Filosofia com crianças: por uma literatura de vozes das infâncias

Philosophy with Children: Toward a Literature of Childhood Voices

 

Amanda Fernandes Rosa Bueno

Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, SP, Brasil

amanda.fr.bueno@unesp.br

 

Recebido em 09 de fevereiro de 2024

Aprovado em 12 de fevereiro de 2024

Publicado em 04 de março de 2024

 

RESUMO

Observa-se que as crianças estão às margens da nossa sociedade. Através da Sociologia da Infância, inicia-se a observação dos lugares que elas ocupam: surge a necessidade de registrar e pesquisar quais os olhares e concepções que as crianças têm sobre ser criança na nossa sociedade. Assim, esta pesquisa configura-se uma pesquisa-ação qualitativa, que apresentou como instrumento a entrevista embasada na Filosofia com Crianças. Aconteceram seis encontros que duraram uma média de uma hora cada um, entre os anos de 2022 e 2023. Eles foram realizados com os participantes que aceitaram estar nesta pesquisa e que fazem parte do Comitê das Crianças, atividade integrante do projeto Cidade das Crianças. As conversas foram gravadas, transcritas e analisadas. A literatura que as crianças propõem é uma literatura oral, que traz como principais enredos acontecimentos da escola e conflitos de gênero. Reconhece-se a potência do encontro entre a Filosofia com Crianças e a Sociologia da Infância.

Palavras-chave:  Filosofia com Crianças; Sociologia da Infância; Cidade das Crianças; Comitê das Crianças; Educação.

 

ABSTRACT

Observing that children are on the margins of our society, through the Sociology of Childhood, the observation of the places they occupy begins: there arises the need to record and investigate the perspectives and conceptions that children have about being a child in our society. Thus, this research takes the form of qualitative action research, utilizing interviews grounded in Philosophy with Children as the main tool. Six meetings took place, each lasting an average of one hour, between the years 2022 and 2023. They were conducted with participants who agreed to be part of this research and are members of the Children's Committee, an integral activity of the Children's City project. The conversations were recorded, transcribed, and analyzed. The literature proposed by the children is an oral literature, primarily focusing on school events and gender conflicts. The power of the intersection between Philosophy with Children and the Sociology of Childhood is acknowledged.

Keywords: Philosophy with Children; Sociology of Childhood; Children's City; Children's Committee; Education.

 

Introdução

            Esta é uma pesquisa de doutorado que está em fase de qualificação. Os dados já foram colhidos e analisados. Percebemos ao longo dos nossos estudos que as crianças estão às margens da nossa sociedade, seja por falas dos adultos como “deixe de ser criança” ou “quanta criancice!” faladas com intenções pejorativas, assim como as exigências que os adultos fazem sobre o comportamento das crianças de modo que algumas vezes nem mesmo eles conseguem realizar. As cidades também refletem essa marginalidade através da insegurança que as famílias sentem ao deixarem suas respectivas filhas e filhos circularem de forma autônoma ou ainda a dificuldade por escolherem lugares que tenham estrutura para fornecer o básico de higiene, alimentação e segurança para os pequenos. Quais são os lugares que possuem trocadores ou estrutura de banheiro adequada para fazer a higiene correta? Quais lugares oferecem uma alimentação saudável sem que as famílias precisem levar marmitas? Qual espaço de movimento as crianças têm para seus corpos? Quem, de fato, consegue acompanhar o tempo de aprendizagem das crianças? São todas percepções da sociedade civil que vão ganhando campos de pesquisa e projetos de atuação.

 

Sociologia da Infância

            A partir dos estudos das infâncias, reconhece-se a monografia de Florestan Fernandes (1920 - 1995), em 1944, como o princípio do campo da Sociologia da Infância no Brasil, na qual compreende o grupo infantil como um grupo capaz de produzir sua própria cultura.

 

[...] o grupo infantil é um grupo de iniciação pela via da cultura infantil. Não se trata de uma imitação da cultura adulta, mas um sistema parcial de um sistema sociocultural mais geral, em que as crianças adquirem os padrões de conduta, os valores da comunidade e constituem-se como crianças e brasileiras (ABRAMOWICZ, 2015, p .21).

         

As crianças tiveram sua infância renegada em diversos períodos da história como bem nos lembra Ariès (2006), mas desde os estudos do Florestan e um texto menor e inacabado do sociólogo francês Marcel Mauss (1872 - 1950), o debate sobre as crianças entra para o movimento de atenção para esses sujeitos. No Brasil, com a ascensão da Sociologia da Infância muitos nomes apareceram para compor como Maria Machado Malta Campos, Fúlvia Rosemberg, Sonia Kramer, Tizuko Morchida Kishimoto, Ana Lúcia Goulart de Faria, Ethel Volfzon Kosminsky, Anete Abramowicz, Andrea Braga Moruzzi (ABRAMOWICZ, 2015). Aos poucos, por meio desta área, compreende-se também que a infância é um fenômeno social que está associado a um contexto histórico, geográfico, de língua e cultural, localizado num tempo e num espaço. Assim não podemos falar de infância como um termo generalista, mas sim como um fenômeno social contextualizado: a criança que mora num apartamento vive a infância de uma maneira diferente da que está numa casa em região rural; a menina tem uma vivência escolar diferente à do menino; a criança brasileira paulista vive de uma maneira diferente da criança australiana. É necessário registrar todos estes aspectos para compreender de qual criança e qual infância estamos falando.

Passamos da ausência de percepção da infância do século XII para o registro detalhado que cada criança pode construir de sua infância. É interessante notar essas transformações no aspecto teórico e a lentidão de sua vivência nos contextos rotineiros da vida de uma criança. Onde está o impasse?

 

Filosofia para/com Crianças

            Neste movimento que procura tornar o mundo acessível para as crianças, devemos notar outro nome, norte-americano e de outra área do conhecimento, que deu início a uma pequena revolução na Filosofia, Matthew Lipman (1923 - 2010). Este nome se destaca e é muito divulgado, pois pela primeira vez na história alguém se propôs criar pontes entre as crianças e a Filosofia. Mathew Lipman criou novelas filosóficas com a intenção de ensinar as crianças a pensarem. Deu o nome para esta disciplina de Filosofia para Crianças, pois acreditava que desta forma colaboraria para uma revolução filosófica-educacional. “Vemos assim que conhecer Filosofia para Crianças é entrar em contato com um modo de filosofar que pode acontecer em qualquer idade” (OLIVEIRA et al., 2016, p. 07).

            A disciplina Filosofia para Crianças chegou ao Brasil por meio de Walter Omar Kohan que defendeu sua tese de doutorado sob orientação de Matthew Lipman e trouxe novos teóricos para pensar esta relação entre a filosofia e as crianças. Diferente da concepção que a infância é um tempo cronológico, Walter trouxe a dimensão aiônica da infância. Um tempo de intensidade, e encontra em conceitos de Deleuze, novos olhares para pensar a conexão entre filosofia e as crianças, dando lugar à Filosofia com Crianças, diferenciando-se da Filosofia para Crianças. Kohan compreendeu que a infância traz o novo, nos convida a olhar a infância com a filosofia e num lugar de descobertas filosofar com as crianças e não para elas[i] (OLIVEIRA et al., 2016).

 

Cidade das Crianças

O pedagogo e cartunista italiano, Francesco Tonucci, inaugurou em 1991, um projeto político chamado Cidade das Crianças. Tonucci compreendeu que a construção das cidades privilegia homens, brancos, trabalhadores e motoristas para viverem nelas. Qualquer cidadão que não pertença a este perfil, habita a cidade de modo marginal. As crianças estão na marginalidade. Por isso, Tonucci convida governantes a pensarem e instaurarem políticas públicas que dêem voz e vez para as crianças.

 

Desde 1991, o projeto internacional "A Cidade das Crianças", promovido pelo Instituto de Ciências e Tecnologias da Cognição (ISTC) da CNR, propõe às Administrações Municipais mudar o parâmetro exclusivamente do adulto, do sexo masculino, do trabalhador e do motorista para o infantil, para baixar o ponto de vista para a altura da criança de forma a não deixar de ver ninguém. A suposição básica é simples, mas também revolucionária: uma cidade que procura ser adequada para crianças é uma cidade onde todos viverão melhor. (TONUCCI, 2020, p. 247).

 

O modo como Tonucci propõe a transformação é através da consolidação de um Comitê das Crianças que dê espaço para crianças falarem suas percepções e necessidades sobre os lugares onde vivem. Com isso, integram neste Comitê 24 crianças de nove a 12 anos, de diversos zoneamentos da cidade, sendo 12 meninas e 12 meninos, que discutem com regularidade as questões de sua cidade e depois levam propostas aos prefeitos. Como ele disse, uma cidade que é boa para uma criança, será também boa para qualquer cidadão. (TONUCCI, 2020). Este projeto foi iniciado na Itália e difundido pelo mundo. Os prefeitos de cada cidade participante se comprometeram a construir os Comitês com as crianças das cidades onde governam e implementar as propostas apresentadas por elas.

            A partir do Comitê das Crianças, cria-se também um novo espaço, para além do escolar, onde as crianças se reúnem institucionalmente e permite-se que o campo das pesquisas adentre para tratar de suas questões. Esta pesquisa buscava isso, um outro lugar, sem ser a escola, para discutir as infâncias com um grupo de crianças.

            Em torno das três áreas apresentadas (Sociologia da Infância, Filosofia com Crianças e Cidade das Crianças) reconhece-se o lugar de sujeito que a criança ocupa, que produz sua cultura, que pensa e que opina, como um lugar estratégico para ouvir suas vozes e identificar sua literatura. Por isso, considerando-se as potências deste encontro, esta pesquisa mergulha naquilo que as crianças estão percebendo, discutindo e nos contando.

 

Objetivo Geral

Reconhecer e registrar uma literatura de vozes das infâncias.

 

Objetivos Específicos

·         Reconhecer as crianças como sujeitos de conhecimento;

·         Registrar a literatura que as crianças constroem;

·         Compreender qual a percepção que as crianças têm sobre existir na cidade;

·         Reconhecer a parceria entre a Filosofia com Crianças e a Sociologia da Infância como ferramentas para a escuta espontânea na pesquisa com crianças.

 

Metodologia

Como este projeto pretendeu criar uma literatura com as crianças, recorrendo à filosofia como embasamento para a escuta, a metodologia que se aplica é de uma pesquisa empírica qualitativa tendo como vertente uma investigação-ação, compreendendo que “a investigação-ação consiste na recolha de informações sistemáticas com o objetivo de promover mudanças sociais” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 292), de modo que o investigador se implica totalmente na pesquisa para bem recolher dados e promover tais mudanças. (THIOLLENT, 2018).

Diante desta concepção, compreende-se a marginalidade das crianças como um problema social e por isso, a pesquisadora se implica em discutir, questionar, investigar e registrar as concepções que elas têm sobre ser criança na cidade. Para participar desta discussão, a pesquisadora toma a Filosofia com Crianças como precursora das conversas através do livro “O menino que colecionava lugares”, de Jader Janer, que iniciava os relatos. Conforme as crianças se aprofundavam em alguns assuntos, a pesquisadora parava de trazer novos elementos e tentava sustentar as concepções que as crianças traziam apenas com incentivos para que continuassem falando.

Este projeto de pesquisa passou pelo Comitê de Ética e teve suas atividades aprovadas. Sendo assim, todas as crianças participantes do Comitê das Crianças de uma cidade do interior foram convidadas a estarem nesta pesquisa. O município, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) de 2022, apresenta mais de 440.000 habitantes, com uma média salarial de 3,3 salários mínimos. A taxa de escolarização de crianças entre seis e 14 anos é de 98,2% e o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) (2010) é 0,822[ii].

O Comitê da Crianças chegou ao município por meio do Departamento de Cultura. Anualmente há a divulgação do período de inscrições para as crianças que possuem interesse em participar do projeto. Em seguida acontece o sorteio das crianças: 50% meninas e 50% meninos, representando todas as regiões do município. No Comitê de 2022 participavam 24 crianças.. Destas, apenas cinco das famílias aceitaram a participação de seus filhos e filhas. Por parte das crianças, sete delas desejavam participar. É importante destacar a dificuldade de propor uma pesquisa com crianças fora do espaço escolar, pois significa que tanto crianças, quanto seus respectivos responsáveis necessitam dedicar tempo, custos de transporte e alimentação para estarem presentes. Isso fez com que duas das famílias não conseguissem assinar e entregar o termo de consentimento dos responsáveis. Uma delas até chegou a levar o termo para casa, porém não retornou em nenhum dos outros encontros. Além disso, a ponte entre a pesquisadora e as famílias foi mediada pelos responsáveis adultos do Comitê das Crianças, o que dificultou o acesso planejado na pesquisa.

Das cinco crianças participantes, três eram meninas e dois eram meninos. As crianças escolheram nomes fictícios para representá-las na pesquisa e a própria pesquisa escolheu outros nomes para os outros sujeitos que apareceram nas falas das crianças, de modo que nenhum nome que aparece na pesquisa é real.

 

Quadro 1 – Quadro número de participantes, nomes fictícios, idade e a rede escolar na qual cada criança estuda.

NOME (FICTÍCIO)

IDADE

ESCOLA

1.

Beatriz

10

Municipal

2.

Gabriele

11

Privada

3.

Isabela

10

Municipal

4.

João

10

Municipal

5.

Vinícius

10

Municipal

 

Beatriz e Vinícius estudavam na mesma escola. Durante a pesquisa foi possível acompanhar a transição do quinto para o sexto ano da Beatriz e da Isabela, ou seja, foi possível capturar quais eram suas percepções das escolas municipais e estaduais.

No total foram realizados seis encontros entre os anos de 2022 e 2023. Estes encontros aconteciam logo após as reuniões dos Comitês. Tal tempo foi discutido com as famílias e as crianças, além de serem abrigados em diversos lugares que foram desde a sede do Comitê das Crianças até o hall entre salas de um espaço cultural. Todos os encontros foram gravados a partir do consentimento das crianças, transcritos e analisados integralmente. Podemos considerar que Beatriz e Isabela tiveram as participações mais ativas, de modo Beatriz esteve presente em todos os encontros e Isabela faltou apenas em um encontro da pesquisa.

Os dados foram organizados e submetidos à Análise de Conteúdo proposta por Bardin (2011) e Minayo (1999). A Análise de Conteúdo constitui-se por um conjunto de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores, qualitativos ou não, que permitem compreender os conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) dessas mensagens. Assim, dentre as técnicas desenvolvidas pelas autoras, optou-se pela análise temática, caracterizada por sua rapidez e eficácia, composta por três etapas: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados obtidos. Estes resultados foram dialogados com os autores da filosofia francesa e que são referências nos campos da Filosofia com Crianças e da Sociologia da Infância.  

 

Desenvolvimento, resultados e discussão

A pesquisa só foi possível após o contato com os responsáveis pelo Comitê das Crianças e suas respectivas aprovações, assim como a aprovação do Comitê de Ética. Os convites foram feitos para as crianças e seus responsáveis. A reunião ocorreu de maneira online, onde foram decididos os tempos e locais. Foram realizados seis encontros com as crianças, datados em 24/09/2022, 22/10/2022, 03/12/2022, 17/12/2022, 15/04/2023 e 29/04/2023. Decidiu-se com as crianças e suas respectivas famílias que as rodas de pesquisa aconteceriam após a reunião do Comitê.

Realizar a pesquisa com crianças fora da escola é uma experiência controversa, pois ao mesmo tempo em que as crianças se sentem mais confortáveis para contar sobre os assuntos deste lugar, não há espaço físico adequado para seu desenvolvimento, por exemplo, várias partes dos áudios não puderam ser transcritos devido a interferências sonoras externas à pesquisa. Ou, em alguns momentos os encontros tornaram-se itinerantes de maneira que a coleta de dados ocorreu em espaços abertos, na sede do Comitê e até no hall entre salas de um espaço cultural.

Estes aspectos devem ser pontuados, pois eles interferiram na duração e aprofundamento das discussões, porém algo que não se alterou foi o fato que as crianças sempre tinham histórias para contar e o principal contexto era a escola.

 

O que tenho para contar e a escola

            A proposta inicial do projeto era construir um livro escrito no qual as crianças pudessem registrar suas concepções sobre ser criança na cidade, mas ao longo da pesquisa notou-se que as crianças têm uma relação estudantil com a escrita. Há relatos delas dizendo que não são boas em escrever, que não sabem escrever ou que não querem escrever. Escrever virou um fardo para entregar trabalhos ou para fazer prova.

 

BEATRIZ: Eu não, sou péssima escrevendo.

ISABELA: Eu também. Eu tive que fazer uma redação ontem. [...] 

BEATRIZ: Eu sou péssima em redação (HISTÓRIA DAS PROVAS E DAS NOTAS - 29/04/2023)

 

            Foram diversas tentativas para tentar dar início ao livro, mas o que rendia debates nos encontros era o que podemos nomear de histórias orais.

            Essas histórias tinham um principal cenário: a escola. Se pudéssemos fazer uma comparação seria a seguinte: a pesquisa foi pensada com a intencionalidade de descobrir a concepção que as próprias crianças tinham sobre existir na cidade, mas parece que a cidade delas é a escola. A pesquisa tentou sair da escola, mas a escola não conseguiu sair da pesquisa. Enquanto a proposta do livro era apresentada para as crianças, decidiu-se conjuntamente que cada uma delas escolheria um tema para falar e a escola foi um deles. Beatriz se propôs a fazer um desenho e escrever sobre a escola, mas como já foi dito, o único registro que ela fez no papel não foi o escrito, mas sim um desenho.

 

Figura 1 – Desenho produzido por Beatriz sobre escola.

Nas histórias sobre a escola, as crianças relataram características do espaço físico (cor das paredes da escola, quantas salas, quantos degraus uma das escadas tinha), da relação com as professoras (que era chata, quem defendia as meninas, quem dava boas notas, quem era violenta) das responsabilidades (provas, trabalhos, grupos de acolhimento e substituição de aula) e delas as histórias mais contadas foram as de conflitos entre as próprias crianças. Em alguns momentos pareciam até competir quem tinha a história mais impactante.

Será que só é possível ser criança na escola? Quando não estão na escola formal, estão na escolinha de esportes, de ballet ou estão em casa e em raras ocasiões vão ao parque, cinema, teatro. Onde estão crescendo essas crianças?

A seguir será apresentada a temática que discute como a questão do gênero se revela nas histórias das crianças e como a violência atravessa tais relações.

 

Entre gêneros

            Outro dado importante é a construção de gênero na infância. O grupo de participantes da pesquisa era formado por três meninas e dois meninos. Duas subcategorias apareceram nesta categoria: os conflitos entre meninos e meninas; construção do ser menina na escola. Desde o primeiro dia de pesquisa ficou explícita a intensidade e a quantidade de conflitos entre meninas e meninos. Foram diversos xingamentos, e em determinados momentos, através das histórias que as meninas contavam, percebia-se a violência de gênero produzida pelos garotos e a forma agressiva como as meninas se defendiam.

 

ISABELA: Nossaaaa... Tem figurinha online.

GABRIELE: Ah, mas é legal de papel, né? 

VINÍCIUS: Não é de papel, é adesivo colante.

BEATRIZ: Ah, mas dá na mesma. É feito de papel aquilo. 

GABRIELE: E depois você pode vender o álbum

BEATRIZ: E você é esperto desde quando? 

VINÍCIUS: Ué? Desde que euuu....

GABRIELE: Mentira...

PESQUISADORA: Enquanto vocês desenham, eu vou conversar com a Patrícia (nome fictício da responsável pelo Comitê).

BEATRIZ: Jumento ainda é um elogio para você (se referindo ao VINÍCIUS).

[ALGUMAS FALAS INCOMPREENSÍVEIS]

VINÍCIUS: Eu não sou tão burro. Eu sou inteligente. 

GABRIELE: Não VINÍCIUS.

BEATRIZ: Não é não! (HISTÓRIA DE FIGURINHAS DA COPA - 24/09/2022)

 

            Além disso, em algumas reuniões apenas as meninas conseguiram participar e notaram a diferença nas discussões com a ausência dos meninos. Diante de tantos conflitos e tantas histórias que as meninas traziam sobre a forma como eram tratadas, a pesquisadora aguardava um ambiente seguro para questionar e aprofundar esse aspecto do gênero feminino somente com as meninas. Esse momento chegou:

 

PESQUISADORA: Nas escolas? 

[Silêncio] Acho que eu tenho folha aqui, acho que a gente podia... [Silêncio]

Acho que a gente já podia fazer agora. O que vocês acham? Vocês estão a fim ou não? [Silêncio]

BEATRIZ: Fica sem graça quando os meninos não estão, né? 

PESQUISADORA: Fica meio silencioso, né?

A gente pode ver também se a gente sente que a gente já conversou sobre o que a gente queria conversar, a gente pode terminar antes.

Ah, olha só que interessante, com isso dá pra gente pensar que “gente é lugar e que lugar é gente” do tipo a pesquisa fica muito mais legal quando tem outras pessoas aqui também, né? O lugar fica mais legal, mais interessante. É, eles fazem um tipo de provocação que dá vontade de rebater, não é?

ISABELA: Dá! 

BEATRIZ: Dá vontade de rebater e acabar com eles. 

PESQUISADORA: Acabar com eles? É isso, acabar com eles? 

BEATRIZ: Aha.

PESQUISADORA: Vocês sentem, enquanto meninas, que, tipo, a opinião de vocês não é muito levada a sério?  Ou as coisas que vocês falam ééé é meio que menosprezada pelos meninos ou alguma coisa assim? 

BEATRIZ: Às vezes.

ISABELA: Às vezes. (HISTÓRIA DE QUANDO OS MENINOS NÃO VÊM - 03/12/2022)

 

            A dinâmica que a pesquisadora observou entre as meninas e meninos era a seguinte: meninas percebiam a violência naturalizada com que eram tratadas e respondiam com outra violência. Isabela também relatou o dia em que o professor de educação física não a deixou descansar quando estava com cólica menstrual. Pelo contrário, mandou a aluna jogar futebol:

 

ISABELA: No ano passado também aconteceu isso, na aula de educação física ainda. Eu disse assim: “Professor, eu posso sentar um pouquinho porque estou com cólica?” e ele “Nãooo, isso é frescura sua. Você vai jogar futebol sim.” Eu não queria jogar futebol, porque a quadra estava dividida. Os meninos jogando futebol de um lado e as menina jogando vôlei, basquete do outro. Aí ele falou assim: “Você tá reclamando muito, você vai jogar futebol”. Aí eu saí escondida e fui lá na Cláudia (nome fictício da diretora da escola) (HISTÓRIA DA CÓLICA NA EDUCAÇÃO FÍSICA - 03/12/2022).

 

            A reunião do dia 03/12/2022, após a questão da pesquisadora, ganhou outro ritmo assustador. As meninas também trouxeram vários outros relatos sobre as diferenças que as professoras fazem entre meninas e meninos, de modo que os pensamentos, falas e ações dos meninos em sua maioria são mais valorizados que os das meninas. Assim como nos esportes. Aquele velho discurso que futebol é para os meninos e vôlei é para as meninas, permanece e pune aquelas que querem quebrar as regras:

 

PESQUISADORA: Mas vocês acham que são poucas as meninas que jogam futebol, porque o futebol ainda é pouco incentivado pras meninas?

ISABELA: Sim. Tem a professora de educação física desse ano, no começo do ano, os meninos e as meninas queriam jogar futebol. Os meninos foram todos de chuteira. Aí eu, a gente tem um grupo. Aí os meninos falaram assim: quem vai querer jogar futebol amanhã? Aí quem quiser joga, quem não quiser a gente divide a quadra, né? Aí um monte de menina confirmou, a professora não deixou. Um monte de menina foi de chuteira, meião, blusa de time... a professora não deixou, dividiu a quadra, mandou a gente jogar vôlei, mas a gente não queria jogar aquilo, a gente queria jogar futebol. Aí a gente ficou lá, porque a professora tirou a gente da aula, só porque a gente reclamou porque queria jogar futebol. 

PESQUISADORA: Ela tirou vocês da aula?

ISABELA: Tirou, porque a gente queria jogar futebol e ela não deixava. Ela só deixou o Yuri de fora, porque ele começou a brigar com os meninos e ela é japonesa também. [O menino que foi referenciado é de família asiática]. Aí a gente queria jogar futebol e ela não deixou, tirou a gente da aula e colocou a gente lá no pátio. Aí a Cláudia foi falar com a gente e aí elaaa, a gente contou tudo para a Cláudia e a Cláudia deu uma bronca nela. Ela disse que menina pode sim jogar futebol, que a gente sempre jogou futebol, né? Desde o G5 a gente jogou futebol, a gente joga futebol com os meninos. Aí a professora falou que não podia e aí a Cláudia disse que podia sim.

PESQUISADORA: Depois a professora de educação física deixou vocês jogarem futebol? 

ISABELA: Depois de uns dois meses a professora deixou a gente começar a jogar futebol. (HISTÓRIAS DO FUTEBOL PARA MENINAS - 03/12/2022)

 

Em alguns casos até identificam manifestações de machismo na infância, nos quais sentem seus pensamentos e opiniões serem menosprezados por meninos e pessoas adultas tanto do gênero masculino, quanto do feminino. Quando se escuta as histórias com a intensidade que as meninas contam e a sequência rápida de fatos que lhes vêm à memória delas é impossível não querer intervir com políticas para proteger as meninas - crianças. As violências de gênero chegam na infância de maneira cruel, sutil e naturalizada.    

            Moruzzi (2017) nos apresenta uma perspectiva interessante sobre a pedagogização dos corpos das crianças quando associamos à sociedade disciplinar, vinda de Michel Foucault, sobre a qual a escola se instaura e colabora para a construção desse corpo.

 

Revisitando o conceito de sexualidade, observa-se que para Foucault (1977) existe uma pedagogização do sexo das crianças, consolidada a partir do século XVIII, cuja análise permite compreendê-la como um dos resultados de um processo de investimento no corpo. As reformas morais e religiosas dos séculos XVI e XVII produziram sobre a criança, seu corpo e qualquer gesto afetivo ou sexual sobre o corpo, uma espécie de vergonha e de pudor. Houve um investimento na moralização e o início de um processo de normalização das crianças que ocorreu, entre outras formas, por meio da educação (MORUZZI, 2017, p. 282).

 

            A violência se instaura também com as exigências que fazem com os corpos das meninas: o professor que manda a menina jogar futebol quando está com cólica, a professora que não deixa as meninas carregarem carteiras porque está poupando-as, o jogo de futebol que é negado quando elas querem estar por livre e espontânea vontade. Todos os relatos apresentados nas histórias que as meninas trouxeram. Qual a liberdade que as meninas possuem para ser o que desejam?

 

O início, a filosofia com crianças e a autoria da história

            No início da pesquisa, as falas e respostas que as crianças traziam para os encontros filosóficos eram um tanto roteirizadas e pareciam buscar a lógica de pensamento que as reuniões do Comitê das Crianças propunham para elas. Vinícius nos dá este exemplo, quando solta “lugares para bebês” numa resposta sobre os lugares que as crianças frequentam:

 

PESQUISADORA: Quais os lugares que as crianças vão na cidade?

[...]

GABRIELA: É, eu vou para escola e eu vou para casa. Eu vou ao mercado. Mas às vezes [rindo] eu vou no shopping, nas lojas de roupa...

PESQUISADORA: Quem lembra, assim, de outros lugares que vocês vão e que crianças vão.

ISABELA: No parque! 

PESQUISADORA: No parque?

VINÍCIUS: Na casa dos outros, comer. [riso geral]

[alguém lembra que ele precisa falar no microfone] 

É, é ...espaço para bebê e parque...

PESQUISADORA: Pra onde que a gente vai? 

VINICIUS: Ai, eu vou para a escola, eu vou para a minha casa, eu vou para a casa dos outros. Nos outros pra comer é, vou ver. Tem um amigo que a comida da vó dele é muito boa! [Palavras incompreensíveis] (HISTÓRIAS SOBRE LUGARES QUE AS CRIANÇAS VÃO - 24/09/2022).

 

O espaço investigativo com as crianças exige uma disposição inicial que garanta as condições de escuta, silêncio, respeito ao pensar do outro e diálogo (GOMES, 2012). Todas condições contrárias ao que as crianças vivenciam na escola. Fazer Filosofia com crianças fora do espaço escolar é possibilitar um outro modo de se manifestar como criança. Assim, percebe-se que a Filosofia com Crianças tem oferecido um olhar aos pesquisadores que permite uma aproximação diferenciada, pois cria intimidade e este lugar dá espaço para a espontaneidade e autoria às histórias que as crianças contam. A Filosofia com Crianças tece lugar para a infância existir em toda a sua potência e responsabilidade. As crianças, principalmente as meninas, trouxeram dados sobre as infâncias que lhe cabem, muito sérios que só foram colocados ali nas histórias, porque se criou um ambiente de confiança e escuta responsável, que acredita nas palavras apresentadas.

            A Filosofia com Crianças torna-se uma grande aliada nas pesquisas, uma vez que permite as vozes das infâncias se apresentarem como literatura.

 

Conclusão

A Filosofia com Crianças como espaço seguro para as infâncias

            A Filosofia com Crianças compreende a infância pela experiência e esta somente se dá pela linguagem e por meio desta faz-se história.

 

Se não há possibilidade de que o ser humano seja a-histórico, é precisamente porque não fala desde “sempre”, porque tem que aprender a falar (a falar-se, a ser falado) numa infância que não pode ser naturalizada, universalizada nem antecipada. No humano, a infância é a condição da história (KOHAN, 2005, p. 243).

 

            Nesta tríade entre experiência, linguagem e infância que compõem a história, questiona-se: diante da pesquisa, quais histórias as crianças estão nos contando? Que experiências são essas que as constituem como sujeitos históricos nas infâncias que lhes cabem?

            Através dos encontros, as crianças nos contam histórias de uma infância vivenciada na escola, onde muitas vezes é o lugar mais conflituoso e violento que passam maior tempo de suas vidas. Violência entre pares, violência entre gêneros, violência entre gerações. Em alguns momentos, é possível perceber que este grupo vive tanto na escola, que o único assunto que lhes cabe é este e suas responsabilidades. Não é a única infância, mas uma infância. Dentre as histórias, mesmo as crianças fazendo parte de um grupo que se propõe a circular pela cidade, quando o assunto é espontâneo os relatos vêm apenas deste ambiente. Uma história ou outra conta algo que eles vivenciaram com o Comitê ou com seus familiares.

            Assim, podemos concluir questionando o que a filosofia pode oferecer às infâncias? A pesquisa nos deu indícios que ela oferece voz, vez, tempo e respeito ao que elas nos trazem através de suas histórias. Essa pesquisa se propôs a dialogar com sujeitos que permanecem em vulnerabilidade, um problema social e percebeu a importância e necessidade de explicitar tais dados, pois uma mudança social não se faz sozinho. A Filosofia com Crianças aliada à Sociologia das Infâncias se mobilizam para retratar o novo que as crianças carregam em si e suas concepções sobre existir-criança na cidade. Como pensar tal revolução após os dados apresentados? O projeto Cidade das Crianças pode ser um passo? Sim, mas há níveis de cuidado que precisam ser alertados para que o convite de tornar a cidade acessível para as crianças não seja só uma transformação física ou uma propaganda partidária. Desse modo, permanece a provocação: quando e como uma cidade será boa para as crianças?


 

Referências

ABRAMOWICZ, Anete (Org.). Estudos da infância no Brasil: encontros e memórias. São Carlos: EduFSCar, 195 p.,2015.

 

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaksman. 2. ed. - Rio de Janeiro: LTC, 2006.

 

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Tradução: Luís Antero Reto e Augusto Pinheiro. São Paulo: Almedina, 2011.

 

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Notas



[i] Assim, resumidamente, a Filosofia para Crianças traz um programa dos conceitos filosóficos já pensados para elas através das novelas filosóficas, enquanto a Filosofia com Crianças se propõe a pensar os conceitos em parceria com elas, criando uma comunidade de investigação. (OLIVEIRA et al., 2016).

[ii] O link do IBGE não pode ser publicado para que haja o sigilo quanto a cidade onde foi realizada a pesquisa.