Poder, expertise acadêmica, barbárie: o Projeto Manhattan e o sentido da educação
Power, academic expertise, barbarism: the Manhattan Project and the meaning of education
Bárbara Romeika
Rodrigues Marques
Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
barbara.marques@cefet-rj.br
Recebido em 19 de maio de 2024
Aprovado em 19 de maio de 2024
Publicado em 14 de junho de 2024
RESUMO
O que a experiência do Projeto Manhattan (1942-1946), a bilionária mobilização norte-americana para o desenvolvimento de armas nucleares, dá a pensar sobre o sentido da educação? O que um projeto de pesquisa e desenvolvimento circunscrito na razão-domínio tem a revelar da relação entre poder, saber acadêmico e barbárie? Este texto problematiza a relação entre a racionalidade instrumentalizada e a educação no mundo moderno e, para tal, discute a expertise científica e acadêmica na composição do Projeto Manhattan. Destaca as ruínas da razão-domínio com o modelo da escolarização atrelada aos parâmetros operacionais e propõe a hipótese da indissociabilidade entre a formação acadêmica e a incumbência em consolidar a reflexão crítica em cada atividade. Conclui com a defesa de que eventos como Hiroshima e Nagasaki intensificam o compromisso da educação em disputar as perspectivas do processo civilizatório em contraposição à barbárie.
Palavras-chave: Projeto Manhattan; Formação acadêmica; Barbárie; Razão.
ABSTRACT
What does the experience of the Manhattan Project (1942-1946), the billion-dollar North American mobilization for the development of nuclear weapons, give us to think about the meaning of education? What does a research and development project circumscribed in reason-dominance have to reveal about the relationship between power, academic knowledge and barbarism? This text problematizes the relationship between instrumentalized rationality and education in the modern world and, to this end, discusses the scientific and academic expertise in the composition of the Manhattan Project. It highlights the ruins of mastery-reason with the model of schooling linked to operational parameters and proposes the hypothesis of the inseparability between academic education and the task of consolidating critical reflection in each activity. It concludes with the defense that events such as Hiroshima and Nagasaki intensify education's commitment to competing for the perspectives of the civilizing process as opposed to barbarism.
Keywords: Manhattan Project; Academic education; Barbarism; Reason.
‘A meta da razão produz monstros’
Esperamos da relação com a educação um composto de reflexão e bom senso, mas, o que vemos com frequência é um arrojo de elaborada barbárie. Pedimos da cultura letrada a defesa do mundo humano, e constatamos, com desgosto, o apanhado histórico de crueldade e bestialidade. O volume de sangue esparramado pelo chão do século XX também tem uma chancela do mais ilustre acesso ao conhecimento: economistas, filósofos, linguistas ou advogados, pessoas com notáveis carreiras acadêmicas, indivíduos que receberam todo o aparato para a entrada na “alta cultura”, aqueles e aquelas que também são gabaritados e intelectualizados, indivíduos sofisticados e familiarizados com as manifestações artísticas, como parte da desmesura brutal e incivilizada de uma história.
Com frequência, os fatos históricos versam sobre sujeitos altamente esclarecidos e versáteis em engendrar igualmente a aparelhagem da viva intelectualidade com a mais desmedida barbárie. “A história é um tecido de baixeza e de crueldades em que algumas gotas de pureza brilham de longe em longe”, afirma Simone Weil (2001, p. 209). Sujeitos ultra especializados ou pensadores primorosos podem ser, também, austeros e desumanos. O mais acurado processo de trabalho (a mais hábil e funcional relação entre manufatura e intelecto ou o mais preciso encadeamento lógico) é também capaz de produzir desgraça e infortúnio.
Um exemplo é a experiência do Projeto Manhattan, a bilionária mobilização norte-americana para o desenvolvimento de armas nucleares, que arregimentou uma nata de físicos, matemáticos, químicos, militares e engenheiros, dentre os quais, vinte e um ganhadores do Prêmios Nobel. Por onde começar a falar deste projeto, senão por notar a soma das credenciais, isto é, a fartura de expertise e titulação legitimadas socialmente, das pessoas envolvidas na missão de desvendar os mistérios da matéria físsil do plutônio e do urânio?
Os gabaritados pesquisadores participantes desse projeto (formados, em sua grande maioria, pelas melhores escolas e universidades dos seus respectivos países) dispunham de uma estrutura física monumental e toda a mão de obra de que precisassem. Estima-se que, entre os anos de 1942 e 1946, mais de cento e trinta mil trabalhadores, entre civis e militares, somaram-se às estratégias de síntese de combustível nuclear. Ou seja, a pesquisa dispunha de aparato estrutural, demandando dos cérebros do projeto a tarefa intelectual e criativa indispensável ao seu objetivo.
A perspicácia e a expertise de estudo compunham a chave da missão dos pesquisadores de Manhattan. O objetivo: desenvolver, a partir dos elementos naturais e artificiais, um método de bombardear os nêutrons de urânio e plutônio para efetivar as etapas de uma reação nuclear em cadeia. Os cérebros do projeto chegaram, então, à compreensão de que, ao acumular certa quantidade da substância de fissão num mesmo lugar, atingindo a chamada massa crítica, é dado início a uma reação absolutamente grandiosa. Por sua vez, a tal reação (absolutamente grandiosa), oriunda dessa também avultada oficina científica, constitui-se um oportuno e tático trunfo da guerra em curso. E assim, a tabela periódica, quem diria, tinha entrado para mudar o rumo da Segunda Guerra Mundial.
Vale destacar algumas especificidades da tabela periódica em relação às demandas da produção de armas nucleares. Em temperatura ambiente, o elemento urânio, por exemplo, é sólido e muito denso, de um cinza brilhante e prateado assemelhado ao níquel. Abundante e comum, é o primeiro a ser descoberto com a propriedade radioativa, e recebeu a alcunha que honrava a descoberta feita do planeta Urano. Devidamente trabalhado pela técnica eficiente e orquestração premiada da inteligência, envolto com o curso da Segunda Guerra e lavrado com centenas de milhões de dólares, o urânio foi levado às ultracentrífugas para a concentração no seu isótopo mais leve. Enriquecido dessa forma, transformou-se no Urânio-235. Dentro de um projétil de 3 metros de cumprimento, 65kg desse material foi o combustível perfeito para a bomba Little Boy, que, levada a uma altitude de 9 mil metros pelo avião “Enola Gay” (curiosamente assim nomeado pelo piloto para homenagear sua mãe), e arremessada sobre Hiroshima, fez sumir a luz do sol numa poeira cinza e grossa que apagou, instantaneamente, setenta mil vidas. Mais que o dobro desse número foi a óbito, depois, em decorrência da radioatividade (OKUNO 2015 e 2018). Em Tennessee, cientistas ansiosos colavam os ouvidos ao aparelho de rádio à espera do resultado de dois anos e meio de trabalho; com a notícia do sucesso da empreitada, comemoraram com champanhe[1].
O Plutônio, por sua vez, um metal denso, radioativo, frágil, que aparece em estado sólido (se em temperatura ambiente), facilmente oxidável em contato com ar, é encontrado em poucas quantidades junto a minérios de urânio. Na técnica específica de enriquecimento dos elementos, transformou-se em Plutônio-239. Foi preciso apenas 6,4 kg desse combustível dentro de um projétil rechonchudo – nomeado Fat Man – para que o mundo conhecesse a arma mais potente até então noticiada. Em nove de agosto de 1945, três dias depois do ataque à cidade de Hiroshima, Fat Man foi lançado sobre Nagasaki. Numa área ovalada de 11 por 19 km, a irradiação dos átomos de Césio-137 e de Iodo-131 legou um acontecimento sem precedentes. O suntuoso projeto militar-científico atingiu a meta: a fissão iniciada com Plutônio-239 provocou uma reação em cadeia capaz de alastrar gás tóxico suficiente para dizimar instantaneamente milhares de pessoas, além de toda a estrutura física da cidade inimiga. Com o sucesso da empreitada, o líder militar telefonou ao líder científico para expressar sua gratidão e orgulho pelo feito, ao que ouviu vindo do outro lado da linha: “Foi um longo caminho”. Estava iniciado um novo curso para a história (OKUNO 2015 e 2018), um caminho posto em curso com a intercessão precisa entre poder, recurso e pesquisa. Do que é possível a excelência da tríade ciência, política e economia?
Estima-se que mais de 240 mil seres humanos sucumbiram ao impacto das duas detonações tornadas possíveis a partir das pesquisas do Projeto Manhattan. A tese difundida oficialmente: a arma atômica cessaria o conflito mais sangrento da história, por sua capacidade de intimidação; o fim da guerra, portanto, representaria a considerável minimização do número de mortes dos soldados norte-americanos. A antítese: com o Japão praticamente devastado, bastaria publicizar os testes para assegurar a eficiência da destruição atômica, sem vítimas – também para estar em consonância com os códigos próprios de uma guerra e resguardar o contingente civil. Além do que, se a chave da justificativa estava no uso do dispositivo para fins de advertência e ultimato, qual o escopo do segundo lançamento, apenas três dias depois da devastação da primeira bomba, sem mesmo atender ao tempo da publicização efetiva dos danos? Assim, a principal linha de contraposição à motivação oficial para o lançamento da bomba nas áreas povoadas está em circunscrever o interesse norte-americano em aproveitar o novo dispositivo de luxo (orçado em cerca de dois bilhões de dólares, o que hoje equivaleria a trinta bilhões) para se afirmar como potência e dar o recado ao mundo, em especial à União Soviética.
E, afinal, em que medida é possível analisar a composição do júbilo daqueles homens ao constatar a excelência de um trabalho bem realizado, de um estudo efetivado, de um projeto que atingiu a meta ou de uma produção autêntica lançada ao mundo? Qual o élan comum entre o notável burocrata e funcionário cumpridor (como no exemplo argumentado por Arendt, tirado do caso Eichmann[2]) e os pesquisadores que abrilhantaram o Projeto Manhattan, sem os quais uma arma de Plutônio ou Urânio seria, quando muito, uma obra de ficção científica ou um enredo de terrorismo cinematográfico?
É imprescindível considerar a parcela da elite intelectual como parte da barbárie, assim como, também, conjecturar a sobra da angústia que recai aos entusiastas do investimento cultural, na devida anuência acadêmica, quando da constatação que a alta representação esclarecida pode compor e também intensificar o sombrio dos tempos. Mesmo a participação controversa de Heidegger no regime nazista, por exemplo, chega a frustrar menos por se esperar de um filósofo ou escritor que seja imaculado e integralmente ético, e mais pela expectativa na capacidade genuína de alcance da relação entre o ser e a palavra. O que a medida ou a forma de envolvimento do indivíduo Heidegger com uma ideologia totalitária mina é a própria capacidade de crença na emancipação cultural. Se é certo que o estatuto de criação e a habilidade criativa eficiente (de um artista, filósofo, musicista, etc.) não estará necessariamente implicado nos atributos morais, e que uma obra de arte ou uma obra filosófica merecerá ser tomada por si, com os desígnios da pura expressão, é certo também que a cada exemplo de apoio ou adesão do seu agente à barbárie, um ponto é extraído da esperança de que o fio entre inteligência e sensibilidade possa tocar o espírito.
Nesse âmbito, enfraquece em algum grau a busca por ver legitimado um quê a mais da relação do ser com a expressão autêntica. Onde a aposta aspira por bom senso, dignidade e vinculação ética, encontrará egocentrismo, incivilidade e miopia moral. Na medida em que forçar a crença, sobrevirá o desencanto: se não é a face aguda da linguagem o estopim da justa medida do olhar para dar a perceber mais que interesses individualistas e egocentrados, mais que o irrevogável brutal e inumano categórico que macula a história, o que será? No exemplo tomado, ainda que a obra de Heidegger transite no depositário cultural da expressão legítima e especializada, não há como escapar da contradição que lhe serve de lastro: o discurso fundamentado sobre o ser compõe o combo de uma atitude genuinamente filosófica, se o agente da escrita compactua politicamente com o apagamento do ser? Como assinala Pierre Hadot, “o perigo da filosofia reside em isolar-se no universo seguro dos conceitos e do discurso em vez de ultrapassar o discurso para se engajar no risco da transformação radical de si” (2014, p. 337).
Abonamos a capacidade do filósofo de se içar fora dos fossos que apequenam o espírito e de convidar para sair os que ficaram do lado de dentro da caverna. Esperamos mais do edifício ativo da reflexão: ansiamos pela limpidez da relação entre o pensar, o sentir e o agir. Acreditamos nos ensinamentos dos mestres para os quais atividade filosófica e modo de vida não se desgarram. Com Platão, no desejo pela identidade entre a verdade, o bem e o justo; com a compreensão aristotélica da virtude, a aposta na ressonância do hábito virtuoso e, portanto, do cultivo da boa ação e da excelência moral. De um filósofo é esperado a contraposição às sombras da barbárie e da irreflexão; de um escritor, a obra e a vida em consonância. Mas em que medida é possível efetivamente ter do agente a consonância com a sua obra, e da obra a consonância com o bom senso?
Em Heidegger, é tão significativo o esmero em compor uma expressão capaz de estender a capacidade de anunciação da palavra que é de se concluir que sua filosofia alcança e dobra a própria meta. Em “Ser e Tempo”, por exemplo, do legado amplificado por uma gramática do ser, vale o tanto que esta obra dá a pensar e o quanto amplifica a percepção do sentido de coabitar o tempo (HEIDEGGER, 2015). Mas o que dá a pensar a obra e seu respectivo legado ao ser tomada a partir da hipótese do consentimento, adesão ou do entusiasmo da conveniência do autor com o regime nazi? A hipótese do escritor, cuja forma pode se constituir por uma camada de sensibilidade técnica? O caso de experimento com a linguagem, ou do estrito de um emprego eficiente, virtuoso e impassível da pergunta pelo ser? O especialista da linguagem do ser – o sujeito e sua expertise, o escritor e sua maestria conceitual – e, ainda assim, o indivíduo no flerte com a barbárie?
O profissional conhecedor que não se implica ética e politicamente no próprio trabalho é a peça-chave de qualquer processo viabilizador dos regimes autocráticos. Desconectar a reflexão de uma prática, burocratizada ou não, e banalizar a ação em nome de interesses espúrios pré-formatados é a estrutura nevrálgica do totalitarismo. Mas, em especial, perguntamos ao filósofo: como a face filosófica da palavra pode tão primorosamente tecer a pergunta pelo ser ao mesmo tempo em que se aparta da atitude de olhar e de reconhecer no diferente, no não-idêntico, o ser? Como é possível que uma obra dê tanto a expandir a ideia do ser ao encontro do mundo, e o sujeito da ação-escrita esteja alinhado à verdade de um projeto político tão evidentemente descolado do que consta na própria obra? Como o escritor que domina a forma virtuosa da palavra (do específico de uma palavra que pergunta e responde pelo ser) compõe o mesmo grupo de homens para os quais o sustentáculo ideológico está em desdizer a verdade do ser, na gana por circunscrever um quem merecedor da dignidade de existir?
A razão estacionada na ação de dominar e cumprir estará afastada dos vínculos humanos fundamentais. Na apresentação da razão-domínio, poderá compor uma sala de aula ou um ambiente de trabalho sem que seja possível acessar outras camadas da relação do ser no mundo. A eficiência sem a reflexão, no perfeito agrupamento de procedimentos da realização, é o centro da estrutura que nivela estudantes a partir da métrica da seleção quantitativa, do ranqueamento tornado fim, da concorrência irrestrita. Uma classe ou um ambiente de trabalho será, então, a reunião hominizada de estudantes ou trabalhadores em constante estado de concorrência e, nesse âmbito, a centralização da máxima produtividade desassociada da reflexão terá como estrutura a razão inchada do acúmulo de conhecimento instrumental e egocentrado. Nesse ínterim, como nota Milton Santos (1999): nada é mais perigoso no trabalho de educadores que as diversas formas de instrumentalização – pelo mercado, pela “politicaria”, pela mídia, pela carreira, etc. Ou, ainda, com a seguinte expressão de Theodor Adorno: “é preciso evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si próprias. A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica” (1995, p. 130).
Da elite intelectual do Projeto Manhattan, uma mediana pode ser tirada. No pesquisador vinculado, o artífice familiarizado com a resistência da matéria; a qualidade da persistência no estudo e o desejo por conhecer mais da natureza; a colaboração com os colegas e organização de etapas e tarefas; a paciência com o tempo de cada elemento e procedimentos da pesquisa; a justa relação entre o pensar e o realizar; a obsessão por fazer uma coisa à perfeição; a expertise com a materialidade de uma oficina bem aparelhada para facilitar a chegada do insight e da regularidade transformadora da disciplina em obra. A mediana será, então, a relação entre homem e urânio ou homem e plutônio na boa orquestração entre ocasião, comprometimento, disposição de ânimo.
Sem que seja tocado pelo objeto da pesquisa, o pesquisador não sentirá a transformação operada com o processo de estudo; tomado pelo objeto da pesquisa não será capaz de ajustar o impulso criativo à pergunta pelo sentido do estudo. Arrebatado pelo elemento urânio, pode desprezar a pergunta pelo sentido de sua atividade e seguir num fluxo continuado por forças externas (os movimentos político-econômicos são suficientemente sedutores); quiçá tomado de intimidade criativa com urânio, o pesquisador não destruirá as instalações de excepcionalidade e mérito construídas para atender aos desmandos do seu caráter vaidoso e perspicaz.
Por vezes, a ilustração e a “alta cultura” têm como sombra um legado marcadamente atroz e desumano. Nos eventos totalitários ou nos bastidores das guerras, os homens que matam sem nenhum constrangimento são também aqueles familiarizados com a alta literatura, a música primorosa, no mais altivo das artes. Com muito mais frequência do que desejaria os que apostam na emancipação humana a partir dos suportes culturais, o politicamente sádico e o artisticamente sensível são duas facetas de um mesmo indivíduo[3]. “A coexistência amigável entre a inumanidade sistemática e a indiferença ou a simpatia capaz de criar a grande cultura ainda não foi esclarecida”, afirma George Steiner (2017, p. 66).
O caso Manhattan dá a ver a necessidade de priorizar uma atenção que não esgote, no agente da criação, a inclinação ética e o compromisso em indagar as causas, os rumos e as motivações da coisa ou obra criada. E, afinal, vale perguntar o que é preciso para que cada trabalhador ou cada grupo criativo na relação com o produto criado sustente a responsabilidade de enfrentar os porquês e sentidos próprios de cada atividade.
A educação condicionada
O quadrante ideológico do mundo moderno demarca e estrutura gestos e discursos, terminologias e categorias teleológicas, e acaba por condicionar homens e mulheres ao interior dos marcadores do poder hegemônico. Não será em vão averiguar os discursos que no presente imprimem uma forma de produção e consumo que tanto se correlaciona à expropriação do trabalho humano quanto à dominação indevida dos recursos naturais. Tampouco será demasiado localizar a financeirização da vida na correlação com o esfacelamento do mundo público.
A forma hegemônica da educação com o predomínio da centralidade tecnocrática extenua a pluralidade, pois, os mecanismos automatizados pelas demandas econômicas, embora constituam parte da estruturação da vida, não dão conta da complexidade que é marca humana, a condição de abrir a palavra e a ação para além do uníssono das categorias automáticas. É, também, a reflexão de Hannah Arendt (2018) que faz notar este enlace: contra a possível determinação e distinguibilidade do futuro está o fato de o mundo se renovar a cada dia por meio do nascimento e espontaneidade dos recém-chegados. Excetuando a espontaneidade e o direito a começar algo novo, o curso do mundo pode ser determinado e previsto de maneira determinística. Submetidos ao espelhamento desta estruturação, homens e mulheres executam, reiteram, simulam e retroalimentam vocabulários e instruções características a uma forma de vida condicionada.
É preciso enfrentar a pergunta por sentidos atribuídos desde a intencionalidade da formação escolar até as correlações que dela derivam, como a crítica do que legitima e é legitimado pelo interior de suas relações. Competição (em virtude de); aprender (para); selecionar (com-vistas-a); mérito (por causa de): é, nesta perspectiva, o cenário estrito da posse finalística e direcionada de conhecimentos. A principal questão é que o resultado do desenho constitutivo do mundo moderno se dá com amplo apelo e alcance, sem que dê a ver o que efetivamente é. Estruturas discursivas velam o tracejo das faces, de modo a fazer crer daquilo que é o hegemônico o verdadeiro e completo do processo de formação e do legado cultural.
Como nota Bárbara Botter (2012), na sociedade hodierna parece impossível fazer de uma instituição de ensino uma comunidade pedagógica no sentido filosófico do termo, na qual mestres e discípulos vivem juntos experiências em comum, num comum ideal. A seleção meritocrática alimenta o sistema de acúmulo quantitativo das aprendizagens, ao passo que o cerne acumulador de conhecimentos legitima a seleção quantitativa e meritocrática de saberes: o girar desta dinâmica demanda tipos atencionais específicos, retém estados de ânimo, condiciona valores e baliza sentidos.
Da crítica supracitada pode se depreender a expressão daquilo a que Walter Benjamin toma como empobrecimento da experiência, o desenho moderno em que a superficialidade circunscrita na enxurrada de estímulos acaba por suprimir, no próprio ato de devoração, a coisa devorada. O sujeito repleto da experiência da cultura de entretenimento e do brilho da mercadoria, preso na tirania do comportamento, retroalimenta compulsivamente o caráter da insatisfação e, condicionado ao espetáculo, exaure a própria condição de ser. Da quantidade de experiência, acaba por ser carente da qualidade da experiência, isto é, de tanta oferta e estimulação, perde o tato com o estado atencional de mergulho e relação com os saberes que nutrem o mundo humano. Abandonamos, uma a uma, as peças do patrimônio humano, estamos empobrecidos, assinala Benjamin (2012). A escassez circunscrita pelos balizadores das temporalidades e dos discursos tecnocratas não é da quantidade de interações ou do fluxo de oferta impressa na relação com as instâncias simbólicas da cultura, mas do sentido e da qualidade dessas ofertas.
No giro da escassez da experiência plural, o panorama educacional do presente pode dar a ver o desenho tecnicista a partir de suas nomenclaturas comuns: créditos, pontos, quantidade de publicação, qualis-x – a régua é quantitativa, e a função selecionadora é o cumprimento de tarefas que alimentam e se alimentam de indicadores muitos dos quais arbitrários e dispensáveis. Indicadores de uma suposta qualidade que, vale salientar, se dão em pleno desacordo da amplitude do sentido da educação.
Para formar os futuros players, a escola mercantilizada condiciona a aprendizagem aos interesses de cada aluno enquanto cliente em potencial, intercalando resultados que retroalimentem a gana por inovação. Todavia, uma instituição escolar que encerre a eficiência de aprendizagem estrita da linguagem corporativista, alinhando tecnicismo positivista com a burocracia, e aparelhando um/a aluno/a exclusivamente à via econômica, deveria ter o termo escolar retirado de sua razão social. E, afinal, tanto mais restrinja a vida aos condicionantes automatizados, e represente em lugar da atividade docente um grupo de práticas assimiladas à figura do coaching – quiçá do headhunter, show-man, promoter, comerciante ou especialista em marketing – tanto menos será escola.
Com Marilena Chaui, é possível questionar o que se espera da formação escolar, num cenário em que o ensino, reduzido a adestramento, sobrepuja sua marca essencial da formação humana e passa a ser tido como transmissão rápida de conhecimentos consignados em manuais de fácil leitura para os estudantes. “Que se entende por docência e pesquisa na universidade operacional, produtiva e flexível?” (CHAUI, 2018, p. 37)[4]. Frente à estruturação de padrões inteiramente alheios à formação humana, como atuar num contexto escolar maculado pela incapacidade de indagar o que se produz, como se produz, para que ou para quem se produz, e que opera uma inversão tipicamente ideológica da qualidade em quantidade? Como sustentar o sentido da formação diante da prevalência de micro-organizações que ocupam seus docentes e curvam seus estudantes a exigências exteriores ao trabalho intelectual? (CHAUI, 2014b).
Atrelada ao campo da educação, a razão-domínio esmorece a pluralidade. No contexto da formação tecnocrática, cooperação, colaboração e coletividade estarão sempre em função das demandas postas por um condicionamento estruturalmente mercadológico. Se a experiência escolar estiver consolidada a partir dos parâmetros produtivistas e, assim, der a ver a cada subjetividade a noção do outro como inimigo, ameaça e concorrência a ser superada, o que esperar das relações que se constituem para além dos muros da escola?
A lida com as questões educacionais demanda enfrentar o núcleo de um esquema que centraliza a produtividade e desloca a face plural do mundo; que, também, supervaloriza o aspecto operacional e destitui o valor da alteridade até que o outro – qualquer outro não-idêntico – vá se constituindo como inimigo. Demanda, portanto, uma sensibilidade extra para que a experiência escolar não dê a iniciar uma forma de aprimorar técnicas e, ao mesmo tempo, atropelar a pergunta por sentidos e usos de tais técnicas. A expertise escolar/acadêmica que atrofia a reflexão está a um passo de criar uma ambientação exclusiva de indivíduos: uma soma de sujeitos eficientes e intelectualizados, mas inábeis para perceber a devastação egocentrada que tende a tomar o outro como indigno dos méritos, dos acessos, do bem-estar e, então, do próprio direito à vida. O excesso de eus é uma ameaça não apenas à experiência com a pluralidade, mas põe em risco o fundamental que sustenta a dignidade humana e, com ela, a própria existência.
Se depois de Auschwitz ou de Hiroshima e Naganaki a razão-domínio não estiver abrigada no devido encargo crítico, nada teremos aprendido sobre o centro dessa busca iniciada com o selo da civilização. A direção que um discurso educacional tomar ou levará em conta a apresentação da racionalidade e o sentido do processo civilizatório que ajuda a continuar ou será apenas parte de um motor que impulsiona o giro de um mundo em crise. Podemos entrever nos homens que compunham a cabeça ou a elite de algo como um Projeto Manhattan, ou de algo como a eficiência técnica da barbárie nazista, as crianças mais gabaritadas na escola (alunos inteligentes e habilidosos em fazer cálculos, dominar fórmulas químicas e sistemas físicos, intelectuais familiarizados com obras clássicas, linguistas capacitados...) e ainda assim não tratar das chagas da razão-domínio sustentada com a escolarização?
Referências
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Notas
[1] “Robert Oppenheimer, chefe científico do projeto Manhattan e um dos cientistas mais brilhantes do seu tempo, conta que, quando souberam dos efeitos do ataque a Hiroshima, ele e seus colegas no projeto comemoraram com champanhe. Tinha funcionado! Depois, Oppenheimer se arrependeu e até recorreu a uma citação do Baghavat-Gita para expressar seu horror. Fica-se pensando o que é pior, o champanhe ou o humanismo poético tardio” (VERÍSSIMO, 1997, p. 104-5).
[2] Otto Adolf Eichmann (1906-1962) foi administrador do programa da Solução Final judaica e um dos principais líderes do regime nazista. Fiel cumpridor, homem da eficiência e das estratégias primorosas; a excelência de sua atividade se deu na garantia de celeridade na morte de milhares de seres humanos. Ainda aqui o trabalhador em busca do trabalho bem-feito. Hannah Arendt localiza uma categoria da vida para enxergar em Eichmann as modulações do homem moderno. Na condição de judia alemã, a esta autora se fez possível notar (em uma instância que excede em muito o estritamente teórico) o modo operandis dos ensandecidos pela técnica banalizada.
[3] Por outra perspectiva, com o personagem Riobaldo de “Grande Sertão: Veredas”: “Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois” (ROSA, 2001, p. 10).
[4] Ter em tela esta dimensão da imediata consumação do acontecimento no instante mesmo de sua retroalimentação dá a ver as vinculações atencionais a que estamos submetidos, as relações daí resultantes e as implicações para o sentido da formação escolar (básica ou universitária). É o que se faz pungente na argumentação central em outro livro da mesma autora, do qual o seguinte trecho merece destaque: “Volátil e efêmera, hoje nossa experiência desconhece qualquer sentido de continuidade e se esgota num presente vivido como instante fugaz. Perdeu-se, hoje, a dimensão do futuro como possibilidade inscrita na ação humana como poder para determinar o indeterminado e para ultrapassar as situações dadas, compreendendo e transformando o sentido delas” (CHAUI, 2014a, p. 151).