Relato de experiência sobre as manifestações da barbárie no ambiente escolar: o encontro entre a educação emancipatória de Theodor Adorno e a literatura transgressora de Georges Bataille como práxis filosófico-literária[i]

Experience report on manifestations of barbarism in the school environment: the encounter between Theodor Adorno's emancipatory education and Georges Bataille's transgressive literature as a philosophical-literary práxis

 

Francisco Atualpa Ribeiro Filho

Secretaria de Educação do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil

farf25@gmail.com

 

Recebido em 09 de novembro de 2023

Aprovado em 23 de novembro de 2023

Publicado em 29 de fevereiro de 2024

 

RESUMO

O presente relato de experiência visa apresentar em linhas gerais a pesquisa sobre o encontro entre a educação emancipadora de Theodor Adorno e a literatura transgressora de Georges Bataille. Busca problematizar e refletir sobre como romper os cenários de violência no ambiente escolar sem fazer uso de princípios normativos e moralizantes. Discute e evidencia sobre a importância do diálogo entre literatura e filosofia, pois esta última sozinha não consegue atingir reflexivamente os estudantes. Encontra-se em Bataille a chance à transgressão, ao erro, à emoção como oportunidade filosófico-literária de ressignificar posturas preconceituosas. As atividades emancipadoras como produção de documentários, autobiografias, performances foram desenvolvidas pelos estudantes do terceiro ano do ensino médio do Colégio Estadual Nossa Senhora Aparecida no município de Formosa do Rio Preto-BA. O norte bibliográfico da pesquisa encontra-se nos textos Educação e emancipação (2006), Dialética negativa (2009) de Adorno e A história do olho (2018) e A literatura e o mal (2015) de Bataille. A metodologia de cunho qualitativo proporciona a reflexão das narrativas dos estudantes como autores de seu próprio projeto de vida.

Palavras-chaves: Barbárie; Emancipação; Transgressão; Filosofia; Literatura.

 

ABSTRACT

The present experiential account aims to provide a broad overview of the research on the intersection between Theodor Adorno's emancipatory education and Georges Bataille's transgressive literature. It seeks to problematize and reflect on how to break the cycles of violence in the school environment without resorting to normative and moralizing principles. The study discusses and highlights the importance of the dialogue between literature and philosophy, as the latter alone cannot reflectively engage students. In Bataille, there is an opportunity for transgression, error, and emotion as a philosophical-literary opportunity to redefine prejudiced attitudes. Emancipatory activities such as documentary production, autobiographies, and performances were undertaken by third-year high school students at the State School Nossa Senhora Aparecida in the municipality of Formosa do Rio Preto, Bahia. The research is anchored in Adorno's texts "Education and Emancipation" (2006) and "Negative Dialectics" (2009), as well as Bataille's "Story of the Eye" (2018) and "Literature and Evil" (2015). The qualitative methodology allows for reflection on the students' narratives as authors of their own life project.

Keywords: Barbarism; Emancipation; Transgression; Philosophy; Literature.


 

Ao iniciar o semestre 2018 propus aos alunos que lessem Feliz Ano Novo de Rubem Fonseca. Houve rejeição por parte de alguns. Enfim, deixei livre os estudantes desfrutarem desse instante literário. Não cobrei resenha, resumo, ou qualquer atividade avaliativa nos moldes tradicionais. Livre! Uma leitura desprendida de qualquer teste. Quatro meses se passaram e ao retornarem do recesso junino, uma estudante, Ana Luíza, abordou-me de forma sanguínea e disse-me: “Muito obrigada, professor, pôr o senhor ter me feito gente. Essa leitura me fez perceber que há vida na escola. Qual o próximo livro? Estou ansiosa!”. Sempre ouvi falar em felicidade, mas nunca havia concretamente experimentado, momentos alegres talvez, mas nesse dia pude vivenciá-la. Muito obrigado, Ana!

Esse breve relato foi uma expressão de que, no contexto em que estávamos, sentimos que a filosofia sozinha não conseguia atingir reflexivamente os estudantes, dadas as circunstâncias em que estavam inseridos. Percebeu-se que era necessário adotar estratégias pedagógicas que relacionassem músicas, filmes e poesia, e que poderiam incorporar a literatura como parte desse processo. Nesse sentido, as atividades emancipadoras como produção de documentários, autobiografias, performances foram desenvolvidas pelos estudantes do terceiro ano do ensino médio do Colégio Estadual Nossa Senhora Aparecida no município de Formosa do Rio Preto-BA.

Apresentou-se aos estudantes uma proposta de textos que não apenas revelassem um mundo ideal ou paisagens encantadas, mas textos que provocam conflitos e desafios, permitindo que os educandos se reconhecessem e refletissem sobre suas próprias experiências. Essa abordagem mostrou-se eficaz ao estimular o pensamento crítico e envolver os estudantes no processo de aprendizagem.

Por isso, optou-se por textos que denunciam a tendência instintiva do homem ao mal. Tais escritos provocam estranheza, incômodo, alegria, choro e angústia. Assim, naquele momento, o encontro entre a educação emancipatória de Theodor Adorno e a crítica literária, com os escritos transgressores de Georges Bataille, compunha cenários aflitivos, tensionais e inquietantes em nossa prática filosófico-pedagógica.

Partindo do pressuposto de que não se pode filosofar sem compreensão dos fundamentos conceituais, faz-se necessário explorar a teia de conceitos que percorreu esse estudo para assim entendermos como esse encontro foi articulado em ações. Diante disso, o conceito de transgressão de Bataille é uma questão contundente no estudo, tendo em vista seu caráter inovador, cujo objetivo consiste em se esquivar e/ou suplantar as convenções sociais contribuindo para a ampliação do repertório discente na tentativa de responder seus desafios.

Nessa análise, percebemos que esse conceito não se limitava a uma simples quebra de regras, mas representava uma tentativa de romper com as estruturas rígidas da sociedade e das convenções morais que em muitas situações podem constranger o alunado. Entendemos que Bataille via a transgressão como uma forma de liberar energias reprimidas e, por meio dela, alcançar uma conexão mais profunda com o sagrado e o desconhecido. Em nossas discussões, compreendemos que essa concepção desafia normas e limites sociais para acessar estados de experiência humana mais profundos e, por vezes, perturbadores que a tradição racionalista rejeita.

Revisitando a perspectiva adorniana, buscamos entender quais os mecanismos reprodutores da barbárie no ambiente escolar e qual postura o professor deve tomar diante de tais manifestações. No livro “Educação e Emancipação”, Adorno (2006, p. 121) afirmou que o primeiro passo para a educação emancipatória consistia no reconhecimento dos problemas. Assim,

 

[...] mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar os mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos.

 

Dessa forma, foi preciso entendermos que a instrumentalização da vida, o modelo de formação ideal heterônomo, a dominação tecnológica, a ausência de consciência crítica, a identificação cega com o coletivo, o caráter manipulador e a consciência coisificada, com o suporte da educação tradicional: severa e moralizante, constituem mecanismos subjetivos propagadores da barbárie. Compreendê-los é a exigência e a meta da educação.

A identificação desses mecanismos nos conduziu ao entendimento sobre o pensamento adorniano e ao primeiro movimento para a consolidação da metodologia emancipatória transgressiva por meio de performances. Nós, professor e estudantes, dramatizamos e produzimos um documentário sobre as manifestações da barbárie no ambiente escolar. As provocações que nutriram esse movimento emancipador incluíam as seguintes questões: a civilização produz o que combate, ou seja, a selvageria? A escola não estaria, inadvertidamente, alimentando a barbárie ao tratar como corriqueiras atitudes como bullying, homofobia, automutilação, assédio sexual e moral, suicídio e autoritarismo docente? Portanto, como poderíamos romper com esses cenários de violência sem recorrer a princípios normativos e moralizantes?

É relevante destacar que os encontros para a elaboração desta pesquisa foram realizados durante as aulas de filosofia e redação, aproveitando a proximidade entre os participantes do estudo. Isso se deu em virtude do alinhamento com a gestão escolar, seja por meio da flexibilidade curricular ou do apoio fornecido durante a execução dessas atividades emancipadoras e transgressoras.

Foi necessário a elaboração de mapas mentais cooperativos sobre essas conferências para tornar mais didático o pensamento adorniano. Nesse sentido, Adorno (2006) elucidou em tais conferências que os agentes transformadores, como a família, escola e universidade, são promotores de uma formação que visa experiências intelectuais, racionalidade autorreflexiva, criticidade, imaginação, individualidade, resistência e ruptura. No entanto, alertou sobre a persistência das condições sociais degradantes que impedem o processo de emancipação do sujeito. Dessa forma, para que houvesse uma educação com essas características, nós, segundo Adorno, tínhamos que resistir e transformar as condições sociais concretas que inibiam uma formação personalizada, cuja intenção consiste no ensino-aprendizado conforme as próprias competências dos estudantes.

Nesse sentido, barbárie para Adorno é a decomposição formativa e cultural por meio do esquematismo kantiano, da instrumentalização da vida e da indústria cultural que conduz à semiformação. Em outra via tem-se seu oposto sob influência freudiana, a desbarbarização, por sua vez, como processo de sublimação dos instintos de destruição. Dessa forma, o importante para Adorno (2006, p. 167-168) é conduzir às “[...] crianças que são anêmicas no sentido das concepções vigentes dos adultos e dos pedagogos, as chamadas plantas de estufa, com as quais foi exitosa já precocemente como que uma sublimação da agressão [...]”. Com isso, tornar-se-ão adultos ou adolescentes ‘imunes’ às regressões da barbárie.

Vale pontuar a crítica de Pucci (1994, p. 28) aos frankfurtianos, ou seja, para que pudéssemos justificar a presença da literatura transgressiva e dessas atividades emancipadoras foi necessário analisar que

 

[...] esses pensadores frankfurtianos permaneceram nos limites da crítica negativa, da denúncia. Não conseguiram ir além. Não se fizeram sensíveis aos múltiplos impulsos de mudanças presentes em nossa sociedade. Daí seus escritos se caracterizam como pessimistas, desesperançados diante do predomínio avassalador da Razão Instrumental. Um beco sem saída, que, quando muito, admite uma luta de resistências para não ser de vez tragado pelo sistema. O homem contemporâneo de Frankfurt é antes de tudo um acuado, um entrincheirado.

 

Frente a isso, Adorno não foi um ativista político e muito menos pedagogo, acreditava que pensar criticamente era sinônimo de transformação social. Embora no texto “Notas marginais sobre teoria e práxis” (1995) o autor elucida que o destino da formação deve ser para uma integração consciente entre teoria e práxis, os escritos adornianos não apresentam estratégias didático-filosóficas de como evitar a violência. Nas palavras do autor:

 

[...] consciência de teoria e práxis que não separasse ambas de modo que a teoria fosse impotente a práxis arbitrária, nem destruísse a teoria mediante o primado da razão prática. Pensar é um agir, teoria é uma forma de práxis; somente a ideologia da pureza do pensamento mistifica este ponto (ADORNO, 1995, p. 204).

 

Nesta passagem destaca-se a importância de uma consciência que integre teoria e práxis de maneira harmoniosa, evitando a separação arbitrária entre elas. A teoria não deve ser impotente diante da ação prática, mas também não deve ser destruída pela supremacia da razão prática. Pensar e teorizar são formas de ação em si mesmas, e a separação rígida entre teoria e prática é uma ilusão que precisa ser superada.

Diante disso, para evitar que a obsessão por mudanças acabe se transformando em barbárie, analisou-se a importância de pensar sobre as intenções dessas atividades curriculares filosóficas. Dessa forma, percebe-se que a sede civilizatória ao aprisionar todos em sua teia conduziu as ações humanas à servidão normativa ou às mudanças precipitadas.

Nessa perspectiva, após a compreensão das manifestações da barbárie e suas estratégias de perpetuação, constatou-se a necessidade de questionar e desconsiderar os ditames sociais e estereótipos culturais. Na esfera literária, observamos esse desafio por parte de autores que não se conformaram com os padrões estilísticos prevalecentes no ambiente educacional. Dessa forma, no segundo movimento foi apresentado autores como Emily Brontë, Franz Kafka, Charles Baudelaire, Marquês de Sade, Georges Bataille, William Blake e o brasileiro Rubem Fonseca foram perseguidos por ousarem abraçar uma escrita transgressora e revolucionária, que confronta as convenções estabelecidas.

Esses literatos representaram a negação do cânone paradidático, da ordem estabelecida e dissidência das normas irrefletidas. A denúncia constitui o elo vital dessa literatura seja de forma sutil como em “O castelo” (2000) de Kafka ou de maneira escancarada em “O Morro dos Ventos Uivantes” (2016) de Brontë. O estilo ultrarrealista e inquietante custou para Sade, por exemplo, a própria liberdade. Portanto, esses autores não se deixavam abater frente os rótulos e censuras, mas buscavam utilizar como matéria-prima os mecanismos de manipulação do sistema como fica evidente na obra “A metamorfose” (2017) de Kafka, na qual revela como o condicionamento social pode adoecer as pessoas e como a presença de alguém diferente pode causar desconforto.

O movimento transgressivo, inspirado no pensamento de Bataille, mobilizou os estudantes na estruturação de um cinema itinerante em um bairro periférico de Formosa do Rio Preto, na Bahia, como forma de consolidar as reflexões suscitadas durante os encontros. Escolhemos exibir o filme “Moana” (2016) com o objetivo de desafiar a atmosfera de preconceitos que paira sobre as mulheres, restringindo-as à educação doméstica, denominada trabalho de cuidado. Moana, como personagem principal, nos cativou ao enfrentar sua própria comunidade e família, desafiando os preceitos, tradições e normas de sua tribo em busca de sua sobrevivência. Ela renunciou ao seu título de princesa e proclamou com convicção: “Nós somos Moana”. Demonstrando destemor, coragem e um espírito libertário, nada a deteve, pois seu desejo era preservar sua tribo e manter viva a herança cultural. Para alcançar esse objetivo tinha que desafiar as ordens de seu pai.

No encontro aproximadamente 150 pessoas compareceram, incluindo crianças, jovens e idosos. As crianças ficaram empolgadas com as cenas de ação do filme, mas quando perguntamos o que entenderam da história, algumas delas expressaram suas dúvidas: “Tio, ela desobedeceu os pais, isso é certo?" Pedimos a um dos estudantes que compartilhasse sua opinião, e Iures superou seu medo de falar: “Eu acho que, às vezes, é necessário questionar, sair um pouco da sombra dos pais para crescermos com nossas próprias pernas. Moana teve que desobedecer aos pais, mas foi por uma causa nobre, para obter alimentos para sua tribo e evitar sua extinção”. Os estudantes demonstraram uma compreensão de que a transgressão envolve a desestabilização de normas abusivas e a quebra de interditos, tendo a imprevisibilidade como elemento condutor desse movimento.

No processo de integração entre esses dois autores, Adorno e Bataille, foi necessário pensar sobre a relação transacional entre filosofia e literatura, como atividade emancipadora, cuja intenção perpassa o mero hibridismo semântico filosofia-poética, lírica-filosófica ou filosofia-literária. Salientou-se que essas formas híbridas marginalizam a literatura a cumprir servilmente os requisitos sistêmicos da filosofia, cuja tarefa é descredibilizar a experiência literária. Na transacionalidade ninguém destrona ninguém, é um mover-se constante de uma à outra, isto é, Filosofia e Literatura não se reduzem uma à outra.

Segundo Benedito Nunes (2009, p. 29) uma transa enfatiza que nesse relacionamento cada uma preserva sua identidade, existe com isso, um encontro na distância, uma troca de fluidos,

 

[...] sem que cada qual esteja acima ou abaixo de sua parceira, numa posição de superioridade e inferioridade do ponto de vista do conhecimento alcançado ou da verdade divisada, que constitui aqui, o essencial. Uma polariza a outra sem assimilação transformadora.

 

Assim como Adorno e suas constelações rejeitaram sistemas tradicionais ditos intactos, Bataille por meio da crítica literária irá desnudar a filosofia e romper com o esquematismo que permeia a sala de aula e o ensino de filosofia. A presente experiência filosófico-literária versou em desconstruir e/ou atenuar discursos rígidos, disciplinadores e conteudistas que emperram a espontaneidade juvenil em nome de índices quantitativos.

Para que a filosofia viva e floresça nos corações desses jovens foi necessário o diálogo transicional com a Literatura Transgressora e, neste sentido, “em vez de prejudicar a filosofia, o instinto estético, que move o poeta, a ela se associa e vivifica” (NUNES, 2009, p. 31). Portanto, Literatura e Filosofia se relacionam nessa transa negativa, tensional e dialética, cujas práticas emancipadoras buscam repensar o papel social da escola como instituição formadora de cidadãos críticos.

A efetivação da proposta emancipatória adorniana encontrou sua aplicabilidade na crítica e literatura transgressivas de Georges Bataille em seu livro “A literatura e o mal” (2015). Além disso, amparado pela teoria freudiana, o francês, desmitifica a noção de mal como algo ontológico ou destrutivo para concebê-lo como impulso criador. Consequentemente, foi explicado aos estudantes que não se trata de um combate maniqueísta, cujas forças entram em conflito e com a vitória de um dos lados (bem ou mal) nasce ou degenera a vida.

A proposta de educação emancipadora de Adorno desbrava um caminho que se entrelaça com a abordagem crítico-literária de Bataille, marcada por seu estilo transgressivo de escrita. Por meio de ações concretas, essa interseção entre Adorno e Bataille viabiliza uma reconfiguração do ambiente escolar, transformando-o em um espaço de resistência e combate contra a agressividade e a semiformação. Essas ações não apenas permitiram uma mudança na dinâmica educacional, mas também capacitam os agentes envolvidos a promoverem e vivenciarem um ensino de filosofia emancipador transgressivo, desafiando as normas estabelecidas e fomentando uma abordagem mais reflexiva e crítica no/do percurso educativo.

A pesquisa explorou o método paratático de Adorno e a proposta transgressora de Bataille. No âmago do estudo, deparou-se com o parataxismo, uma metodologia desprovida de método, conforme exposto na obra “Dialética Negativa” (2009) de Adorno. Nesse contexto, estabeleceu-se um diálogo com Bataille, cujo método fundamenta-se na ideia de cegueira. Bataille e Adorno aproximam-se por meio do método paratático, destacando seus temas antagônicos como divino-profano, vida-morte, erotismo-sacrifício, e, em Adorno, barbárie-emancipação, formação-semiformação, eros-thanatus.

Nessa dialética sem síntese, observa-se o alinhamento no que toca às oposições, seja contra o idealismo de Hegel ou na rejeição ao positivismo. Quanto à proposta transgressora, encontrou-se em “A literatura e o mal” (2015) de Bataille um exemplo de atividade emancipadora que dá um novo significado ao conceito de mal. Bataille promoveu a emancipação e o deslocamento do próprio conceito de Mal. Com isso, a experiência interior acontece ao transgredir as formas estabelecidas e sublimar o instinto de destruição para através da literatura revelá-lo como pulsão de vida. Quando uma estudante cria um texto sobre depressão e durante sua leitura arrepia-se, enerva-se, deixa-se guiar pelo momento, o esfriar das mãos, as lágrimas brotam, o soluço coordena as pausas do texto, o ser inebria-se nesta experiência interior.

As classificações sobre o Mal constituem uma chave argumentativa indispensável no entendimento de sua crítica literária e no processo de compreensão da pesquisa. De tal modo que, o mal impuro revela o que há de podre no homem, expressa sua ruína, consiste no uso inconsequente da razão como é o caso irreversível das bombas químicas, das guerras que são as justificativas para a dor, miséria e desespero.

Em outras palavras, exige uma vantagem material do mal além dele mesmo, assim “esse benefício, decerto é egoísta, mas, isso importa pouco se esperamos dele outra coisa que não o próprio Mal: uma vantagem. É o sadismo que é o Mal: se matamos por uma vantagem material, não é o verdadeiro Mal, o mal puro, [...]”, pois Brontë concebeu o Mal de forma re-significativa como uma forma vulcânica de expressar a paixão (BATAILLE, 2015, p. 15-16). Assim, o Mal puro proporciona o descortinar conceitual frente a dialética normativa da civilização que legitima padrões e aprisiona todo conceito naquilo que pressupõe como verdade absoluta, desqualifica a linguagem para atender os preceitos sociais.

Não há resultados neste estudo! Não se trata de uma equação ou tabulações quantitativas que rotulam a realidade como geralmente propõem estudos com viés positivista. Essas ações não foram executadas em um laboratório, cuja pretensão é dissecar vidas ou realizar pesquisas em tubos de ensaios, tratando esses educandos como recipientes prontos para serem moldados. O que existe são momentos emancipadores, criativos e transgressivos. Por isso, não se concebeu os estudantes como objetos, mas como sujeitos da pesquisa, partícipes de cada ação filosófico-literária.

O mote do terceiro movimento partiu da experiência autobiográfica do próprio Bataille ao escrever por orientação de seu psicanalista “A história do olho” (2018), que foi publicado em 1928 sob pseudônimo de Lord Auch. Por conseguinte, convidei os educandos para realizarem a elaboração de textos. Nessa fase da pesquisa, alinhou-se a perspectiva adorniana de educação emancipatória e a literatura transgressora como práxis filosófico-literária à luz do pensamento crítico-reflexivo como exercício de transformação.

Foi proposto a cada estudante que escrevesse de maneira livre sobre seus piores pesadelos, traumas e angústias. Levando em consideração os casos de depressão e automutilação que a escola enfrentava, orientei os discentes a criarem um pseudônimo. Isso lhes permitiria preservar sua identidade e, ao mesmo tempo, eliminar qualquer constrangimento ao relatar seus segredos ou experiências traumáticas.

Ao enviar o livro, uma delas, em anexo, escreveu: “Meu livro não é cheio de coisas e nem é gigante, mas é minha história e foi muito complicado de escrever algumas coisas q ainda me tocam bastante. Mas esse livro me ajudou muito pois agora consigo ter mais facilidade pra tocar no assunto, sem tem tanto receio do que as pessoas vão pensar. Obg por ter passado esse trabalho. Assinado Sam Markz”.

O comentário da estudante é tocante e reflete a importância da escrita como uma forma de expressão e superação de desafios pessoais. É notável como a autora descreve sua obra não como algo cheio de exuberâncias, mas como sua própria história, repleta de significado e profundidade. O fato de ela mencionar que escrever o livro a ajudou a lidar com experiências difíceis e a abordar assuntos delicados é um testemunho do poder terapêutico da escrita.

Após a leitura de um dos contos do livro de Uriel Zuri (2018) “Cinquenta tons de azul”, Zuri, narra os sentimentos do primeiro encontro: “tomar decisão é sempre complicado mas, eu fui sem medo de ser feliz. Era o meu primeiro encontro com um cara, chegando em sua casa o suor lavava as minhas mãos, a garganta seca rugindo o primeiro ‘oi’. A timidez era visível entre a gente, estávamos afastados por alguns centímetros, trocamos olhares, a respiração ficava mais difícil e o coração pulsava muito rápido que dava para ouvir do outro lado da cama”. O estudante se emocionou ao lembrar das cenas e disse que as pessoas podiam perceber quando exagerassem na opressão: “― Passei a vida inteira enclausurado como Kafka, eu decidi romper a casca, o casulo, vou ser mais eu agora”. Isso demonstra que o jovem entendeu a práxis da transgressão autorreflexiva mediante a leitura filosófica da realidade e, com isso, pôde repensar suas ações diante das influências social, religiosa e familiar para autoemancipar-se.

Tais narrativas demonstram que os partícipes entenderam que a filosofia de Bataille desafia questões fundamentais que nos levam a refletir sobre o conceito de Mal, a distinção entre erotismo e pornografia, a influência das normas sociais em nossas vidas e se o mal pode, de alguma forma, ser emancipador e/ou criativo. Esses são questionamentos provocativos que foram discutidos nas aulas de filosofia.

A prática de abordar a filosofia de forma mais engajada e participativa não se limita ao papel do professor, mas requer a contínua oferta de atividades emancipatórias e transgressoras. Isso significa o desenvolvimento de uma empatia transgressiva com o docente, permitindo que escrevam livremente no quadro, que participem de debates diretos com o professor e desfrutem de momentos de criatividade no percurso filosófico das aulas. Essa abordagem não apenas promove a filosofia de maneira mais envolvente, mas enriquece a experiência de aprendizado dos discentes.

Fica evidente que as experiências narradas são perturbadoras e desafiam nossa compreensão convencional de moralidade e comportamento humano. A sensação de que acontecimentos são vedados para nós como leitores e que temos uma idade específica para termos contato com esse estilo literário é intrigante e arcaica. Nos fez refletir sobre o que realmente somos capazes de compreender e até aceitar na literatura e na arte em geral. Afinal, o que pode ser considerado como arte transgressora e o que é simplesmente chocante? Como espectadores (professor e estudantes), fomos desafiados a repensar nossas próprias reações diante do inesperado e do desconfortável.

A compreensão da concepção de emancipação de Adorno e as reflexões que suscitaram a obra “A história do olho” (2018) nos conduziram a uma profunda reflexão sobre a natureza da arte, o papel da transgressão na literatura, da condição humana e como nossas próprias experiências moldam nossas interpretações. Por isso, o que nos choca ou perturba pode também nos levar a uma compreensão mais profunda de nós mesmos.

Como professores devemos repensar nossa abordagem e parar de sentenciar nossos estudantes ao fracasso, à preguiça, ao comodismo, ou à falta de interesse devido às mídias digitais. Talvez tenhamos que questionar se nossa postura didático-pedagógica de vivenciar o ensino de filosofia está correta. Será que somos negligentes ao simplesmente condená-los, em vez de propor mudanças em nossa prática docente?

Recomenda-se uma abordagem de ensino de filosofia que seja emancipadora-transgressora considerando a liberdade dos estudantes para apresentar suas ideias, enquanto o professor deve se mostrar disposto a abrir espaço em sua posição tradicional na sala de aula. Nessa perspectiva, propiciou-se aos estudantes oportunidades para conduzirem suas próprias experiências de pensamento. Sendo assim, estamos convencidos de que essa concepção pode se revelar mais eficaz na promoção do engajamento dos estudantes e no estímulo ao pensamento crítico.

Professor, continuou Ana Luiza, minhas amigas me acham estranha, fico triste com isso.  – Não fique, Ana, eu também sou! Nós, os estranhos, somos mal compreendidos, sabe por quê? Porque somos interessantes. Somos esquisitos porque lemos e lemos algo diferente do que eles estão acostumados. Soo estranho! Que bom! Junte-se a nós.


 

Referências

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ALMEIDA, John (Diretor). Moana: Um Mar de Aventuras. Burbank: Walt Disney Animation Studios, 2016.

 

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BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

 

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BRONTË, Emily. O morro do vento uivante. Tradução de Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

 

NUNES, Benedito. Poesia e filosofia, uma transa. In: Filosofia e literatura: uma relação transacional. Luiz Rohden; Cecília Pires (org.). Ijuí: Unijuí, 2009. (Coleção filosofia, v. 29).

 

KAFKA, Franz. Obras escolhidas: A metamorfose; O processo; Carta ao pai. Tradução de Marcelo Backes. Porto Alegre, RS: L&PM Pocket, 2017.

 

PUCCI, Bruno. Teoria crítica e educação. In: ______ et al. (Org.) Teoria crítica e educação: a questão da formação cultural na Escola de Frankfurt. Petrópolis: Vozes; São Carlos: Edufscar, 1994.

 

 

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Notas



[i] Este relato de experiência foi inspirado na Pesquisa de Mestrado em Filosofia, tendo como título: As manifestações da barbárie no ambiente escolar: o encontro entre a educação emancipadora de Theodor Adorno e a literatura transgressora de Georges Bataille como práxis filosófico-literária.