Filosofar com projeto de vida: por uma vida estudantil autêntica

 

          Philosophying with a life project: for an authentic student life

 

Joabe Tavares Pereira

Professor mestre pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Caicó, RN, Brasil.

professorjoabe@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-5768-8905

 

Ana Paula Medeiros de Mariz

Professora mestre pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Caicó, RN, Brasil

anapaulamariz@gmail.com – https://orcid.org/0000-0001-9153-876X

 

 

Canta uma canção bonita

Falando da vida, em Ré maior

Canta uma canção daquelas

De filosofia e mundo bem melhor

Canta uma canção que aguente

Essa paulada, e a gente

Bate o pé no chão

Canta uma canção daquela

Pula da janela, bate o pé no chão.

 

(OSWALDO MONTENEGRO)

Recebido em 23 de agosto de 2022

Aprovado em 03 de janeiro de 2023

Publicado em 18 de abril de 2023

 

RESUMO: Neste artigo pretendemos investigar acerca da implementação e do lugar pedagógico do componente Projeto de Vida na grade curricular das escolas regulares paraibanas a partir do ano letivo de 2022, e principalmente, os ingredientes filosóficos os quais carregam esse componente. Faremos estreitas correlações entre o Projeto de Vida e a filosofia da Razão vital proposta pelo filósofo espanhol Ortega y Gasset. Inicialmente, nos remontamos aos aspectos gerais do componente supracitado, seus marcos legais e perspectivas. Na segunda parte, trataremos dos aspectos pedagógicos e, finalmente, pensar uma proposta para a realização deste Ensino. Para isso, contamos primariamente com a leitura de Caminhar e Construir (2020), dos autores MELLER e CAMPOS, e também da leitura de O que é filosofia? (2016b), do filósofo espanhol. Por fim, indica-se o papel fundamental do estudante quando o tema é sua própria formação. Para nossas análises, fizemos leituras analíticas e revisão bibliográfica das obras de Ortega y Gasset diretamente relacionadas à Educação em paralelo com os autores Meller e Campos e seu livro didático de Projeto de Vida: Caminhar e construir (2022), além de observações empíricas em salas de aulas na cidade de Patos-PB. Esta experiência aqui vivenciada demanda das primeiras impressões do componente Projeto de vida na grade curricular das escolas regulares paraibanas a partir de 2022. Consideramos que, resguardados os aspectos fundantes do componente, aliados aos princípios da filosofia da Razão vital, tal componente tem algo a contribuir na formação autêntica de jovens e adolescentes que frequentam nossas escolas. Contudo, se não atentarmos para esses aspectos vitais, correremos o risco de levarmos mais um penduricalho para o nosso já comprometido modelo de Ensino.

Palavras-Chave: Projeto de Vida; Ensino; Filosofia; Pedagogia.

 

ABSTRACT: In this article we intend to investigate about the implementation and pedagogical place of the Life Project component in the curriculum of regular schools in Paraíba from the academic year of 2022, and especially the philosophical ingredients which carry this component. We will make close correlations between the Life Project and the philosophy of vital reason proposed by the Spanish philosopher Ortega y Gasset. Initially, we go back to the general aspects of the aforementioned component, its legal frameworks and perspectives. In the second part, we will deal with the pedagogical aspects and, finally, think of a proposal for the realization of this Teaching. For this, we rely primarily on the reading of Walk and Build (2020), by the authors Meller and Campos, and also on the reading of What is philosophy? (2016b), by the Spanish philosopher. Finally, the primary role of the student is indicated when the subject is their own formation. For our analyses, we carried out analytical readings and a bibliographic review of Ortega y Gasset works directly related to Education in parallel with the authors Meller and Campos and their textbook Life Project: Walking and Building (2022), in addition to empirical observations in classrooms classes in the city of Patos-PB. This experience lived here demands the first impressions of the Life Project component in the curriculum of regular schools in Paraíba from 2022. We believe that, safeguarding the fundamental aspects of the component, allied to the principles of the philosophy of Vital Reason, this component has something to contribute in the authentic formation of young people and adolescents who attend our schools. However, if we do not pay attention to these vital aspects, we will run the risk of adding another trinket to our already compromised teaching model.

Key words: Life Project; Teaching; Philosophy; Pedagogy.

 

Introdução

Percebemos o quão tem-se tornado banal criticar o tipo de Ensino que jovens e adolescentes, frequentadores dos bancos escolares da educação básica, vêm recebendo nas duas últimas décadas. Essa percepção ocorre justamente pelo esvaziamento de sentido vital dos programas educativos que constituem a base de nosso defasado modelo de Educação. Essa defasagem no Ensino ofertado ao longo dos últimos anos tem gerado, e até mesmo agravado, uma já sentida crise[1] em nossa Educação básica. Sentimos, como professores que somos da rede básica da Educação no Estado da Paraíba, que alguma coisa se espera desse novo componente curricular que ora se instala no seio de nossas escolas regulares.

Como um aceno de reação contrária a esta situação que claudica nosso modelo educacional, foi proposto e já implantado a esperada reforma em nosso Ensino denominada, Novo Ensino Médio, e, com ele, novas perspectivas de alteração no já carcomido antigo sistema que tínhamos outrora. Na esteira deste novo modelo, se implantou um novo componente curricular: o Projeto de Vida. Como parte dos itinerários formativos[2], este novo componente tem mobilizado as mais diversas temáticas das diferentes áreas do conhecimento. Essas alterações no programa curricular de nossa Educação básica, têm estreitas relações com aquilo que se propõe na BNCC[3], e principalmente, a observação e materialização das competências e habilidades previstas e estabelecidas nesse documento mencionado.

Mas o que esse recente componente curricular tem em comum com o ensino de filosofia? Quais contribuições têm a filosofia na construção de projetos vitais de nossos educandos? Essas inquietações são as razões das trilhas que percorreremos nas páginas a seguir, sempre em função de desvelar o que ora investigamos, quer dizer, trazer à superfície o que está latente e velado. E, de fato, o que se espera de uma investigação filosófica é seu comprometimento na busca amorosa pela verdade.

 

Filosofia e projeto de vida

Quando nos deparamos com os princípios fundantes do componente Projeto de Vida, damo-nos conta das aproximações desse saber com a filosofia da Razão vital proposta pelo filósofo espanhol Ortega y Gasset. A primeira e fundamental destas afinidades é justamente o que o filósofo chama de realidade radical e primária, quer dizer, a vida como categoria expressa para quaisquer análises que se pretendam filosóficas. Em O que é filosofia? (2016b), nosso filósofo dirá, “Viver é o que fazemos e o que nos acontece” (ORTEGA Y GASSET, 2016b, p. 219). Isto implica dizer que a vida – a vida de cada um, é o primeiro atributo decisivo no qual nos encontramos dando conta disso, e sabendo-se existindo no mundo que nos afeta pelas circunstâncias nas quais estamos.

Com esta noção de filosofia, intuímos que projetar-se a partir do critério minha vida, ganha relevância em termos de se encontrar sentido existencial em estudar temas e conhecimentos que tenham a ver com a vida daqueles que se submeterão às aulas deste novo componente curricular. Ademais, temos mais esmero em realizar aquilo que para nós tem sentido de ser, do contrário, seria como se fôssemos convidados à uma ficção. E é nesta perspectiva que ganha significado o perfil do professor que lecionará este componente. Do modo como foi instituído, o Projeto de Vida pode ser ensinado por professores e professoras de qualquer área do conhecimento. Mas, haveria algum aspecto no perfil do professor que implica algum comprometimento em ministrar este componente? Ora, se partimos da ideia de que a minha vida é a categoria da qual devem partir qualquer análise que radique o sentido da existência humana, logo nos vêm à mente que, para ministrar este componente, o perfil do professor deve se coadunar com esta perspectiva categorial, quer dizer, minha vida, deve ser o ponto de partida para as compreensões que advirão destas análises que comporão os ingredientes do componente Projeto de Vida.

Quando fazemos menção ao conceito minha vida, estamos nos referindo aos aspectos da vida biográfica, muito mais que biológica. Neste sentido, buscamos compreensão do quem sou eu? O filósofo Ortega y Gasset nos adverte, que o sentido primário da ‘vida’ não é biológico, mas, sim biográfico, e isto se constitui como tarefa a fim de realizarmos aquilo que outrora projetamos. Deste quem sou eu?, demanda a compreensão de quem somos no mundo, do autoconhecimento analisados a partir do contexto em que já nos encontramos. “À medida que nos relacionamos com os outros e com o mundo, acumulamos experiências e constituímos nossa personalidade” (MELLER; CAMPOS, 2020, p. 17). Nisto somos novelistas da própria vida, autores da própria história – protagonistas da própria vida.

 

Perspectivas fundantes do projeto de vida

Os aspectos primordiais que estão na base do componente Projeto de Vida, segundo os documentos norteadores contidos na BNCC, são de natureza psicológica, sociológica e filosófica. Dentro dessas perspectivas, as competências e habilidades devem servir como farol que irá guiar as práticas educativas. Em suma, as competências são conceitos e procedimentos que têm por finalidade resolver os problemas da vida cotidiana dos indivíduos; as habilidades são capacidades na prática, cognitivas, sociais e emocionais. É pertinente ressaltar que é imprescindível o compromisso ético do professor ministrante de Projeto de Vida, uma vez que, os aspectos que estão na base deste componente, e que aqui já foram mencionados, fazem parte da vida de cada um e que neste limite da prática pedagógica, pede-se uma contribuição dos educadores e educadoras no respeito aos valores, crenças e ideias que cada estudante traz consigo, afinal, ninguém chega como uma tábula rasa na escola, mas, ao contrário, adentra nesse espaço formativo enquanto um sujeito carregado de história, circunstâncias e perspectivas que já o constituem. Neste sentido, “Conhecer a si mesmo é o primeiro passo para a construção de um projeto de vida”. (MELLER; CAMPOS, 2020, p. 14).

Dentro dessas perspectivas fundantes do Projeto de Vida, o estudante é instado a saber de sua responsabilidade no mundo que se traduz em fazer escolhas. Nesta compreensão, este estudante precisa do entendimento do que pensar, como agir e estar. Daí, “É importante saber lidar com as consequências de nossas escolhas” (MELLER; CAMPOS, 2020, p. 22). Estamos fazendo escolhas a toda hora, às vezes, nem nos damos conta disso, mas, precisamos refletir acerca das escolhas que fazemos, pois viver é estar em constante tensão de escolher entre fazer isto ou aquilo, e disso já não temos escapatória, “[...] o viver nos aparece como um sentirmo-nos forçados a decidir o que vamos ser” (ORTEGA Y GASSET, 2016b, p. 226). Este dilema em constantemente ter de fazer escolhas são ocupações muito mais voltadas para o que vamos ser do que para aquilo que ora somos, isto indica o caráter de futurição[4] que é a vida, e que deste caráter já não temos como o ignorá-lo. Pensar em elaborar projeto de vida se constitui “[...] em construir um futuro desejado” (MELLER; CAMPOS, 2020, p. 26). Para que o estudante seja oráculo da própria consciência na hora de tomar decisões que o irão afetar na vida, é preciso ter clareza nas ideias que compõe seu repertório vital, que se traduz em reflexão daquilo que ele anseia para si, dando conta de que é responsável por aquilo que escolhe. Ter de escolher a todo instante, e, ao mesmo tempo, sermos responsáveis pelo que escolhemos, “Isso dá à nossa existência um cariz terrivelmente dramático” (ORTEGA Y GASSET, 2016b, p. 223). Isso é o que constitui o drama da aventura da nossa existência – fazer escolhas – e é por esse aspecto dramático de nossa vida que se pede uma contribuição da Escola e de seus programas educativos para jovens e adolescentes frequentadores de bancos escolares. Nossa existência se constitui em fazermos escolhas “[...] e é porque esse fazer realiza algo do projeto geral da vida que decidiu para si” (ORTEGA Y GASSET, 2022, p. 139, grifo nosso). Assim, viver é uma contínua construção do que seremos.

 

O projeto vital que nos constitui

Neste sentido, buscamos melhor definição acerca do que seja nosso Projeto de vida; o que ele carrega de sentido na vida escolar, e o que a filosofia tem em comum pedagogicamente com este componente. Recorremos à filosofia da Razão vital nos moldes definidos por Ortega y Gasset (2016b) em busca de elementos que nos auxiliem neste entendimento. E nesta tarefa de realizar a própria vida, o homem elabora seu projeto vital porque a vida lhe foi dada, mas, não foi-lhe dada pronta. Portanto, cabe ao homem refletir sua existência a fim de que sua vida não seja uma tragédia ou aviltamento radical.

 

Portanto, sou forçado a raciocinar, a pesar mentalmente, a avaliar cada uma das possibilidades abertas pela circunstância à minha frente, para identificar a possibilidade que me convém. Isso eu faço cotejando cada possibilidade com minha imagem total de vida; por isso ninguém vive sem projeto. Não vivi sem medir as consequências de cada um de meus passos na estrutura total da minha vida, ou seja, não vivo sem o uso da razão (KUJAWSKI, 1994, p. 63).

 

Nesta perspectiva, percebemos com clareza, que a vida funciona como razão e interpreta a si mesma dando razão disso. E é a partir desta Razão vital que o homem constrói seu projeto vital, quer dizer, aponta sua existência para o futuro por meio daquilo que escolhe ser no porvir. Estas escolhas se dão no limite das circunstâncias que nos rodeiam. Lembra Ortega y Gasset (2019b, p. 32), “Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo não me salvo”. Esta famosa sentença do filósofo é carregada de drama existencial, pois ela nos coloca circunscrito às possibilidades remotas das quais dispomos, e ainda nos obriga a lutarmos para superarmos estas mesmas circunstâncias a nosso favor. E é dentro deste limite que o homem se projeta a fim de realizar sua vocação ontológica de ser no mundo, ou em termos orteguianos, é a realização autêntica daquilo que temos que fazer. “A vida, bem o sabemos todos, dá muito o que fazer. E o mais grave é conseguir que o fazer escolhido em cada caso seja, não um qualquer, mas o que é preciso fazer – aqui e agora –, que seja nossa verdadeira vocação, nosso autêntico algo a fazer” (ORTEGA Y GASSET, 2017, p. 67). A vocação ontológica é o compromisso do homem com o seu projeto vital revestido da autenticidade de ser quem de fato ele é. Quanto mais somos fieis à nossa vocação, mais autênticos somos, quanto menor nosso empenho em nossa vocação tanto mais terá deformidade o nosso destino.

Convém-nos lembrar, que consoante a filosofia da Razão vital, a vida é uma problemática que precisamos resolver, não há como adiar nem delegar sua saída a terceiros, isto nos obriga a construirmos aquilo que nos norteará, como bússola, a nossa existência – nosso Projeto de Vida. E, este projeto, precisa se realizar a partir de ideias claras, sem ornamentos ou recheados de ingredientes fictícios que em nada colaboram nessa faina de cumprir com esta tarefa de que é o viver. As ideias claras dão ao homem uma certa segurança onde apoiar os pés em solo firme, pois não temos como viver sem certas ideias, “[...] o homem vive sempre a partir de algumas ideias determinadas, que constituem o chão onde apoia sua existência (ORETEGA Y GASSET, 1999, p. 99). Essas ideias são aquelas que nos dão uma clara indicação do que é o mundo, quem é o outro que me circunda e dos valores que nos compõe.  Estas ideias essenciais à vida, o filósofo denominou de Cultura – um sistema de ideias vitais que cada época possui e que determina o espírito do tempo (ORTEGA Y GASSET, 1999). O homem não pode prescindir de suas ideias vitais sob pena de sua vida se tornar um aviltamento ou uma tragédia. A propósito, as ideias vitais são aquelas que o homem precisa para que ele saiba a que se ater quando as circunstâncias assim exigirem.

Dentro desta perspectiva, percebemos que o homem vive constantemente em busca de um lugar onde possa apoiar seus pés, e para tanto, volta-se ao seu projeto vital; mas o que fazer quando o chão de sua existência é movediço? Como ter clareza e firmeza em tempos de dramática insegurança? Em Vida Líquida (2007), o filósofo Zygmunt Baumann nos dá algumas pistas do mundo efêmero no qual estamos lançados, um mundo onde nada parece ter solidez, tudo se derrama e se espalha com tanta fluidez, que não nos damos conta do que importa de verdade. “Em suma: a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante” (BAUMAN, 2007, p. 08). As alterações que se dão no mundo são tão rápidas, que nos dão pavor pensar qualquer coisa que se pretenda no porvir, pois não sabemos o que nos virá no ato seguinte, daí a premente necessidade das ideias claras e vigentes, e das quais não podemos prescindir. E numa vida de tão escassas ideias claras às quais deveríamos nos agarrar a fim de saber a que se ater, a Escola surge como um lugar privilegiado a fim de que estas ideias sejam disseminadas e ensinadas, de certos vitais para a vida do estudante.

 

Toda escola é um local de ensino e aprendizagem de conhecimento, veiculação de parte da cultura produzida pela humanidade, aquilo que foi selecionado para ser transmitido às novas gerações. Nesse aspecto, a escola é o local de defesa da tradição, de uma parte do foi herdado do passado. Porém, isso não significa que esse espaço é essencialmente conservador, no entendimento negativo da palavra, como algo retrógrado (MELLER; CAMPOS, 2020, p. 102).

 

Ora, se a Escola é esse lugar de transmissão da Cultura, aqui entendido como um sistema de ideias claras, então essa mesma escola precisa coadunar seu Ensino com aquilo que é vital para a vida dos estudantes, afinal, as ideias claras das quais fez referência Ortega y Gasset são aquelas ideias vivas para que o homem não só viva, mas viva bem à altura de seu tempo, e, nesta realização, é que se pede uma contribuição daqueles que se envolvem com este componente curricular, que de modo tão apropriado e com todos os riscos, chamamos de Projeto de Vida.

E, é neste sentido, que o perfil do professor ou da professora que encaram o desafio de ministrar este componente é tão relevante. Os temas que perpassam pelo Projeto de Vida instigam-nos a uma dimensão filosofante, ainda que o professor ou professora não sejam egressos da Filosofia. Com isto queremos intuir da necessidade dos cuidados em nossa atuação para que não desemboquemos no mundo meramente da autoajuda, da terapia otimista ou nas inclinações mercadológicas futuras. Aqui reclamamos por dimensão filosofante na busca pelo que ainda não nos foi dado, a busca pela totalidade das coisas e a natureza teorética deste saber. Não se trata de qualquer saber. Trata-se de uma teoria que se debruça sobre a vida humana tomada em sua acepção biográfica – que é um devir que se constitui problema.

Quando tratamos de aspectos da vida, sobretudo os do porvir, temos presente nos percalços que advirão, dos imponderáveis possíveis e das contingências que nos limitam e interferem em nossa vocação. Isto posto, diremos que nem sempre nos realizaremos tal qual desejávamos, temos que contar com a possibilidade em frustrar nossas pretensões e, isto deve ser levado em conta. A vida não é uma flecha previsível da qual sabemos para onde vai atirar. “Esse caráter súbito e imprevisto e essencial na vida” (ORTEGA Y GASSET, 2016b, p. 224). Seria diferente se pudéssemos contar de antemão o que nos ocorreria, mas, a vida não combina conosco acerca do vindouro como uma flecha prevista de bambu combinado, muito pelo contrário: a vida “[...] tem algo de pistola que disparam em nós à queima-roupa” (ORTEGA YGASSET, 2016b, p. 224). Fica claro, segundo o filósofo, que fomos arremessados na vida sem nossa prévia anuência ou garantia de êxito, pois a vida não é algo pré-fixado por mais seguros que estejamos, viver é apenas uma possibilidade. Neste sentido, vemos com um certo ceticismo aquilo que o componente curricular chama de Metodologia de êxito, uma vez que, a vida nos aparece sempre aberta, sujeita às alterações e circunstâncias, o que não significa que não devamos projetar-se, apenas que contamos com o imponderável.

 

Projetar dentro das circunstâncias

Aqui é oportuno reiterar o que nos diz Ortega y Gasset, (2019b, p. 32), “Eu sou eu e minha circunstância e se não a salvo não me salvo eu”, fica claro que o sujeito já não se separa das coisas do mundo que o circundam, quer dizer, temos que achar sentido no mundo que nos rodeia. Do mesmo modo isso afeta a Escola, pois ela só terá justificativa de existir se o estudante vir sentido em frequentá-la. Mas já nos admoesta o filósofo espanhol (2019b): o homem rende muito de seu potencial quando é plenamente consciente de sua circunstância. Na faina de projetar sua vida de modo autêntico, deve o homem não apenas conhecer bem suas circunstâncias, como também superá-las. Isso nos indica nossa condição de estar no mundo: um ser que faz escolhas. Mas estas escolhas estão sempre no limite de nossas possibilidades, ou em termos orteguianos, circunstanciais. O que nos remete diretamente à responsabilização das escolhas feitas nas trilhas de nossa existência.

Para me salvar, preciso também salvar minha circunstância (2019b), o que se traduz em quem sou eu, o lugar onde moro, aquilo que me afeta em meu dia a dia. Minha circunstância é metade daquilo que me constitui, não há que se falar do eu desprendido das coisas. Não, eu e minha circunstância estão correlatamente juntas como duas metades da laranja formam um único fruto. E é dentro dessa perspectiva circunstancial que o estudante elabora seu projeto vital, dando razão disso, protagonista de seu próprio enredo, consciente de sua condição no mundo, sabedor da responsabilidade que traz suas escolhas e a par de que viver é o que faço no mundo, e reunidas essas condições, pensar sua vida autenticamente, sem esquecer-se de que nem sempre realizaremos no porvir aquilo que ora projetamos.

Uma vez sabedor de sua circunstância – o que se dá pelo afã de conhecer quem sou eu e quais minhas possibilidades, o estudante inicia seu projeto vital. Muitas dessas possibilidades que vislumbramos poderão se realizar em nossa fase adulta ou, ao menos, resíduos daquilo que esperávamos. “É na vida adulta que damos continuidade ao projeto de vida que começamos a construir durante a juventude [escolar]” (MELLER; CAMPOS, 2020, p. 66). A Escola é, pois, esse lugar de privilégio na formação de futuros sujeitos que protagonizaram a própria vida, cumpriram com sua vocação ontológica – requisito para uma vida autêntica – e sabedores do que almejam para si. Em um mundo líquido em que não encontramos solo firme onde pôr os pés a fim de saber a que se ater, ter um componente escolar que auxilie o estudante pensar sua própria vida a partir de sua circunstância, já seria uma vital contribuição do espaço escolar para aqueles que se sentem náufragos e que não encontram sentido naquilo que realizam nos bancos escolares.

Não poderíamos passar ao largo da experiência circunstancial que atravessamos nos últimos dois anos, com a pandemia da Covid-19, uma real situação jamais vista por gerações, mas, que afetou as escolas do mundo todo. Nesse tempo, vivemos uma angústia sem precedentes. As Escolas tiveram que adaptar e aprender a se ater com as ferramentas e técnicas disponíveis. Assim, o estudante que ora tem contato com o componente Projeto de Vida, encontra um aceno de farol pelo qual possa nortear sua existência, sabendo que tal componente é uma realização dele próprio, pois o que se espera do estudante é que ele seja novelista do próprio enredo, dando conta de sua vida e de suas circunstâncias, e assim, superar angústias, prejuízos e perdas causadas pela pandemia que vivenciamos. Registramos aqui, que os atuais estudantes do componente Projeto de Vida das escolas regulares do Estado da Paraíba, são os mesmos estudantes afetados pela pandemia da Covid-19, e que cursavam o Ensino Fundamental nesse ínterim de Ensino remoto que, deveras, afetou a qualidade do Ensino, gerou angústias nos estudantes e desvelou-se as já insinuadas indiferenças dos estudantes com o tipo de formação que recebem, o que gera ainda mais a urgente necessidade de se voltar a encontrar sentido no que se faz na Escola, e nessa perspectiva, pede-se uma contribuição deste novo componente curricular, que não é remédio para todas as mazelas, mas já é uma via que se desponta para estudantes náufragos da própria existência.

Diante das circunstâncias nas quais se encontram os estudantes de nossa Educação básica, pede-se uma contribuição escolar que, de fato, oriente nossos jovens para uma tomada de consciência da situação náufraga na qual se encontram. O jovem estudante vê-se náufrago em terras movediças onde apoia seus pés. Ele precisa como nunca de uma Educação carregada de sentido à sua vida. “Precisamos da educação ao longo da vida para termos escolhas. Mas precisamos dela ainda mais para preservar as condições que tornam essa escolha possível e a colocam ao nosso alcance” (BAUMAN, 2007, p. 167). Nesse entendimento, intuímos que a Escola não é apenas um lugar de construção de nosso projeto vital, como também, um espaço garantidor das condições para esta realização. É isso que se espera de um Ensino que reúna os ingredientes vitais para uma Educação voltada para o ser humano mesmo, real e concreto e que se traduz em seu viver.

 

Apontamentos para a construção de um projeto vital

Dissemos anteriormente que a nossa vida é o parâmetro primário e radical para quaisquer análises que se pretendam filosóficas, pois o viver – a vida de cada um – é o que nos acontece em nosso dia a dia, onde viver, é sentir-se forçado a constantemente fazermos escolhas. No nosso entender, alguns ingredientes deveriam compor uma base para um futuro esquema de um projeto de vida carregado de traços filosóficos coadunados com a vida daquele que elabora tal projeto. Primeiramente e de suma importância, é o sujeito saber quem ele é, o que deseja para si, e sua realização que implica em torna-se. Com justas aproximações, este saber quem eu sou tem correlações com ‘conhece-te a ti mesmo’ descrito no pórtico na entrada do templo em Delfos. Sabedor de quem ele é e o que deseja para si, resta ao homem buscar sinceramente ser quem ele é. Aqui não cabe idear, fazer conjecturas utópicas de autoajuda sem combinar com a vida real. É preciso encarar a vida de frente, sem hesitações, para fazer que as coisas sejam o que são realmente, e afirmar para si “[...] pelo grande princípio ético que Píndaro liricamente apregoava e dizer, assim: “Torna-te quem tu és” (ORTEGA Y GASSET, 2016b, p. 105).

Outro ponto saliente que devemos aqui evidenciar: o estudante que pretende vê-se em um projeto de vida deve assumir como tarefa a realização deste mesmo projeto, não há como delegar a terceiros ou esperar que outros façam por ele aquilo que dele se espera, a isto tem-se chamado corriqueiramente de protagonismo juvenil – “[...] a expressão carrega em si a concepção de um jovem capaz de lutar e de estar à frente de vários tipos de situações e processos” (MELLER; CAMPOS, 2020, p. 111). Isto quer significar que o jovem terá de assumir aquilo que deseja ser, fazer escolhas acertadas ao máximo que puder enxergar. Quando conhecemos nossas circunstâncias essas escolhas nos parecem menos embaraçosas, pois já sabemos, de antemão, o que almejamos.

 

   O homem rende ao máximo de sua capacidade quando adquire plena consciência de suas circunstâncias. Através delas se comunica com o universo. (ORTEGA Y GASSET, 2019b, p. 26).

 

Temos bem presente da importância do homem saber quem ele é, sabedor das circunstâncias nas quais vê-se lançado, mas há outro fator que é sua responsabilidade única e individual por aquilo que escolhe. Já sabemos que viver é fazer escolhas, e estas escolhas se dão em nossa liberdade, claro que essa liberdade tem limites. “Assim, não é razoável considerar liberdade simplesmente a possibilidade de fazer tudo o que se quer fazer” (MELLER; CAMPOS, 2020, p. 131). Vivemos em sociedade, e isto implica que existe um outro para além de mim. Viver, nesse sentido, é um embate que tenho com os demais e daí, que posso ou não contar com sua anuência. Ora poderá ser ao meu favor, ora poderá ser meu impedimento. O fato é que, para além da questão social, tenho liberdade circunstancial em escolher o que desejo. Essa liberdade nos custa caro, pois dela prescinde minha responsabilidade naquilo que ora escolho.

 

A vida, de fato, deixa uma margem de possibilidades dentro do mundo, mas não somos livres para estar ou não neste mundo que é o de agora. É possível renunciar à vida, mas, se vivemos, não é possível escolher o mundo em que se vive. Isso dá à nossa existência um cariz terrivelmente dramático (ORTEGA Y GASSET, 2016b, p. 223).

 

Além dos ingredientes acima mencionados e que são de alta higiene filosófica para aqueles que queiram ingressar na construção de seus projetos vitais, há ainda outros fatores essenciais nesta composição. Falamos de uma certa atmosfera favorável para esta empreitada. Isso não deve ser apenas atribuído ao espaço físico e pedagógico escolar, como também no espírito do próprio estudante. Nessa perspectiva, o estudante deve se apresentar com porosidade intelectual de quem vê sentido em realizar seu projeto vital. “As coisas não nos interessam porque não encontramos em nós superfícies favoráveis onde refratar-se, e é necessário que multipliquemos os feixes de nosso espírito a fim de que inumeráveis temas cheguem a feri-lo” (ORTEGA Y GASSET, 2019b, p. 18). O filósofo fala de um certo hermetismo intelectual[5] para aqueles que se fecham, e assim, se negam a qualquer abertura para novas aprendizagens. Isto posto, pensamos que se o estudante não estiver aberto às novas aprendizagens demonstrando interesse nisso que se lhe oferta, em vão serão quaisquer tentativas de Ensino, seria como se o professor fosse predicar no deserto.

E ainda podemos enumerar como importante ingrediente neste mapa ideário na construção de um projeto vital a autenticidade para esta realização, o que podemos traduzir em cumprimento da vocação. Aquele chamado que a vida nos faz a fim de intuir aquilo que somos e queremos ser. Nossa vocação é para ser realizada num tempo futuro, disto já somos conscientes, o que não significa, um eterno adiamento às calendas gregas!  Temos presente que a vida é futurição, mas um futuro no qual nos vemos constantemente, este futuro pode ser o instante seguinte. É nesse sentido que somos convocados à realização de nosso programa de vida, e é justamente nisto que consiste nossa vocação.

 

Vocação é aquele chamado misterioso que nos atrai para determinada direção e que temos que atender, sob pena de falsificarmos nossas vidas. Importante é saber que a vocação não se identifica com as carreiras [ou pelo menos só isso] das pessoas. A vocação é imperativo personalíssimo. Ademais, a vocação inclui uma porção de inclinações que nada têm que ver com profissões (KUJAWSKI, 1994, p. 52, grifo nosso).

 

Confundir a construção do projeto vital com futuras carreiras e do âmbito do mundo do trabalho, tem sido recorrente quando nos referimos ao componente Projeto de Vida. Em nossa perspectiva consideramos que pensar o mundo do trabalho, a partir do mundo escolar, pode ser um ingrediente tratável pelo componente curricular, o que não concordamos é reduzir o componente a um mero conteúdo acerca da era mercadológica, do emprego e do empreendedorismo, isto estaria muito mais para uma prática pedagógica construtora de cidadãos úteis[6] educados de antemão para algumas finalidades do Estado ou do mercado, o que se constitui em uma pedagogia arcaica e anacrônica.

Poderíamos ainda registrar, de passagem, alguns outros pontos interessantes que seria de boa monta se levar em conta, a saber: que o estudante vive em um mundo de ideias e crenças,[7] pois nascemos em um mundo já permeado de saberes, costumes e conhecimentos vigentes; que o homem desenvolveu certas técnicas e isto lhe é favorável uma vez que, por meio delas, pode alterar o meio no qual vive em seu favor; que a filosofia nos instiga ao conhecimento do todo, não meramente de investigar partes, mas que para isso, ela se basta. Isso é o que Ortega y Gasset chama de princípios da pantonomia e autonomia; que o homem vive em uma tensão de geração de jovens, adultos e velhos que alteram o espírito do todo a cada nova leva de gerações, e nesta relação, convivemos com os coetâneos e contemporâneos, que a clareza é o bisturi daquele que pretende operar o próprio projeto vital, não há misticismo nisso, apenas ideias claras com as quais possa contar quando assim precisar.

       Uma vez identificados alguns ingredientes inarredáveis de um projeto vital consoante a filosofia da Razão vital, passaremos a intentar acerca de como realizar essa transmissão de ideias vitais, saberes que se identificam com o compromisso inadiável da filosofia com a vida. Falamos aqui do tipo de pedagogia que se aproxima com esse compromisso, uma circunstância vital para que os estudantes percebam sentido quando da produção de seu projeto vital.

 

Que pedagogia vai à escola?

Canta o que não silencia

É onde principia a intuição

E nasce uma canção rimada

Da voz arrancada ao nosso coração

Como, sem licença o sol

Rompe a barra da noite sem pedir perdão

Hoje quem não cantaria

Grita a poesia e bate o pé no chão

E hoje quem não cantaria

Grita a poesia e bate o pé no chão.

(OSWALDO MONTENEGRO)

 

Nesta segunda parte, voltamo-nos mais para o tipo de pedagogia que pretendemos que se apresente como ferramenta de Ensino que dê conta da tarefa à qual se propôs. Nessa perspectiva, pensamos que a prática pedagógica deve se coadunar com a vida dos estudantes, onde ele perceba que aquilo que aprendeu na Escola serve de ancoragem quando sentir-se náufrago no mundo, assim, o interesse do estudante pelo ato de estudar,

 

[...] só poderá ser despertado se os conteúdos se revelarem significativos para o sujeito da aprendizagem, quer dizer, além de serem objetivamente significativos, eles devem sê-lo também subjetivamente, inscrevendo-se num horizonte pessoal de experiências, conhecimento e valores. (RODRIGO, 2014, p.38).

 

Ora, se os conteúdos são esvaziados de sentido para a vida dos estudantes, logo, como pretender que os estudantes sintam necessidade na aprendizagem? Este é o primeiro e quiçá o principal problema a ser enfrentado pela pedagogia que se pretenda filosófica. Nas últimas décadas se amontoaram um calhamaço de conteúdo sem sentido vital nos currículos estudantis, e que o Novo Ensino Médio[8] ainda não deu conta disso. Ainda que algumas alterações propostas pela reforma do Ensino Médio tenham alguma relevância – pois altera o já carcomido modelo anterior – tal reforma não dá conta das antigas inquietações ainda presentes em nossa Educação básica. Portanto, pensamos que a pedagogia deveria ter estreitas relações com a vida de nossos estudantes secundaristas, só assim eles veriam algum sentido vital de se sentarem em nossos bancos escolares.

 

Por uma pedagogia vitalista

Quando falamos em pedagogia vitalista, logo intuímos que estamos falando de algo que nos remete à vida, e de outro modo não poderia ser. “A vida é a realidade radical da qual é preciso partir e com a qual se deve contar” (SANCHEZ, 2010, p. 24). Isto é imprescindível na filosofia da Razão vital. Portanto, qualquer que seja a perspectiva pedagógica que se queira aplicar, a vida de cada qual, deve ser este ponto de partida para futuras investigações filosóficas, e sobretudo, quando se pretende construir um projeto vital do qual já aludimos. O gigantesco ensaio pedagógico proposto pela filosofia orteguiana nos leva a pensar em vários aspectos da formação humana que se dão em diferentes níveis como:  o intelectual, o moral, o social e o político dentre outras áreas afins do comportamento humano.

Por essa filosofia comprometida com a vida, o filósofo espanhol nos incita a contaminar os estudantes com estas ideias carregadas de vida que só tem a filosofia, e que na filosofia da Razão vital chamamos de ideias vitais – ideias imprescindíveis para que o homem não só viva, mas viva bem. O que se ensina nas Escolas já não dá conta da necessidade autóctone de cada estudante, ele faz o que faz por fazer, não que lhe interesse ou porque dela tenha algum resíduo de necessidade. “O que se ensina nas escolas modernas de todo o mundo é ciência congelada, imobilizada, superada, dogmatizada – um leito seco e estéril por onde não transitam gotas essenciais” (ORTEGA Y GASSET, 1982, p.02). De certo alguém objetará, mas a ciência não é importante? É claro que sim! O próprio filósofo (ORTEGA Y GASSET, 2016b, p. 64) dirá que “A ciência é o maior portento humano [...]”, e por óbvio reconhecemos sua importância; nossa crítica se dirige no sentido de que nem só de ciência vive o estudante!

Ao mesmo tempo em que, a filosofia deve contaminar os estudantes com aquilo que é vital para cada um, ela também deve atender ao espírito do tempo – ideias que vigem em uma época, pois a filosofia tem o inarredável compromisso em contribuir com a formação dos que dela se aproximam. Desse modo, o projeto vital de cada um merece uma Educação à altura do tempo, coisa que uma pedagogia arcaica já não dá conta. A pedagogia, assim como o estudante, deve estar em forma,[9] isto implica numa constante atualização de ideias vitais que vigem em determinado tempo. Do contrário, teremos um Ensino distante da realidade vital do estudante. “[...] o anacronismo da Pedagogia, é responsável por muitas concepções inadequadas do ato educativo e mesmo de propostas envelhecidas pela raiz” (CARVALHO, 2002, p. 446). Daí a importância da reflexão filosófica constante acerca do tipo de Ensino que propomos aos nossos estudantes, ademais, pela razão de estarmos falando da construção de projetos vitais que importarão nas vidas de jovens que esperam da escola uma contribuição nesse sentido.

Temos presente que apontar vias e trilhas para confecção de seu projeto de vida, não passa pelo ufanismo de que tudo dará certo, como se a vida fosse uma flecha previsível. Vimos nas últimas décadas em nossas escolas, uma utopia de floreios e ornamentos que desviam do estudante a contingência de que o viver é um drama, uma aventura na qual já estamos lançados. E neste ilusório docilizar que as mais dramáticas circunstâncias que nos circundam se tornam as ferramentas para mimar os estudantes dos seus sentidos mais profundos e aterrorizantes. Muitas vezes, os promovemos às séries seguintes sem que eles esbocem o menor esforço, como se isso fosse possível dar certo na vida real. Ser mimado é próprio do homem-massa[10], um tipo denunciado por Ortega y Gasset (2016a), cujo comportamento psicológico de menino mimado é ancorado na ingratidão, na infantilidade de querer o que não pode ter e na falta de compromisso criativo com alguma coisa.

 

Cultura como ideias vitais

Uma vez identificados os ingredientes que deverão compor o tipo de Ensino que haja sentido para os estudantes, passaremos a pensar o que ensinar, quais saberes são essenciais e em que medida. Para Ortega y Gasset, o Ensino de Cultura é o que nos deveria importar. Mas o que o filósofo chama de Cultura? “Cultura é o que se salva do naufrágio vital, o que permite ao homem viver sem que sua vida seja uma tragédia ou um aviltamento radical” (ORTEGA Y GASSET, 1999, p. 62). O estudante secundarista deveria receber pelo Ensino de Cultura, àquelas ideias vivas que compõe o homem de seu tempo, as ideias claras e vivas que permitem o homem se conhecer quem ele é, suas circunstâncias e como superá-las. Pouco importam se tais ideias são científicas ou não, importa que ele as saiba como repertório de suas convicções efetivas sobre quem ele é, o que é o mundo, quem são os que estão ao seu lado, e sobre os valores e crenças que vigem em seu tempo.

Mas, para isso, é preciso que se ensine dentro das condições de se aprender. Nas últimas décadas, nosso modelo de Ensino foi se amontoando de entulho desprovidos de sentido para aqueles frequentadores das Escolas básicas, como não viam sentido vital no que aprendiam, a indiferença tomou conta do espaço escolar. A escola tornou-se insuportável, improdutiva, um lugar desprovido de sentido, resultado: ninguém quer estar lá. Sentimos isso ao retornamos, de início híbrido, depois, totalmente presencial. Carregamos nosso currículo de tanta coisa sempre mais crescente, que já não damos conta de tanto penduricalho. A atividade docente consiste em podar esse excesso de conteúdos que não têm sentido de ser na Escola. Daí a premente carência que temos de submeter o Ensino a um princípio de se poupar nas matérias ensinadas, “[...] ensinar apenas o que se pode ensinar, ou seja, o que se pode aprender” (ORTEGA Y GASSET, 1999, p. 99). Isto tem um significado de se ensinar apenas o que essencial para o estudante de nosso tempo, o que ele precisa saber para viver, quanto àqueles que se interessarem por saberes mais especializados, certamente, os buscarão, desde que deles sintam necessidade.

E, aqui nos vemos em um de nossos últimos giros concêntricos ao estilo orteguiano, o que nos leva a pensar, e, assim questionar: como despertar os estudantes para aquilo que realizam? O filósofo da Razão vital nos dará uma pista nesta faina que talvez seja a que mais nos têm incomodado enquanto professores de Ensino Médio – a indiferença dos estudantes com esta atividade que é estudar. O estudante só encontrará sentido no que faz quando isto for uma coisa da qual tenha vontade desejada de realizá-la.

 

Para isso é preciso virar do avesso o ensino e dizer: ensinar não é primária e fundamentalmente senão ensinar a necessidade de uma ciência, e não ensinar a ciência cuja necessidade seja impossível de fazer o estudante sentir (ORTEGA Y GASSET, 2019a, p. 29).

 

Essa constatação do filósofo não se aplica meramente ao Ensino científico ou filosófico, mas já é uma realidade da qual nos damos conta quando percebemos que a artificialidade com a qual nos comunicamos com os estudantes é a causa de indiferenças, fracassos estudantis e esvaziamento de sentido naquilo que ensinamos e, que por vezes, os estudantes nem aprendem. Assim, entendemos que o estudante só encontrará sentido em estudar quando isso brotar de seu íntimo com algo do qual sente necessidade íntima, do contrário, é como se ele fosse convidado a participar de uma ficção, a pior da qual poderia participar – a ficção da própria vida.

 

Considerações finais

Chegamos ao final de nossa trilha sempre na busca da compreensão pedagógica do lugar do novo componente – Projeto de Vida – como parte integrante dos novos itinerários que compõe nosso recente modelo de Ensino. Percebemos que, dado as indiferenças com as quais os estudantes tratam seu lugar na Escola, as consequências disso se tornaram patentes ao longo dos anos. Temos uma crise na Educação básica e do Ensino, que pedem uma contribuição nessa problemática que ora nos atinge. Ora, pensamos que por meio do componente Projeto de Vida, os estudantes se percebam parte importante deste processo, tomem consciência da própria vida, e assumam com responsabilidades esta tarefa.

Ainda temos presente, que os professores ou professoras que se envolverão com esse componente curricular, têm um compromisso vital nesta caminhada com os estudantes. Percebemos vários traços identificadores do componente com a filosofia da Razão vital. A filosofia que tem na vida uma categoria primária e radical de onde devem partir quaisquer análises que se pretendam filosóficas. Estudantes que sabem aonde querem chegar, não trilharão qualquer caminho. Portanto, pensamos que esse novo componente é bem-vindo às nossas escolas, resguardados aspectos docilizáveis daqueles que não encaram a vida como uma dramática aventura existencial.

 

 

Referências

 

CARVALHO, José Maurício de. Introdução à filosofia da razão vital de Ortega y Gasset. Londrina: CEFIL, 2002.

 

BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

 

BRASIL – Ministério da Educação. http://portal.mec.gov.br. Acesso em 12 abr. 2022.

 

KUJAWSKI, Gilberto de Mello. Ortega y Gasset. A aventura da razão. São Paulo: Moderna, 1994.

 

MARÍAS, Julían. Introdução à Rebelião das massas. In: ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das massas. Campinas: Vide Editorial, 2016a. p. 10-35.

 

MONTENEGRO, Oswaldo. Intuição. [Compositor e intérprete], LP, 1988.

 

MELLER, André; CAMPOS, Eduardo. Caminhar e construir: Projeto de Vida, Volume único. 1ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

 

ORTEGA Y GASSET, José. Ao redor de Galileu: esquema das crises históricas. Campinas: Vide Editorial, 2022.

 

ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Campinas: Vide Editorial, 2016a.

 

ORTEGA Y GASSET, José. Lições de metafísica. Campinas: Vide Editorial, 2019a.

 

ORTEGA Y GASSET, José. Meditações de Quixote. Campinas: Vide Editorial, 2019b.

 

ORTEGA Y GASSET, José. Missão da Universidade. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999.

 

ORTEGA Y GASSET, José. O homem e os outros. Campinas, Vide Editorial, 2017).

 

ORTEGA Y GASSET, José. O que é filosofia? Campinas: Vide Editorial, 2016b.

 

ORTEGA Y GASSET, José. Pedagogia da contaminação. [S.l], [1917]. Disponível em: https://www.imw.usp.br. Acesso em: 10 abr. 2022. (Escrito inédito).

 

ORTEGA Y GASSET, José. Pedagogia e anacronismo. [S.l]. [1982]. Disponível em: https://www.educ.fc. Acesso em: 16 abr. 2022.

 

SANCHÉZ, Juan Escámez. Ortega y Gasset. Recife: Editora Massangana, 2010.

http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 02 abr. 2022.

 

Notas



[1] Aqui fazemos referência ao baixo desempenho do Brasil na principal avaliação internacional de desempenho escolar – PISA, tradução de Programme for International Student Assessment.

 

[2] Itinerários formativos: Parte flexível do currículo que permitirá aos estudantes aprofundar os conhecimentos em uma ou mais áreas do seu próprio interesse e vontade.

 

[3] BNCC: Base Nacional Comum Curricular, é um documento oficial da Educação que prevê o conjunto de aprendizagem que os estudantes terão que desenvolver ao longo de sua carreira acadêmica, desde a tenra Educação até o Ensino Médio. Mais informações acerca deste documento em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 02 de abril 2022.

 

[4] Futurição “Queira-se ou não – disse Ortega -, a vida humana é constante ocupação com algo futuro. Desde este instante nos ocupamos com o que vem depois. Por isso, viver é sempre, sempre, sem pausa nem descanso, fazer. “[...] Portanto, gravem: nada tem sentido para o homem senão em função do futuro” (MARÍAS, 2016, p. 24).

 

[5] Típico da pessoa que se considera totalmente completa do ponto de vista intelectual, essa pessoa carrega dentro de si um repertório de ideias e já não se abre a novos ensinamentos – próprio do homem-massa.

 

[6] No sentir de Ortega y Gasset (1982), trata-se de um tipo humano formado simplesmente para atender as demandas do Estado ou das pessoas. Para o filósofo, um Ensino assim se caracteriza pela distância pedagógica do espírito do tempo vigente com as propostas pedagógicas já caducas ou prescritas.

 

[7] Ideias: são aquelas definidas cientificamente quando nos topamos com um problema e que o senso-comum já não responde à altura da questão.

Crenças: correspondem ao nosso entendimento primário, estamos sempre nas crenças sem sequer nos darmos conta disso.

 

[8] Proposto pela Lei nº 13.415/2017, estabelece uma mudança na estrutura do ensino médio como a flexibilização do currículo. Ainda estabelece a criação de itinerários formativos que permitirão aos estudantes escolher determinas trilhas de conhecimento. Para saber mais acesse: http://portal.mec.gov.br. Acesso em 12/04/2022.

 

[9] Caráter desportista de quem estar pronto para realizar uma tarefa. O filósofo Ortega y Gasset utilizou esta imagem para aqueles que pretendem exercer influência sobre as massas incultas. Ter força viva ou estar em forma.

 

[10] Um sujeito fechado em si, um filisteu da Cultura, que recebe o mundo pronto e acabado, mas não agradece por isso. Comporta-se como um menino mimado que só aprendeu a exigir direitos, mas que não promove nada às gerações futuras, em suma, é um senhorio satisfeito.

 


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