Modos de pensar a escola: estudos de gênero e tempo livre para emancipação dos/as estudantes

 

Ways of thinking about school: gender studies and free time for student’s emancipation

 

Thays de Lima Seiffert

Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil

thayslimaseiffert@gmail.com

 

Recebido em 20 de maio de 2023

Aprovado em 19 de agosto de 2023

Publicado em 31 de agosto de 2023

 

RESUMO

O presente artigo nasce das discussões de uma narrativa desenvolvida em uma disciplina cursada no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria, cujo objetivo fora tensionar os modos de pensar a escola, da modernidade ao contemporâneo. Pretende-se colocar em destaque a importância das relações de gênero no campo filosófico-educacional, através de uma problematização de documentos que orientam as políticas públicas educacionais brasileiras, tais comoa Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o Referencial Curricular Gaúcho do Ensino Médio (RCG/EM). Apresenta um estudo a respeito das concepções de alienação, poder e corrupção presentes no livro Em Defesa da Escola: uma questão pública de Jan Masschelein e Maarten (2017), bem como se vale das críticas ultraconservadoras chamadas de “ideologias de gênero” no âmbito escolar como formas de pensar modos contemporâneos de alienação, poder e corrupção presentes nos processos de escolarização.

 

Palavras-chave: Gênero; Educação; Alienação; Poder; Corrupção.

 

ABSTRACT

The present article is born from the discussions of a narrative developed in a course taken in the Graduate Program in Education at the Federal University of Santa Maria, whose goal was to discuss the ways of thinking about school, from modernity to contemporary. It intends to highlight the importance of gender relations in the philosophical-educational field, through a problematization of documents that guide Brazilian educational public policies, such as the Common National Curriculum Base (BNCC) and the Gaúcho Curricular Reference for High School (RCG/EM). It presents a study regarding the conceptions of alienation, power, and corruption present in the book In Defense of School: a public issue by Jan Masschelein and Maarten (2017), as well as draws on the ultraconservative critiques called "gender ideologies" in the school setting as ways to think contemporary modes of alienation, power, and corruption present in schooling processes.

 

Keywords: Gender; Education; Alienation; Power; Corruption.

 

Para iniciar uma conversa: educação e gênero, uma forma de pensar a escola

A escrita deste artigo nasce da proposta de um Seminário do curso de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Santa Maria, denominada Modos de pensar a escola: da modernidade ao contemporâneo, a fim de colaborar especificamente com a minha pesquisa, que busca compreender as relações de poder, gênero e ensino de filosofia. Com isso, busco construir uma narrativa entre as relações de gênero no âmbito escolar desde a perspectiva do livro Em defesa da escola: uma questão pública (2017) dos autores belgas Jan Masschelein e Maarten Simons. 

            O livro em si não discute as relações de gênero na escola, no entanto, é um importante referente que nos possibilita a pensar aspectos importantes do que é o escolar e de como é possível incluir a questão acerca da diversidade de gênero nas suas configurações. Ao destacar as críticas feitas à escola como produtora de alienação, poder e corrupção, os autores do livro buscam rebater essas críticas e responder à pergunta sobre o que é o escolar. E a partir dos meus estudos, irei contribuir juntamente aos autores, considerando a temática de gênero, tecendo a importância e urgência do assunto. 

            De modo inicial, é preciso entender que a pesquisa em gênero ocorre a mais de trinta anos no Brasil, no entanto, é ainda muito recente, tanto sua presença como tema nos conteúdos escolares, quanto sua recorrência nos documentos legais que orientam a educação pública brasileira. Percebo, contudo, que cada vez mais a escola é um alvo de críticas (que já existiam), se tornando ainda mais frequentes, onde acusam de alienação, corrupção e de construir “ideologias de gênero”. Com isso, o referido texto irá defender uma escola a favor da diversidade das relações de gênero, problematizando as críticas feitas por movimentos ultraconservadores, que não se apropriam dos estudos existentes da temática, tecendo visões anticientíficas, dogmáticas, e ideológicas sobre ele.

Em resumo, os movimentos ultraconservadores têm se colocado tanto contra o gênero como “escolha individual” quanto contra “professores doutrinadores” que assujeitariam estudantes a desenvolver gêneros “não naturais”. A combinação dessa dupla e contraditória acusação contra os estudos de gênero e sexualidades, condensada no truque da “ideologia de gênero”, resulta em um emaranhado de afirmações que tem assombrado mães e pais, eleitoras/es, e promovido discursos de ódio contra qualquer debate que questione narrativas moralizantes (MATTOS, 2018, p.6).

 

Nesse sentido, será enfatizada a ideia do tempo livre[1]– utilizada pelos autores Masschelein e Simons (2017) – para que o que acontece na escola seja significativo, não se tornando apenas um ambiente de aprendizagem[2]. Também busca-se compreender a movimentação curricular, leis e diretrizes vigentes no Brasil que contribuem para as perspectivas de estudo e compreensão de gênero nas escolas, a fim de estabelecer esse movimento contra as acusações feitas.

 

 

Em defesa da escola e das discussões de gênero no meio escolar: uma questão pública

Em 2017, os autores belgas Maarten Simons e Jan Masschelein publicaram o livro intitulado Em defesa da escola: uma questão pública, onde defendem as concepções escolares, sendo elas: a materialidade, alunos/as e professores/as. Eles compreendem a escola como tempo livre, isso é, tempo livre para estudo, pois ela é uma fonte de conhecimento e experiência, como um “bem comum”. 

Defender a escola, na visão dos autores, é sobre todas as categorias escolares condenadas a partir de um sistema opressivo da elite, política e religiosa impostas sobre ela. É considerar a renovação da escola como um bem comum e público a partir da noção grega de escolar como Skholé – isto é, tempo-livre-para-o-pensamento, para o estudo e a prática escolar – é reinventar esse escolar para que não desapareça e encontrar maneiras de garantir um futuro escolar para as novas gerações vivenciarem o tempo livre. Não endossando a expressão escolar desescolarizada[3], e muito menos salvaguardar uma instituição velha, mas repensar e articular o escolar em vista desse futuro. Sendo assim, Masschelein e Simons (2017) enfatizam que é através da profanação e suspensão[4] que as crianças se tornam alunos/as, os/as adultos/as se tornam professores/as, e os conhecimentos sociais se tornam matérias escolares, constituindo o tempo livre e a igualdade escolar. 

Considerando o exposto, e atenta às críticas atuais endereçadas às escolas e aos/as professores/as como corruptores da juventude por ‘disseminar ideologia de gênero’, penso ser indispensável produzir considerações outras que assegurem a possibilidade de os sujeitos escolares ampliarem suas perspectivas sobre as questões de gênero e sexualidades, compreendendo-as como incontornáveis na defesa e na garantia de um pensamento plural, ético e comprometido com o respeito à diferença.

Por isso, creio ser fundamental defender a escola como espaço crítico de diálogo e estudo para que assuntos como esses que se inscrevem nas temáticas de gênero, possam ser debatidos de modo criterioso, rigoroso, responsável e assim, garantir que este assunto não recaia em uma “narrativa única” e fascista, conforme nos dá a pensar a escritora nigeriana ChimamandaNgoziAdichie (2009)[5]. A autora nos convoca a observar que a extrema direita ultraconservadora tende a operacionalizar as diferenças como desigualdades, combinando-as num discurso taxativo e único. Podemos pensar que ao deixar circular livremente, sem combate, discursos ultraconservadores denominados pela expressão ‘ideologias de gênero’ na sociedade, contribuímos para a manutenção de uma narrativa de história única sobre determinados corpos. “É assim que se cria uma história única: mostre um povo como uma coisa, uma coisa só, sem parar, e é isso que esse povo se torna. É impossível, falar sobre a história única sem falar sobre poder” (ADICHIE, 2019). Portanto, considero ser impossível falar sobre relações de gênero no ambiente escolar, sem tratar de relações de poder, de processos de alienação e corrupção a partir de ideias falaciosas e fantasiosas sobre o que seja gênero.

 

Das acusações à escola: alienação e consolidação de poder e corrupção

Durante toda a sua história escolar, a escola tem sido atacada e acusada de diversas coisas, ser uma instituição disciplinadora dos corpos, produtora de violências simbólicas, corrupção da juventude, não motivadora, isto é, uma instituição arcaica e atrasada, entre outras, mas quero me atentar especificamente a duas citadas no livro Em defesa da escola: uma questão pública (2017), a saber, alienação e consolidação de poder e corrupção.

A escola é, sem sombra de dúvidas, o espaço de tempo livre, é nela que os jovens desfrutam o espaço para suspensão e profanação, que proporciona o acesso a um mundo aberto, ou seja, não é tempo livre para os/as estudantes não fazerem nada, mas sim, a saída de seu próprio ambiente. Com isso, a partir da perspectiva descritiva das acusações, os autores Masschelein e Simons (2017) buscam desconstruir as críticas feitas à escola, a primeira acusação é a alienação, onde a escola é acusada de ser distante do mundo, não preparando os/as estudantes para a vida real e, não sendo capaz de prover uma educação ampla. A segunda crítica diz respeito à consolidação de poder e corrupção, os autores explicam que para os críticos[6], a escola abusa de seu poder, promovendo os próprios interesses, não assumindo a narrativa de igualdade, mas sim, a reprodução da desigualdade. As duas acusações acima demonstram a grande responsabilidade que é colocada sob a escola e professores/as, ela “precisaria” se estabelecer a favor de todas as necessidades da sociedade, sob o risco de tornar-se inútil e obsoleta.

Os autores não negam as acuações, no sentido de buscar mostrar que elas são falsas ou não existem. Argumentam, no entanto, que reduzir a escola a essas críticas é inadequado e imprudente dado as suas potencialidades. A afirmação acerca da “inutilidade” se sustenta em uma premissa totalmente social, voltada às ligações diretas ao mundo, ou seja, mercantiliza os jovens e a escola. No entanto, não se deve contribuir para a perpetuação dessas críticas feitas à escola, mas sim, mostrar que a partir da suspensão/dissociação de alguns laços sociais e familiares será possível a compreensão e apresentação do mundo de uma maneira mais envolvente e significativa, sendo (re)apropriada dos verdadeiros significados do que é e o que faz o escolar.

 

As construções de pensamento a favor da escola relatadas no livro Em defesa da escola: uma questão pública (2017) não engloba as relações de gênero, mas, compreende-se a partir delas e das proposições dos autores, a possibilidade de uma (re)estruturação, sendo assim possível a introdução dos estudos de gênero nas escolas. 

 

Algumas considerações sobre os estudos de gênero no Brasil

            As discussões do campo de estudos de gênero iniciaram em meados das décadas de 1950 e 1970, a partir da efervescência dos movimentos sociais pós segunda guerra. Já no Brasil foi a partir da década de 1990, através de iniciativas das áreas de conhecimento – história e sociologia –, no entanto, no terreno escolar é algo ainda muito recente. Além de que, as discussões vêm acompanhadas de um discurso anticientífico e absurdamente ideológico elaborado pela crescente direita ultraconservadora que se promete como combatente de ‘doutrinas de gênero que corrompem valores morais da boa família e do bom cidadão’. Daí a necessidade de apontar a riqueza dos estudos de gênero no Brasil e no mundo, para que seja possível tornar a escola um local seguro de construção do pensamento e de estudos de conhecimentos produzidos pelas diversas áreas do saber.

            Apesar das diversas críticas que apontam a escola como promotora da tal “ideologia de gênero”, é importante atestar cientificamente que a própria Constituição Federal de 1988 possui uma base legal a favor da educação para a igualdade de gênero, como é visto no trecho a seguir: 

O direito à educação para a igualdade de gênero, raça e orientação sexual e identidade de gênero tem base legal na Constituição Brasileira (1988), na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/1996), nas Diretrizes Nacionais de Educação e Diversidade, nas Diretrizes Curriculares do Ensino Médio (art. 16), elaboradas pelo Conselho Nacional de Educação, e na Lei Maria da Penha (2006). Esse direito também está previsto nos tratados internacionais de direitos humanos com peso de lei dos quais o Brasil é signatário: a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989), a Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino (1960), a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1968) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), entre outros (BRASIL, 2016).

 

Além dessa menção, o documento cita mais alguns marcos, como o artigo 2º do Plano Nacional de Educação (2014-2024), ainda vigente, que prevê a implementação de políticas educacionais destinadas a combater todas as formas de discriminações, assim como promover os direitos humanos e a diversidade na educação brasileira. 

Neste sentido, a escola passa a ganhar força e torna-se visada pelos pesquisadores e pesquisadoras que consideram a educação como um espaço pertinente para esses debates, tendo em vista que nesse espaço circulam diferentes sujeitos, e consequentemente, diferentes valores que acabam imbricados com as formas de viver as identidades (SILVA; et al, 2020, p.5). 

 

            É a partir desse movimento, que, a escola, vista anteriormente como um espaço hostil aos estudos de gênero, ou seja, um espaço distanciado das discussões e debates sobre o assunto, passa a ser modificada por professores/as e pesquisadores/as, a fim de promover a (re)apropriação e incorporação de novos conhecimentos. Desta forma, a escola passa a assumir o verdadeiro sentido de tempo livre aos/as estudantes para retirá-los da condição de recair no perigo de uma história única sobre diferentes fenômenos.

Os autores Masschelein e Simons (2017, p. 25) compreendem a formação como uma orientação para o mundo como ele é construído, isso significa que, além de atenção para com o mundo, também tem a atenção com a própria pessoa em relação a esse mundo. Portanto, essa formação diz respeito a uma constante saída de si mesmo e não numa ampliação do eu já existente; é a quebra da construção social imposta, “É um movimento extrovertido, o passo que segue uma crise de identidade” (MASSCHELEIN; SIMONS; apud SLOTERDIJK, 2011-2017, p. 26). Sendo assim, um exemplo dessa saída de si mesmo seria o esforço em prol do empoderamento feminino acerca da estrutura patriarcal construída sob os aspectos escolares. Como também da reeducação masculina acerca dos papéis e categorizações perpetuadas nesse sistema multimilenar. É então, a partir da movimentação extrovertida[7] nesse ambiente escolar de tempo livre, que essa crise de identidade aflora e, então, desperta essa saída de si mesmo. 

 

Herança cultural de gênero: o conservadorismo da tal “ideologia de gênero” nas escolas

No livro Problema de gênero: feminismo e subversão da identidade (2017), Judith Butler compreende que essa ‘herança cultural do gênero’ é baseada nas estruturas binárias apresentadas como uma linguagem racional universal, isso quer dizer que, a relação de continuidade e coerência é “naturalizada” pela heterossexualidade compulsória estabelecida pela sociedade, incluindo a escola. 

Nessa perspectiva, falar de gênero não significa simplesmente falar “de mulher”, mas de relações de poder, materiais e simbólicas, que envolvem todos os seres humanos. Significa viabilizar e problematizar os modos de significação dos corpos, dos jeitos de ser, de andar, de falar; questionar os discursos biologizantes que tentam encontrar a essência genética ou hormonal dos comportamentos, assim como a própria ciência produz discursos normatizadores e reguladores da sexualidade e do gênero (FOUCAULT, 1990, apud BORTOLINI, 2011 p. 29).

A partir do avanço nas pesquisas sobre gênero, se desencadeia também movimentos conservadores – especificamente no Brasil – se compreende que esse tema despertou o ataque às temáticas de gênero nas escolas, promovendo o que chamam de “ideologia de gênero”. Os discursos cercados de críticas defendem que a escola está “impondo ideias e valores a estudantes contra a vontade de suas famílias” (MATTOS, p. 3, 2018).  

[...] todas essas críticas partem da premissa de que a educação e a aprendizagem devem ter ligações claras e visíveis com o mundo, de modo como este é experienciado pelos jovens, e com a sociedade num todo. Discutiremos, no entanto, que a escola deve suspender ou dissociar certos laços com a família dos alunos e o ambiente social, por um lado, e com a sociedade, por outro, a fim de apresentar o mundo aos alunos de uma maneira interessante e envolvente (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 6, grifo meu). 

 

Dois termos importantes citados acima: suspender e dissociar, e adicionando mais um: profanar. Os autores defendem a suspensão/dissociação e a profanação como conceitos a favor do que realmente é o escolar e o tempo livre; a escola não é um serviço a favor do capital e muito menos um serviço familiar. Nessa perspectiva, as relações de gênero e seu estudo buscarão o ato de desapropriação do que a sociedade ultraconservadora impõe. O papel da escola e do/a professor/a, não é moldar os/as alunos/as aos seus antecedentes sociais e culturais, mas procurar encontrar ferramentas e métodos de “[...] libertar os alunos, isto é, para permitir aos alunos se separarem do passado [...] e do futuro [...] e, portanto, se dissociarem temporariamente de seus “efeitos””(MASSCHELEIN; SIMONS; apud PENNAC, p. 17). Sendo assim, a escola é um meio sem um fim determinado. 

 

Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e Referencial Curricular Gaúcho do Ensino Médio (RCG/EM) acerca dos estudos de gênero

Ao pensar os currículos escolares em busca de práticas educacionais emancipatórias, é necessário estabelecer aquelas que libertam e carregam diálogos, movimentando a formação dos/as alunos/as. Na BNCC 2018[8] e no RCG/EM[9], a inquietação a partir das relações de gênero é fundamental para apresentar reflexões acerca disso. 

            No artigo Gênero e Sexualidade na BNCC: uma análise sob a perspectiva freireana (2020) os autores fazem um comparativo entre a BNCC do ensino infantil, fundamental e médio em busca do termo “gênero”, que, das seiscentas (600) páginas, aparece em cento e onze (111) delas. Especificamente no ensino médio a palavra aparece na área de linguagens como ‘gêneros textuais, artísticos, do discurso...’ e na área ciências da natureza como ‘gêneros textuais’. 

Já na BNCC específica do Ensino Médio decidi fazer a mesma pesquisa, de cento e cinquenta e quatro (154) páginas, o termo gênero aparece em apenas vinte e três (23) delas e é citada cinquenta (50) vezes. Apenas na página cento e vinte e três (123) gênero é entendido como categoria de identidade, no entanto, ela é representada como algo a ser explorado no ensino fundamental e que, depois, no ensino médio, seria aprofundada. Em outras palavras,

No Ensino Fundamental, a BNCC se concentra no processo de tomada de consciência do Eu, do Outro e do Nós, das diferenças em relação ao Outro e das diversas formas de organização da família e da sociedade em diferentes espaços e épocas históricas. Tais relações são pautadas pelas noções de indivíduo e de sociedade, categorias tributárias da noção de philia, amizade, cooperação, de um conhecimento de si mesmo e do Outro com vistas a um saber agir conjunto e ético. Além disso, ao explorar variadas problemáticas próprias de Geografia e de História, prevê que os estudantes explorem diversos conhecimentos próprios das Ciências Humanas: noções de temporalidade, espacialidade e diversidade (de gênero, religião, tradições étnicas etc.); [...] No Ensino Médio, a ampliação e o aprofundamento dessas questões são possíveis porque, na passagem do Ensino Fundamental para o Ensino Médio, ocorre não somente uma ampliação significativa na capacidade cognitiva dos jovens, como também de seu repertório conceitual e de sua capacidade de articular informações e conhecimentos. (Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio, 2018, p. 123, grifo meu).

 

Mudando o termo, busquei por ‘mulher’ no mesmo documento e encontrei o termo na página 48 na qual prevê, a partir dos itinerários formativos, um núcleo de estudos para desenvolver pesquisas, fóruns, debates etc. sobre juventudes, diversidades, sexualidade, mulher e trabalho. No entanto, após isso, tanto o termo mulher como o termo gênero não são mais mencionados como objetos de estudo. 

            No Referencial Curricular Gaúcho do Ensino Médio (RCG/EM) de duzentos e oitenta e sete (287) páginas, o termo gênero aparece em apenas vinte e seis (26) páginas e sendo citado trinta e oito (38) vezes. No próprio sumário já é possível encontrar no tópico 2.4 temas contemporâneos e transversais o subtópico 2.4.10 saúde, sexualidade e gênero, e se mostra bastante discutível a favor do estudo, compreensão e respeito das relações de gênero em várias páginas do documento. Mantendo o padrão da pesquisa da BNCC, busquei pelo termo mulher no RCG/EM e encontrei vinte (20) menções,sendo elas: no tópico 2.4.9 violências contra a mulher; a promoção dos direitos humanos a favor de pautas abrangentes de parcelas específicas da população; a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres; como também nas disciplinas de história e sociologia. Chamou-me atenção que no componente filosofia, nada aparece sobre o assunto, lamentavelmente.

            A partir de uma breve análise dos documentos citados anteriormente, percebe-se que na BNCC, as relações de gênero não são abordadas a fim de estudos, a única menção do termo mulher é localizada no documento apenas como ‘núcleo de estudos’ de itinerários formativos acerca de fóruns, debates e outros. Já no currículo estadual do Rio Grande do Sul (RCGEM) existe uma diferença discrepante nas possibilidades de estudos de gênero e nas percepções acerca da mulher. Nesse sentido, pensar práticas docentes e escolares a favor do estudo e da compreensão das relações de gênero se mostram necessárias para que acabe com as concepções errôneas de “ideologias de gênero”, e isso, só será possível com a implementação dos estudos de gênero nos cursos de graduação em Licenciatura, que ampliarão as discussões acerca da cultura vigente.   

 

Para seguir pensando os estudos de gênero: uma questão de atenção ao mundo

Até aqui foi possível compreender a importância de contemplar a escola a partir de sua quintessência[10], atravessando as concepções sociais, políticas e religiosas que não devem usurpar o escolar. Simons e Masschelein (2017), estabelecem essa importância e relembram todos os aspectos que estão sendo esquecidos, ou melhor, desescolarizados[11]. A intenção do livro não é manter uma escola nos moldes antigos, ou seja, “[...] o objetivo não é o de salvaguardar uma velha instituição (...)” (MASSCHELEIN, SIMONS, 2017, p. 14), mas entender que a história do formato das escolas fugiu do que é realmente o escolar como tempo livre, se tornando apenas uma instituição de aprendizagem, ou seja, “treinando” os/as alunos/as para a empregabilidade.  Mas com as novas tecnologias e/ou novas demandas, talvez seja possível implementá-las sem perder seus aspectos escolares necessários para a formação dos/as alunos/as, dando-lhes tempo livre para pensar.

A partir dessas delimitações, compreender as definições de suspensão e profanação, é garantir que exista a libertação momentânea do passado e da pressão do futuro a esses/as alunos/as. E pensar as relações e estudos de gênero nesse sentido, é pensar o espaço escolar como um lugar aberto e não transitório, é experienciar o escolar através de uma visão de confronto “[...] com as coisas públicas disponibilizadas para uso livre e novo” (MASSCHELEIN, SIMONS, 2017, p. 20). É a partir dessa ampliação do tempo livre que acontece a quebra da construção social imposta, ou seja, a – crítica à ideologia de gênero; o feminismo; o patriarcado; a heteronormatividade etc. – e então transformá-la em alguma coisa, e essa coisa posta sobre a mesa se torna um objeto de estudo ou de prática, exigindo atenção e interesse da própria pessoa com o mundo. Sendo assim, a instituição escolar não deve ser um reflexo de uma sociedade que deseja impor-lhe algo; a escola deve manter sua autonomia de modo que seus/as alunos/as possam vir a reconhecer as problemáticas sociais e políticas sem que conceitos determinantes sejam impostos. Assim, a escola poderá incentivar o desenvolvimento de virtudes necessárias para que cada um/a estabeleça suas próprias opiniões e que aprenda a respeitar o próximo. Por fim, considerar de modo adequado e responsável os estudos de gênero é uma questão de atenção ao mundo e ao tempo presente.

 

Referências

 

ADICHIE, Chimamanda N. O perigo de uma história única. Trad. Julia Romeu, Companhia das Letras, 2019. Disponível em: https://www.mpba.mp.br/sites/default/files/biblioteca/direitos-humanos/enfrentamento-ao-racismo/obras_digitalizadas/chimamanda_ngozi_adichie_-_2019_-_o_perigo_de_uma_historia_unica.pdf. Acesso em: 20 maio 2023.

BRASIL. Ministério da Educação. Ação educativa: gênero e educação. Folder, São Paulo, 2016. 

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.  

BORTOLINI, Alexandre. Revista Espaço Acadêmico, n. 123, agosto, 2011. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/13953/7591. Acesso em: 20 dez. 2022.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 22ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022. 

MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. Em defesa da escola: uma questão pública. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2013. 

MATTOS, A. R. Discursos ultraconservadores e o truque da “ideologia de gênero”: gênero sexualidade em disputa na educação. Psicologia Política, 18(43), p. 573-586, 2018. 

RIO GRANDE DO SUL. Referencial Curricular Gaúcho: Ensino Médio. Secretaria de Estado da Educação: Porto Alegre, 2019. 

ROSA, Cleir S.F. Relações de gênero no currículo de uma escola estadual com alto índice de desenvolvimento da educação básica. Dissertação (mestrado em educação), Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, 2016. Disponível em: https://site.ucdb.br/public/md-dissertacoes/19549-cleir-silverio-ferreira-rosa.pdf. Acesso em: 10 jan. 2023.

SILVA, et al. Gênero e sexualidade na BNCC: uma análise sob a perspectiva freireana. Revista Diversidade e Educação, v. 8, n. 2, p. 152-176, jul./dez., 2020.

 

 

Notas



[1]Skholéem grego: tempo livre, descanso, adiamento, estudo, discussão, classe, escola, lugar de ensino. [...] é importante ressaltar que a escola é uma invenção (política) específica da pólis grega e que a escola grega surgiu como uma usurpação do privilégio das elites aristocráticas e militares na Grécia Antiga. [...] É claro que, desde o início, havia diversas ocupações para restaurar conexões e privilégios, para salvaguardar hierarquias e classificações, mas o principal e, para nós, o mais importante ato que a “escola faz” diz respeito à suspensão de uma chamada ordem desigual natural. Em outras palavras, a escola fornecia tempo livre, isto é, tempo não produtivo, para aqueles que por seu nascimento e seu lugar na sociedade (sua “posição”) não tinham direito legítimo de reivindicá-lo(MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 13).

[2]De acordo com Masschelein e Simons (2017) os ambientes de aprendizagem são aqueles que conferem a escola como um ambiente de validação, estabelecendo um selo de qualidade, ou seja, [...] a escola confere uma prova de certificação e qualificação dos resultados deaprendizagem e das competências adquiridas.” (p. 9) Sendo assim, só importa os resultados e não em como, onde ou se foram adquiridos. 

 

 

 

 

 

 

[3] “Desescolarizar” na visão dos autores do livro é estabelecer continuamente o roubo do caráter escolar, ou seja, usam táticas para domar a escola de fora pra dentro e de dentro pra fora.

 

[4]Masschelein e Simons (2017) compreendem que tempo, lugar e coisas profanas referem-se ao que se é desligado das situações habituais, não é ocupado por significados específicos. Já a suspensão é a “permissão” temporária de deixar seu passado. Na escola, a profanação e a suspensão ocasionam a saída do cotidiano da sociedade através da atenção e interesse, em vez da motivação. 

 

[5] O perigo de uma história única é uma adaptação da primeira palestra proferida pela escritora nigeriana no TED Talk em 2009. Dez anos depois, o vídeo é um dos mais acessados da plataforma, com mais de 18 milhões de visualizações. Sendo possível acessá-lo em: <http://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=pt-br>. (Nota da editora brasileira Companhia de Letras).

 

[6] Os críticos citados pelos autores em seu livro são aqueles que carregam ideais que a escola é incapaz de preparar os jovens para a vida real.

 

[7]Aqui, o eu não adiciona ao conhecimento previamente adquirido, e isso acontece precisamente porque o eu está, na verdade, no processo de ser formado. O eu do aluno está, assim, sendo suspenso, dissociado: é um eu colocado entre parênteses ou um eu profano e que pode ser formado, ou seja, pode se dar a ele uma forma ou configuração específicas.

 

[8]Em 1988 é promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil que prevê, em seu Artigo 210, a Base Nacional Comum Curricular. Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. Em 1996 É aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que em seu Artigo 26, regulamenta uma base nacional comum para a Educação Básica. Desde então tiveram diversas reuniões e regulamentações até chegar na BNCC de 14 de dezembro de 2018.

 

 

 

 

 

[9]O Governo do Estado do RS, através da Secretaria de Educação - SEDUC, tem como incumbência a construção de seu Referencial Curricular do Ensino Médio. Para tanto, optou pela seleção, via edital público, de professores da rede estadual de ensino, para protagonizar a ação de redação, no ano de 2020. O Referencial Curricular Gaúcho se traduz em um caminho a ser seguido baseado em pressupostos teóricos e práticos, consideradas as condições, as realidades em que se encontram as redes de ensino no atendimento às demandas sociais. Constitui-se em guia que indica objetivos, sugere linhas gerais unificadoras, aponta fragilidades e recomenda parcerias, formas de enfrentamento e superação das insuficiências do sistema educacional.

 

[10]Aspectos escolares “tradicionais” tanto materiais como a carteira/mesa, livros, lousa/quadro, como também o verdadeiro sentido do escolar que é tirar o(a) aluno(a) de seu próprio mundo e então desfrutar o tempo livre para conhecer um mundo novo, cercando-se de momentos que os arrebatem para assumirem a suspensão, libertação e profanação.  

 

[11]Termo utilizado pelos autores Masschelein e Simons (2017) diz respeito ao termo inglês deschoolers que significa oposição a um currículo estabelecido a fim de separar a educação da instituição escolar. 

 

 

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