escrita, irei propor um diálogo com as crianças e educadores-pesquisadores que têm buscado pensar crianças, experiências e escolas, almejando encontrar possibilidades de vida por entre os conteúdos desarmônicos e fragmentados com os quais a escola contemporânea tem alimentado as infâncias. Diante da possibilidade de escuta que tem sido generosamente oferecida pelas crianças, tenho buscado os rastros das promessas de sonhos para uma outra escola possível.

 

Palavras-chave: Experiências; Crianças; Escolas; Sonhos; Educação.

 

ABSTRACT

Inspired by Glória Anzaldúa's letter to women writers from the Third World, I ask the author for poetic permission to write a letter addressed to the childhoods I have listened to in schools in Brazil and to propose a dialogue between the listening and the way they cross me, their speeches, and educator-researchers who have sought to think about children, experiences, and schools, aiming to find possibilities for a living life among the disharmonious and fragmented contents with which contemporary schools have fed them. Given the possibility of listening that has been generously offered by the children, I have been searching for the traces of dream promises for another possible school.

 

Keywords: Experiences; Children; Schools; Dreams; Education.

 

Araraquara, 21 de março de 2024

 

Queridas crianças, companheiras nas reflexões sobre a escola e o sonhar, sento-me aqui, em um fim de tarde particularmente abafado, cansada após um longo dia de conversas com vocês, e sou tomada por tremores. Estremeço, não pelo momento que compartilhamos, mas diante da possibilidade de me colocar em percurso com as palavras que trocamos, sentindo que algo, ou melhor, várias coisas me escapam quando estou com vocês. Percebo que falta em mim um quê de imaginação crianceira, de entendimento das palavras mirabolantes, de lembrar como realizar os exercícios brincantes.

São muitos os assuntos que surgem em nossas conversas e que me fazem ficar refletindo depois sobre novas possibilidades para uma escola outra que “resista ao esquecimento da infância”, a partir de uma escuta aprendente das falas das crianças. Por isso, peço licença para compartilhar algumas das minhas reflexões sobre o tema.

Nos últimos tempos, tenho percebido que os sentidos e experiências próprias das infâncias podem ser estendidas, não nos modos vividos durante esse momento cronológico específico, mas como potência para uma vida que se mantenha em constante estado de renovação. Ser-estando criança, para além de um tempo determinado, pode ampliar as possibilidades para perceber e valorar a vida e estar em comunidade.

Quero explicar a vocês que adotei o hífen, nesse texto, entre as palavras "ser" e “estando” visando acolher a intensidade desse campo investigativo. Nas palavras de Nina Veiga,

O hífen é, ao mesmo tempo, aquilo que separa, que une, que opõe e concorda, ou seja, o hífen é aquilo que mantém um tensionamento.  Ao agenciar as palavras [ser e estando], o hífen marca a possibilidade de produção de devires, pois as intensidades não são estados fixos, acomodados, e, sim, movimentos sempre abertos à produção de outros movimentos (Veiga, 2020).

           

            Com a educadora Nina Veiga (2020, sem paginação), posso pensar que o diálogo com vocês, crianças, “e sua decorrente política de narratividade é um exercício que vocaliza as intensidades [próprias das crianças] e se abre aos devires. Imbrica a escrita do corpo [infante] no fazer [...], promove a implicação” do adulto nesse movimento contínuo de aprendizagem conjunta, pensando e sentindo durante todo o processo. “Ação decorrente de um processo formativo que investe na experimentação, enfatizando a singularidade de cada” indivíduo.

Desenvolvendo a reflexão sobre a ideia de ser-estando criança para além do tempo determinado, quero explicar a vocês que percebo que estamos padecendo de dois males na contemporaneidade: o encurtamento das infâncias e o aprisionamento de adultos em um estado infantil.

Por um lado, observamos o mal que aflige a muitos adultos que não querem assumir a fase adulta e as vivências próprias dessa fase, escolhendo estar presos a um imaginário equivocado das infâncias como um período de liberdade, no qual não existe responsabilidade diante da vida. Estar aprisionado, enquanto adulto, em um imaginário distorcido das infâncias, significa manter-se ligado emocionalmente a um determinado período-espaço que não pode conferir possibilidade de existência real e desenvolvimento para adultos dentro deste contexto.

Nesse mal, os adultos cativos desse imaginário distorcido de acriançar-se, embebezar-se, negam-se a assumir responsabilidade e reduzem a sua vida a um fragmento da sua possibilidade. No outro mal, ao contrário, os adultos deliberadamente causam o encurtamento do período das infâncias das crianças através da adultização precoce.

Devo dizer que a possibilidade de reduzir o tempo de viver as infâncias a um fragmento de sua real possibilidade de existência, como tem ocorrido na atualidade, me assusta de tal modo que me lanço no difícil trabalho de caçar palavras que tragam vida a esse incômodo e sustentem a defesa pelo dever da escola em “resistir aos esquecimentos da infância que constitui todo ser humano” (Kohan, 2010, p. 125).

Encontrar-se com uma criança –real, imaginária, fictícia, fabulada, memória ou tudo isso –é sempre dar-se a um turbilhão de palavras, afetos e afecções de horas antigas e das que nos envolvem no aqui-agora. É se colocar em movimentos brincantes por meio de cenas, imagens, memórias, ficções, fabulações, histórias, discursos e narrativas por onde a vida –que não deveria precisar de autorização para o existir –transborda (Rodrigues et al, 2019, p.123).

 

Defendo que encontrarmos possibilidades através da escuta aprendente das crianças para a manutenção de um estado de ser-estando criança durante toda a vida dialoga com o debate provocado por Renato Noguera sobre a infancialização, como “parte do pressuposto afroperspectivista, a saber: a infância, enquanto conceito filosófico, é disruptiva. Infancializar é uma maneira de perceber na infância as condições de possibilidade de invenção de novos modos de vida” (Noguera; Barreto, 2019, sem paginação).

Compreendendo que ser-estando criança diz sobre manter-se em estado constante de experimentação e espanto diante da vida, buscamos partilhar com Larrosa (2021) esse percurso investigativo, que irá nos oferecer pistas para pensarmos essa possibilidade de resistência.

Notem! Para nós, adultos, encontrarmo-nos com vocês, crianças, diz sobre assumirmos para nós mesmos nossas fragilidades e buscarmos forças para nos colocar em diálogo através do brincar, do conversar, do sonhar conjuntamente, nos fazendo “olhar de novo para o que supúnhamos já saber e conhecer” (Rodrigues et al., 2019, p. 123).

Crianças queridas das múltiplas cores, das cem linguagens, dos profundos olhares, das muitas risadas e caretas, das inquietas vivências, com suas pernas finas dançantes, desmanchando mundos e criando outros inteiramente novos. Amadas crianças, o que a escola tem feito a vocês? O que fez a nós?

Suas mãos criativas andam atadas ao lápis para aprender a escrever e esquecem que vocês dominam o des-escrever, o desenhar, o pintar — o sete, o arriscar a riscar a parede e as regras, para tentar outra coisa, outra coisa e outra coisa mais.

Com Larrosa (2021), percebo que, quanto mais esse modelo de escola tem avançado para mais e mais escolarizações atualizadas, mais tem transformado o tempo na escola em mercadoria, em que se compram sentidos, produzindo incessantemente trabalho para as crianças, e isso as torna,

[...]ultrainformadas, transbordantes de opiniões e superestimuladas, mas também sujeitos cheios de vontade e hiperativos. E por isso, porque sempre estamos querendo o que não é, porque estamos sempre em atividade, porque estamos sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não podermos parar, nada nos acontece” (Larrosa, 2021, p. 24).

 

A escola moderna tem mantido vocês em estado de dormência, de obediência cansada, desgastada, insípida. O que fizeram com a possibilidade vicejante da conexão do cérebro à mão que possibilita ao artífice infante criar outros mundos imaginantes tão reais que possibilitam que vivenciem as experiências infantis?

Queridas crianças inquietas, o que fizeram com suas possibilidades de criar experiências? A escola continua reproduzindo vivências sem vida; continua incentivando a submissão e reprimindo sua rebeldia travessa, repleta de potência. O que fizeram com as suas mãos imaginantes?

Sabe, crianças, meu encontro com vocês, apesar da nossa diferença etária, tem me permitido re-elaborar memórias delicadas, têm me possibilitado perceber que temos que estar em estado de abertura para o encontro com vocês e espaços íntimos preparados para guardar os gestos que trocamos durante nossas conversas, reservando-os para quando eu estiver pronta para falar.

Falar sobre como fui me re-inventando outra com as palavras que vocês generosamente me ofereciam; como, durante os encontros, criamos rituais de encasamento, rituais para assimilar o outro em nós.

Sinto que vocês estão padecendo nesse modelo de escola que cobra de vocês, desde muito jovens, o produtivismo; vocês se encontram exaustos em meio a conteúdos, sem espaço para serem afetados pelas vinculações próprias aos seres vivos.

O tempo da/na escola tem uma duração cronológica que impede os gestos e os olhares que habitam o tempo das infâncias. O tempo na escola anda rígido, limitador e longo. Um tempo repleto de exaustão.

Caras crianças, sinto-me muito aborrecida por perceber que as estamos conduzindo para um mundo cada vez mais asséptico e neutro, no qual as possibilidades de experiências não têm sobrevivido, mesmo com suas inúmeras tentativas de subversão, de maravilhamento e de rebeldia.

As crianças num mundo pedagógico higiênico têm desenvolvido uma propriocepção sonâmbula em relação à provocação do espaço e à temporalização veloz. Crianças de dez anos de idade estão perdendo a capacidade de dar bons nós, nós firmes dados pelas mãos, os dentes e os dedos de apoio. Nós que afirmam os momentos decisivos e necessários do aperto. Aqueles nós tensos que firmam a borracha no cabo do estilingue. Aqueles nós cegos que garantem a ligadura dos mastros aéreos das pipas. Nós arrochados que seguram uma estaca de cumieira na casinha no quintal (Piorsky, 2022).

 

O espaço-tempo das infâncias tem se aproximado muito de um espaço-tempo desarmônico, como se mantivesse vocês aprisionados a um espaço de desequilíbrio com a própria vida viva e com as possibilidades que o viver em comum potencializa em vocês.

Viver em comum, apesar de propagado por várias metodologias pedagógicas, se afasta rapidamente do modelo individualista e competitivista da escola moderna, na qual as notas, o desempenho, os conteúdos, as colocações e o tempo desempenham uma função crucial. Uma escola do medo que tem desenvolvido, desde muito cedo, em vocês, crianças, um senso consumidor de vocês mesmas, com um excesso de positivismo, em um consumo excessivo de "sins".

Onde essa escola guarda os seus "nãos", as suas tristezas, os seus problemas, as suas perguntas, as suas frustrações? Isso não deveria ser parte do currículo da escola?

A escola os tem ensinado a questionar o peso do mundo que vocês têm carregado?

Noto que muitos de vocês têm sobrevivido em um estado contínuo de terror; em uma guerra moderna que não cede em os objetificar, em capturar suas narrativas, em desarranjar suas memórias.

Nas salas de aula, nos deparamos com educadores que têm reproduzido

[...] perguntas irrefletidas, perguntas sem fim, sobre o risco, sobre o que usar com as crianças, sobre o preparo e organização dessas coisas para a segurança. Já surgem os ávidos vendedores e vendedoras de ideias e modos de fazer, já surgem os comerciantes de novidades pedagógicas para a sala de aula (Piorsky, 2022).

 

Mas nós, os adultos-educadores, não nos damos conta das experiências que continuamente vocês têm vivido e que tentam contar na escola; afinal, como nos faz compreender Larrosa (2021, p. 18), a experiência precisa da palavra para se tornar vivificada, para ser trazida a existência. As crianças precisam contar sobre o que se passa com elas, o que lhes acontece, o que as toca, porque o que elas sentem “são mais do que simplesmente palavras”.

E, por isso, as lutas pelas palavras, pelo significado e pelo controle das palavras, pela imposição de certas palavras e pelo silenciamento ou desativação de outras palavras são lutas em que se joga algo mais do que simplesmente palavras, algo mais que somente palavras (Larrosa, 2021, p.18).

 

E é difícil para nós, adultos-educadores, rompermos com os paradigmas impostos por esse modelo de escola, pois também fomos educados por ela e, sem notarmos, reproduzimos o que fizeram conosco quando nos calaram, oferecendo escutas superficiais às suas experiências e às palavras com as quais as nomeiam.

Mas vamos tentar refletir juntos: como podemos começar de novo a pensar o modo de ser-escola? Lembro que, em um dos nossos encontros, conversávamos sobre que outra escola poderíamos sonhar juntos, e uma menina, que tinha em torno de 9 anos, disse que a escola deveria ser como um espaço para a dança, com seus diversos ritmos, tons, cadências, corpos, movimentos, coloridos e tempos.

Uma escola-mundos dançantes, em que cada um pudesse dançar do seu jeito, com o seu ritmo e que, nesse espaço, fossem valorizados os passos inovadores, os passos diferentes, os passos nervosos e aqueles que não se sentissem prontos para dançar.

Depois da nossa conversa, fiquei encostada na cadeira da varanda, bebericando meu chá e pensando em suas palavras. Uma escola dançante. É improvável que consigamos criar escolas dançantes nesse momento, afinal, ainda somos poucos os que sonham com outras possibilidades de mundos para a escola, inspiradas pelos sonhos das crianças, mas devo reconhecer que seria encantador encontrar um espaço escolar com tanta potência viva em clima de festa.

Notei, com a continuação das nossas conversas, que consideram o movimento fundamental à aprendizagem e percebo, com Larrosa (2021), que o movimento é fundamental à experiência; e uma escola que promova um mínimo de possibilidades de experiências deve oferecer espaços para o corpo, para a incerteza e o movimento, para o que não é definitivo, tão pouco permanente, para o efêmero, para o espanto.

A escola como um espaço de pulsão pela/na vida, provocando paixão, incertezas, desvios e possibilidades. Difícil pensar em tudo isso e pensar em escola, não é mesmo?

Larrosa (2021, p. 44) nos provoca a pensar, olhando para vocês, crianças, que a escola, para ser mais do que é, precisa não mais se definir “por sua determinação e sim por sua indeterminação, por sua abertura”.

Minhas queridas crianças, noto que vocês andam cansadas do excesso de trabalho e das demandas produtivistas. Vocês precisam estudar, aprender, aprender mais e mais. Fazer curso disto e daquilo para ocupar todo o seu tempo livre. Vocês têm que dominar as línguas desde bebês - não existe mais espaço para balbuciar as palavras, na escola, somente em português; os bebês da elite devem realizar seus sons guturais em português e inglês - as tecnologias - seus pais se orgulham em contar como vocês já navegam pelo ciberespaço - os espaços - dizem como vocês já são espertos, rápidos, autônomos - a vida em sociedade. Sempre demonstrando uma felicidade transbordante, afinal, ninguém lhes ensina que não são obrigados a demonstrar felicidade o tempo todo. Que podem sentir frustração, incômodo, raiva, medo e todos os outros sentimentos inerentes ao humano.

Fico triste por notar como vocês estão ficando sem tempo para o ócio e o silêncio; que vocês não sabem mais dizer sobre o tempo nas infâncias que habitam e como deixarem-se dominar por esse tempo. Em nossas conversas, percebi que, nessa era da informação, vocês estão sendo educados para saber tudo, roubando-lhes o encantamento pelo não-saber.

O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informações, o que mais o preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está mais bem informado, porém, com essa obsessão pela informação e pelo saber (mas saber não no sentido de “sabedoria”, mas no sentido de “estar informado”), o que consegue é que nada lhe aconteça (Larrosa, 2021, p.19).

 

Vocês andam sendo desapropriados de suas próprias falas, de serem produtores de suas próprias escritas de vida, de aprender a dialogar aprendendo a falar com o outro, não somente para o outro.

Queridas crianças sonhantes, noto que vocês persistem em brincar e sonhar, roçando o tempo para poder habitar nele. Mas tenho notado as suas dificuldades, assim como as de nós, adultos, em estar presentes de corpo inteiro na escola.

A educadora Fátima Freire (2024), em um encontro promovido pela A Casa Tombada, disse que “o tempo nos domina a todo momento, a ponto de não mais sabermos qual é o nosso próprio tempo”. Devo assumir que fui tomada de assombro ao perceber como o tempo tem se tornado efêmero, não presentificado. Lembrei do modo como me diziam que não se sentiam pertencentes a esse tempo, tão pouco ao espaço da escola, que pareciam flutuar entre mundos diferentes, sem ter um espaço certo para estar.

Byung-Chul Han (2021), em O desaparecimento dos rituais, nos fará pensar sobre como o mundo contemporâneo vem perdendo seus rituais que promoviam um espaço-tempo seguro para habitar e como isso vem refletindo nos sujeitos contemporâneos na forma de destruição e não realização.

O filósofo nos dirá que os rituais...

Transformam o estar-no-mundo em um estar-em-casa. Fazem do mundo um local confiável. São no tempo o que uma habitação é no espaço. Fazem o tempo se tornar habitável. Sim, fazem-no viável como uma casa. Ordenam o tempo, mobiliam-no. Em seu romance Cidadela, Antoine de Saint-Exupéry descreve os rituais como técnicas temporais do encasamento: “e os ritos são no tempo o que o lar é no espaço. Pois é bom quando o tempo que passa não nos pareça algo que nos gasta e destrói, como a um punhado de areia, mas como algo que nos realiza. É bom que o tempo seja uma construção. É assim que eu ando de festa em festa, de aniversário em aniversário, de vindima em vindima, como quando eu era criança e ia da sala do conselho até à sala do repouso, na densidade do palácio de meu pai, em que todos os passos tinham um sentido”. Ao tempo falta hoje a estrutura firme. Ele não é uma casa, mas um fluxo volúvel. Desintegra-se em mera sucessão de presentes pontuais. Ele se esvai. Nada lhe dá uma parada [Halt]. O tempo que se esvai não é habitável (Han, 2021, p. 09).

 

Esse tempo que se esvai está criando uma realidade lisa, sem possibilidades de existência para o espanto, a perplexidade e a pergunta. O espaço-escola tem se tornado um lugar árido, sem a produção da curiosidade e da inventividade.

Fico olhando para as escolas e as crianças, para o que nós, adultos, somos e para o que vocês estão sendo, e me pergunto: onde existe espaço-tempo para os olhos brilhando, para as exclamações de espanto, para o divertimento com a descoberta?

As crianças têm um tempo cronometrado para beber água; qual é o tempo destinado para que elas possam beber os gestos e torná-los mais próximos?

Beber os gestos... Pensei, com Larrosa (2021), em sugerir pensarmos a experiência de uma outra forma, como “[...] algo que talvez aconteça agora de outra maneira, de uma maneira para a qual, talvez, ainda não temos palavras” (Larrosa, 2021, p. 44).

Que prazer é esse que irei sentir hoje por estar na escola? Essa não parece uma pergunta que seria feita pelos alunos; afinal, ainda não escutei nenhuma criança me contar sobre o prazer em estar na escola. Vocês falam da segurança, da necessidade, da obrigação, mas não do prazer.

Por que vocês, crianças, não dizem sentir essa vinculação emocional prazerosa com o espaço da escola?

Noto, ao reler essa carta que agora escrevo a vocês, que tenho muito mais perguntas do que respostas, e o tempo que tenho passado com vocês tem se tornado fundamental para me repensar.

Sabe, crianças, em um encontro em que estive dialogando com os educadores, perguntei a eles sobre seu sonho de escola. Sabem o que esses adultos-educadores me disseram, em sua maioria? Que sonham estar fora da escola, viajando, passeando, descansando, com a família, fazendo outras coisas. Em sua grande maioria, os professores não sonham escola, e isso me doeu.

Noto que uma cultura pedagógica do sonho é urgente! Urgente para pararmos de dizer sobre uma escola que só reproduz violências e passarmos a sonhar com uma escola que produza vida viva em seu interior. Nessa escola, teríamos vergonha de amedrontar as crianças com tantas punições e passaríamos a valorizá-las por suas invencionices e novidades. Uma escola que, além do cérebro, cultive a alma das crianças; um lugar no qual elas possam sentir prazer em estar.

Amadas crianças curiosas, não se rendam! Acreditem, existem adultos-educadores que estão sonhando uma outra escola com vocês.

Peço a vocês: não desistam! Precisamos que vocês continuem a nos chocar com sua resistência e fome de vida. Continuem a sentir a vida profundamente e permitam que continuemos a acordar para ela através dos seus olhos.

Com amor,

Ana

 

PS: Renato Noguera nos dirá que “o sentido da vida passa, necessariamente, por aprender. No entanto, aprender só é possível se resistirmos ao esquecimento de nossa infância” (Noguera, 2024, s/p).

 

Referências

 

ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas[S. l.], v. 8, n. 1, p. 229, 2000. DOI: 10.1590/%x. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880.  Acesso em: 10 fev. 2020.

 

FREIRE, Fátima. Existem educadores que escolhem deixar marcas. Ciclo O desaparecimento da Infância. Casa Tombada: São Paulo, 2024. 

 

HAN, Byung Chul. O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Tradução Gabriel Salvi Philipson. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2021.

 

KOHAN, W. O. Vida e Morte da Infância, entre o Humano e o Inumano. Educação & Realidade[S. l.], v. 35, n. 3, 2010. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/13083. Acesso em: 21 mar. 2024.

 

LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

 

NOGUERA, Renato; BARRETO, Marcos. Infancialização, ubuntu e tekoporã: elementos gerais para educação e ética afroperspectivistas. child.philo,  Rio de Janeiro ,  v. 14, n. 31, p. 625-644,  set.  2018.  Disponível em: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-59872018000300625&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 15 fev.  2023. Epub 17- maio -2019. 

 

PIORSKY, Gandy. As mãos e a criança: a alma e as mãos. Gandhy Piorsky, 01/09/2022. Disponível em: https://www.gandhypiorski.com.br/post/as-m%C3%A3os-e-a-crian%C3%A7a-a-alma-e-as-m%C3%A3os. Acesso em 15/02/2024.

 

RODRIGUES, A.; ROCON, P. C.; ROSEIRO, S. Z.; NODARI, V. A. F., Crianças em pesquisas que se arriscam, riscam e dão passagem a abordagens metodológicas brincantes. REBEH.Vol. 02, N. 02, Abr. - Jun., 2019. Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/rebeh/article/view/9956/6770. Acesso em: 10 nov. 2023.

 

VEIGA, Ana Lygia Schil da (Nina). A pesquisa em artes-manuais para terapias. Medicina Integratica, 2020. Disponível em: https://revistamedicinaintegrativa.com/a-pesquisa-em-artes-manuais-para-terapias/. Acesso em 15 mai. 2023.

Todos os exemplos aqui apresentados são fictícios:

 

BRASIL. Constituição Federal. Brasília: Senado Federal, 1988.  Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em: 9 jun. 2007.

 

 

Desenho de rosto

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

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