A Residência Pedagógica/Mackenzie interpretada à luz das categorias de Marli André: um relato de experiência.

The Pedagogical Residence/Mackenzie interpreted in the light of Marli André's categories: an experience report.

  

Angela Zamora Guimaraes Cilento

Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP, Brasil.

angelazamoracilento@gmail.com

Maria Elisa Pereira Lopes

Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP, Brasil.

mariaelisa.lopes@mackenzie.br

Jennifer Andressa da Silva Cabrera

Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP, Brasil.

jennifer.andressa.cabrera@gmail.com

 

         Recebido em 13 de julho de 2023

         Aprovado em 09 de outubro de 2023

Publicado em 06 de dezembro de 2023

 

 

RESUMO:

Este artigo tem como seu objetivo revisitar a trajetória do projeto interdisciplinar entre Filosofia e Pedagogia do Projeto Residência Pedagógica promovido pela CAPES da Universidade Presbiteriana Mackenzie, à luz das categorias de Marli André. A autora, preocupada com as questões do cotidiano escolar, se propõe a analisar a escola por meio de estudos etnográficos. Para tanto, nos apresenta três dimensões: a institucional/organizacional, a institucional/pedagógica e a filosófica/histórica/epistemológica. Este artigo vale-se dessas três dimensões para reviver vivências, experiências e aprendizados dos processos interdisciplinares e transdisciplinares ocorridos no período de 2019 ao longo da jornada e da participação da licencianda no Projeto da Residência Pedagógica. 

 

Palavras-chave: Residência Pedagógica: Marli André. Filosofia/Pedagogia: interdisciplinaridade: transdisciplinaridade.

    

ABSTRACT

This article aims to revisit the trajectory of the interdisciplinary project between Philosophy and Pedagogy of the Pedagogical Residency Project promoted by CAPES at Universidade Presbiteriana Mackenzie, in the light of Marli André's categories. The author, concerned with issues of everyday school life, proposes to analyze the school through ethnographic studies. To this end, it presents us with three dimensions: institutional/organizational, institutional/pedagogical and philosophical/historical/epistemological. This article uses these three dimensions to relive experiences, experiences and learning from the interdisciplinary and transdisciplinary processes that took place in 2019 throughout the journey and the degree holder's participation in the Pedagogical Residency Project.

Keywords: Pedagogical Residence; Marli André; Philosophy/Pedagogy; interdisciplinarity; transdisciplinarity.

 

 

 

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

       Durante os anos de 2018 e 2019, os licenciandos dos cursos de Pedagogia e Filosofia desenvolveram um projeto interdisciplinar intitulado “Senta que lá vem a história”, que fez parte do Projeto Institucional da Residência Pedagógica da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Este projeto foi aplicado na EE Maria José, uma escola grande que oferta do ensino fundamental I e II até o médio, localizada à Rua Treze de Maio, 267, no bairro da Bela Vista, centro de São Paulo. Os alunos desta escola são de classe média baixa, alguns classificados como vulneráveis. Trabalhamos com crianças da primeira série do ensino fundamental. Nossa pesquisa tem por objetivo relatar essa experiência à luz das categorias da professora Marli André.

A primeira parte se destina à explicitação do subprojeto. Trataremos das relações interdisciplinares entre Pedagogia e Filosofia, levando em conta, principalmente, as questões de letramento e alfabetização, uma vez que trabalhamos com os anos iniciais do ensino fundamental. Nesse período, realizamos várias pesquisas sobre esta área do conhecimento e nos valemos da ideia de que ensinar filosofia para crianças é poder criar e proporcionar um ambiente questionador e de alto teor formativo para que elas não aceitem as coisas como dadas e imutáveis, mas que aprendam a duvidar e que sejam instigadas a buscarem o conhecimento.

Ademais, este Projeto nos permitiu averiguar os processos interdisciplinares entre pedagogia e filosofia em sua dupla perspectiva: inter e transdisciplinar. Nosso relato de experiência objetiva, em segunda instância, revisitar esta trajetória em sua inter e transdisciplinaridade, ilustradas a partir de algumas vivências no espaço destinado para este trabalho. Na indagação sobre as questões sobre os processos interdisciplinares, poderemos perceber que as fronteiras entre o conteúdo específico em filosofia, ao mesmo tempo que foram consolidadas por nós, licenciandos, também foram apropriadas pelos alunos da educação básica alcançados pelo Projeto. Nesse período, novas formas de ensinar e aprender filosofia e pedagogia se interseccionaram com as outras áreas do conhecimento, como história, literatura e com as linguagens artísticas.

     Todavia, os conhecimentos adquiridos não devem ter a pretensão de um “receituário” ou um manual de “como ensinar filosofia”. Durante todo o Projeto, colocamo-nos na condição de aprendizes, conforme nos alerta Japiassu em Atitude Interdisciplinar no Sistema de Ensino, quando este afirma que: “a verdade do conhecimento é uma procura e não uma posse. Não se detém ciumentamente o monopólio da verdade de determinado setor do conhecimento” (JAPIASSU, 1992, p. 85)

     Tanto Japiassu e Gusdorf fazem referência a uma “nostalgia de uma unidade” dos saberes e remontam o percurso da própria história da cultura ocidental. Assim, há que resgatarmos a ideia de que a filosofia, enquanto “mãe de todas as ciências”, abrigava na figura do filósofo aquele que dispunha de outros tantos saberes. Por exemplo: Tales de Mileto, pré-socrático do século VI a.C., enriqueceu graças aos seus conhecimentos de astronomia, sabia quando as colheitas de oliva seriam profícuas; Platão, com seus estudos adquiridos quando em viagem ao Egito, sabia matemática, geometria e religião; os filósofos da corrente helenística dispunham de uma sabedoria de vida; os alquimistas no final da Idade Média e Descartes, com seus estudos sobre medicina, biologia e física, são grandes exemplos.

     Com o aparecimento do método científico na metade do século XVII, as ciências deram seus primeiros passos. Mas é o movimento Iluminista que privilegiará a razão, em detrimento dos sentimentos, de outros saberes e de outras possibilidades de interpretação, para elegê-la como o único modo legítimo de pensar e de ver o mundo na cultura ocidental. Gusdorf traz à tona Turgot:

 

Em nosso século, a filosofia, ou antes a razão, estendendo seu império sobre todas as ciências, fez o que fizeram outrora as conquistas dos romanos entre as nações; reuniu todas as partes do mundo literário; revirou as barreiras que faziam de cada ciência um Estado separado, independente em relação às outras (GUSDORF, 1995, p. 11).

 

Movidas pela racionalidade, ciência e tecnologia avançaram a passos largos e procuraram ganhar sua autonomia e se tornaram independentes da filosofia, o que implicou em vários efeitos: um deles concerne à falta de reflexão da própria ciência sobre os seus fundamentos, não conseguindo mais avaliar a si mesma.

 Cabe à filosofia atuar em sua vertente transdisciplinar, avaliar os métodos, os conceitos e as concepções de homem e de natureza que subsidiam as ciências, bem como promover a busca pelo sentido da existência em sua dimensão ético-política, de modo a impingir valores que dignifiquem a vida e de engajamento cidadão. Nosso trabalho procurará demonstrar que conseguimos promover ações de caráter transdisciplinar que resultaram em uma produção única abrangendo várias áreas, o que implicou qualitativamente nos processos de ensino-aprendizagem dos alunos da educação básica.

Em sua vertente interdisciplinar, a filosofia desde seu nascimento pode reunir e abrigar todas as áreas do saber das ciências particulares, no entanto este ‘olhar de conjunto’ se perdeu com a autonomia das ciências e com a emergência crescente dos especialistas. A filosofia, portanto, sempre foi comprometida com a finalidade e os propósitos da produção dos saberes e procura avaliá-los, pois as ciências se mostram muitas vezes como progressistas, porém podem escamotear os interesses que as movem, alienando o homem. Aqui, de modo mais modesto, em nossa pesquisa procuraremos ilustrar os processos interdisciplinares entre filosofia e pedagogia dentro de uma sequência didática para o primeiro ano do ensino fundamental.

       Japiassu, em seu texto, trata sobre “o conhecimento endisciplinado”, enquadrado pautado na segmentação do saber. Em busca do movimento contrário, encontraremos, no ensino de filosofia à luz da proposta da Residência Pedagógica/Mackenzie, a ultrapassagem das barreiras fronteiriças das áreas do saber, guardando uma sede para novas experimentações e vivências, servindo, como nos lembra Japiassu (1992), de motor de transformação para uma nova estirpe de educadores.

De posse dessas ideias, nosso trabalho será desenvolvido em três partes. A primeira se dedicará à explicitação do Projeto Institucional da Residência Pedagógica. A segunda parte procurará explicitar as ideias-chave de Marli em seu texto “Questões do cotidiano na Escola de 1°grau”. Buscaremos complementar suas análises à luz da relevância da pesquisa etnográfica, bem como discorrer, na medida do possível, sobre a dimensão filosófica da escola, pois não tivemos acesso quando da aplicação da Residência aos documentos da escola como o Projeto Pedagógico. Por fim, a terceira parte, à luz das categorias propostas por Marli André realizaremos nosso relato de experiência, procurando também enfatizar os processos trans e interdisciplinares.

 

1.        O PROJETO DA RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA/MACKENZIE

 

Durante os anos de 2018 e 2019, os licenciandos dos cursos de Pedagogia e Filosofia desenvolveram um projeto interdisciplinar intitulado “Senta que lá vem a história”, que fez parte do Projeto Institucional da Residência Pedagógica da Universidade Presbiteriana Mackenzie:

“O presente subprojeto, com abordagem interdisciplinar entre Pedagogia e Filosofia, tem como objetivo redimensionar o conceito de alfabetização, investindo na questão do letramento nos anos iniciais do ensino fundamental, como também trabalhar com as estratégias de leitura para a formação do leitor competente. Além disso, pretende introduzir, de forma intencional e sistemática, a investigação filosófica na formação das crianças nestes primeiros anos. Segundo Isabel Solé (1988), as estratégias de leitura são as ferramentas necessárias para o desenvolvimento da leitura proficiente. A partir do trabalho com as estratégias de leitura, é possível desenvolver a compreensão e interpretação de textos de forma autônoma. A Base Nacional Curricular Comum, BNCC preconiza que:

 

Ao componente Língua Portuguesa cabe, então, proporcionar às estudantes experiências que contribuam para a ampliação dos letramentos, de forma a possibilitar a participação significativa e crítica nas diversas práticas sociais permeadas/constituídas pela oralidade, pela escrita e por outras linguagens (BRASIL, 2017, p. 63).

 

O trabalho com leitura ganha novos contornos nesta perspectiva. Essa prática deve estar voltada para a compreensão do processo, para além dos resultados restritos que apontam a leitura como resultado de interpretações que valorizam o resultado obtido, evidenciando apenas as estratégias de localização e decodificação. Investir nas relações entre alfabetização e letramento oportunizará a todos a aproximação com a língua portuguesa de forma significativa.

A participação dos estudantes em atividades de leitura com demandas crescentes possibilita uma ampliação de repertório de experiências, práticas, gêneros e conhecimentos que podem ser acessados diante de novos textos, configurando-se como conhecimentos prévios em novas situações de leitura (BRASIL, 2017, p. 71).

 

No que se refere à formação filosófica, se a educação deve realizar a tarefa de aprender a usar a palavra para significar a experiência, então há uma dimensão filosófica em toda atividade docente. Fazer filosofia com as crianças é criar esta prática de pensar, proporcionando um ambiente onde o questionamento da criança sobre conceitos comuns, centrais, controversos e problemáticos da sua experiência possam ser adequadamente investigados e não simplesmente respondidos com “verdades absolutas” ditadas pela experiência do adulto. Lipman (1995), ao apresentar uma pedagogia que envolva Filosofia para crianças que é a Comunidade de Investigação, apresenta duas ideias regulativas deste paradigma: a razoabilidade como propriedade pessoal e a democracia como propriedade social. Assim, a Filosofia para crianças propõe que os conceitos e problemas sejam investigados, utilizando-se das habilidades de pensamento (habilidades de raciocínio, investigação, interpretação e conceituação) e das habilidades sociais, essas ligadas à empatia, descentralização e agir com base a regras estabelecidas em comum. Tais habilidades sociais corroboram a ideia de permitir o desenvolvimento da autonomia moral da criança, numa forma de educação em valores e para a democracia que tem seus pressupostos em Piaget e Kohlberg (PIAGET, 1996; LA TALLE, 1993; KOHLBERG, 1984).

É importante destacarmos que a criança aprende, desde muito cedo, a valorar e a perceber as implicações políticas de seu ser e agir no mundo. Ela ainda não tem estas noções tematizadas ou abstrações, mas são capazes de percebê-las. Se a realidade é desafiadora ética e politicamente, ela é também esperançosa para uma educação voltada para a formação do sujeito moral e político de forma livre, autônoma e crítica. Assim, Filosofia para crianças é uma forma de investigação ética sobre os valores, permitindo a construção da identidade de forma livre e responsável, permitindo a formação de valores e exercício da cidadania e democracia. Matthew Lipman e sua equipe desenvolveram as Novelas Filosóficas para serem usadas pelos alunos e os Livros do Professor para auxiliar a mediação do professor na investigação filosófica em sala de aula.

Propõe o desenvolvimento de habilidades como detectar semelhanças e diferenças, raciocínio hipotético, critérios de classificação, relação de causa e efeito, relação parte e todo, esclarecimento de conceitos. Ao longo da narrativa, as crianças são convidadas a pensar sobre o próprio pensar, envolvendo-se com problemas presentes na filosofia. Alguns temas: percepção, identidade, imaginação, realidade, aparência, verdade, conhecimento, probabilidade e possibilidade, perguntas, pensamento, diferenças, medo, segredo, cor, felicidade.

Algumas dessas narrativas têm como foco de trabalho a Filosofia da Linguagem. Nesse sentido, a abordagem interdisciplinar, com a alfabetização e letramento, fica evidenciada, pois é um programa de raciocínio, comunicação e expressão, estimulando a criança a escrever e propondo o aperfeiçoamento de um conjunto de habilidades próprias para este nível de ensino. Além disso, aborda alguns temas, como: identidade, corpos e mentes, partes e todo; ideias e coisas, história, espaço, tempo etc.

As ações deste subprojeto corroboram com o apontado na BNCC quando objetiva o trabalho com a leitura nas séries iniciais do Ensino Fundamental. A alfabetização é um processo que não deve ser ligado apenas à decodificação. É fundamental, nesse processo, a apropriação do funcionamento da língua. Assim, compreendemos a aprendizagem da leitura e da escrita como um processo ativo que aciona diferentes mecanismos cognitivos, portanto, na perspectiva de alfabetizar letrando.

A BNCC também preconiza que as Ciências Humanas devem:

 

estimular uma formação ética, elemento fundamental para a formação das novas gerações, auxiliando os alunos a construir um sentido de responsabilidade para valorizar: os direitos humanos; o respeito ao ambiente e à própria coletividade; o fortalecimento de valores sociais, tais como a solidariedade, a participação e o protagonismo voltados para o bem comum; e, sobretudo, a preocupação com as desigualdades sociais (BRASIL, 2016, p. 352).

 

Ao contemplarmos a possibilidade desta interface – Pedagogia e Filosofia –, percebemos que tal proposta se revela inovadora no que tange ao perfil docente que se coaduna a um dos objetivos do PCN de filosofia quanto ao plano pessoal-biográfico:

                                             O ensino de filosofia pode contribuir, portanto, para o “plano pessoal-biográfico”, uma competência de contextualização a partir de conhecimentos filosóficos pode ser muito importante na compreensão de determinadas vivências, sem falar, é claro, da riqueza que o imenso panorama filosófico tem a oferecer como contribuição na tarefa de construir uma (ou reconhecer-se numa) visão do mundo cujos pressupostos busquem fundamentar-se de modo refletido, crítico. (...) reconhecer suas capacidades, potencialidades e dificuldades; abrir-se para as diferenças discursivas e habilitar-se a aprender com argumentos morais, entre tantas outras coisas (MEC, 1999, p .58).

 

Tais objetos de conhecimentos podem ser contemplados na proposta de Filosofia para crianças, a que o presente subprojeto aqui se propõe: proporcionar um ambiente colaborativo e de constante aprendizagem entre todos os envolvidos e aprimorar as habilidades e competências dos licenciandos em Filosofia e Pedagogia”.

 

2. AS CATEGORIAS DE MARLI ANDRÉ E A PESQUISA ETNOGRÁFICA

 

Marli André, autora do texto Questões do cotidiano na escola de 1° grau”, divide seu trabalho em três partes. Na primeira parte, a autora coloca em evidência que, no início da década de 80, a Didática é colocada em questão: discute-se sobre a necessidade de contextualizá-la para que esteja, de fato, na formação do professor e, portanto, deve estar articulada à análise do papel da Educação perante a sociedade. Este movimento exigirá a movimentação de um profissional consciente de seu papel político e do da Educação diante da sociedade, estando teoricamente preparado para promover aos seus alunos a apropriação dos conhecimentos já sistematizados.

Para tal, André demonstra que é preciso fazer com que se promovam as condições de possibilidade no processo formativo do profissional de educação por meio de vivências e experiências com vistas a garantir as habilidades, valores e atitudes necessárias. Ressalta a relevância de se calcar a reflexão sobre a Didática nos problemas reais que a prática pedagógica carrega consigo, como as condições de trabalho do professor, a situação dos alunos e a forma de organização escolar. Em seguida, delimita três dimensões para que seja compreendido o processo social no cotidiano: a institucional/organizacional, a instrucional/pedagógica e a histórica/filosófica/epistemológica.

A primeira dimensão institucional/organizacional envolve a infraestrutura e seu estado de conservação, bem como o gerenciamento escolar, desde a relação entre a direção e coordenação, professores e outros profissionais.

 

A dimensão institucional/organizacional envolve todos os aspectos referentes ao contexto da prática escolar: formas de organização do trabalho pedagógico, estruturas de poder e de decisão, níveis de participação dos seus agentes, disponibilidade de recursos humanos e materiais, enfim, toda a rede de relações que se forma e transforma no acontecer diário da vida escolar. A configuração que vai assumir o contexto escolar é decisiva, pois ela afeta diretamente a forma de organização do ensino de sala de aula. Por outro lado, essa configuração vai ser grandemente afetada por determinações do social mais amplo, com o qual esse contexto se articula. Por exemplo, podem haver influências mais indiretas como as políticas educacionais, as pressões e expectativas dos pais e da população com respeito à educação escolar, ou mais diretas como a posição de classe, a bagagem cultural e os valores de cada sujeito que faz parte desse contexto. A dimensão institucional age, assim, como um elo entre a práxis social mais ampla e aquilo que ocorre no interior da Escola (ANDRÉ, 1991, p.72).

 

 

Já a instrucional/pedagógica abarca situações na qual se dá o encontro do professor-aluno-conhecimento, que envolve objetivos e os conteúdos, recursos didáticos, atividades, formas de avaliar etc.

 

A dimensão instrucional/pedagógica abrange todas as situações de ensino onde se dá o encontro professor-aluno-conhecimento. Nessas situações estão envolvidos os objetivos e conteúdos do ensino, as atividades e o material didático, a linguagem e outros meios de comunicação entre professor e alunos, e as formas de avaliar o ensino e a aprendizagem. Esse encontro se define, de um lado, pela apropriação ativa dos conhecimentos por parte dos alunos, através da mediação exercida pelo professor e, de outro, por todo um processo de interação em que entram componentes afetivos, morais, políticos, éticos, 72 cognitivos, sociais etc. O estudo da dinâmica de sala de aula precisa, pois, levar em conta a história pessoal de cada indivíduo que dela participa, assim como as condições específicas em que se dá a apropriação dos conhecimentos. Isto significa, por um lado, considerar a situação concreta dos alunos (processos cognitivos, procedência econômica, linguagem, imaginário), a situação concreta do professor (condições de vida e de trabalho, expectativas, valores, concepções) e sua inter-relação com o ambiente em que se processa o ensino (forças institucionais, estrutura administrativa, rede de relações inter e extra-escolares). Por outro lado, significa analisar os conteúdos e as formas de trabalho em sala de aula, pois só assim será possível compreender como se vem concretizando a função socializadora da Escola. O processo de investigação da sala de aula será feito basicamente mediante a observação direta das situações de ensino-aprendizagem, assim como por meio da análise do material didático utilizado pelo professor e do material produzido pelo aluno (ANDRÉ, 1991, p. 72-73)

 

 

A última categoria, dimensão filosófica, encontra-se com a relevância da pesquisa etnográfica. Esta abrange reflexões sociopolíticas da prática do cotidiano escolar, e uma investigação das concepções da sociedade, do mundo, e também do homem, e, claro, dos conhecimentos que estão relacionados.

 

Outra dimensão fundamental no estudo das questões do cotidiano da escola é a histórica/filosófica/epistemológica, que se refere aos pressupostos subjacentes à prática educativa. Esse âmbito de análise inclui uma reflexão sobre as determinantes sociopolíticas dessa prática, um entendimento da sua razão histórica e um exame das concepções de homem, mundo, sociedade e conhecimento nela envolvidas. Esse é o nível de explicação da prática escolar na sua totalidade e em suas múltiplas determinações, a qual não pode ser feita nem abstrata nem isoladamente, mas a partir das situações do cotidiano escolar, num movimento constante da prática para a teoria e numa volta à prática para transformá-la (ANDRÉ, 1991, p. 73)

 

 

Esclarecida a importância dessas dimensões para a análise do cotidiano, a autora parte para um outro momento significativo de seu texto, no qual faz uma revisão de seus estudos do tipo etnográfico na escola de 1º grau. Acreditamos ser de valorosa a explicação do que seria o método etnográfico e sua relevância para o ambiente escolar. A pesquisadora Márcia Cançado, autora do texto nomeado “Um estudo sobre a pesquisa etnográfica em sala de aula”, aponta que:

 

Etnografia é literalmente a descrição de culturas ou de grupos de pessoas que são percebidas como portadoras de um certo grau de unidade cultural. É um método muito utilizado em antropologia e enquadra-se dentro de um paradigma qualitativo ou interpretativista de pesquisa (CANÇADO, 2012, p. 55).

 

Cançado destaca o interesse crescente por este método, pois estudar o comportamento em seu contexto social é relevante e economicamente viável ao pesquisador, uma vez que, possui diversas técnicas de observação, como anotações de campo, questionários, entrevistas, gravações etc. Permite ao pesquisador ser tanto observador quanto o participante, por meio do automonitoramento. O professor deve ser previamente preparado para tanto, devendo realizar a avaliação de desempenho didático e de seu conteúdo.  Com este processo de automonitoramento Cançado expõe que,

 

                                          [...] gera uma consciência de pesquisa em professores que, até então não percebiam a sua própria potencialidade e a potencialidade da sua sala de aula para a pesquisa. A sala de aula, que se cristalizou como um lugar a ser preenchido com atividades de ensino, torna-se também um rico campo para pesquisas (2012, p. 68).

 

 

Marli André, na conclusão, relata os dados das três escolas que foram o objeto de sua pesquisa, bem como a relevância da pesquisa etnográfica. Esclarecidas as categorias de análise fornecidas pela autora, passaremos a discorrer em seguida sobre nossa experiência na Residência Pedagógica sob esta ótica.

 

3. A EXPERIÊNCIA DA RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA/MACKENZIE Á LUZ DAS CATEGORIAS DE MARLI ANDRÉ

 

       Neste momento, devido à restrição do espaço disponível para a publicação de nosso artigo, ateremo-nos às dimensões institucional e instrucional/pedagógica, procurando, dentro do possível, estabelecer as relações com os processos inter e transdisciplinares, deixando para uma outra oportunidade a exploração da dimensão histórica/filosófica/epistemológica.

A doutora Marli André discorre sobre a relevância do estudo do cotidiano escolar e, com isso, julga importante para tal investigação que seja discutida a dimensão institucional/organizacional. A respeito desta dimensão, a autora mostra que

                                   [...] envolve todos os aspectos referentes ao contexto da prática escola: formas de organização do trabalho psicológico, estruturas de poder e de decisão, níveis de participação dos seus agentes, disponibilidade de recursos humanos e materiais, enfim, toda a rede de relações que se forma e transforma no acontecer diário da vida escolar (ANDRÉ, 1991, p. 72).

 

A respeito da dimensão institucional apresentada, eu, Jennifer Andressa Cabrera, lhes contarei sobre a minha experiência na escola durante a execução do Projeto, sob a orientação das professoras Angela Zamora Cilento e Maria Elisa Pereira Lopes. Antes de adentrarmos especificamente no âmbito institucional, julgamos necessário esclarecer como se deu a organização do Projeto e a inserção na escola em breve exposição. A nossa primeira reunião, em 20 de outubro de 2018, foi realizada no Auditório João Calvino da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Esta reunião teve como objetivo saudar os professores preceptores e lhes foi concedida a palavra, a fim de que pudessem se apresentar e tecerem suas considerações. Durante as apresentações, foram expostas as situações do perfil socioeconômico dos alunos da EE Maria José. Muitos moram em cortiços, alguns na rua ou em abrigos, deixando clara a situação de vulnerabilidade. O restante mora em casas de baixa renda. Houve um relato de que um aluno das séries iniciais, por não ter mochila, levava o material em sacolinha de mercado e o colocava debaixo da camiseta, a fim de não ser ridicularizado pelos colegas.

Outros relatos falaram sobre várias situações: algumas famílias são ajudadas pelos professores da escola com roupas e outros materiais; casos de piolhos; de violência doméstica ou psicológica etc. Esses relatos foram de fundamental importância para a conscientização da importância do Projeto e do quanto ele pode ser significativo para todos os envolvidos.

Assim, na reunião ficou clara a impossibilidade de os alunos comprarem qualquer material, bem como as condições da própria escola que não pode oferecer qualquer suporte material a ser utilizado nas atividades a serem desenvolvidas. Ficamos de solicitar ao Mackenzie ajuda para tanto.

Após a apresentação, seguimos para a segunda parte da reunião. Procuramos dividir os licenciandos entre o grupo dos professores. No auditório, os subgrupos, à luz do conteúdo a ser ministrado para o restante do semestre letivo de cada série do ensino fundamental, trataram de levantar as possibilidades. Este diálogo promoveu interação e as primeiras propostas surgiram. Cada professor preceptor ao final da reunião com os licenciandos, compartilhou com os demais subgrupos as primeiras iniciativas pedagógicas do Projeto. Nosso grupo era composto por oito integrantes sendo que seis delas eram da pedagogia e duas do curso de filosofia – éramos eu, Jennifer Cabrera, e a Beatriz. 

O primeiro passo foi o de conhecer a dimensão institucional da escola. Em nosso primeiro contato, fomos bem recebidos: apenas demos nossos nomes na recepção e não encontramos qualquer obstáculo para adentrarmos na escola e os professores nos receberam com carinho e disposição. Assim, pudemos, acompanhados da professora coordenadora da escola, conhecer a rotina da escola e o espaço físico.

A dimensão institucional nos permitiu verificar as relações entre direção e coordenação, da coordenação com os professores, entre os professores e com todos os funcionários da escola. Pudemos notar que, na dimensão institucional, a relação entre os professores era bem forte e de grande união. Uns apoiavam os outros; eles realmente “caminhavam em sintonia”. Os outros profissionais da escola, em geral, auxiliavam os professores e a direção, mesmo que não fosse de sua função, ou seja, eles mantinham uma boa relação com todos. Pudemos também acompanhar os direcionamentos da gestão escolar quanto à indisciplina. O convívio com todos os membros da unidade escolar, durante o período da aplicação do Projeto, resultou no fortalecimento do nosso compromisso com a educação e nos tornou mais conscientes de nosso papel social.

A dimensão institucional/pedagógica é essencial para se investigar o cotidiano escolar, e as suas características são:

 

                                     [...] abrange todas as situações de ensino onde se dá o encontro professor-aluno-conhecimento. Nessas situações estão envolvidos os objetivos e conteúdos do ensino, as atividades e o material didático, a linguagem e outros meios de comunicação entre professor e alunos, e as formas de avaliar o ensino e a aprendizagem (ANDRÉ, 1991, p.72)

 

Esta dimensão, enquanto categoria de análise, nos permitiu identificar dois grandes momentos – antes e durante a aplicação do Projeto, tendo por base os seus objetivos. Procuraremos destacar, com nosso relato de experiência, que os objetivos – o perfil docente diferenciado, o aprimoramento da leitura e escrita e do repertório conceitual, a inovação metodológica e de material didático – foram alcançados. Além disso, procuraremos ilustrar, a partir dos exemplos, os processos inter e transdisciplinares no ensino de filosofia.

À luz da dimensão pedagógica proposta por Marli André, pudemos perceber uma diferença qualitativa. Primeiramente, pudemos apurar que a sala de aula era dividida em fileiras e raramente o professor preceptor realizava dinâmicas em grupos, pois, segundo ele, os alunos eram indisciplinados.  Notamos que, por sua rigidez, a relação professor-aluno estava comprometida: o professor tinha atitudes mais autoritárias, e o método dificilmente variava; era mais “tradicional”, utilizava-se muito o livro didático, caderno e a lousa na ministração das aulas, ou seja, atividades extrassala eram raridade.

Assim sendo, os alunos tinham dificuldades no aprendizado e se distraiam facilmente. As avaliações não tinham o intuito de levar em conta a bagagem social e cultural de cada aluno; somente tinham o objetivo de ver se os estudantes estavam entendendo e acompanhando o conteúdo apresentado. Geralmente, eram escritas e algumas vezes orais, desconsiderando o perfil socioeconômico dos alunos e sua respectiva bagagem cultural. Deste modo, ao chegarmos à escola, notamos que não houve qualquer exploração desta bagagem, conforme ressalta a profa. Marli André:

 

                                         O estudo da dinâmica de sala de aula precisa, pois, levar em conta a história pessoal de cada indivíduo que dela participa, assim como as condições específicas em que se dá a apropriação dos conhecimentos. Isto significa, por um lado, considerar a situação concreta dos alunos (processos cognitivos, procedência econômica, linguagem, imaginário), a situação concreta do professor (condições de vida e de trabalho, expectativas, valores, concepções) e sua inter-relação com o ambiente em que se processa o ensino (forças institucionais, estrutura administrativa, rede de relações inter e extra-escolares). Por outro lado, significa analisar os conteúdos e as formas de trabalho em sala de aula, pois só assim será possível compreender como se vem concretizando a função socializadora da Escola (ANDRÉ, 1991, p. 73).

 

 

Estas primeiras observações nos permitiram compreender que muito poderia ser feito naquela sala de aula e demos início ao projeto da Residência Pedagógica. Procuraremos relatar alguns momentos, dos vários que poderíamos mencionar aqui, ocorridos na sala do primeiro ano do ensino fundamental, sob a orientação das professoras coordenadoras. Nós tínhamos a grande missão de unir tanto a Filosofia quanto a Pedagogia. Permitam-me narrar esta última parte  e trechos da em primeira pessoa quando necessário.

Destacamos três deles. O primeiro é a priorização do letramento e a sondagem das crianças. O segundo, a introdução da filosofia de forma lúdica, conforme nossas pesquisas sobre filosofia para crianças, com o objetivo de aguçar ainda mais o lado questionador e reflexivo. Escolhemos trabalhar com os mitos gregos, trabalhar as emoções e a importância da amizade. Por fim, o terceiro momento escolhido foi o fechamento do projeto, relembrando tudo o que foi desenvolvido na busca pela promoção do diálogo e reflexão por meio de uma “roda de conversa”.

 

Momento 1 – No letramento e sondagem, realizamos durante um mês e meio, com auxílio de jogos e alfabeto móvel, a sondagem da leitura e escrita das crianças. Como nosso projeto era interdisciplinar, nesse momento o foco se deu na área da pedagogia. Nós, residentes de filosofia, nos encantamos e muito aprendemos, visto que nossa formação em filosofia não trata especificamente de alfabetização e seus processos.

Após as sondagens iniciais, obtivemos o diagnóstico da bagagem individual de cada criança e abordamos, em momentos específicos, a reflexão e o lado questionador, uma vez que trabalhamos na sala com pequenos grupos, conduzindo construção da alfabetização por meio da consciência fonológica. Selecionamos algumas palavras do cotidiano das crianças para serem trabalhadas com o alfabeto móvel, para que, na atividade seguinte, elas pudessem refletir sobre elas significativamente. Voltando ao processo de alfabetização, elaboramos uma “cruzadinha”. Estas atividades buscaram tanto a reflexão quanto a constituição das palavras por quantidades específicas de letras, buscando colaborar na tomada de sentido das palavras e sua ortografia. Desde o início, sempre prezamos por levar em conta a bagagem de cada aluno, suas individualidades e suas necessidades, assim como Marli André ressalta sua importância no excerto já mencionado.

 

Momento 2 – Neste, podemos contemplamos tanto a Inter quanto a transdisciplinaridade. Iniciamos com os mitos gregos. Narrei o mito da Gaia, mudando a disposição da sala – os alunos se sentaram em círculo. Apresentamos elementos visuais como o globo terrestre, para representar a “mãe-terra” e imagens, expostos nas figuras 1 e 2. Depois, desenvolvemos outra “cruzadinha” com as palavras-chave do mito. Com esta atividade, realizamos a interdisciplinaridade.

 

Figura 1 – Mito de Gaia

                                      

          Fonte dos próprios autores

 

              Figura 2 – Atividade Interativa sobre o mito

                                       Fonte dos próprios autores.

 

Seguindo com o tema, narramos o mito de Narciso, apresentado no formato de teatro de fantoches. Esta metodologia foi inovadora para os alunos e para o professor preceptor. A confecção dos fantoches ilustra a perspectiva transdisciplinar, uma vez que foi envolta de produção artística.  As crianças, em sua grande maioria, nunca haviam visto um teatro de fantoches e simplesmente amaram (Figura 3). Depois de finalizarmos a apresentação, passamos para o momento de reflexão sobre o que eles tiraram de ensinamento sobre o mito, o que mais gostaram, sempre priorizando o diálogo e preservando o lugar de fala dos alunos. Este momento foi de muita participação. Para finalizarmos, os alunos desenharam seus momentos favoritos (Figura 4). 

 

 

 

                                    Figura 3 – Bonecos confeccionados artesanalmente para

                                                   o teatro de fantoches sobre o mito do Narciso

                                       Fonte própria dos autores.

 

         Figura 4 – Atividade sobre o que mais gostaram do teatro

                           de fantoches

          Fonte própria dos autores

 

Ainda dentro do segundo momento, após as narrativas míticas, avançamos e nos dispomos a trabalhar com as emoções, a fim de que os alunos do 1. Ano conhecessem mais sobre o que sentiam e assim pudessem se expressar melhor.

Com nossos estudos sobre filosofia para crianças, exploramos, inicialmente, as rodas de conversa. Com o objeto de fala, sorteamos os sentimentos que estavam colocados em uma caixa, como medo, felicidade, tristeza e alegria, e as crianças iam compartilhando o que lhes dava medo, alegria etc. Esses momentos foram essenciais para a autorreflexão de cada criança e, ao escutarem as narrativas dos colegas, seus medos e alegrias, puderam ter momentos de identificação – não se sentiram mais sozinhos –, pois sabiam que um colega também sentia o mesmo que eles.

Novamente, saímos do ensino tradicional e conquistamos a dimensão transdisciplinar no ensino de filosofia, tendo em conta que essas narrativas serviriam à muitas áreas de conhecimento. Mas, antes, propiciaram a todos nós, licenciandos, professores preceptores e coordenadores, grande aprendizagem para a vida.

 Completando nossas investigações sobre a educação das emoções, apresentamos o filme Divertidamente, na sala de multimídia (Figura 5), com o intuito de exibir os sentimentos e as emoções e como elas podem nos influenciar, sempre de modo mais inteligível e lúdico. Para concluirmos, realizamos em conjunto com as crianças a escrita dos sentimentos que as mais comoveram e o enredo de cada sentimento que escolheram.

 

              Figura 5 – Sala Multimídia – Assistindo Divertidamente.

                            Fonte própria dos autores.

 

Por fim, após discutirmos as emoções que provocaram autoconhecimento, iniciamos a terceira etapa.

Tratamos sobre a importância da amizade. Nós, os residentes, buscamos resgatar tudo o que já haviam aprendido tanto sobre a nomeação dos sentimentos, resgatando-os. Depois, os questionamos sobre o que seria amizade, se o comportamento deles, de uns para com os outros, eram de amizade ou não; se a amizade poderia durar a vida inteira, entre outros. Claramente, este exercício em roda lhes permitiu um processo de reflexão bem profundo, uma vez que muitos deles relataram que precisavam melhorar em algum aspecto sua relação de amizade.

Este momento proporcionou muita leveza: a partir da autorreflexão, alguns alunos pediram desculpas e disseram que melhorariam suas atitudes. O tema da amizade está presente desde a filosofia clássica, abarcando as dimensões social e existencial, essencial para o processo formativo dos alunos, destacando aqui a contribuição da filosofia como matéria por excelência transdisciplinar.

 

Momento 3 – Após as férias escolares, realizamos uma nova sondagem individual que envolvia não somente leitura e escrita, mas também operações básicas de matemática. Pudemos nos certificar que a maioria dos alunos não apenas aprendeu, mas se apropriou do conteúdo. Este terceiro momento, após a avaliação diagnóstica realizada no retorno das férias, também nos permitiu um adendo: relacionar as narrativas míticas às narrativas dos povos indígenas e suas tradições. Reservamos algumas aulas para esta articulação: resgatamos os mitos gregos e os comparamos à narrativa dos mitos do tupi-guarani, resgatando alguns elementos em comum. Registramos a escrita no caderno de novas palavras e descobertas. Novamente, encontramos aqui os processos interdisciplinares entre filosofia e pedagogia, pois acentuamos a escrita. Mas esta atividade requereu de todos nós uma pesquisa em antropologia, promovendo uma ampliação do nosso repertório conceitual.

Para finalizarmos esta etapa, desenvolvemos, junto aos alunos, a criação de ferramentas e utensílios usados em muitas tribos indígenas com argila. A experiência proporcionada pela Residência Pedagógica, em sua dimensão instrucional, é seminal para a qualidade do teor formativo – não apenas para os licenciandos, mas para todos: professores preceptores, coordenação e alunos.

Ao longo destes três momentos, pudemos evidenciar o aprimoramento do conteúdo específico de Pedagogia e de Filosofia para os licenciandos, e as atividades desenvolvidas manifestam os processos inter e transdisciplinares, atingindo os objetivos gerais e específicos do Projeto.

Com a Residência Pedagógica, abrimos a possibilidade de criarmos um ambiente seguro e participativo para todos, corroborado pelas palavras da profa. Marli André:

 

                                        O nível de participação aumenta quando a professora cria um espaço para os alunos relatarem as suas experiências pessoais. Parece que os tamborins esquentam e o samba aquece a rua quando os alunos conquistam esse espaço. O alunado disputa uma chance para falar de si, de sua família, de suas experiências no trabalho, no lazer, na escola (1991, p. 78).

 

Concluímos, nas reuniões entre residentes, professor preceptor e coordenadores, que, após a implantação do Projeto de Residência Pedagógica naquela sala do primeiro ano da EE Maria José, houve uma diferença qualitativa – os alunos aprenderam não apenas o conteúdo, mas o autoconhecimento: da sala de aula enfileirada, com uma aprendizagem mecânica, às dinâmicas em rodas de conversa; do autoritarismo do professor para o companheirismo, calcado em relações dialógicas. Esses momentos revelam que os objetivos foram atingidos.

Estes processos inter e transdisciplinares nos proporcionaram uma formação para docência diferenciada.

Aperfeiçoamos nossas habilidades de leitura e escrita, aprendemos uns com os outros. Nós, da filosofia, aprendemos muito sobre o processo de alfabetização, os da pedagogia sobre os conteúdos de filosofia.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Primeiramente, expusemos sobre Projeto da Residência Pedagógica da Universidade Presbiteriana Mackenzie, com o subprojeto “Senta que lá vem a história”, envolvendo os cursos de Pedagogia e Filosofia. Deve-se destacar o quanto este projeto da Residência Pedagógica foi inovador, uma vez que, enquanto licenciandos do curso de filosofia, nossa formação está direcionada para o ensino no Fundamental II e, mais especificamente, para o Ensino Médio.

O objetivo foi ousado: colocar alunos dos cursos de licenciatura para “dar vida ao Projeto”, ou seja, discentes que sem experiência anterior tiveram a oportunidade de vivenciar algo inovador e aprenderam a colocar os conceitos e teorias aprendidos nas salas de aula da Universidade em prática.

No começo, devo confessar que estava descrente de que pudesse dar certo, parecia algo muito distante. Contudo, a Residência Pedagogia me ajudou a aprimorar minhas habilidades e me vi comprometida com a educação e com o ensino. Estudar sobre as relações professor-aluno-conhecimento na teoria já é algo bem complexo, porém a prática é algo bem mais desafiador do que imaginei, algo que se agrava ainda mais quando se pede para ensinar filosofia para crianças do 1°ano do Fundamental que nem eram alfabetizadas.

Com certeza, este Projeto em muito agregou em meu processo formativo. Aprendi, além dos conteúdos específicos de filosofia, rudimentos do processo de alfabetização. Pude, em colaboração com os demais colegas, aumentar meu repertório conceitual, aprimorar a escrita, sensibilizar-me quanto à realidade dos alunos e de suas carências e necessidades, criar possibilidades de ensino, aprender sobre outras áreas do conhecimento. Tudo isso me levou a uma aprendizagem significativa.

Em diversos momentos, foi desafiador pensar em como iria tornar uma narrativa tão complexa como a dos mitos e ainda torná-la inteligível para aqueles alunos. Todavia, a cada adversidade, eu sabia que poderia contar com meu grupo e com a professora orientadora para superar todas elas.

Ainda me lembro da sensação de chegar à sala de aula e encontrar os alunos felizes por me verem, certos de que teriam uma aula diferente da rotina que estavam acostumados. André mostra isso muito bem no seguinte trecho: “O que acontece dentro da Escola é muito mais o resultado da cadeia de relações que constrói o dia a dia do professor, do aluno e do conhecimento e muito menos a atitude e decisão isoladas de um desses elementos” (ANDRÉ, 1991, p. 79).

A respeito disso, acredito que, quando essas crianças vivenciaram um ensino de qualidade, com aulas ministradas com todo amor e paixão, plena de respeito, com espaços dialógicos e de verdadeira escuta, houve o verdadeiro ensino. O letramento e a filosofia em todo instante de nosso projeto seguiram unidos. Mesmo quando a aula tinha o enfoque mais em filosofia, separávamos um momento para abordar a alfabetização, e vice-versa. Ressalto que, desde o início, prezamos por respeitar a bagagem cultural do aluno. Sempre abríamos espaço, para que, posteriormente, pudéssemos mostrar palavras novas e também para nos contarem do que haviam gostado, o que haviam feito no final de semana para identificarmos o pensavam, sentiam e ademais, aprendiam fora da escola, como matéria-prima às nossas reflexões.

Diante disso, fica explícito que:

                                  Os sujeitos, quando entram na Escola, não deixam do lado de fora aquele conjunto de fatores individuais e sociais que os distinguem como indivíduos dotados de vontade, sujeitos em um determinado tempo e lugar. Identificar essas características situadas e datadas é condição fundamental para se aproximar da "verdade" pedagógica (ANDRÉ, 1991, p. 80).

 

O Projeto fortaleceu em mim a convicção de que a docência, apesar das dificuldades, é uma das maiores ações que alguém pode oferecer a si mesmo para doar sentido à existência e propiciar o mesmo para outros.

Para encerramos, ao retomarmos os conceitos de transdisciplinaridade e interdisciplinaridade que discorremos no início do nosso artigo, não podemos deixar de mencionar que, se não é mais possível a integração de todas as ciências naquela visão totalizadora e de unidade, ao menos conseguimos, por alguns instantes, - por meio de um ensino baseado nessas dinâmicas apresentadas - reunir algumas áreas de conhecimento criando articulações interdisciplinares e, de modo explícito, transdisciplinares quando a arte em todas as suas frentes foram envolvidas. Atividades e relações que propomos durante estes e os outros momentos do Projeto.

 

REFERÊNCIAS   

ANDRE, Marli Eliza Dalmaso Afonso de. Questões do cotidiano na escola de primeiro grau. Didática e a Escola de Primeiro Grau. São Paulo: FDE, 1992. Disponível em: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/amb_a.php?t=019. Acesso em: 5 jun.2022.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/  Acesso em: 5 jun.2022.

 

CANÇADO, Márcia. Um estudo sobre a pesquisa etnográfica em sala de aula in Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, SP, v. 23, 2012. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/tla/article/view/8639221. Acesso em: 3 jun. 2022.

 

GUSDORF, Georges. Passado Presente Futuro da Pesquisa Interdisciplinar. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 121, 1995.

 

JAPIASSU, Hilton. A atitude interdisciplinar no sistema de ensino. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 108. 1992.

 

KOHLBERG, Lawrence. The Psychology of Moral Develpment – Essays on moral development. São Francisco:  Harper & Row Publishers, 1984.

LA TAILLE, Yves; OLIVEIRA, Martha Kohl de; DANTAS, Heloisa. Piaget, Vygotsky e Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. São Paulo: Summus Editorial, 1992.

LIPMAN, Matthew; SHARP, Ann. Margareth.  Filosofia e o desenvolvimento do raciocínio. In: A comunidade de Investigação e o raciocínio crítico. São Paulo: CBFC, 1995, p.17-32 (Vol. 2, Coleção Pensar).

PIAGET, Jean. Os procedimentos em Educação Moral. In: MACEDO.L. et al. (orgs.). Cinco Estudos de Educação Moral. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996. P.1-36

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.

SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

VALLE, Maria de Jesus Ornelas. A formação do leitor competente: Estratégias de Leitura. Gestão Escolar. Disponível em: http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/producoes_pde/artigo_maria_jesus_ornelas_valle. Acesso em: 8 jun. 2018

 

Notas

Agradecemos à Capes e à Universidade Presbiteriana Mackenzie pela oportunidade de desenvolvermos o Projeto de Residência Pedagógica.

 

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