O Conceito de Espanto (Thauma):

Estudo filosófico e estratégia metodológicaaplicada no PIBID

 

The Conceptof Wonder (Thauma):

Philosophicalstudyandmethodologicalstrategyappliedat PIBID

 

Camila Gomes Weber

Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil

camilagweber@gmail.com

Doralice Sabino Marques

Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil

dorasabino.marques@uel.br

Bruno Moretto

Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil

bruno.marcos.moretto@uel.br

Gallileu Bernardes Malta

Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil

galileumalta@gmail.com

 

Recebido em 21 de fevereiro de 2024

Aprovado em 18 de junho de 2024

Publicado em 31 de outubro de 2024

 

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo relatar um estudo filosófico a partir da experiência em sala de aula sobre o conceito de espanto (thauma), considerando as perspectivas de Aristóteles e de Schopenhauer. Essa atividade foi realizada no âmbito do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), subprojeto Filosofia, da Universidade Estadual de Londrina, no Primeiro Semestre de 2023. O principal propósito das aulas foi compreender o conceito de espanto na filosofia de Aristóteles e a peculiar utilização que Schopenhauer faz desse conceito. Para atingir esse objetivo, adotou-se a metodologia de Silvio Gallo, que consiste na divisão da aula em quatro etapas, quais sejam: sensibilização, problematização, investigação e conceituação. Ao longo do texto, serão expostos tanto o passo a passo quanto os resultados da implementação em sala de aula das etapas da metodologia de Gallo. Além de obras de Aristóteles e de Schopenhauer, foram utilizados trechos deA morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstói, e A Metamorfose, de Franz Kafka,com o intuito de despertar o interesse dos alunos, incentivá-los a refletir sobre o espanto, expressar suas opiniões e dúvidas, explorar e sintetizar o que foi aprendido de maneira clara e objetiva. Os resultados obtidos foram satisfatórios, com os alunos demonstrando maior entendimento sobre o tema e maior capacidade de argumentação.

 

Palavras-chave: Espanto; Ensino de filosofia; Problematização;Conceituação;

 

ABSTRACT

Thisarticleaimstoreport a philosophicalstudybasedonclassroomexperienceontheconceptofamazement (thauma), consideringthe perspectives ofAristotleand Schopenhauer. Thisactivitywascarried out withinthescopeoftheInstitutionalTeachingInitiationScholarshipProgram (PIBID), Philosophysubproject, oftheStateUniversityof Londrina, in theFirstSemesterof 2023. The mainpurposeofthe classes wastounderstandtheconceptofamazement in thephilosophyofAristotleandthe peculiar use that Schopenhauer makes ofthisconcept. Toachievethisobjective, Silvio Gallo'smethodologywasadopted, whichconsistsofdividingtheclassinto four stages, namely: awareness, problematization, investigationandconceptualization. Throughoutthetext, boththestep-by-stepinstructionsandtheresultsofimplementingthestagesofGallo'smethodology in theclassroomwillbeexplained. In additiontoworksbyAristotleand Schopenhauer, excerptsfrom The Death of Ivan Ilych, by Leo Tolstoy, and The Metamorphosis, by Franz Kafka, wereusedwiththeaimofarousingstudents' interest, encouragingthemtoreflectontheamazement, expressyouropinionsanddoubts, explore andsynthesizewhatwaslearned in a clearandobjectiveway. The resultsobtainedweresatisfactory, withstudentsdemonstratinggreaterunderstandingofthetopicandgreaterabilitytoargue.

 

Keywords: Wonder; Teachingphilosophy; Problematization; Conceptualization;

 

Introdução

            No texto Ética e Cidadania: Caminhos da filosofia, Silvio Gallo alude que o papel do professor é essencial para trazer mais cores e delinear novos traços na sala de aula. Segundo o filósofo, há uma carência de um toque artístico, “um toque do pincel de Van Gogh” (2008, p. 7), capaz de adicionar cores primárias e vibrantes ao ambiente educacional. Gallo nos direciona a pensar na necessidade de criatividade e originalidade por parte dos professores, a fim de estimular o interesse dos alunos e, assim, tornar o processo de aprendizagem mais cativante e enriquecedor.

Na sequência, Gallo estabelece a filosofia como uma arte e o filósofo como o artista, corroborando sua afirmação com as palavras de Maurice Merleau-Ponty. Segundo o filósofo francês, o filósofo, ao desempenhar o papel de artista, assume para si a responsabilidade de registrar a jornada do homem pelo mundo (Cf. Gallo, 2008, p. 7-8). Ou seja, o filósofo é aquele que observa atentamenteas experiências humanas e suas interações com o mundo. Quando se apropria dessa função artística, ele busca capturar, refletir e comunicar as nuances e complexidades constitutivas da condição humana, proporcionando, portanto, uma compreensão profunda e significativa da nossa existência.

Assim deve ser a sala de aula, precisamos de mais imaginação, um pincel, saindo dos padrões impostos, buscando criar soluções educacionais adequadas e replicar a liberdade artística de Van Gogh, na tentativa de tornar o ensino mais atrativo e fazer refletir nos alunos as cores e traços que compõem a história e a realidade a que cada um deles é destinado. Ou seja, que, através deste estímulo à reflexão, à criação e à imaginação, os alunos tenham a experiência de aprendizagem que os faça perceber novas maneiras de ver o mundo.

O PIBID e a experiência em sala de aula têm desempenhado um papel crucial na nossa formação enquanto futuros professores de filosofia, proporcionando uma compreensão aprofundada e singular dos processos que podem impactar tanto o desenvolvimento quanto a aprendizagem dos alunos. Além de nos permitir, como educadores, ter a capacidade de compreender as peculiaridades individuais de cada aluno, suas necessidades, habilidades, motivações e até mesmo as dificuldades. Essa compreensão é o que nos habilita a estarmos mais preparados para atender às necessidades de cada aluno, de modo que nossos métodos de ensino e abordagens possam ser ajustados e alinhados com essas necessidades.

Relato da experiência em sala de aula no PIBID: Estudo filosófico e estratégiametodológica

   Ainda no texto Ética e Cidadania, Gallo nos convida à reflexão sobre o ato de ensinar a filosofar. O filósofo e pedagogo menciona José Arthur Giannotti, que indagava sobre o que motiva as pessoas a se dedicarem ao estudo da filosofia. Giannotti sugere que, dentre todos os motivos, tanto o professor quanto o aluno experimentam um “distanciamento do mundo e aquela intimidade que só pode ser obtida pela via da reflexão” (Giannotti, 1985, p. 13 apudGallo, 2008, p. 8), e, assim, seguindo a máxima de Kant, não se pode ensinar a filosofia, mas sim nutrir a capacidade de filosofar.

Após a reflexão inicial sobre a importância do cultivo dessa capacidade de filosofar, conforme proposto por Giannotti, e levando em consideração a relevância do conceito de espanto na filosofia de Aristóteles e sua interpretação peculiar por Schopenhauer, passaremos agora a detalhar o relato da experiência em sala de aula, realizada como parte das atividades do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), subprojeto Filosofia, da Universidade Estadual de Londrina, no Primeiro Semestre de 2023[i].

Compreender o que significa o espanto filosófico, o espanto de si mesmo e o espanto pelo cotidiano na filosofia de Aristóteles e Arthur Schopenhauer é um tema complexo e desafiador, e foi escolhido para ser abordado em sala de aula com o intuito de proporcionar aos alunos uma reflexão mais profunda sobre a filosofia e suas implicações na vida cotidiana. Durante as aulas, nosso objetivo principal foi, além de possibilitar aosalunos a compreensão do conceito de espanto sob a perspectiva aristotélica e schopenhaueriana, desenvolver também as habilidades de leitura, incentivando os alunos a questionarem e problematizarem.Além de estimular o diálogo, inter-relação, troca de conhecimentos e vivências.

O espanto é um acontecimento, um evento obscuro, que desperta uma potência, que permite ver além do que é visível e contribui para conectar com a essência da existência, a nossa verdadeira natureza. É como se tivéssemos um olho mágico, que olha para dentro de nós mesmos e para além do que é aparente, que nos lembra que somos parte de algo maior, que traz inspiração, e que nos permitirá viver a vida com mais plenitude, mas também de modo mais assustador, sempre em busca de entender como as coisas são e porque são assim. Enquanto Aristóteles (Arist. Metph, A 2, 982b 15)[ii]considerava o espanto como um sentimento de admiração e perplexidade diante de algo inexplicável, Schopenhauer (Cf. W II, Cap. 17, p. 195) relacionou o espanto com o medo em face da morte, sendo este medo o propulsor do questionamento da condição humana.

E se Schopenhauer (Cf. W II, Cap. 17, p. 199) estiver certo, este clarear de consciência diz respeito a todo ser humanoque, em algum momento da sua vida, terá consciência de si próprio, da sua própria existência, do mundo em que vive e das pessoas que o cercam, e buscará responder os enigmas do mundo, não apenas os pequenos, aqueles que não exigem esforço, mas também os enigmas mais difíceis, os mais antigos, os mais essenciais, tal como, o enigma da morte e do sofrimento injustificado, e ao mesmo tempo, o enigma da vida, que são apenas faces da mesma coisa.

Para atingir os objetivos propostos, elegemos a metodologia formulada por Gallo. Em seu influente escritoMetodologia do ensino de filosofia: Uma didática para o ensino médio[iii], o autor apresenta sua proposta metodológica nos seguintes termos:

No que concerne ao trato com aulas de filosofia na educação média, penso que a pedagogia do conceito poderia estar articulada em torno de quatro momentos didáticos: uma etapa de sensibilização; uma etapa de problematização; uma etapa de investigação; e, finalmente, uma etapa de conceituação (isto é, de criação ou recriação do conceito). (Gallo, 2002, p. 95)

 

Como veremos adiante, a singularidade filosófica e pedagógica desta proposta consiste em proporcionar uma abordagem mais dinâmica e participativa do processo de aprendizagem, incentivando o pensamento crítico e reflexivo dos alunos.Na primeira etapa, chamada sensibilização, os educadores utilizam materiais ainda não elaborados filosoficamente pelos alunos, ou seja, sobre os quais ainda não incidiu o trabalho de elaboração do sentido que culmina na criação do conceito (Etapa 4), para sensibilizar os alunos e despertar sua curiosidade. Em seguida, na etapa de problematização, o professor transforma o tema em um problema para que cada aluno possa produzir sua própria experiência de pensamento. Isso leva à terceira etapa, da investigação, em que o professor trabalha diretamente com os filósofos e seus conceitos, dando forma ao que foi instigado pelos alunos nas etapas anteriores. E então, na quarta e última etapa, chamada conceituação, os alunos têm a oportunidade de ter suas próprias experiências filosóficas e transformar seus pensamentos em texto através de uma atividade.

Sensibilização

Iniciamos a aula com a primeira etapa, sensibilização, que teve como proposta estimular os alunos a perceber através de um texto literário (não filosófico) a inserção do conceito filosófico de “espanto” em situações imaginárias ou cotidianas. Isto é, explicar que a filosofia está presente no nosso dia a dia, nas situações cotidianas, inclusive na literatura.

Quanto às motivações e aos pressupostos inerentes a este primeiro momento do método proposto por Gallo, cabe uma breve ponderação. A princípio, poderia parecer que o autor faria um uso meramente instrumental da arte, na medida em que a consideraria como “nativa” de um estágio propriamente não filosófico, e em decorrência disso, como um mero pretexto para a instauração da reflexão filosófica, este último aspecto, aquilo que realmente importaria considerar. Por conseguinte, a arte seria considerada uma “serva da filosofia”, já que, após cumprir sua função, que não seria mais do que sensibilizar (etapa 1) e despertar para a problematização (etapa 2), poderia ser abandonada ao longo do caminho.

Parece-nos que uma breve referência às filosofias de Gilles Deleuze e de Félix Guattari – cuja caracterização do ato de pensamento e da singularidade da filosofia, da ciência e da arte é o referencial a partir do qual Gallo elabora sua compreensão – possibilita a apreensão do exato posicionamento da arte em relação à filosofia e contribui para desfazer aquela compreensão crítica anteriormente apontada.

No escrito conjunto intitulado O que é filosofia?,Deleuze &Guattari apresentam as seguintes definições: “A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos” (Deleuze&Guattari, 1992, p. 13); “A ciência não tem por objeto conceitos, mas funções que se apresentam como proposições nos sistemas discursivos [...]. Uma noção científica é determinada não por conceitos, mas por funções ou proposições “(Deleuze &Guattari, 1992, p. 153); “A arte [...] é independente do criador, pela auto-posição do criado, que se conserva em si. O que se conserva, a coisa oua obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos” (Deleuze &Guattari, 1992, p. 213).Ainda que reconheça que a arte não é filosofia, visto que cada uma possui um registro de singularidade próprio (filosofia=conceito; arte=percepto e afecto), isso não quer dizer que a filosofia seja superior à arte, e sim, apenas que ela opera de modo distinto. Embora apenas à filosofia caiba a criação conceitual, nem por isso a arte é vista como inferior, já que lhe cabe um modo singular de criação.

Assim, o uso feito por Gallo da arte como primeiro estágio do método, de sensibilização, não implica em supor que, por isso, ela possuiria um alcance menor, já que a sensibilização efetivada pela arte, não é composta por um grau menor de potência do que aquele alcançado pela filosofia com a criação ou recriação conceitual. Como a filosofia, ela também é uma potência criativa, a qual, no plano da criação de signos que falam por afectos e perceptos, alcança algo que a filosofia jamais alcançará.

Segundo o professor da Universidade Federal de Goiás, Gonzalo Armijos, no textoO ensino de filosofia e a situação-problema, a filosofia, por ser uma atividade humana, pode ser realizada de diferentes formas, não há uma única definição de filosofia que capture todas as suasmanifestações. O despertar de consciência pode vir através de, por exemplo, um poema, tendo em vista que, se filosofar é uma prática que busca sabedoria, independente do contexto em que ela está inserida, o conhecimento será instaurado. Nas palavras de Armijos:

 

Somos levados a pensar filosoficamente [...] por toparmos com algum problema, por estarmos numa situação de espanto ou de perplexidade que nos força a tomar uma distância e nos empurra de novo para o interior daquilo que nos preocupa. (Armijos, 2013, p. 198).

 

Isso significa que, por não estar restrita à academia filosófica, o ato de pensar filosoficamente pode surgir também em outras áreas do conhecimento, como a ciência, história, literatura e arte. Se a atitude filosófica envolve questionar e refletir; independentemente da área do conhecimento tais questões surgirão, pois engajar a filosofia é ter “consciência de um problema e de saber que a única forma de resolvê-lo é pensando por si.” (Armijos, 2013, p. 198).

A partir disso, primeiro separamos os alunos em dupla, e, após isso, para que realizassem a leitura das seguintes citações literárias das obras A Metamorfose de Franz Kafka e A morte de Ivan Ilitch de Liev Tolstoi, lhes entregamos as seguintes citações impressas:

 

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos. – O que aconteceu comigo? – Pensou. Não era um sonho. (Kafka, 1997, p. 7)

 

Ivan Ilitch via que estava morrendo, e o desespero não o largava mais. Sabia, no fundo da alma, que estava morrendo, mas não só não se acostumara a isto, como simplesmente não o compreendia, não podia de modo algum compreendê-lo. O exemplo do silogismo que ele aprendera na Lógica de Kiesewetter: Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal, parecera-lhe, durante toda a sua vida, correto somente em relação a Caio, mas de modo algum em relação a ele. Tratava-se de Caio-homem, um homem em geral, e neste caso era absolutamente justo; mas ele não era Caio, não era um homem em geral, sempre fora um ser completa e absolutamente distinto dos demais; ele era Vânia, com mamãe, com papai, com Mítia e Volódia, com os brinquedos, o cocheiro, a babá, depois com Kátienka, com todas as alegrias, tristezas e entusiasmos da infância, da juventude, da mocidade. Existiu porventura para Caio aquele cheiro da pequena bola de couro listrada, de que Vânia gostara tanto?! Porventura Caio beijava daquela maneira a mão da mãe, acaso farfalhou para ele, daquela maneira, a seda das dobras do vestido da mãe? Fizera um dia tanto estardalhaço na Faculdade de Direito, por causa de uns pirojki? Estivera Caio assim apaixonado? E era capaz de conduzir assim uma sessão de tribunal? E Caio é realmente mortal, e está certo que ele morra, mas quanto a mim, Vânia, Ivan Ilitch, com todos os meus sentimentos e ideias, aí o caso é bem outro. E não pode ser que eu tenha de morrer. Seria demasiadamente terrível. Era assim que ele sentia. ‘Se eu tivesse que morrer, que nem Caio, bem que eu o saberia, a minha voz interior haveria de dizê-lo, mas nada disso ocorreu em mim; tanto eu como todos os meus amigos compreendemos que isso é bem diferente do que sucedeu a Caio. E eis o que acontece agora! – dizia em seu íntimo. – Não pode ser. Não pode ser, mas é. O que há então? Como compreender isso?’ (Tolstói, 2006, p. 49 e 50)

 

Os alunos se mostraram interessados e curiosos durante a leitura dos fragmentos literários, com alguns deles compartilhando que já estavam familiarizados com as obras trazidas, especialmente o texto de Kafka. Houve uma atmosfera de entusiasmo e engajamento por parte dos alunos, e essa conexão com o material abordado contribuiu positivamente para a passagem às etapas seguintes.

Problematização

Após as leituras, avançamos para a segunda etapa, a problematização, na qual orientamos os alunos a debatersuas compreensões dos trechos analisados. Nas duas obras literárias mencionadas, o conceito de espanto se faz presente. Tanto Gregor Samsa quanto Ivan Ilitch enfrentam uma transformação profunda em suas vidas. Gregor Samsa sucumbe de exaustão enquanto tentava lidar com sua metamorfose em inseto, e Ivan Ilitch, acometido por uma doença incurável, luta para aceitar sua mortalidade e a inevitabilidade de sua morte.

Para que os alunos chegassem a tais conclusões, o debate em sala foi guiado a partir dos seguintes questionamentos: a) “Quais sentimentos vocês imaginam que Gregor experimentou ao perceber sua transformação em um inseto? Como vocês acham que ele reagiu frente a esta mudança? Como vocês reagiriam se acordassem e fossem um inseto?” e, b)“Quais sentimentos vocês imaginam que Ivan Ilitch experienciou com a consciência da sua própria morte? Quais são as possíveis autorreflexões e arrependimentos que Ivan Ilitch pode ter tido naquele momento? Como você reagiria se recebesse a notícia de que está doente de algo incurável e próximo da morte?”

Neste momento, nosso principal objetivo era chamar a atenção ao fato de que o pensar, enquanto um filosofar, ocorre nos momentos de confronto com o desconhecido, visto que faz “filosofa quem percebe que não sabe, não quem sabe [...] quem tem consciência de sua ignorância e quer fugir dela por seus próprios meios” (Armijos, 2013, p. 197). Aqueles que pensam que já sabem tudo não têm motivação para filosofar, pois não veem a necessidade de buscar novos conhecimentos ou questionar suas crenças.

Pensar filosoficamente é como estar no escuro portando uma lanterna, de tal forma que a filosofia seja a luz que nos guia na busca por respostas. Assim como a lanterna nos permite enxergar em um ambiente escuro, a filosofia nos ajuda a enxergar através do véu da ignorância e a descobrir novas perspectivas e novos conhecimentos. Contudo, assim como uma lanterna não ilumina todo o ambiente, a filosofia também não é capaz de fornecer respostas definitivas para todas as perguntas. Ela nos ajuda a encontrar um caminho, numa jornada em busca de respostas mais profundas.

Dessa forma, a partir da indicação de algumas palavras-chave, os alunos participaram ativamente do debate, mostrando terem sido afetados, e demonstraram o interesse em aprofundar sobre o tema, o que contribuiu para uma maior participação e engajamento com a nossa atividade proposta. Eles perceberam que Gregor Samsa sentiu tristeza e desespero ao ver sua transformação, se sentiu impotente, pois, enquanto um inseto, ele não conseguia expressar suas necessidades e sentimentos, vivendo um estado de isolamento. Isto é, a incerteza de si, da sua nova realidade, certamente, levamao sentimento de angústia e solidão do personagem. Do mesmo modo em relação ao Ivan Ilitch. O sentimento de Ivan Ilitch é o de desespero e aborrecimento, espanto ao perceber que a morte está próxima e de que não há nada que possa evitá-la, não há nada que altere o curso do seu destino. Ele percebe que a vida não é tudo o que ele imaginava, e que suas ações passadas não mudam a sua natureza mortal. As lembranças de sua vida inundam seus pensamentos e estar diante da morte o força a perceber que viveu uma vida automática, desperdiçando os momentos que não aproveitou, o que lhe deu uma perspectiva mais profunda e realista de sua vida e o modo como a conduziu, assim, o sentimento que emerge é o de arrependimento.

Investigação

Na sequência, iniciamos a terceira etapa de investigaçãoem que nosso objetivo principal foi fazer a ligação entre os textos literários e os textos filosóficos, isto é, de demonstrar aos alunos qual é o problema filosófico em comum entre as obras literárias A metamorfose de Franz Kafka e A morte de Ivan Ilitch de Liev Tolstói e os textos filosóficos Metafísica II de Aristóteles e O Mundo como Vontade e Representação de Arthur Schopenhauer, de forma a analisar as fontes e materiais, no intuito de que os alunos pudessem compreender o tema.

Explicamos aos alunos que o espanto é o que faz, desde a Antiguidade, o indivíduo caminhar do estado de observador a desvendar e compreender aquilo que não está abarcado em seu entendimento. A partir desta busca se constrói o conhecimento e nele, a revelação e a verdade devem estar contidas. Ou seja, de acordo com Aristóteles, a filosofia NASCE do espanto (thauma), da afecção que impulsiona a refletir sobre o que estamos vendo ou sentindo, do maravilhamento que estimula o pensamento crítico na busca por respostas. É pelo espanto que, ao nos depararmos com algo cotidiano que nos deixa perplexos, passamos a questionar sobre o mundo, sobre nossas crenças. Nas palavras de Aristóteles:

 

De fato, os homens começaram a filosofar, agora como na origem, por causa da admiração, na medida em que, inicialmente, ficavam perplexos diante das dificuldades mais simples; em seguida, progredindo pouco a pouco, chegando a enfrentar problemas sempre maiores, por exemplo, os problemas relativos aos fenômenos da lua e aos do sol e dos astros, ou os problemas relativos aos fenômenos de todo o universo. Ora, quem experimenta uma sensação de dúvida e de admiração reconhece que não sabe. [...] De modo que, se os homens filosofaram para libertar-se da ignorância, é evidente que buscavam o conhecimento unicamente em vista do saber. (Arist. Metph, A 2, 982b 15)

 

Na obra A Metamorfose de Franz Kafka, o conceito do espanto aristotélico é abordado de forma emblemática mas, ao mesmo tempo, satisfatória. Assim, demos sequência à explicação aludindo que Aristóteles descreve o espanto (thauma) como uma tríade de reações: horror, pavor e terror, que é resultado da percepção de algo cotidiano, o que desencadeia tais afecções. Segundo Aristóteles, a filosofia se origina do espanto justamente porque tais sentimentos e afecções nos direcionam à busca para questionar e explicar o sentido da existência. Ou seja, o espanto é o propulsor da compreensão do mundo e da nossa vida. Quando Gregor Samsa acorda do seu sono intranquilo, ele vivencia o espanto aristotélico ao se ver transformado em um inseto monstruoso. Isto é, narra-se uma história de angústia, horror, mas também de perplexidade e admiração diante de algo extraordinário e, digamos, inimaginável, de acordar e não ser mais quem era. Nosso intuito era demonstrar aos alunos que, assim, essa metamorfose do personagem pode ser vista de forma simbólica ao medo de uma mudança e do desconhecido e a tentativa de descobrir o que é e como será o curso da sua vida.

Ao desenvolvermos o uso peculiar do conceito de espanto na filosofia schopenhaueriana, apresentamos as considerações presentes no Capítulo 17 do Tomo II de O mundo como Vontade e Representação de Arthur Schopenhauer, onde o filósofo inicia seu texto resgatando a visão aristotélica do espanto, da experiência intensa diante das questões cotidianas como o impulso da filosofia para, posteriormente, discorrer sobre a necessidade metafísica do ser humano. Schopenhauer, em sua filosofia, considera que o assombro diante do mundo e da nossa existência é capaz de suscitar enigmas em nós (nosso intelecto) que precisam ser desvendados. Nesse contexto, a morte se apresenta como o maior enigma, um problema escuro e incerto, que provoca a busca por uma resposta metafísica capaz de romper essa barreira. Segundo o filósofo, a tendência natural do ser humano é viver de forma automática, imerso no cotidiano, até que o espanto com sua própria existência se torne evidente, e este espanto se torna mais sério quando confrontado com a certeza do próprio desaparecimento (Cf. W II, Cap. 17, p. 195). Esse impacto pode gerar consternação e, posteriormente, a necessidade de buscar conhecimentos para encontrar respostas. O capítulo 17 do tomo II de sua obra O Mundo apresenta a tese fundamental de Schopenhauer sobre o tema, destacando a importância do espanto como um impulso para a reflexão e a busca pelo entendimento da vida e da morte.

De acordo com Schopenhauer: “os indivíduos dançam de mãos dadas com a morte, entre o medo, a penúria e a dor. Por isso, perguntam incansavelmente o que acontece com eles e o que pode significar toda essa farsa tragicômica, e invocam o céu esperando uma resposta” (P II, § 176, p. 236). O mundo, a existência, são permeados pelo sofrimento, culminando na inevitável morte - o fim desta tragédia cômica chamada vida. Se buscamos incessantemente o sentido do que nos ocorre e do aparecer que está fadado a desaparecer, é porque esta é a questão fundamental, que nos permitiria concordar com Schopenhauer:

 

Se há uma coisa digna de ser desejada no mundo, tão desejável que até mesmo a turba tosca e grosseira em seus instantes de clareza e consciência iria valorizar mais que prata e ouro; essa coisa é um raio de luz que caia sobre a obscuridade do nosso existir e nos dê um clareamento sobre esta enigmática existência, na qual nada é claro senão a miséria e a vaidade. (W II, Cap. 17, p. 199).

 

Ou seja, a angústia diante da morte desempenha o papel de trazer à tona reflexões e dúvidas sobre nós mesmos, que, de outra forma, permanecem ocultas, emergindo, portanto, nos momentos de clarividência da consciência. 

Em A Morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói, o conceito schopenhaueriano de espanto é magistralmente retratado pelo autor. Ivan Ilitch, que recebe a notícia de uma doença incurável, se vê confrontado com a morte iminente. A percepção de Ivan quando vê sua morte se aproximando e sua reação diante desse fato assemelham-se à filosofia de Schopenhauer sobre o espanto e a consciência da morte. Isso porque, o ser humano, por ser capaz de imaginar sua própria morte, é o único que reconhece a finitude e se espanta. Esse reconhecimento desperta a tensão existencial máxima, fazendo com que até mesmo o indivíduo mais limitado se torne consciente do problema do mundo e da existência (Cf. W II, Cap. 17, p. 208).

Nosso propósito era, portanto, demonstrar que diante da morte e do espanto que ela provoca, o personagem Ivan foi tomado por questionamentos sobre o que é a morte e para onde iremos quando não estivermos mais aqui, como mencionado na citação anteriormente referida. Almejamos que os alunos compreendessem que, em algum momento da vida, todos os indivíduos, independentemente de sua capacidade intelectual, terão a percepção de sua própria finitude e mortalidade, de modo que inevitavelmente se assustará com isso. E Schopenhauer, ao afirmar que: “Nenhum ser, excetuando-se o humano, espanta-se com a própria existência” (W II, Cap. 17, p. 195), identifica o traço distintivo do ser humano como sendo a capacidade de se espantar diante da morte, e não a racionalidade.

Conceituação

Após a explanação do conceito filosófico e de sua relação com a literatura, adentramos na quarta etapa metodológica, que corresponde à fase de conceituação. Neste momento, solicitamos aos alunos que realizassem um exercício de reflexão filosófica sobre a experiência vivida em sala de aula, incentivando a escrita e a problematização do tema proposto.

O intuito dessa atividade era avaliar se a turma havia compreendido de forma satisfatória o conteúdo discutido. Para tanto, as duplas foram orientadas a responder às seguintes questões: a) Descrevam qual é o problema filosófico em comum entre as obras literárias A Metamorfose, de Franz Kafka, e A Morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói; b) Como a leitura de ambos os textos literários contribuiu para a compreensão dos textos filosóficos Metafísica II de Aristóteles e O Mundo Como Vontade e Representação de Arthur Schopenhauer; e, c) Citem exemplos de situações ou coisas que lhes causam espanto e levantam questionamentos sobre elas.

Fomos surpreendidos positivamente com as respostas dos alunos à atividade, que mostraram não apenas um bom entendimento do tema, mas também uma capacidade de reflexão e argumentação acima do esperado. A maioria dos alunos elaborou respostas com um consistente nível de profundidade e reflexividade, além de apresentar uma argumentação sólida e coerente, demonstrando um elevado grau de maturidade. Ficamos satisfeitos em constatar que a atividade foi bem recebida e cumpriu o objetivo de estimular a reflexão filosófica e aprimorar a capacidade argumentativa dos alunos.

Neste contexto, é relevante destacar algumas questões importantes apresentadas por Armijos. Assim como observa o autor, há na filosofia uma diversidade acerca de definições e concepções filosóficas que foram defendidas por grandes filósofos ao longo da história, o que leva Armijosa questionar que, se uma dessas definições estivesse correta, então os filósofos que defendem outras definições não seriam filósofos. E que, por outro lado, se todas as definições fossem corretas, então a filosofia seria algo contraditório e inconsistente por si mesma. Nas suas palavras:

 

Poderia a filosofia realmente ser e não ser, ao mesmo tempo, tantas e tão distintas coisas? Como seria possível que a filosofia seja algo definido e específico sem que isso deixe de fora como não filosófico o trabalho de todos os que têm uma concepção ou uma definição diferente de filosofia? Ou como aceitar a outra possibilidade e dizer que todas são admissíveis, sem com isso fazer da filosofia uma espécie de Frankenstein teórico e, assim, terminar afirmando que é tudo e não é nada ao mesmo tempo? (Armijos, 2013, p. 195)

 

Ou seja, o questionamento é se a filosofia pode ser muitas coisas diferentes e ainda assim ser algo definido e específico, sem que as variadas abordagens transformem a filosofia em uma mistura teórica sem sentido. A filosofia é uma área ampla, e existem muitas outras disciplinas e subcampos dentro dela.Mas a filosofia não acadêmica, aquela desenvolvida fora do ambiente institucional pode ser praticada por qualquer pessoa, desde que esteja interessada em questões filosóficas, mas sem confundir que estar fora de um ambiente institucionalizado possibilitaria automaticamente ser mais livre com o pensamento filosófico com os que estão dentro da academia. Se levada com rigor e com a seriedade que exige, independentemente de sua formação ou treinamento formal em filosofia, a filosofia pode e deve se manifestar em diferentes formas, já que é uma maneira de explorar questões fundamentais da existência humana e buscar respostas para elas. Porém, se o pertencimento à academia não transforma compulsoriamente em filósofo alguém ligado à filosofia, por razões similares, não pertencer à academia não é condição suficiente para se ser filósofo.  Em ambas as situações, a pretensão de ser é insuficiente, já que aquilo que se pretende ser não é garantido por um simples vínculo institucional ou pela sua falta.

Todas as questões ou reflexões enquanto um objeto de estímulo do pensamento, todo espanto (thauma) direciona para a atividade da filosofia: “o ato de filosofar encerra uma série de paradoxos [...] esse ato de filosofar é consequência de alguém se problematizar.” (Armijos, 2013, p. 196). A filosofia busca respostas para questões complexas e fundamentais, mas muitas vezes, ela não é capaz de fornecer respostas claras e conclusivas. Entretanto, apesar das contradições que podem surgir, o resultado do questionamento que emerge no simples ato de refletir sobre o entorno, continua sendo uma atividade valiosa e significativa. Dessa forma, pode-se afirmar que os problemas filosóficos surgem em diferentes contextos e situações, desde as questões metafísicas sobre a existência de Deus ou o surgimento do humano, até as questões da vida prática, tais como a moralidade e política, liberdade e responsabilidade, isto é:

 

Quanto mais reflexiono, maiores são minhas dúvidas e perplexidades. [...] O problema não precisa estar escrito num livro ou ser produzido dentro de uma instituição acadêmica. Questões como essa assaltam as pessoas quando elas menos o esperam. Ocorre quando elas são motivadas por algo que provoca uma incompatibilidade entre o que achamos saber e determinadas conclusões às quais chegamos. (Armijos, 2013, p. 196 e 197)

 

Desde os gregos, enfatizando principalmente àquilo que Aristóteles afirma, a filosofia é a atividade que busca compreender as questões fundamentais da existência humana, incluindo as que surgem no cotidiano, e que assim como caracteriza Armijos, não estão limitados a textos gerados dentro do ambiente acadêmico, pois os dilemas surgem inesperadamente, em qualquer condição ou situação cotidiana, sendo necessário, porém, que esses problemas sejam levados ao clareamento de consciência e da compreensão. Isto é, quando nos deparamos com ideias, experiências ou situações que desafiam nossas crenças ou nos levam a questionar para além do que se considera verdadeiro, surgem os problemas filosóficos e, por consequência, a busca por respostas. Porém, é no momento de responder às perguntas e dar corpo à problematização que a singularidade da filosofia mostra sua dimensão mais própria, a saber, a criação conceitual. Por essa razão, por mais interessantes e instigantes que sejam as problematizações e os questionamentos que cada um pode elaborar, por mais amplo e profundo que seja o espanto frente aos problemas radicais que brotam do fundo do ser de cada um nas situações mais quotidianas e corriqueiras, a filosofia, quando alcança a forma mais própria de expressão, que a distingue das outras formas de criação de pensamento, mostra-se como criação conceitual. E é justamente essa compreensão que fica expressa na etapa 4 do método proposto porGallo: criação ou recriação conceitual.

Considerações finais

Utilizando a metodologia das quatro etapas de Silvio Gallo, conseguimos expressar exatamente essa ideia do ensinar a filosofar dentro e fora de um contexto acadêmico, e, ainda que haja na filosofia, dentro da ampla gama de concepções e definições, ideias conflitantes, isso não anula nenhuma delas como prática filosófica. Como pontua Armijos, se o filosofar está enraizado em um dilema, é viável que se encontrem infinitas formas de problematizá-lo. Não há uma única e privilegiada proposta de metodologia filosófica, não podemos apontar apenas uma área, um tema ou um objeto como algo essencialmente filosófico, porque os problemas são diversos e aparecem conforme a necessidade.

Ou seja, não é o conteúdo dos problemas que os torna filosóficos, mas sim a circunstância em que a problematização se insere. Diferentes perspectivas podem definir o que é filosófico, pois eles partirão do seu interesse específico de problematização. Por isso, o ensino de filosofia é ensinar a filosofar, pois permite provocar nos alunos dúvidas que os motivem a questionar e a tentar por si próprios, seja por diálogos ou por leituras, a sair da escuridão, “sair da situação de ignorância em que se descobriu.” (Armijos, 2013, p. 203)

Nesse sentido, a etapa de conceituação é fundamental para estabelecer esse vínculo com a problematização, pois oferece uma estrutura metodológica que não apenas organiza o raciocínio, mas também estimula a criatividade dos alunos. Ao criar conceitos, os estudantes não apenas absorvem conhecimento, mas também se tornam participantes na construção do saber filosófico. Assim, a metodologia de Gallo não só enriquece o ensino da filosofia, mas também promove uma formação integral, onde a filosofia é vivida e experimentada, e não apenas analisada.

Vale ressaltar que, incentivar a atitude filosófica é fundamental desde os anos iniciais, por essa razão faz-se necessário pensar na questão levantada por Armijos, da relação do ato filosófico e o ensinar a filosofar. Se a busca pelo saber envolve o reconhecimento da nossa própria ignorância, o ensino da filosofia não pode ser visto apenas como uma transmissão de informações, mas sim como a base do processo de aprendizado que visa desenvolver a capacidade dos alunos a pensar filosoficamente sobre algo.

 

Porque filosofar é procurar, é buscar por meio do nosso próprio pensamento. Mesmo que depois devamos, como devemos, conferir, avaliar nossas soluções perante aquelas que porventura já foram dadas e que estão nos textos clássicos. Um texto é como uma fonte cuja água pode saciar nossa sede. Ou talvez não, pois o texto registra o que outro pensou movido por suas circunstâncias. Nesse texto não está – ao menos não exatamente – o que eu penso, nem pode ter sido escrito em circunstâncias exatamente iguais às minhas. De modo que soluções a problemas semelhantes, mas não idênticos aos meus, muito provavelmente não vão me satisfazer plenamente. Esse é o instante em que a filosofia aparece. Pois a filosofia só existe porque alguém não se satisfez com as soluções já existentes nem com aquilo que os clássicos, por mais respeito que nos mereçam, nos legaram. A filosofia está sempre viva como consequência de alguém ter sido incentivado a pensar por si e de ter tido a necessidade de beber de outra fonte: a que brota de suas próprias reflexões. (Armijos, 2013, p. 199 e 200)

 

O incentivo ao pensamento crítico é essencial para o ensino da filosofia, pois é isso que leva os alunos a desenvolverem suas próprias ideias e a contribuir para o desenvolvimento contínuo da filosofia como disciplina. Não é dar respostas prontas, mas ajudar a trilhar o caminho da habilidade de pensar de forma crítica por conta própria. O professor é responsável por criar um ambiente de aprendizado que estimule a criatividade, a reflexão e o questionamento crítico, podendo ser feito por meio de atividades que envolvam debates, análise de textos e situações cotidianas, bem como o incentivo à expressão de ideias e opiniões, e esse, como supracitado, é o exato momento em que surge a filosofia, já que “é o desejo de saber, de entender, de conhecer que nos move” (Armijos, 2013, p. 200).

O resultado que esperávamos era justamente que os alunos percebessem e compreendessem que a filosofia está em todos os lugares. Nas nossas escolhas diárias, o modo como nos comunicamos, como interpretamos o mundo e a nossa existência. A filosofia também se faz presente nas obras de arte, músicas e na literatura. Dessa forma, a finalidade da nossa aula era que os alunos compreendessem que o conceito do “espanto” está ligado à curiosidade de cada um, de modo que nos faça buscar entender sobre o mundo e refletir sobre a nossa realidade, que espantar, indagar e refletir são o caminho para toda experiência filosófica.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

 

Referências

ARISTÓTELES. Metafísica:volume II. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale. Trad. Marcelo Perine. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2015.

ARMIJOS, Gonzalo. “O ensino de filosofia e a situação-problema.” In: CARVALHO, M., CORNELLI, G. Filosofia e Formação. Vol. 1. Cuiabá: Central de texto, 2013.

COTRIM, Gilberto; FERNANDES, Mirna. Fundamentos de filosofia. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é filosofia?. Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munõz. São Paulo: Editora 34, 1992.

GALLO, Silvio. Ética e cidadania:Caminhos da filosofia: Elementos para o ensino de filosofia. 16ª ed. Campinas: Papirus, 2008. 

GALLO, Silvio. Metodologia do ensino de filosofia: Uma didática para o ensino médio. Campinas: Papirus, 2002.

KAFKA, Franz. A Metamorfose. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação, segundo tomo: Suplementos aos quatro primeiros livros do primeiro tomo. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

TOLSTÓI, Lev. A morte de Ivan Ilitch. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2006.


 

 

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Notas



[i] O PIBID, Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência, é uma ação financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) que representa um vínculo antecipado entre os estudantes de licenciatura e as salas de aula, funcionando como uma ponte entre a teoria acadêmica e a prática educativa nas escolas públicas. Em suma, as atividades consistem em uma carga semanal de 4 horas presenciais na escola e 4 horas dedicadas à pesquisa. Durante esse período, acompanhamos um professor supervisor em sua rotina, além de termos a liberdade de organizar atividades extracurriculares com os alunos, como momentos de leitura e rodas de conversa. Além de termos a oportunidade de desenvolver planos de aula e ministrá-los, este artigo foi elaborado a partir de um plano de ação específico. Ao vivenciarmos a realidade das escolas, nós, bolsistas, temos a oportunidade de desenvolver uma consciência crítica sobre os desafios e as potencialidades do ensino público. Nesse sentido, vemos o PIBID não apenas como um programa que se limita a preparar profissionais, mas como uma oportunidade de formar professores conscientes de sua responsabilidade na construção de uma educação justa e inclusiva.

[ii] As abreviaturas dos filósofos clássicos são seguidas pelas indicações do grupo Fronteiras Interdisciplinares da Antiguidade e suas Representações (Limes), e as referências, no caso da obra de Aristóteles, foi citada por: Nome abreviado do autor, nome abreviado da obra, numeração do volume, paginação da edição de Immanuel Bekker. Já em relação às obras de Schopenhauer, as abreviaturas das obras foram definidas pela Schopenhauer-Gesellschaft (Alemanha) em seu periódico Schopenhauer-Jahrbuch, por sua vez, as passagens do filósofo serão referidas pelos seguintes itens e nesta ordem: Abreviatura da obra, sendo W II para o Tomo II de O Mundo, número do parágrafo ou do capítulo, e, por fim, a paginação em número arábico da versão da obra utilizada por nós, devidamente indicada na bibliografia. Para as demais passagens, foram utilizadas as regras prescritas pela ABNT de autor/data.

[iii] Na obra Fundamentos de Filosofia, material pedagógico escrito por Gilberto Cotrim e Mirna Fernandes, há uma seção dedicada aos professores com orientações didáticas, incluindo a abordagem de Gallo (Cf. Cotrim; Fernandes, 2016, p. 410-411).