Filosofia contra o ócio:
alacridade e movimento como fundamentos para o ensino
Philosophy against idleness
Alacrity and movement as foundations for teaching
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
fdthiago@gmail.com
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
ribeirogabriel17@gmail.com
Recebido em 14 de agosto de 2023
Aprovado em 11 de dezembro de 2023
Publicado em 22 de dezembro de 2023
RESUMO
Este artigo relaciona filosofia e samba com o intuito de compreender a prerrogativa do ócio para o ato de filosofar como insuficiente para articular os diversos movimentos das corporeidades. Com base na filosofia afro-brasileira, nós utilizamos como recurso as letras de samba que revelam uma resistência e história cultural das periferias cariocas. Nesse caminho tentamos responder: é possível ensinar filosofia contra o ócio? Uma pergunta que justamente convida a rompermos com a ideia cristalizada de fazer filosofia num predomínio cognitivista e com métodos pré-determinados. Nisso propomos a invenção com meio para cada aula, semestre, curso uma metodologia para o seu ensino, a qual está consolidada pela circularidade de afetos, pois assim a horizontalidade se mostra para as pessoas como uma experiência do pensamento filosófico tal como um corpo no samba.
Palavras-chave: movimento, ócio, filosofia afro-brasileira, samba, alacridade.
ABSTRACT
This article relates philosophy and samba to understanding the prerogative of leisure for the act of philosophizing as insufficient to articulate the various movements of corporeities. Based on the Afro-Brazilian philosophy, we use as a resource the samba lyrics that reveal a resistance and cultural history of the peripheries of Rio. In this way we try to answer: is it possible to teach philosophy against idleness? This a question that rightly invites us to break with the crystallized idea of doing philosophy in a cognitivist predominance and with predetermined methods. In this, we propose the invention with means for each class, semester, and course a methodology for its teaching, which is consolidated by the circularity of affections, because thus the horizontality is shown to people an experience of philosophical thought such as a body in samba.
Keywords: movement, leisure, Afro-Brazilian philosophy, samba, alacrity.
Sorrir para pensar, andar para criar…
O desafio em discorrer sobre alacridade e movimento como meios para um ensino de filosofia esbarra numa concepção um tanto “ociosa” do que muitos entendem como sendo a produção filosófica. Com suas bases fincadas na imagem da idade clássica grega, temos uma filosofia que se produz no ato da contemplação da realidade. A palavra “contemplação” significado no grego theorein, ou seja, ter a visão de algo situado na natureza ou no mundo. Este ato contemplativo exige um cessar de movimento do corpo, em prol de um trabalho estritamente intelectualizado e racional, de muita observação e de interpretação, e poucas vezes de transformação, da realidade. Essa condição é antagônica a algumas concepções africanas, ou mais especificamente como Muniz Sodré (2017, p. 23) costuma referenciar o Pensar Nagô, o qual é "uma provocação à reversibilidade dos tempos e à transmutação dos modos de existência, sustentada pela equivalência filosófica das enunciações”.
Para problematizar esse antagonismo, neste artigo traremos ao nosso campo de batalha o samba em sua constituição nos morros e periferias cariocas. Ele demonstra-nos fazer da vida seu horizonte de atuação e criação, com uma sagacidade e um conjunto de ensinamentos – muitos deles passados oralmente, senão quase todos – que ensinam como lidar com as dores e dificuldades cotidianas com um sorriso, uma malandragem digna de existência/resistência. Também provoca no corpo movimentos e pensamentos para a perpetuação da própria existência de um modo característico e como um sutil maestro regendo essa harmonia temos a alacridade, ou seja, a alegria regendo a vida.
No senso comum, a filosofia é usualmente atrelada às angústias existenciais provocadas pela relação com o conhecimento e o mundo após esses agenciamentos, sendo este conhecimento o que destaca o indivíduo do todo, colocando-o numa posição hierárquica diante do mundo e para com as outras pessoas, encarando uma perspectiva transcendente do mundo e o fazendo lidar com questões morais a todo momento, resultando na manutenção dessa angústia. Porém, ao articularmos filosofia e samba a partir da alacridade temos a expectativa de observar outros modos de entender o conhecimento.
Primeiro é importante destacar que a palavra alacridade/alegria (ayó, em iorubá) é utilizada aqui distante de uma alegria alheia à realidade, alienada, sem um olhar real para as catástrofes que assolam e consomem a vida ou sem um real e profundamente combativo olhar para aquilo que nos retira a potência. O sentido é de uma regência atenta para os encontros que temos em nossas vidas expressas pelo contato com o corpo, com hálito, suor e acima de tudo afetos. Principalmente aqueles que nos deixam fortes e dispostos a viver a vida em sua máxima plenitude. A potência disso tudo vem através do contato com a nossa ancestralidade e nossas memórias dos dizeres e saberes de nossas mães, avós, sacerdotes espirituais, familiares que auxiliam nossa criação com ensinamentos sobre como se portar diante das situações da vida. Disso um aprendizado já inserimos para o ensinar filosofia: sem afeto é impossível produzir pensamento pois, acima de tudo, inscrevemos nossa singularidade naquilo que sentimos em ato e potência. Talvez, Jorge Aragão um dos arquitetos atuais do samba pode nos dizer algo sobre a formação dos protagonistas dessa filosofia:
Também somos linha de frente de toda essa história/ Nós somos do tempo de samba sem grana, sem glória/ Não se discute talento mas seu argumento, me faça o favor/ Respeite quem pôde chegar onde a gente chegou/ E a gente chegou muito bem/ Sem a desmerecer a ninguém/ Enfrentando no peito um certo preconceito/ E muito desdém/ Hoje em dia é fácil dizer/ Que essa música é nossa raiz/ Tá chovendo de gente que fala de samba e não sabe o que diz/ Por isso vê lá onde pisa/ Respeite a camisa que a gente suou/ Respeite quem pôde chegar onde a gente chegou (Aragão, 1986)
Na letra de “Moleque atrevido”, o sambista apresenta como a imagem no samba historicamente é a da marginalização, omitindo os encontros da população negra para celebrar a vida. Porém da letra podemos destacar alguns trechos, o primeiro é o seguinte: “Também somos linha de frente de toda essa história/Nós somos do tempo de samba sem grana, sem glória”; nele lemos uma afirmação do samba como uma linha de frente da história negra do Brasil, pois antes de apenas ser um movimento alegre, cultural e musical, foi um que confrontou o racismo estrutural do Brasil, desde organizar seus encontros em terreiros de candomblé na década de 1930 até suas triunfais apresentações na Marquês de Sapucaí. Nesse conjunto, o samba tem feito por meio da sua poesia, sua popularidade nos morros e favelas de todo país, seu enfrentamento diante da lei e a resistência da população a esse movimento preto [1].
O outro trecho é: “Enfrentando no peito um certo preconceito/E muito desdém/Hoje em dia é fácil dizer/Que essa música é nossa raiz/Tá chovendo de gente que fala de samba e não sabe o que diz”, em que Aragão nos mostra a utilização do samba como forma de apaziguamento das contradições sociais/raciais. Geralmente fazendo um apagamento histórico da resistência da grande massa que desce o morro e faz suas rodas, mostra sua estética, sua história, seu orgulho, afirmando a existência e o direito do povo negro à felicidade e lazer. Condição negada e exaurida de sua história, subvalorizando de todas as formas esse direito ancestral à essa parcela (grande) da população.
Com isso, afirmamos que o samba foi um movimento do início do século XX, que sofreu repressões décadas e atualmente o rap e o funk possuem sua legitimidade civilizacional questionada, pois seu modo de envolvimento com a vida é percebido como marginalização. Assim, a perseguição e a estigmatização por causa do racismo brasileiro são recorrência na linhagem musical da população negra. Ao utilizarmos, nesse artigo o samba, nossa intenção é contrariar tais percepções de marginalização, no sentido de expor uma fonte e produção de filosofias nas expressões culturais e musicais negras brasileiras.
O exercício filosófico possui como característica o ócio, com significado de “descansar”, “tempo livre” para que a criatividade emerge desse estado de ociosidade. Contudo, esse “ócio” na formação da sociedade brasileira não é para qualquer grupo população, pois uma das leis pós-abolição destacava: “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita: Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses” (Brasil, 1941, grifo meu). Essa é a lei da vadiagem que com o viés de caracterizar a quem era proibido a ociosidade, produz no imaginário da população brasileira uma correlação direta com os frequentadores das rodas de samba, já que ali predominava a população preta.
Desse modo, o estigma dos sambistas, capoeiristas e malandros como vagabundos e não gostavam de trabalhar, tratava-se de um perfil do homem negro perseguido pelas autoridades da época, em suas manifestações de existência na metrópole, oriunda, na maior parte, dos morros. Porém, o samba apresenta um movimento contra a imagem de ociosidade imputada na população negra a partir da criação de um ritmo que faz mexer, que balança o corpo, ou já diria Caymmi (1957): “Quem não gosta do samba bom sujeito não é/Ou é ruim da cabeça ou doente do pé”. O movimento contra o ócio provoca irritação nas camadas mais abastadas, sem dúvida, já que como canta Aragão: “Respeite a camisa que a gente suou/ Respeite quem pôde chegar onde a gente chegou”. Dessa forma, o samba é linha de frente contra esse movimento de sedentarizar os corpos negros em sua expressão, pois tem em si o movimento criador.
Por isso, cunhamos o nosso artigo como uma luta contra o ócio, restrito a metas e resultados, em descrições analíticas textuais como se a verdade estivesse no interior da nossa cognição. E promovemos um ensino em que a reflexão conflui na busca do prazer, da alegria potencializada pela alacridade. Principalmente, porque o samba nos transmite religiosidade, música e vivência das populações negras infringidas historicamente pelo processo da escravidão. Nos leitos e beirais do mundo bipartido entre humanos e não humanos, o samba nos fez humanos independente da força contrária como diz o Grupo Fundo de Quintal em “Batucadas dos Nossos Tantãns” (1993): “Samba, a gente não perde o prazer de cantar/ E fazem de tudo pra silenciar/ A batucada dos nossos tantãns/ No seu ecoar o samba se refez/ Seu canto se faz reluzir/ Podemos sorrir outra vez”.
Com a possibilidade de viver e nos expressar pela nossa alegria, que configura um balanço – ou ginga, assim como na capoeira – o samba magistralmente nos coloca para nos mexermos contra a fadiga e o extremo ócio que a realidade oferece de cardápio para a população preta do Brasil. Aragão em “Coisa de Pele” (1986), um dos hinos do samba, nos convida a atentar como através da poesia que o samba envolve e potencializa nosso corpo para cantarmos sorrindo e nos encontrarmos num refúgio de alívio e culto ao nosso direito ancestral à felicidade:
Podemos sorrir, nada mais nos impede/ Não dá pra fugir dessa coisa de pele/ Sentida por nós, desatando os nós/ Sabemos agora, nem tudo que é bom vem de fora/ É a nossa canção pelas ruas e bares, que/ Nos traz a razão, relembrando Palmares/ Foi bom insistir, compor e ouvir/ Resiste quem pode à força dos nossos pagodes/ E o samba se faz, prisioneiro pacato dos nossos tantãs/ E um banjo liberta da garganta do povo as suas emoções/ Alimentando muito mais a cabeça de um compositor/ Eterno reduto de paz, nascente das várias feições do amor (Aragão, 1986).
Não temos como falar de samba sem mencionar o Cacique de Ramos, localizado no bairro de Ramos, subúrbio do Rio de Janeiro, o templo sagrado do samba, por ser um lugar onde ilustres nomes se reuniam semanalmente para beber, tocar boa música e fugir do movimento fatigante e insustentável do trabalho, dos deveres e obrigações da vida, e lidar também com a pobreza e preconceito de raça e classe. Desse modo, Luiz Carlos da Vila, como podemos ver no documentário Eterno Filme (2009), já dizia que via essas reuniões em que surgiram Arlindo Cruz, Sombra, Sombrinha, Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Jorge Aragão, entre outros. Ou seja, a nossa história é cantada e batucada pelos sambas, que também tem como função nos passar a experiência da oralidade como forma de inscrição. A oralidade é uma experiência de performance de voz e, acima de tudo, do corpo. É uma das formas de inscrição no real como detalha Leda Maria Martins (2003, p. 67):
No âmbito dos rituais afro-brasileiros, a palavra poética, cantada e vocalizada, ressoa como efeito de uma linguagem pulsional e mimética do corpo, inscrevendo o sujeito emissor, que a porta, e receptor, a quem também circunscreve, em um determinado circuito de expressão, potência e poder. Como sopro, hálito, dicção e acontecimento performático, a palavra proferida e cantada grafa-se na performance do corpo, portal da sabedoria.
Com isso, os saberes que vem da diáspora africana para as terras ameríndias brasileiras foram passados através dos hálitos e dos modos de ser dos mais velhos para os mais novos, como forma de sobrevivência, resistência cultural e ancestralidade. O corpo diz e sente muito, e isso não pode ser desconsiderado. A escrita, a função favorita dos pensadores ocidentais, de certa forma como foi circunscrita, com alto valor dentro da produção epistemológica no decorrer da história da sua produção filosófica, desvalorizando de certo modo o uso da oralidade como produtora de conhecimento e sua legitimidade foi passada para um exercício de oratória, para fins lógicos e discursivos. É claro que não desconsideramos a trajetória da escrita, senão estaríamos em contradição com a nossa vivência universitária, mas a oralidade tem um espaço profundo e significativo na construção de epistemologias. Os cantos das lavadeiras, cantigas de roda, pontos de Umbanda, o canto de nossas mais velhas enquanto cozinham, o assobiar de nossos mais velhos imitando passarinhos, os bordões de tios, as risadas altas das tias, o samba de fundo no rádio velho que fica na cozinha, tudo que produz sensações no nosso corpo, exige que possamos estar em contato direto com o agora espaço-temporal, um presente em constante mudança, que se eleva a um espaço de memória, e constrói em nós modos de ser originais com base numa ética que se aprende no quintal de casa.
Essa oralidade em linhas sutis revela-se pelos provérbios ou, melhor dizendo, em sentenças proverbiais. Uma interessante visão sobre é tratada por Tiganá Santana Santos (2020, p. 38) na seguinte definição:
A utilizar o termo “provérbio” preferimos “sentença em linguagem proverbial”, dado que, em tais civilizações – como vimos a partir de nossas pesquisas que versam sobre kingana (assim denominado na língua de tronco bantu, o kikongo) ou sentenças proverbiais entre os bantu-kongo –, a forma de se relacionar com os mundos, as comunidades, as singularidades, reflexões, transmutações, criações etc., com a participação de tais sentenças, enquanto acontecimentos técnicos, filosóficos, transtemporais e corporais, ocupa um lugar muito distinto daquele ocupado pelos “provérbios”, conforme comumente conhecemos quando advindos de culturas euro-ocidentais (grifos nossos).
Por que trazer à tona essas sentenças proverbiais se estamos defendendo a regência da alegria como potência na nossa vida? Pelo curioso fato de ser por meio delas que é passado o conhecimento dos mais velhos aos mais novos nas periferias desse Brasil. A cultura negra brasileira carrega como herança essa maneira de manter o cuidado aos mais novos com essas sentenças, como por exemplo “Um olho no peixe, outro no gato” ou, eternizada na voz de Zeca Pagodinho, “Camarão que dorme a onda leva”. Por meio dessa “griotagem” que se passa a malandragem, o pensamento ligeiro do corpo que conduz a mente para melhor lugar, o melhor agir e a essa passagem para uma alegria e conservação do corpo. Não se trata agora de apenas um cuidado com o próprio corpo, a alacridade tem uma profunda dimensão dinâmica garantida pelo axé, na qual nosso poder de atuação nos leva a uma passagem, a um aumento da alegria.
Alacridade: um conceito potente
Nessa seção aprofundaremos na alacridade enquanto modo fundamental do fundamento nagô. Um fundamento que não se resume apenas a um afeto circunstancial – portanto, nada que nasça e pereça ocasionalmente – ou seja, é principalmente uma potência ativa. Na alacridade encontramos a noção de amor de si mesmo (não confundindo com as noções de “egotismo” e “amor-próprio”),] que, segundo Sodré (2017, p.150) pode ser entendido como:
A tração da consciência na direção de objetos que a integram harmonicamente consigo própria com o grupo que lhe é constitutivo, um sentimento positivo descrito por Rousseau como ‘amável e terno’. É o que transparece de modo notável num verso do poeta português Guerra Junqueiro: ‘A alegria é uma alavanca.
Essa expressão nagô para um entendimento de quem está mais acostumado a filósofos ocidentais, pode se aproximar da noção de conatus de Espinosa, já que para esse autor nela há os encontros como campo de atuação, que dizem respeito a nossa potência. Deleuze ao comentar o conatus nos demonstra o quanto a alegria é uma potência para a vida em sua auto-realização e para aumentar a nossa experimentação de paixões alegres: “[...] conatus é o esforço para experimentar alegria, ampliar a potência de agir, imaginar e encontrar o que é causa de alegria, o que mantém e favorece essa causa; mas é também esforço para exorcizar a tristeza, imaginar e encontrar o que destrói a causa da tristeza” (Deleuze, 2002, p.106-107). Contudo, proximidade para aí, pois para os nagôs, de acordo com Sodré (2017, p.154) “a expansão do axé, que visa assegurar a continuidade física dos descendentes de africano e a territorializar os processos de pensamento afros, acompanha a expansão da alacridade na direção da heterogeneidade das sensações e da potência dos corpos”. Com isso, uma definição para alacridade é: estar positivamente abertos a todas as suas condições de ser e de realizar.
Nesse entendimento, não alçamos um sujeito da alegria, padronizando o pensar em um sujeito uma alegria perfeita, mas sim trazendo para um plano de imanência, no sujeito da emoção, da sensação, transformando a alegria em regência de possibilidade de experiências e sujeitos. Novas linhas de fuga, novos encontros, novas construções de afetos, novas formas de amar, novos olhares para situações cotidianas possibilitados tanto pelo afeto da tristeza e ódio quanto pela felicidade e amor para abrir alas para novos modos de ser, novas produções artísticas, intelectuais e principalmente éticas e estéticas. Tudo isso numa contrapartida à insuportabilidade da vida, a fadiga causada pela estabilidade sufocante que nos é imposta pelo capitalismo. Diante do horizonte infinito desse processo que é a vida, ayó seria para o pensamento nagô, uma alegria que não se descola da ação prática, ou seja, como também traz Espinosa, se torna acima de tudo uma ética.
Desse modo, a alacridade constrói campos de atuação, uma alegria que constrói ações, no axé em sua potência e realização, o poder-fazer. Diante dessas ações, Sodré (2017, p.151) explica que há um encontro da pulsão “sem o ressentimento da incompletude ou da falta, o indivíduo sente-se pleno e uno com o objeto ou com o real, liberando-se momentaneamente de qualquer álibi intelectual e assim vivenciando a alacridade” (grifos nossos). Um exemplo disso seriam as rodas de samba, que possuem um caráter muitas vezes ritualístico em prol da alegria trazida pelas letras de samba, pelo ritmo cadenciado e contagiante, que exige principalmente uma vontade de ser feliz e um movimento do corpo sincronizado com a roda, que traz como elementos essenciais de fartura em comida e bebida, para que todos se saciem e sintam essa alegria em uma vibração harmoniosa e coletiva, de caráter comunitário em sua maioria.
Contudo, essa alacridade pode ser vista como a efetuação de natureza, que está profundamente ligada ao entendimento como liberdade. Ou como posiciona Eduardo Oliveira a liberdade está expressa culturalmente, pois se “liberdade é um princípio que pensamos universalmente. Mas liberdade é também e antes de tudo uma atitude, uma experiência. Nesse caso, é uma singularidade, uma experiência, que só o contexto cultural pode significar e determinar” (Oliveira, 2021, p. 129).
Uma significação e determinação que no ato de tocar samba há um movimento não planejado, um acompanhamento corpóreo ao que a música provoca. Nessas idas e vindas do corpo pode-se pensar uma ocorrência a qualquer expressão musical, mas o samba e outras expressões da cultura negra não somente incentiva um balancear inconsciente também nas melodias e nas construções frasais uma lembrança, uma memória de uma experiência não visível. É nisso que compõe uma das práticas da alacridade, um ritual de se reunir em roda e precisamente com essa potencialidade da alegria, que nos remete para uma produção de conhecimento em que o ato de ensinar e aprender filosofia converge para contrariar o ócio.
Ensinar contra o ócio
A espiritualidade indígena, africana e ameríndia possui semelhanças de pensamento que consiste no direito ancestral à felicidade. Os ancestrais dessas populações espiritualizam a alegria, e, no caso nagô, consiste no poder-fazer (axé) que efetua uma felicidade e é transmitida em rituais familiares. Há nessa tradução um fundamento dos pensamentos no movimento e na alacridade para valorizar uma vivência que produz e valoriza a corporeidade e, por conseguinte, reúne a comunidade a favor do que possa ser oferecido para materializar o pensamento. Uma materialização que distingue de uma separação radical entre razão e emoção, corpo e cognição, já que possuem “movimentos, voz, coreografias, propriedades de linguagem, figurinos, desenhos na pele e no cabelo” e “Os sujeitos e suas formas artísticas que daí emergem são tecidos de memória, escrevem história” (Martins, 2003, p.78).
Nesse ponto aproximamos da leitura de Deleuze acerca do conceito de potência de Espinosa por compreender que “toda potência é inseparável de um poder ser afetado, e esse poder ser afetado encontra-se constante e necessariamente preenchido por afecções que o efetuam” (Deleuze, 2002, p.103). Nesse turbilhão de afecções o conceito de potência é preenchido de alacridade, ou seja, a alegria que produz a potência pertencente à filosofia nagô. Assim, a filosofia compõe um modo de vida feliz, ativa política e eticamente, que produz uma afirmação de sua diferença e multiplicidade, sem concordar com a padronização do modo de ser baseado no modelo de humanidade proposto por teóricos da modernidade.
Para usarmos outro conceito que elucida esse movimento para o ato de construir seu próprio modo de ser é um personagem conceitual de Deleuze e Guattari: o Nômade. Encontramos o seu sentido etimológico da palavra nomos que remeteria à “partilha, distribuição”, antes suas modificações pela conceituação grega, que designaria lei: “O nomos acabou designando a lei, mas porque inicialmente era distribuição, modo de distribuição” (Deleuze; Guattari, 2008, p. 54). O Nomos aqui designado não é uma lei transcendente hierárquica designando ordenamento do mundo, mas sim uma lei que se faz no próprio encontro. Opondo-se à ideia de eternidade do Logos, esta lei imanente é a maneira de cada coisa se distribuir pelo espaço de acordo com os encontros. O Nômade se distribui no espaço pela sua própria afirmação, se move pelos afetos aquele que se distribui no próprio ato de colocar-se no mundo. E o que teria a ver o arcabouço da filosofia nagô com o nomadismo explorado por Deleuze e Guattari? Podemos ler a filosofia nagô como um pensamento nômade, por evocar os encontros, fazer-se na relação, num caminhar sem saber previamente a finalidade, lança a pedra para frente e atinge o próprio passado. Ou seja, encontrar consigo nos afetos a por vir, como canta Cartola na letra de Candeia: “Deixe-me ir/ Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar/ Deixe-me ir/ Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Sorrir pra não chorar” (Cartola, 1976).
Com isso a pergunta: como funcionaria uma proposta pedagógica em que podemos pensar no ensino de filosofia contra o ócio? Primeiramente temos que articular os problemas filosóficos não como dependente do “em comum”, que subtrai as diferenças em prol da mesmidade. Essa procura pelo mesmo ratifica uma estagnação perante a realidade em que a racionalidade encontra uma via, um método, para decifrar a realidade. Contra isso, a utilização do samba embalada pelas filosofias africanas possibilita mudar a nossa visão e abrir para uma percepção do território que nos circunda e promove o saber. Ao fim construir os encontros além do cânone filosófico. Nesse sentido, a filosofia contra o ócio alia-se à arte para manifestar modos de existências e, doravante, debater temas dentro de sala que orientam a nossa interrogação para o incerto, impulsionando para o por vir. Em outras palavras, a leitura de filósofos e filósofas europeias, africanas, ameríndias, asiáticas são importantes desde que nossos referenciais de mundo sejam retirados do conforto, do mesmo. Não gratuitamente, a seguinte trecho de “Nascente da Paz” do Grupo Fundo de Quintal (1989) nos fornece uma posição filosófica:
Samba é filosofia, fidalguia do salão/ Tem a força e a magia que acende o coração/ E pra minha alegria o meu samba vai além/ É a minha bandeira, paixão verdadeira que me satisfaz/ Essa luz tão divina ilumina os nossos quintais/ É um tom envolvente, presente da gente, nascente da paz/ Essa luz tão divina ilumina os nossos quintais.
Ora, o projeto moderno de ensino de filosofia baseou-se na elucidação da realidade em que cada detalhe da realidade seja dissecado, culminando na certeza indubitável. A elucidação, vale destacar, originar-se-ia de uma luz interna em um “eu” para quem as outras pessoas, as questões mundanas, seriam secundariamente relevantes para serem reconhecidas. Agora quando o Fundo de Quintal canta “Essa luz tão divina ilumina os nossos quintais”, então a elucidação começa daquilo que nos envolve, antes de formar um “eu” estou na relação com o ambiente, com as outras pessoas que me ensinam a embalar o meu corpo como um “fidalgo no salão” e, por conseguinte, as minhas paixões, meu páthos, torna-se envolto pela força e magia em que “pra minha alegria o meu samba vai além”.
Nesse caminhar, o ensino de filosofia tem um desafio de não reproduzir o mesmo e perder a criatividade que é própria da filosofia. Como pontua Silvio Gallo (2006, p. 18): “se precisamos estar atentos à história, é necessária porém uma recusa da tradição para a emergência do novo”. A filosofia passa a ser como esses encontros entre os estudantes sejam potentes para que a criança e o jovem aprendam as ciências, as filosofias para obterem voz e falarem por si mesmos. Desse modo, nossa maneira de ensinar precisa de um olhar que enxergue a singularidade ao se ensinar filosofia nas escolas brasileiras. Gallo (2006) explora pontos de vistas acerca da prática de ensino de filosofia no ensino médio, por exemplo a “oficina de conceitos”, a qual para o autor o desejo é “enfatizar o caráter prático [do conceito], para além de uma mera transmissão de conteúdos da história da filosofia ou de um mero treinamento de competências e habilidades supostamente identificadas com o pensamento filosófico” (Gallo, 2006, p. 25-26).
Com isso, o autor propõe 4 etapas dentro do trabalho desta oficina, que passa por “1. Sensibilização; 2. Problematização; 3. Investigação; 4. Conceituação” (Gallo, 2006, p. 26). A etapa da sensibilização que é a primeira (e mais importante diga-se de passagem) desse processo consiste em exatamente incitar a atenção do estudante com o tema, ou mais precisamente, afetar o estudante com o problema, fazer com que sinta na pele aquilo que está sendo passado, trazer à experiência do pensamento. A segunda etapa seria a problematização, na qual o tema torna-se um problema; a transformação da problematização é o momento das intervenções dos estudantes para criarem o ambiente da aula, ou como diz Gallo (2006, p. 28): “Desenvolvemos também a desconfiança em relação às afirmações muito taxativas, em relação às certezas prontas e às opiniões cristalizadas.”. A terceira etapa consiste na investigação, buscar elementos que permitam a solução do problema; as referências e o passeio pela história da filosofia aparecem, fazendo-nos viajar e desterritorializando o pensamento, produzindo um intenso ir e vir da mente, em que tanto a vivência de todos presentes são válidos como instrumento de investigação, assim como produtos culturais, por exemplo, o cinema, a música, a arte, a ciência. Nessa parte, há busca de elementos que permitam a solução do problema investigado, identificando seus parentescos, como eles vão se transformando pela história da filosofia para adequar-se também às transformações históricas dos problemas, ou seja, “a conceitualização como o momento que trata de recriar os conceitos encontrados, de modo a equacionarem nosso problema, ou mesmo de criar conceitos (Gallo, 2006, p. 28)”. Por fim, entender o espaço da sala de aula como um potencial espaço para criação e elaboração de conceitos nos leva ao labor da experiência filosófica tanto para o docente quanto para os estudantes.
Exatamente diante desse processo que permite não apenas inserir as letras e músicas do samba, mas fazer dele uma experiência filosófica. Por que esse samba é filosofia? Pois mobiliza o pensamento e o corpo, regendo o encontro em um espaço em que a liberdade impulsiona o presente com a potência da filosofia e as palavras nunca se encontram vazias. Talvez articular samba e filosofia se confluem para o ímpeto da criação para compor novas linhas melódicas, extrapolando o silêncio introspectivo que encontramos no cânone filosófico e no seu ensino. Nesse ponto, concordamos com Nietzsche e sua gratidão à arte como uma fuga para suportar a vida, já que similar às rodas de samba serviam para ser feliz sem pretensão de um júbilo, ser feliz porque é a vida: “É preciso, que de vez em quando, descansamos de nós próprios, olhando-nos de cima e de longe e, com o longínquo da arte, rir e chorar de nós e por nós mesmos [...] sejamos felizes, de vez em quando, com a nossa estupidez, para que possamos continuar felizes com a nossa sabedoria!” (Nietzsche, 2003, p.103).
Portanto, a intenção de ensinar filosofia contra o ócio é justamente para modificar a ideia cristalizada do fazer filosofia por meio da reprodução de métodos já instaurados. Para a cada aula, cada semestre, cada curso invente-se uma metodologia para o seu ensino. Uma metodologia consolidada pela circulação de afetos, pois tal como nas composições de sambistas haver assim a horizontalidade e mostrar para as pessoas em sala de aula como o relacionamento com as diferenças é crucial para consolidar as nossas humanidades. Por isso, a filosofia e o samba precisam dos encontros para se transformarem em algo a mais, assim como a educação precisa do contato, da performance, da oralidade, da escrita, do balanço, da ginga, da griotagem, da malandragem. Para quem sabe, podermos pensar e ser felizes ao mesmo tempo, porém é preciso que “Deixe-me ir/ Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar” (Cartola, 1976).
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SODRÉ, Muniz. Pensar nagô. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2017.
Notas
[1] Em pesquisa, encontrei arquivos digitalizados da Biblioteca Nacional onde pode-se encontrar jornais que datam 1902 (mais propriamente o Correio da Manhã), falando sobre as rodas de samba, reclamações que a população fazia sobre as rodas, carregadas de estereótipos, preconceitos e pedidos de ação policial diante daquilo que acontecia ali.
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