O uso do texto filosófico na educação básica: é possível ler Kant?

 

The use of philosophical text in high school: is it possible to read Kant?

 

Felipe Dossena

Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil

dossenafelipe@gmail.com

 

Recebido em 10 de março de 2023

Aprovado em 19 de junho de 2023

Publicado em 27 de junho de 2023

 

RESUMO

É possível trabalhar com textos clássicos da filosofia no atual contexto das escolas públicas brasileiras? Se sim, como fazer uso desses textos? Quais as possibilidades e os limites para nossas pretensões, enquanto professores de filosofia, quanto ao uso do texto filosófico? Importantes teóricos do ensino de filosofia no Brasil, tal como Lidia Maria Rodrigo, Renata Aspis e Silvio Gallo, defenderam que os textos filosóficos não apenas podem e devem ser trabalhados em sala de aula, mas ainda que tais textos devem ocupar papel central no ensino da disciplina. Cabe refletir sobre essa proposta a partir da realidade na qual estamos hoje inseridos, pretensão do texto que se segue e cujo objetivo é discutir as possibilidades e os limites do uso do texto filosófico a partir do relato de minha experiência no estágio em filosofia, que foi realizado em uma turma do segundo ano do Ensino Médio em uma escola pública da cidade de Santa Maria, RS.

 

Palavras-chave: Ensino de filosofia; filosofia; ensino médio; texto filosófico.

 

ABSTRACT

Is it possible to use classic philosophical texts in the current context of Brazilian public schools? If so, how can we make use of these texts? What are the possibilities and the limits for our pretensions, as philosophy teachers, regarding the use of the philosophical text? Important scholars of philosophy teaching in Brazil, such as Lidia Maria Rodrigo, Renata Aspis and Silvio Gallo, have defended that philosophical texts not only can and should be used in the classroom, but also that such texts should occupy a central role in the teaching of the subject. It is worth reflecting on this from the reality in which we are currently inserted, the intention of the text that follows and whose objective is to discuss the possibilities and limits of the use of the philosophical text in the light of my own experience in the internship in philosophy, which was carried out in a second year high school class in a public school in the city of Santa Maria, RS.

 

Keywords: Philosophy teaching; philosophy; high school; philosophical text.

 

Introdução

 

            “Acreditamos que em muito pouco estaremos aproximando os alunos da filosofia”, escrevem Renata Aspis e Silvio Gallo (2009, p. 94), “se nos restringirmos aos textos de livros-manual ou a nossas exposições sobre o pensamento desse ou daquele filósofo”. Para os autores, o ensino de filosofia na educação básica deve necessariamente passar pelo trabalho com os textos filosóficos. Ou seja, os alunos e alunas devem ter o contato direto a partir da leitura dos clássicos da história da filosofia. Na mesma direção, Lidia Maria Rodrigo (2009) defende a centralidade do texto filosófico no ensino da disciplina, alegando ser indispensável para a promoção da reflexão filosófica e garantia da especificidade da disciplina.

            Uma série de questões emergem daí. Antes de tudo, é realmente possível o trabalho com textos clássicos da filosofia no atual contexto das escolas públicas brasileiras em que, por exemplo, há um espaço restrito para a filosofia, desvalorização das humanidades e no qual muitos estudantes chegam ao Ensino Médio ainda com dificuldades de leitura e interpretação de textos? Diante disso, podemos nos perguntar se os alunos e alunas dessas escolas possuem as capacidades requeridas suficientemente desenvolvidas para a compreensão de textos filosóficos complexos. É possível trabalhar textos de filósofos notadamente difíceis como Kant, por exemplo? Se sim, como trabalhar esses textos? Como selecioná-los? De que modo tais textos podem despertar o interesse dos estudantes? O trabalho com esses textos deve estar no centro da disciplina como defendem os autores supracitados ou deve ser compreendido mais como complemento do estudo de determinada teoria ou autor? Em suma, quais as possibilidades e os limites, hoje, do trabalho com os textos filosóficos na educação básica pública no Brasil?

O presente texto visa discutir essas questões à luz da minha própria experiência no estágio em filosofia, que foi realizado em uma turma do segundo ano do Ensino Médio em uma escola pública da cidade de Santa Maria, RS. Para tanto, o texto a seguir é dividido em três seções. Primeiro, apresento os aspectos metodológicos que guiaram o planejamento e o trabalho com o texto filosófico em aula. Na sequência, descrevo a experiência efetiva ocorrida em sala de aula. Por fim, reflito, de maneira mais geral, sobre as possibilidades e os limites do uso de textos filosóficos clássicos no atual contexto da educação básica brasileira.

 

A escolha do texto filosófico

 

            Durante meu período de docência no estágio, uma das unidades didáticas trabalhadas dedicou-se a introduzir e discutir problemas e conceitos da área comumente chamada de Ética Animal. A metodologia empregada foi a do ensino de filosofia a partir de problemas, tomando a história da filosofia e o texto filosófico como referenciais para a discussão desses problemas. Desse modo, a unidade didática pautou-se pelo seguinte problema filosófico principal: quais nossos deveres morais para com os animais não humanos? Para tratar deste problema geral, outros problemas mais específicos foram abordados ao longo das aulas, tais como: o que fundamenta a igualdade humana? O que é especismo? O que é igualdade?

            Antes de chegar ao problema filosófico, contudo, é necessário despertar nos alunos e alunas o interesse pela temática a ser desenvolvida. Para tanto, a primeira aula da unidade didática foi dedicada à sensibilização. Conforme desenvolvido por Aspis e Gallo (2009, p. 76), essa etapa inicial tem por objetivo “afetar os alunos para o posterior problema”. Trata-se de trazer elementos que estejam mais próximos do universo cultural dos estudantes e/ou conteúdos com os quais estejam familiarizados de alguma forma, a fim de estabelecer uma aproximação e interesse pelo tema. Assim, a aula teve início com a transmissão do curta-metragem Salve o Ralph, de direção de Spencer Susser (THE HUMANE SOCIETY OF UNITED STATES, 2021). Em seguida, deixei alguns minutos para que os alunos expressassem suas opiniões acerca dos experimentos científicos com animais não humanos. Depois disso, apresentei três versões modificadas do dilema do bonde nas quais os alunos tinham que escolher entre permitir que o bonde matasse cinco porcos ou desviá-lo para matar um único porco, na primeira versão, ou desviá-lo para matar um cachorro ou um ser humano nas outras duas versões.

            A discussão das questões permitiu chegar, na aula seguinte, ao problema acerca do fundamento da igualdade humana, processo que Aspis e Gallo (2009) chamam de problematização. O pressuposto que guiou o desenvolvimento da unidade didática foi o de que antes de discutir se faria sentido falar em igualdade para animais não humanos, seria necessário compreender o próprio conceito de igualdade e o que fundamenta a ideia de igualdade humana. Foi então que teve início o trabalho com o texto filosófico, um trecho da Fundamentação da metafísica dos costumes (FMC), de Kant. Uma vez posto o problema a partir das indagações no presente - como diria Lidia Rodrigo (2009) -, o texto filosófico emergiu como objeto de investigação a fim de encontrar uma possibilidade de resposta.

            Para a escolha do texto utilizei os quatro critérios indicados por Lidia Rodrigo (2009): (a) ser um texto relativamente curto; (b) não apresentar grandes dificuldades semânticas e conceituais; (c) abordar temática de interesse dos alunos; (d) ser do domínio do professor. Assim, foram selecionados trechos das páginas 68, 69 e 77 da FMC (KANT, 2007). Quanto ao primeiro critério, os trechos foram compilados de modo que possuíssem uma coesão interna e formassem um texto suficientemente curto para que pudesse ser relido diversas vezes durante a aula. A despeito das dificuldades conceituais presentes em qualquer texto de filósofos como Kant, o texto foi selecionado de modo a abordar conceitos diretamente relevantes para a unidade didática e que pudessem ser explicados e discutidos durante a aula, de modo que o texto, embora curto, trazia conceitos como fim em si, meio, valor condicional, valor absoluto, inclinações, seres racionais, pessoas, coisas, preço, dignidade. Quanto ao interesse dos alunos, o objetivo foi despertar o interesse pelo problema acerca da igualdade humana e buscar compreender no texto a resposta de Kant para o problema. Por fim, trata-se de um texto com o qual tenho certa familiaridade que me permitia maior facilidade para explicá-lo.

            Desse modo, o objetivo ao trabalhar o texto filosófico foi introduzir o que podemos chamar de doutrina da dignidade humana, ideia segundo a qual os seres humanos distinguem-se do restante da natureza animal por possuírem uma dignidade, um valor absoluto fundamentado em nossa natureza racional. De acordo com essa concepção, seres humanos são fins em si, enquanto animais não humanos, compreendidos por Kant como seres irracionais, possuem apenas um valor condicional, um preço, o que permite que sejam utilizados como meios. “Os seres”, escreve o filósofo, “têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas”, de modo que apenas estes são “objecto do respeito” (KANT, 2007, p. 68).

 

A experiência efetiva

 

            A turma na qual estagiei continha 13 alunos e 6 alunas, contabilizando 19 ao total. Sendo uma turma do segundo ano do Ensino Médio do período da manhã, todos(as) tinham entre 16 e 17 anos de idade e haviam tido pouco ou nenhum contato com a filosofia nos anos anteriores de suas formações, o que se explica em parte por terem realizado o primeiro ano do Ensino Médio remota e precariamente durante a pandemia de COVID-19. Agora, então, era necessário suprir essa lacuna na formação e avançar os conteúdos de filosofia, tendo para isso apenas um período semanal de 45 minutos.

Cheguei na escola minutos antes do início da aula a fim de organizar a sala de vídeo, local para onde levaria os alunos. Iniciamos a aula com uma breve retomada do conteúdo trabalhado na semana anterior, ou seja, os problemas suscitados pelas versões modificadas do dilema do bonde. A seguir, assistimos a um vídeo de 2min da famosa gorila Koko, conhecida por ter aprendido um amplo vocabulário da língua de sinais dos EUA (KOKOFLIX, 2011). O vídeo foi utilizado a fim de formular o problema acerca do fundamento da igualdade humana a partir da reflexão de se seres humanos possuem direitos morais que animais tais como Koko não possuem. Nas discussões sobre o aborto, por exemplo, o foco normalmente é a questão de se o feto é ou não um ser humano, ou em que momento passa a ser um ser humano. O pressuposto nesse caso é o de que seres humanos possuem direito à vida. Contudo, por que acreditamos que seres humanos possuem direito à vida e animais não humanos não possuem? Será razoável que fetos humanos tenham direito à vida e animais como a gorila Koko não? Essas questões foram levantadas a fim de direcionar a atenção para a leitura do trecho da Fundamentação da metafísica dos costumes, de Kant.

            O texto foi disponibilizado de maneira impressa para os alunos e sentamos com as cadeiras em círculo para realizarmos leitura conjunta. Abri espaço para que alguém, de modo voluntário, lesse o texto em voz alta enquanto os demais colegas acompanhavam a leitura. Após a primeira leitura, perguntei, em tom um pouco jocoso, se alguém havia entendido alguma coisa. Alguns riram e revelaram que não. Utilizei um momento para falar sobre como é normal entender pouco ou nada ao ler pela primeira vez determinados textos clássicos da filosofia e que o segredo para a compreensão passa por reler diversas vezes o texto. Solicitei então que outro aluno lesse o texto em voz alta. Em seguida, reli em conjunto com eles trecho por trecho, solicitando que destacassem os conceitos-chave do texto que eu próprio indicava à medida em que realizava o esclarecimento conceitual. Relemos mais algumas vezes discutindo o significado das partes do texto e expliquei as teses do autor. O planejamento da aula reservava para os minutos finais um esquema sintetizando a tese principal do texto que seria passado no quadro e copiado pelos alunos. No entanto, o sinal bateu tão logo fui ao quadro para passar.

            Considero que essa aula teve razoável êxito naquilo que se propôs. Houve um bom envolvimento por parte dos estudantes. Alguns se engajaram de forma mais ativa, demonstrando real interesse em compreender o texto. A dinâmica da leitura conjunta, relendo diversas vezes o texto, permitiu que quase todos os alunos e alunas lessem em voz alta pelo menos uma das partes do texto. Essa atividade ressaltou a grande diferença na habilidade de leitura entre eles. Em geral, aqueles que possuem maior hábito de leitura demonstram maior facilidade para ler e compreender o texto, enquanto aqueles que não costumam ler com frequência demonstram grande dificuldade para ler em voz alta, assim como para compreender aquilo que lêem. Embora o nível de compreensão do texto tenha variado entre os alunos, todos tiveram a experiência de ler um texto filosófico clássico - um dos objetivos centrais da aula.

            Ao final do bimestre, solicitei aos alunos que escrevessem o que acharam da experiência e se consideram que textos filosóficos clássicos devem ser lidos em sala de aula. Cito a seguir algumas das respostas.

Achei interessante. Nunca tinha lido um texto filosófico clássico [...]

Achei a experiência bastante interessante, acho que devemos ler textos clássicos nas aulas de filosofia, mas também textos não muito conhecidos de autores não tão famosos. Além de textos não tão complexos e de fácil compreensão.

Os textos filosóficos realmente são bem difíceis de entender na primeira lida, mas a aula foi muito boa e com a leitura em conjunto ficou mais claro o que o texto queria passar.

Sim acho muito importante pois não temos uma noção de como são textos filosóficos, e acabamos aprendendo muito mais pois meio que saímos do "padrão".

Bom acho bem importante pois nos ensina a ler e tentar entender os textos que em sua maioria são bem complexos, pois acho que recebemos os textos de uma forma meio traduzida pelos professores aonde não precisamos nos esforçar para entender então sim acho importante até mesmo para criarmos a nossa própria opinião sobre o filósofo e etc…

Não é o tipo de aula que mais gosto, gosto de aulas com mais coisas para ver, como vídeos e imagens. Porém, eu acho que esse tipo de aula é muito bom de vez em quando, o ponto é que aulas deste tipo todos os dias acabam se tornando cansativas mais rápido do que outras, porque leitura (ainda mais uma leitura de difícil compreensão) cansa bastante.

            De maneira geral, os feedbacks recebidos endossam a avaliação de que a aula foi razoavelmente bem-sucedida. Por outro lado, alguns alunos enfatizaram a dificuldade do texto e expressaram a perspectiva comum de que a leitura de textos costuma ser cansativa e por vezes entediante, de modo que o trabalho com textos precisa encontrar soluções para manter a atenção dos estudantes. Diante disso e de outros fatores que caracterizam a educação básica brasileira, tal como o espaço restrito destinado à filosofia nos currículos, o que podemos realisticamente esperar alcançar ao trabalhar textos filosóficos? De que modo e com que frequência a leitura de textos pode ou deve ocupar a aula de filosofia? Apresento algumas reflexões acerca desses problemas na seção a seguir.

 

As possibilidades e os limites do uso do texto filosófico

 

            Conforme já introduzido, teóricos importantes do ensino de filosofia no Brasil tais como Lidia Rodrigo (2009) e Renata Aspis e Silvio Gallo (2009) defendem uma certa centralidade do trabalho com textos filosóficos no ensino da disciplina. Para a primeira autora, só será possível assegurar a especificidade do saber filosófico na educação básica a partir da

centralidade [do] texto filosófico. A leitura de alguns trechos ou excertos de textos filosóficos deve ocupar um lugar central no ensino, visto que somente esse convívio propícia, para além da mera informação, um efetivo exercício da reflexão filosófica, mediante o contato direto com o pensamento de determinado autor, conhecendo o interesse que o move em direção à pesquisa, suas indagações, bem como os argumentos que fundamentam e justificam suas teses (RODRIGO, 2009, p. 26).

Na mesma direção e com uma proposta mais específica, Aspis e Gallo defendem uma metodologia segundo a qual a investigação filosófica, etapa após a sensibilização e problematização, deve partir do estudo ativo dos textos filosóficos. Mais do que isso, sustentam que aulas explicativas sobre teorias e autores só devem ocorrer após o estudo autônomo dos textos.

Nossa ideia é que depois de iniciar com a sensibilização ao problema, passado pela fase de problematização, quando as questões já estiverem no poder dos alunos, o próximo passo é o de começar o estudo filosófico para dar conta do problema levantado. E este estudo se dá através dos textos filosóficos. Partimos do princípio de deixar os alunos terem uma experiência direta com os textos filosóficos. [...] A nós não parece bom que os professores dediquem-se a explicar os textos ou que ofereçam textos-comentário sobre a obra de um pensador. Por quê? Porque a explicação é reducionismo, é a imposição de uma determinada leitura, imposição do olhar de quem explica. A explicação é um outro texto, é um discurso inventado pelos professores sobre o texto em questão, assim como os textos didáticos dos livros-manual de filosofia, os textos-comentário (ASPIS; GALLO, 2009, p. 94).

            Embora considere valiosa a proposta de Aspis e Gallo, estou cético quanto à possibilidade de desenvolvê-la no atual contexto da educação básica pública no Brasil. Em primeiro lugar, há um grande desafio para promover a leitura autônoma dos estudantes, seja de textos filosóficos ou textos de qualquer outra natureza. Conforme relatei, a leitura conjunta realizada ressaltou a dificuldade na própria leitura por parte de alguns alunos. A ausência de hábitos de leitura de uma parcela significativa dos estudantes já havia sido conhecida mediante questionário aplicado e analisado no início do ano letivo. E, claro, a turma na qual estagiei não é nenhuma exceção quanto a isso. Ao contrário, comparando com outras turmas da mesma escola, se tratava de uma das turmas em que havia mais alunos que cultivavam o hábito da leitura.

Além disso, uma outra barreira para a promoção da leitura autônoma diz respeito ao interesse dos alunos. Evidentemente, a metodologia de Aspis e Gallo leva esse fator em consideração: a sensibilização e problematização são justamente pensadas para que seja instigado o interesse do aluno pela investigação filosófica e, portanto, pelo texto. No entanto, parece necessitar de uma dose demasiada de otimismo para acreditar que essa sensibilização será suficiente para fazer com que os alunos se envolvam autonomamente e por um tempo mais longo com textos complexos que eles não irão entender na primeira lida, sobretudo para aqueles alunos que não estão habituados ao estudo autônomo. Nesse contexto, temos ainda um dilema: solicitaremos que os alunos leiam esses textos em sala de aula ou que leiam previamente em casa?

Aspis e Gallo recomendam a segunda alternativa. Como exemplo, sugerem que poderia ser fornecido aos alunos “trechos de "Meditações" de Descartes, talvez na íntegra a primeira meditação e pedir que cada um leia, em casa, de uma semana para outra”, de modo que a próxima aula “seria dedicada a deixar que os alunos expusessem seus entendimentos da leitura feita” (2009, p. 95). Embora não tenha aplicado essa dinâmica durante meu estágio, tenho a sólida convicção de que se o fizesse a maior parte dos alunos não iriam ler o texto em casa. Será possível que haja sensibilização em aula capaz de mudar a rotina e os hábitos de parcela significativa dos estudantes de modo a fazê-los ler ativamente textos filosóficos em seu tempo livre fora da escola (tempo esse que muitas vezes não é exatamente livre, na medida em que diversos alunos do Ensino Médio já trabalham, seja de modo formal ou informal)? Pois, vejam bem, a proposta de Aspis e Gallo não é eventualmente solicitar a leitura de textos filosóficos, mas sim que a leitura dos textos seja a regra e rotina no ensino da disciplina.

E o que dizer da primeira opção, ou seja, solicitar aos alunos que leiam o texto em sala de aula? Essa alternativa me parece mais promissora, mas também esbarra em um grave problema: o espaço limitado da filosofia no currículo escolar. No contexto no qual estagiei, a disciplina de filosofia tem apenas uma única aula de 45 minutos por semana. Em um bimestre, no qual é necessário realizar atividades avaliativas e fechar notas, temos de 8 a 10 aulas. Descontando algumas aulas para sensibilização, problematização e atividades avaliativas, como trabalhar as teorias e autores de uma unidade didática a partir da proposta de Aspis e Gallo, segundo a qual seria indispensável a leitura autônoma dos textos antes de qualquer aula explicativa sobre o tema? Se fossemos aplicar a proposta dos autores com as leituras sendo realizadas em sala de aula, acredito que seria possível trabalhar uma única teoria ou um único autor por bimestre. Ao final do ano, os alunos teriam tido contato com quatro ou cinco teorias e autores.

 O novo contexto que se apresenta a partir da Reforma do Ensino Médio no Estado do Rio Grande do Sul é ainda pior. Agora, as turmas de 2° Ano do Ensino Médio terão zero minutos de Filosofia por semana, assim como as turmas de 3° Ano. A Filosofia, enquanto disciplina, estará presente apenas nas turmas de 1º Ano com um período semanal. Aqui cabe uma observação pessoal. Em minha experiência durante o estágio, tive a oportunidade de observar aulas de filosofia nos três anos do Ensino Médio e, durante minha experiência no Programa de Residência Pedagógica, tive a oportunidade de dar aulas em turmas do 3º Ano. Minha avaliação foi a de que, de modo geral, há um ambiente mais propício para o desenvolvimento do pensamento filosófico em graus maiores de complexidade à medida em que os alunos avançam no Ensino Médio. Ou seja, no último ano do Ensino Médio há nitidamente uma maior maturidade de reflexão e argumentação por parte dos estudantes, o que permite com que possamos pensar em avançar mais com os textos filosóficos nessa etapa do ensino, enquanto na fase inicial do Ensino Médio poderemos encontrar maiores dificuldades.

Diante da proposta de centralizar o ensino da disciplina nos textos filosóficos, há ainda um outro problema de natureza metodológica. Como selecionar textos compatíveis com essa proposta? Lidia Rodrigo (2009) fala em “trechos” e “excertos” para serem lidos e propõe como um dos critérios principais para a seleção dos textos que eles sejam relativamente curtos. Estou de acordo com os critérios sugeridos pela autora e, conforme relatei, foi neles que me baseei para selecionar o texto de Kant. No entanto, se pensamos o uso dos textos a partir da proposta de Aspis e Gallo (2009) será necessário utilizar textos que não apenas possuem uma coesão interna, mas que apresentam e explicam por si só as teses ou teorias cujo objetivo é abordar na unidade didática, o que dificilmente será possível a partir de trechos e excertos. A seguir um exemplo para que fique mais claro o que estou dizendo.

A partir dos critérios propostos por Lidia Rodrigo, selecionei trechos das páginas 68, 69 e 77 da Fundamentação da Metafísica dos Costumes para a leitura em aula. Os trechos foram selecionados e organizados de modo que pudessem ser lidos como um texto que possuía uma coesão interna. Porém, justamente por serem trechos, o texto continha conceitos (tais como vontade, inclinações, fim em si, meio) e teses pressupostas (tal como a doutrina da dignidade humana) que não seria razoável esperar que os alunos pudessem compreender a partir da leitura exclusiva desse texto. Não por qualquer consideração acerca da capacidade de leitura e interpretação dos estudantes, mas simplesmente pelo fato de que para compreender tais conceitos e teses seria necessário ler toda a Fundamentação que precede essas páginas - ou quase isso.

            Os problemas para a implementação da proposta de Aspis e Gallo, portanto, são muitos. Apenas um período de 45 minutos por semana, a ausência do hábito de leitura e do estudo em casa ou autônomo de uma parcela significativa dos estudantes, a ausência de alunos nas aulas, a necessidade de avançar as unidades didáticas e desenvolver as avaliações, a dificuldade para selecionar textos que sejam ao mesmo tempo suficientemente curtos e sem pressupostos que impeçam a possibilidade da compreensão autônoma das teses ou teorias contidas no texto. Nada disso, porém, implica que devemos abrir mão de promover a leitura autônoma dos estudantes. A capacidade de compreender e se envolver com textos filosóficos, ou mais especificamente, a capacidade de ler filosoficamente, deve ser almejada. No entanto, acredito que a realidade na qual estamos hoje inseridos impõe limites mais modestos para nossas pretensões.

            O principal limite, acredito, é deixar de lado a pretensão de centrar o ensino da disciplina nos textos filosóficos, sobretudo como formulado na proposta de Aspis e Gallo na qual a investigação filosófica em todas as unidades didáticas deveria partir da leitura autônoma dos estudantes para só depois haver aulas expositivas e explicativas. A despeito disso, as possibilidades para o trabalho com os textos filosóficos são diversas. “Se as dificuldades e os limites são grandes”, escreve Lidia Rodrigo (2009, p. 23) ao comentar sobre o ensino da filosofia, “não se deve deixar de levar em conta a possibilidade de algum avanço”. É desta maneira que devemos encarar o uso do texto filosófico.

Em primeiro lugar, a própria experiência de ler um texto filosófico clássico é uma das atividades mais valiosas que o estudo da filosofia nessa etapa do ensino poderá propiciar aos alunos. Mesmo para aqueles alunos que compreenderão pouco do texto lido, o próprio exercício da leitura será significativo e marcará o contato direto com o pensamento do filósofo ou filósofa. Como relatou um aluno, a leitura em aula é importante “pois não temos uma noção de como são textos filosóficos”, mas como enfatizou outro estudante “esse tipo de aula é muito bom de vez em quando, [mas] aulas deste tipo todos os dias acabam se tornando cansativas mais rápido do que outras”.

A sugestão, então, é a de que o texto filosófico poderá ser utilizado para introduzir ou exemplificar determinadas teorias e teses, assim como servir de objeto de análise filosófica.  Se por um lado não parece possível centrar nos textos o ensino de todos os conteúdos ao longo do ano letivo, por outro parece desejável e importante abrir espaço no cronograma para a inserção de alguns textos filosóficos. O modo de abordagem dependerá do próprio texto, dos alunos e do tempo disponível, mas a eventual leitura conjunta se apresenta como uma boa alternativa. A partir dela é possível criar um ambiente propício para a leitura filosófica, desenvolver a capacidade de leitura dos alunos e debater os tópicos do texto.

 

Considerações finais

 

            Em suma, é possível ler Kant na educação básica? Sim, bem como é possível e desejável ler muitos outros filósofos e filósofas. No entanto, é preciso compreender os limites dessa leitura e do uso de textos clássicos em sala de aula. No atual contexto do ensino de filosofia na educação básica pública brasileira, estou cético quanto à possibilidade de centrar o ensino de teorias e autores na leitura dos textos. Há uma série de fatores envolvidos aí, dentre os quais destaca-se a formação dos estudantes e o espaço limitado destinado à filosofia na educação básica, mas soma-se também dificuldades metodológicas dessa proposta.

            A despeito dos limites, porém, há o horizonte de possibilidades. Não devemos abrir mão do uso de textos filosóficos clássicos no ensino da disciplina. Seja pela leitura conjunta ou por quaisquer outras estratégias adotadas, o contato direto com os filósofos e filósofas será sempre valioso. A medida na qual poderemos avançar no uso desses textos dependerá do contexto particular no qual estivermos inseridos. Como escreveu Lidia Maria Rodrigo (2009, p. 22), “as metas podem ser extremamente modestas, desde que sejam significativas”.

 

Referências

 

ASPIS, Renata Lima; GALLO, Silvio. Ensinar filosofia: um livro para professores. São Paulo: Atta Mídia e Educação, 2009.

 

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007.

 

KOKOFLIX. Koko Responds to a Sad Movie. Youtube, 19 jun. 2011. Disponível em: https://youtu.be/EWxCM6llL60. Acesso em: 15 jun. 2023.

 

RODRIGO, Lidia Maria. Filosofia em sala de aula: teoria e prática para o ensino médio. Campinas, SP: Autores Associados, 2009.

 

THE HUMANE SOCIETY OF UNITED STATES. Salve o Ralph - Curta com Rodrigo Santoro. Youtube, 16 abr. 2021. Disponível em: https://youtu.be/AjdMtLF0Z6w. Acesso em: 15 jun. 2023.

 

 

 

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