O Acontecimento dos corpos: pensando a educação como proposição

 

The Event of bodies: thinking about education as a proposition

 

Maiquel Cristian Reichert

Doutorando na Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

cristian.reichert@usp.br - https://orcid.org/0000-0003-1174-2440

 

Recebido em 01 de dezembro de 2022 

Aprovado em 24 de fevereiro de 2023 

Publicado em 04 de abril de 2023

 

RESUMO: O que acontece em ambientes de aprendizagem? Diante dessa questão nos colocamos em um percurso investigativo que procurou compreender o conceito de Acontecimento dos estoicos a Deleuze. Identificamos nessa ideia uma potência para entendermos as relações educacionais como campo de possibilidades. O Acontecimento para os estoicos é o incorporal que mobiliza os corpos em percursos de ser, já para Deleuze, na leitura que este faz dos estoicos, é o sentido, a proposição que mobiliza os corpos em devir. Diante desse entendimento procuramos fazer uma genealogia do conceito ao passo que poderíamos articulá-lo com os ramos da educação e das artes, os quais somos oriundos. Entendemos que o Acontecimento mobiliza o sujeito por ser sempre presentificado, atual.

Palavras-chave: Acontecimento; Proposição; Corpo; Educação; Arte.

 

ABSTRACT: What happens in learning environments? Faced with this question, we set ourselves on an investigative path that sought to understand the concept of Event from the Stoics to Deleuze. We identified in this idea a power to understand educational relations as a field of possibilities. The Event for the Stoics is the incorporeal that mobilizes the bodies in paths of being, whereas for Deleuze, in his reading of the Stoics, it is the meaning, the proposition that mobilizes the bodies in becoming. Given this understanding, we tried to make a genealogy of the concept while we could articulate it with the branches of education and the arts, which we come from. We understand that the Event mobilizes the subject because it is always present, current.

Keywords: Event; Proposition; Body; Education; Art.

 

Introdução

            Qual aula marcou sua vida? Aquela aula que está com você até hoje, definiu caminhos e abriu fissuras no encaminhamento cotidiano, na rotina da aprendizagem. Começamos este artigo com uma pergunta por acreditarmos que com ela possamos nos colocar diante de um campo de proposição, de um campo de mobilização. Uma pergunta mobilizadora que possibilita ao sujeito caminhar e experimentar um certo sentido de existência. Entramos na fissura da pergunta ao elaborarmos esse texto, caminhamos e ocupamos sítios que nos auxiliaram no encontro de nossa resposta. Ocupamos, assim preferimos definir nosso movimento, bulbos armazenatícios desse rizoma: o bulbo estoico, o bulbo deleuzeano, o bulbo da arte, o bulbo da filosofia e o da educação.

            Nosso movimento se deu no encontro com a ideia central de nosso texto, o Acontecimento, primeiramente no estoicismo, procurando criar séries paralelas de sentido: quando falarmos em corpos podemos livremente pensar em corpos educativos – corpo docente e discente, compreendendo o que Acontece na mistura desses corpos. Mas antes vamos nos ater ao conceito e sua complexidade na filosofia estoica e deleuzeana, passando pela ideia de corpo e incorporal, exprimível e proposição, que consideramos os dispositivos mobilizadores de Acontecimentos educativos.

Feita a preparação do terreno conceitual podemos pensar sobre o ensino, numa construção dialógica com a construção do pensamento tanto na filosofia quanto na arte. E nesse campo divergente transitamos, um campo para a educação que seja criação e reflexão, Acontecimento e proposição, que seja um desvio.

 

O Acontecimento para os Estoicos

O estoicismo foi uma corrente filosófica da antiguidade e numa de suas abordagens discursivas procuraram construir um entendimento sobre o ser, subvertendo Platão e Aristóteles, a saber: a ontologia e a filosofia como sistema de representação. Os primeiros estoicos pensam uma noção de corpo e incorporal que estabelece um olhar peculiar sobre tudo que existe. Esses personagens encenam, pela primeira vez, tendo como cenário o mundo grego antigo, a noção de incorporal ou Acontecimento. “Noção complexa e difícil à qual se contrapõem e tentam fugir do platonismo e da filosofia peripatética, levando-as, com humor (e não com ironia), ao pé da letra” (BRÉHIER, 2012, p. 03). Tomemos, então, a noção de incorporal como Acontecimento como aponta Émile Bréhier.

Para o estoicismo antigo o Acontecimento é o resultado das ações dos corpos/seres, e como conceito é contraditório em sua essência, pois não é um ser e nem o predicado do ser, mas o que é exprimível do ser, aquilo que se afirma dele (BRÉHIER, 2012). Os estoicos identificam a ideia (ou embrião de) Acontecimento, o que podem ter denominado como fato, o conceito surge posteriormente, principalmente, em Bréhier e seus estudos sobre os incorporais. O Acontecimento possui um caráter singular para ser tomado como um incorporal. “A importância desta ideia para eles se faz notar pelo cuidado que têm de exprimir sempre, na linguagem, o efeito por um verbo” (BRÉHIER, 2012, p. 14). O verbo torna o Acontecimento um exprimível, uma afirmação do ser, aquele que age e sofre a ação ao mesmo tempo. “Assim, não se deve dizer que a hipocondria é causa da febre, mas causa desse fato de que a febre aconteça [...] as causas não são jamais fatos, mas sempre seres expressos por um substantivo: as pedras, o mestre, etc.” (BRÉHIER, 2012, p. 14); os substantivos são os corpos e os verbos os incorporais, “os efeitos – ser estável, fazer um progresso – são sempre expressos por verbos” (BRÉHIER, 2012, p. 14)[1]. Portanto os estoicos fizeram do Acontecimento parte dialógica de seu pensamento, contrariando o que foi fixado, posteriormente, pelo cartesianismo na experiência, para quem a realidade objetiva é factual e acontecimental. Esse dispositivo de pensamento não existe no estoicismo, o que pode causar uma estranheza ao conceber o Acontecimento como parte fundamental do pensamento.

 

As ciências experimentais, assim como as filosofias céticas ou críticas, condicionaram-nos a ver no fato, ou no Acontecimento, a verdadeira realidade objetiva, e a considerar um objeto como resultado e síntese de um grande número de fatos; ao contrário, nos estoicos, ele é objeto de atribuição dos fatos. O centro do real é deslocado. Neste particular, a doutrina estoica é muito difícil de se compreender. Os fatos seriam o único objeto da experiência, e o pensamento, que procura observá-los e descobrir as suas ligações, é estranho a eles. Ao contrário, os estoicos, admitindo que os fatos eram incorporais e existiam apenas no pensamento, fizeram deles não o objeto, mas a matéria de sua dialética (BRÉHIER, 2012, p. 22).

 

Assim o Acontecimento, desprovido de seu arbítrio experimental do pensamento científico moderno, nos abre outra possibilidade onde os fatos estão no pensamento constituindo-se como poder de argumentação, de entendimento e elaboração do real; o Acontecimento como parte do discurso da razão e da percepção da realidade. Deposto, assim, da relação causal tão cara ao pensamento científico e acadêmico contemporâneos. Seria propor uma outra forma de pensar e perceber o mundo, e, acreditamos, que Deleuze tenham ido por esse caminho, daí a nossa dificuldade em lidar com ele, precisamos reeducar nossa forma de pensar, modificando nosso cérebro cartesiano em um que comporte o SIM-NÃO na mesma proposição. O Acontecimento como incorporal, nunca causa, é sempre um efeito, “sempre inativo” (BRÉHIER, 2012, p. 22), batemos nessa tecla, nos repetimos para que nós mesmos possamos nos reeducar e dissolver o impulso do pensamento causal: causa ↔ efeito. Sendo inativo está alheio à causa, por ser um subproduto das relações causais dos corpos, nunca um objeto, “ele resulta da ação dos corpos, ou seja, é um efeito dos corpos, o incorporal (asomata) murmúrio que sobe e transforma-se em devir-louco” (MIRANDA, 2019, p. 09). Podemos perceber que o deslocamento de percepção no estoicismo admite “apenas a realidade material e sensível, por isso a sensação é o único meio de conhecimento verdadeiro do real” (MIRANDA, 2019, p. 09). Tal concepção é diametralmente oposta aos preceitos que advogam por um despotismo da razão sobre todas as outras formas de perceber e conhecer o real.

 

Ao lado disso ainda se pode acrescentar que não há, nos estoicos, nenhuma disposição, tal como em Aristóteles ou em Platão, de proclamar o mundo como eterno para salvar a perfeição, pois para os estoicos os Acontecimentos são singularidades puras que se comunicam em um só e único Acontecimento; possuem verdade eterna e o seu tempo nunca é o presente, pois o presente não efetua o Acontecimento, é no Aion finito e ilimitado que se dá sua perfeita efetuação (MIRANDA, 2019, p. 14).

 

            O tempo de Aion é o tempo não-cíclico, em contraponto ao tempo de Cronos, Aion é aberto e linear, ele é finito à cada instante e ilimitado no passado e no futuro. O tempo de Aion nos diz que o tempo presente é limitado, que o tempo do Acontecimento é o tempo do devir-ilimitado, o tempo do SIM-NÃO, o tempo sem duração, o tempo sem bordas, o tempo do Logos. Eterno sem pontuação e sem episódios. A seguir um iconograma para pensarmos cada Tempo:

 

Forma

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

Tempo de Aion                                                       Tempo de Chronos

 

 Existe, então, um Acontecimento que agencia todos os Acontecimentos, são singularidades que se comunicam com o eterno, o Acontecimento de Aion ilimitado que dilata o tempo passado e futuro, escapando da finitude presente. O tempo de eureka! O tempo de encontro do sentido que conclui o quebra-cabeças cósmico, se fazendo em linguagem. Essa também, “por meio da noção de Acontecimento a linguagem se desdobra em um devir ilimitado cujos efeitos habitam a superfície dos corpos, ou seja, não os tocam, apenas pairam sobre eles” (TEMPLE, 2011, p. 79). A linguagem, sem matéria nem corpo, não é nada mais do que aquilo que se diz da matéria e do corpo, sendo apenas uma das coisas possíveis que possam designar os corpos.

 

Portanto, se o lugar das forças está na tensão dos corpos, é o Acontecimento, enquanto efeito desta tensão, que é apropriado pelas práticas discursivas, e o corpo, enquanto lugar de emergência dos conflitos, é apropriado pelas estratégias de poder e saber. O Acontecimento deixa de ser um atributo do corpo para se tornar o sentido coordenado de nossa origem, e o corpo deixa de ser puro ato para se tornar objeto de estatísticas verificáveis e controláveis, forma disciplinável e, finalmente, força de vida estruturada pelas estratégias de poder (TEMPLE, 2011, p. 109).

 

Ainda assim, “o Acontecimento não tem sentido, ele é o próprio sentido, subsiste na linguagem e no pensamento, mas ocorre na superfície dos corpos” (TEMPLE, 2011, p. 81). Seu modo de ação é singular e habitual, operando no modo SIM-NÃO (0-1) isocronicamente, “é sempre algo que nos espera da relação entre os corpos” (TEMPLE, 2011, p. 81). O Acontecimento é tomado pela tensão que escapa da relação dos corpos, corpo com corpo gera tensão, tensionamento decorrente dos conflitos de poder entre os corpos escapando em práticas discursivas.

Operando num campo de sentido e não de representação, o Acontecimento como verdade em processos educativos nos mostra que mais do que habilitar os sujeitos em linguagens, mais do que instrução a educação é um processo contínuo de formação, um Acontecimento pedagógico.

 

O Acontecimento nos diz que tudo sempre está em movimento esperando para ser notado, nos diz que as relações entre os corpos educativos são o Acontecimento pedagógico. Nos diz que como educadores podemos admitir as fissuras e os desvios, que por meio das proposições algo pode acontecer, algo espera por acontecer. (REICHERT, 2023, p. 11)

 

Retomando nossa pergunta inicial: Qual aula marcou sua vida? Estamos reivindicando às experiências de ensino e aprendizagem seu caráter transformador. Somente corpos podem ser transformados, para os estoicos há uma tessitura que permeia as relações entre corpos: o que para nós é o aprendizado; na tensão um corpo aprende com o outro, uma ostra na qual entra um grão de areia, um corpo outro, gera uma tensão de aprendizado, um Acontecimento se dá na tensão: o Acontecimento pérola. No caso da ostra a pérola é seu Acontecimento de aprendizado: precisou aprender como se relacionar com o corpo areia; da mesma forma imaginamos os processos educativos. Dificilmente há um sujeito que não tenha sua própria pérola construída em meio à tensão e ao desconforto, erigidos em meio a tensões e distensões, causando conflitos internos e reestruturações no sentido de existência. Da mesma forma a educação como Acontecimento tem o poder de criar pérolas, e o ensino de filosofia como Acontecimento do sentido mobiliza no sujeito uma forma de transformar o grão de areia em joia. Por isso nossa pergunta se relaciona com o sentido e com o Acontecimento, damos sentido aquilo que nos solicita, aquilo que nos Acontece. Uma única aula pode mobilizar no sujeito uma transformação que impactará na sua forma de existência, na definição de caminho, na construção do próprio sujeito. Educação é o que Acontece entre os corpos.

 

Corpo

            A causa do ser é o percurso do ser: corpo em movimento, corpo em transição, corpo em devir. A causa do ser é um corpo em Acontecimento. E a noção de corpo nessa esfera é o que a diferencia. Mas o que é um corpo para os estoicos? O corpo é tudo que existe, inclusive o que tem uma existência impalpável como “as virtudes, a razão, a filosofia” (BRÉHIER, 2012, p. 04). No estoicismo o corpo é racional, daí a tendência de se pensar o estoicismo como uma filosofia resiliente, pois o corpo é um corpo que não padece. “Ao contrário do platonismo, o corpo não aprisiona e limita a alma, é a alma, vitalidade imanente ao corpo, que tensiona suas partes ao limite do que pode e lhe confere virtudes racionais” (BRÉHIER, 2012, p. 03). Assim, o corpo é lógico. “O corpo é pleno de razão” (BRÉHIER, 2012, p. 03). Ele abrange também as propriedades do ser, e aquilo que o afeta.

 

O mundo é um mundo de corpos, e tudo aquilo que nele existe é corpo, incluindo a alma ou o pensamento, as virtudes, e o próprio logos filosófico. Assim, tudo o que é real é corpóreo, mesmo as qualidades do ser, como as virtudes ou as paixões, são consideradas corpóreas no tanto que elas afetam os corpo, por exemplo, alguém que por vergonha ruboriza, ou alguém que por amor sofre à visão do ser amado; com isso os estoicos não estão firmando que corpo é algo que possui a tripla extensão e resistência, o que seria permanecer dentro das considerações aristotélicas; antes, eles agregam a esse conceito clássico a concepção de que corpo é tudo aquilo que age ou sofre ação (MIRANDA, 2019, p. 07).

 

As proposições estão em função dos corpos, à medida que mobilizam os corpos à ação. O corpo que age e sofre a ação é um corpo propositivo, um corpo que como quer Deleuze vive os enunciados. Aqui temos uma aproximação ao corpo na educação e principalmente do corpo na arte, um corpo que se solicita participativo e presente. O estado de presença do corpo em Acontecimento. Observe que assumimos a noção de corpo, como sendo o corpo vivente por se tratar inerente a nossa opção discursiva. Não estamos pensando no corpo mineral, no corpo vegetal, no corpo etéreo para pensar essa escrita, essa acepção não nos interessa, nosso foco está no corpo vivente nas proposições, no corpo em processo, no corpo do Acontecimento, em suma, no corpo-sujeito. Pensamos, também, no corpo participativo da Arte e da Educação. Para o estoicismo, o corpo sim, é o todo real e existente, incluindo o corpo vivente. Mas como disse Bréhier anteriormente: “Os exemplos são quase todos, como se pode observar, tomados de empréstimo dos seres vivos” (BRÉHIER, 2012, p. 10).

Se tudo que é real e existente é corpo, a causa dos corpos só pode ser outro corpo, “isso porque, é corpo (soma) tudo aquilo que pode afetar ou ser afetado por outro corpo, inclusive a causa que age sobre o corpo é também um corpo. Para o estoicismo, portanto, a realidade é física” (TEMPLE, 2011, p. 74). Esse materialismo estoico permite dizer que estão incluídos nesse gênero de corpo aquilo que de matéria prescinde. “A alma, por exemplo, é corpo porque age no corpo quando sente vergonha e medo, e o corpo torna-se vermelho e pálido. Também a alma sofre a ação do corpo sentindo dor quando o corpo está doente ou ferido” (TEMPLE, 2011, p. 74).

Essa concepção de corpo como causa de outro corpo, leva-nos ao centro de nossa jornada por esse universo (estoico), aquilo que para nós é caro, a ideia de corpos que coexistem em multiplicidade. Corpos que são a extensão do outro, mas que não se tornam o outro, mantêm suas qualidades coexistindo com as qualidades do outro, uma certa porosidade que se permite atravessar e afetar, sem perda de identidade.  “Quando, por exemplo, o fogo esquenta o ferro este avermelha, mas para os estoicos isso não significa que o fogo tenha dado ao ferro uma nova qualidade, mas sim que o fogo penetra no ferro e passa a coexistir com as partes deste” (TEMPLE, 2011, p. 76). Essa mistura de corpos é o Acontecimento. Mas essa não é uma ideia encontrada no estoicismo, pois para eles o Acontecimento é parte incorporal dos corpos, já em Lógica do Sentido (2015) de Gilles Deleuze o Acontecimento é o sentido. “O universo estoicista prima, portanto, pela compreensão da realidade a partir dos procedimentos múltiplos, do movimento constante que perpassa o ser ao mesmo tempo em que este mantém a unidade de suas partes” (TEMPLE, 2011, p. 76). Pensar na coexistência de multiplicidades no ser, para nós é a chave que os estoicos nos dão para alcançar o entendimento sobre o que venha ser o Acontecimento como categoria singular.

Surge com esse problema o entendimento sobre a ação que afeta o corpo, geralmente exprimível por um verbo que age sobre o corpo.

 

Os corpos são, portanto, para os estoicos, misturas de forças por meio das quais um corpo penetra no outro e coexiste com ele [...]. Mas aquilo que queremos dizer por “crescer”, “ser cortado”, “avermelhar”, “diminuir”, enfim, tudo aquilo que pode ser expresso pelo verbo, não são estados de coisas e nem misturas dos corpos, são os Acontecimentos incorporais que ocorrem na superfície destas misturas. Mas, com relação aos enunciados “a água fica rosada”, o “ferro fica quente”, estes são atributos e não propriedades dos seres. Quer dizer, são transformações que dizem respeito aos corpos, mas são elas mesmas incorporais. Desta maneira, os incorporais são atributos que não preexistem à combinatória dos corpos, subsistem nas relações dos corpos, não são jamais causas uns em relação aos outros, por isso é uma relação que não pode ser prévia aos corpos que a realizam” (TEMPLE, 2011, p. 80).

 

            Já a mistura dos corpos numa perspectiva deleuzeana se dá no agenciamento do EU ↔ TU → NÓS, como Acontecimento coletivo numa virtualidade atualizada no presente (DELEUZE, 2015), o Acontecimento é sempre atualizado no presente e não na memória. Nesse sentido quando provocamos com a pergunta mobilizadora: Qual aula marcou sua vida? Não estamos propondo um exercício de memória, uma viagem cronológica ao passado, mas uma atualização do Acontecimento – aula como presente de aion; assim o que nos mobiliza não é uma memória, mas um sentido, e por isso se trata de um Acontecimento pedagógico. Aquela aula me transformou num outro, não porque estava submisso ao professor, mas porque estava tensionado num campo divergente, onde o que Acontecia lutava por expressão, precisava existir em meio ao dado, à zona de conforto. O aprendizado se dá fora da zona de conforto, se dá na tensão entre corpos, como emergência dessa tensão. A filosofia como uma ópera dos conceitos, é um campo para essa emergência, a arte como teatro dos sentidos também.

            Os estoicos não entendem a tensão entre os corpos como um Acontecimento, como estamos afirmando em concordância com Deleuze, mas como incorporal. Portanto quem luta por expressão na relação entre os corpos, a pérola, é chamado de incorporal pelos estoicos.

 

Incorporal

            A concepção de incorporal na filosofia estoica é a base de entendimento sobre o Acontecimento, uma ideia que emerge desse universo, mas que de fato não existe com essa denominação naquele momento, sendo mais aproximado à ideia de efeito (advindo das relações/misturas dos corpos). A imagem principal é a de que algo surge da mistura dos corpos, o incorporal é resultante da multiplicidade das relações dos corpos. “Assim, como a existência de um corpo supõe a mistura com outro corpo, o que se produz destas combinações são Acontecimentos que recortam, em um determinado momento, certas relações e não outras” (TEMPLE, 2011, p. 80).

            O Acontecimento surge como conceito filosófico à medida que a filosofia passa a olhar para as experiências do organismo vivo, suas adversidades, suas quedas, seus erros de percursos, suas inconsistências, e também, seus apogeus, suas epifanias, ou seja, olhar para o drama. De fato, quando a filosofia adquire um caráter empirista, subvertendo a tradição da representação, esse conceito passa a ser um caminho para muitos filósofos. Para os estoicos os Acontecimentos do organismo são os incorporais: “Os incorporais são esses Acontecimentos na história da filosofia, quando ela começa a problematizar a fissura, a cicatriz e o ferimento, e tantos outros, apesar de conceber o mundo como um organismo, um todo” (BRÉHIER, 2012, p. 05).

            Os incorporais são uma categoria na filosofia estoica que procura classificar o que não é corpo, que não possui realidade. Lembremos que para eles a alma possui corpo, pois pode causar afetos no corpo (ruborizar no vexame; empalidecer no medo), também possui corpo a voz, o calor, o frio, o fogo etc. Ou seja, o que age na superfície do corpo. “Para o antigo estoicismo nem tudo o que existe na natureza é corpo. E para aquilo que não possui realidade, que não é corpo, que não afeta e não pode ser afetado, os estoicos criam a categoria “incorporal” (TEMPLE, 2011, p. 74). Os incorporais surgem nos corpos, são efeitos das relações dos corpos, estão na superfície dos corpos, daí uma associação que ligeiramente poderíamos definir como de causa e efeito. Porém essa é uma relação que os estoicos não admitem por considerarem que as causas não podem criar novas qualidades no ser, mas podem ser atributos do ser, “caso surjam novas qualidades, então, o ser não é perfeito, ato na natureza, mas potência, mediação aristotélica que os estoicos não admitem” (MIRANDA, 2019, 07). A relação entre o ser e os corpos não permite pensar numa realidade dividida, visto que tudo está sob o mesmo escopo corpóreo, entendendo que “os corpos definem-se pelos próprios corpos, o ser não surge como um princípio final que anula as contradições da realidade, para eles a divisão da realidade é o que eles denominam de ‘qualquer coisa’ (tí)” (MIRANDA, 2019, p. 07). Essa categoria do “qualquer coisa” admite tanto o ser corporal quanto o incorporal “o que significa dizer que os corpos existem, os incorporais subsistem e existem por meio dos corpos” (MIRANDA, 2019, p. 07). Dessa forma, a teoria dos incorporais estipula que os seres reais estão em relação uns com os outros e, nessa relação, eles se modificam e se fundem, mas não são as causas uns dos outros.

Os estoicos reconheceram quatro categorias de incorporais que abrigariam todos os tipos. “Segundo a lista de Sexto Empírico[2] [...] o lugar, o vazio, o tempo e o exprimível, problematizados tanto na profundidade da física quanto na superfície lógica” (BRÉHIER, 2012, p. 05). Dado é que não são as categorias comuns, apesar da denominação parecer cotidiana, cada um pode ser visto como uma singularidade.

 

Bréhier tomará a precaução de apontar minuciosamente como devemos compreender cada um; alertando-nos do risco de associarmos erroneamente o exprimível com a palavra, ou o significante; lembrará que o vazio não é parte do mundo, mas algo que, associado e exterior ao mundo, comporá “o tudo”; para compreender a singularidade do lugar, devemos nos desfazer da imagem contentor-conteúdo, o mundo representado como bonecas russas. Paradoxalmente, o lugar não tem lugar no mundo. Muito menos compreenderemos, dirá Bréhier, o tempo a partir de suas coordenadas: passado, presente e futuro. O tempo incorporal está fora dos seus eixos, infinito, como uma criança jogando dados, pertence somente àqueles que entraram num devir menor (BRÉHIER, 2012, p. 05).

 

O incorporal nessas categorias assume uma instabilidade, que nossa tentativa em explicar recai sobre os oximoros: o lugar sem-localidade, o tempo sem-existência, o exprimível sem-significante e o vazio sem-vacuidade. “Os primeiros estoicos possibilitam pensar uma nova e paradoxal imagem do pensamento: um pensamento sem imagem” (BRÉHIER, 2012, p. 05), um pensamento não-pensável, não-imaginável. Diante desses paradoxos, entendemos a crise no sistema de representação que muito afetou Deleuze e seus contemporâneos, e que tornou a filosofia tão crítica e independente dos preceitos de uma verdade imutável e definitiva. “É aí e por aí que perdemos a vontade de dizer a verdade, desfazemo-nos dos clichês mais banais e, com isso, da necessidade de um Deus a significar, de um mundo a designar e de manifestar os desejos e as vontades do sujeito” (BRÉHIER, 2012, p. 05).

No pensamento estoico há uma impossibilidade de o incorporal tocar o corpo, mas também há uma impossibilidade de separação do corpo pelo incorporal e por não possuir as características de corpo, não pode com ele se misturar (TEMPLE, 2011), esse é o terreno paradoxal do incorporal na filosofia estoica. Enquanto categoria, o exprimível é o tipo que nos interessa, pois ele é “um atributo da mistura dos corpos [...] como não designa uma qualidade do ser, é sempre exprimido por um verbo, o que quer dizer que ele não é um ser, mas uma maneira de ser” (TEMPLE, 2011, p. 77). O exprimível pode ser uma atitude do ser, um estado de ser.

 

Essa estratégia estoica de considerar o atributo a partir do verbo (como no exemplo “a árvore verdeja” no lugar de afirmar que “a árvore é verde) é imprescindível para garantir que o atributo (o Acontecimento) permaneça um exprimível, e não um efeito da mistura dos corpos. Isso significa, explica Bréhier, que o exprimível não pode ser confundido com qualquer outro objeto da razão: “Como os exprimíveis devem seguramente ser postos entre os incorporais, há ainda outros objetos da razão que não são incorporais: e com efeito as noções racionais não são de forma alguma os incorporais”. Na realidade, as noções racionais possuem uma origem corpórea, “são compostas dos traços reais que os corpos sensíveis deixam na parte hegemônica da alma”. Portanto, a razão é a causa ativa das noções racionais, e o pensamento as constrói, aumentando ou diminuindo os dados sensíveis que lhe são apresentados. Isso não significa que o exprimível não exista no pensamento. De fato, ele o reside, mas não enquanto objeto de representação sensível. O exprimível existe no pensamento porque o Acontecimento é tudo aquilo que se pensa sobre o ser, mas que não é o ser (TEMPLE, 2011, p. 77).

 

            Note que Temple assume o Acontecimento como um exprimível, aquilo que se pensa sobre o ser, o pensamento como o exprimível da mistura dos corpos. Concorda com Bréhier, que pontua o Acontecimento como incorporal, mas o pensamento como o encontro entre o corpo e a alma, não pode ser um incorporal, pois a razão é corpo e o pensamento opera na razão. O pensamento prescinde da noção de exprimível. O exprimível como um verbo assegura ao Acontecimento sua identidade incorporal, e não o identifica à concepção de efeito dos corpos.

 

Ora, mas como pensar aquilo que não existe como objeto sensível? Acostumados que estamos a identificar no fato ou no Acontecimento a verdadeira realidade objetiva, temos dificuldade em acompanhar o deslocamento promovido pelo estoicismo acerca do Acontecimento. É preciso considerar, assim, que a causa de cada fato é um corpo, conhecido pelos sentidos. Contudo, a ligação entre os fatos é irreal, ou seja, não há um antecedente que explique um consequente. Brevemente, para a lógica estoica o sujeito não tem uma relação essencial ou acidental com o atributo (Acontecimento). Apesar de existir no pensamento, o atributo se distingue do conhecimento real. Este, por sua vez, decorre da aproximação íntima da alma com os objetos exteriores, ou seja, da mistura dos corpos, de suas tensões internas (TEMPLE, 2011, p. 77).

 

A dificuldade que encontramos em pensar o Acontecimento como parte do pensamento, por ser exprimível, se dá na associação automática que temos entre Acontecimento e realidade, como episódio de um fato, ou como evento que atravessa a realidade.

 

Atributo e sentido: exprimível

Palavra-chave trazida pelos estoicos é a concepção de atributo. O atributo é uma estratégia do estoicismo para não admitir a relação de causa e efeito como explicação de incorporal, pois se este fosse a causa do corpo, ele seria outro corpo e não incorporal. Ao corpo é vedado se relacionar com uma força de mesma natureza, o incorporal não sendo da mesma natureza se desloca para a superfície do ser, sendo atributo do ser-corpo. Dessa forma o atributo é a parte propositiva da teoria, por isso são indicados por verbos de ação e não por predicados que indicam as propriedades do ser. “Os atributos dos seres são expressos não por epítetos que indicam propriedades, mas por verbos que indicam atos” (BRÉHIER, 2012, p. 20). Se o atributo fosse predicativo, faltaria uma substância na mistura dos corpos, como a energia escura que preenche todos os espaços vazios do universo, a parte que justifica a transformação do ser. “Assim, se o incorporal não é causa do ser, já que a força interior do ser não pode se conciliar com outra de natureza diversa, ao incorporal restará pairar na superfície do ser (que é o corpo) não como causa, mas atributo do ser” (TEMPLE, 2011, p. 76). Bréhier nos explica esse movimento do atributo na recusa do uso predicativo da cópula É. “Sabe-se que certos megáricos recusavam enunciar os juízos sob sua forma habitual, com a ajuda da cópula é. Não se deve dizer, pensavam eles: ‘a árvore é verde’, mas ‘a árvore verdeja’” (BRÉHIER, 2012, p. 21). Esse movimento busca suprimir do atributo a característica conceitual do epíteto, solucionando o problema da predicação reconhecido pelos estoicos, nasce outra denominação: o Acontecimento; reduzindo o exprimível ao fato e não ao conceito. “Quando se negligencia a cópula É e se exprime o sujeito por um verbo [...] o atributo, todo ele reduzido ao verbo, então não exprime mais um conceito (objeto ou classe de objetos), mas somente um fato ou um Acontecimento” (BRÉHIER, 2012, p. 21).

            Para Deleuze a singularidade do atributo observada pelos estoicos passou a ser reconhecida como Acontecimento, gerando uma fissura no entendimento de efeito, pois esse não é agrupável entre os seres (MIRANDA, 2019). O Acontecimento, na acepção cotidiana, pode ser pensado como efeito de uma causa maior, singular, relação que não é encontrada na origem. “Por isso o Acontecimento não é compreendido enquanto o ser, ou uma de suas propriedades, mas o que se diz ou o que pode ser afirmado do ser” (MIRANDA, 2019, p. 12), assim o Acontecimento é apontado como um exprimível pelo efeito dos verbos, pois ele se resolve na dimensão da linguagem, do simbólico. O Acontecimento simbólico é nosso caminho para pensar o que acontece numa aula Acontecimento. “Portanto, da mistura entre os corpos não se forma uma nova propriedade do corpo, mas um atributo. Na classificação dos incorporais, o atributo é o exprimível” (TEMPLE, 2011, p.79).  Aquilo que é conhecido do ser, sendo um fato ou Acontecimento, e deve ser expresso por um verbo. “Daí porque as causas do ser não podem ser os fatos ou os Acontecimentos, que são incorporais e como tais não se misturam com os corpos, apenas dizem algo sobre os corpos” (TEMPLE, 2011, p. 79). Numa imagem, podemos pensar: o fogo, que é corpo, é causa na água, que também é corpo, do atributo ser aquecida. Ou, o professor é causa no estudante, do atributo provocar. 

            O atributo como Acontecimento/incorporal exprimível da proposição faz aparecer outra dimensão que será apontada por Deleuze como uma definição para o Acontecimento: o sentido. “O sentido é a quarta dimensão da proposição. Os estoicos a descobriram com o Acontecimento: o sentido é o expresso da proposição [...] Acontecimento puro que insiste ou subsiste na proposição” (DELEUZE, 2015, p. 30). O sentido levanta a questão sobre a verdade na proposição, concepção que a filosofia se ocupou ao longo do tempo.

 

Na tradição o sentido é designado pelo seu valor de verdade numa determinada proposição, e as questões concernentes a três dimensões: a designação, a manifestação e a significação. A designação deve estar em acordo com aquilo que anuncia (o exprimível), ao mesmo tempo a designação deve estar em acordo com aquilo que indica, ou seja, ela designa o objeto daquilo que se anuncia ou se exprime, sendo composta então por duas condições necessárias: a dimensão do sentido e a dimensão do verdadeiro e do falso. A questão que Deleuze levanta é a seguinte: por haver duas dimensões, então o sentido não poderia fundar a verdade sem, ao mesmo tempo, permanecer alheia ao que exprime, posto que é na designação que se dá o verdadeiro e o falso... (MIRANDA, 2019, p. 03).

 

A designação concorda com o exprimível, mas ao mesmo tempo o exprimível deve estar alheio ao sentido, buscando uma ilustração: (tendo um computador a sua frente) (uma afirmação) – O computador é preto. (apontando o objeto). [Isto corresponde à verdade? (dimensão do verdadeiro ou falso)] [exprime sentido? A palavra – computador – dá sentido ao objeto?] Outra pessoa poderia ter uma palavra para designar o objeto – computador – assim para essa pessoa o sentido seria outro, ou, não haveria o objeto imediatamente próximo à designação, um objeto ocultado. O sentido está operando de forma automática, a mente preenche algumas lacunas para estabelecer o sentido? A designação ainda assim seria verdadeira? Essa é uma questão estranha, pois sabemos o domínio do sentido, mas parece que ele se antecipa em montar as peças de entendimento. As coisas são aquilo que falamos que são, portanto, as coisas só existem porque antes veio o sentido, a necessidade de fazer sentido, antecipa as coisas. Para Deleuze essa questão pode estar remetida a um “faro psicológico” ou “formalismo lógico”: a designação se referindo ao objeto enquanto coisa externa (forma) e o sentido a um tipo intuitivo de compreensão (MIRANDA, 2019). Assunto complexo que envolve a multiplicidade de interpretação, o paradoxo do É e NÃO-É ao mesmo tempo, Deleuze praticamente inventa uma filosofia que admite o “sentido alheio ao que exprime” na mesma proposição. Essa ruptura de identidade das coisas com suas denominações existe, portanto, como incorporal. Essa problemática já foi levantada pela arte no início do século XX e um exemplo é a obra A traição das imagens de René Magritte,1928.

 

Figura 1: A traição das imagens

Uma imagem contendo peças de metal, panela

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Los Angeles County Museum of Art, MAGRITTE, René. 1928-9. Óleo sobre tela. 60 x 81 cm.

 

            Também na Filosofia tem sido uma questão importante, a problemática do sentido sobre as coisas, ou o sentido sobre os corpos, levantado por filósofos como Michel Foucault e Gilles Deleuze. O que permite uma contraposição considerável, visto que o sentido, na acepção estoica, não emerge das coisas, mas no que delas emanam (atributos), ou dito de forma estoica, o sentido não emerge dos corpos, está na superfície como incorporal, ou como estamos dizendo, o sentido existe enquanto Acontecimento.

 

Proposição: Acontecimento como linguagem

Tomemos a proposição como parte expressiva de um Acontecimento, aquilo que se diz sobre ele, aquilo que dele corresponde a linguagem. Mas antes é importante saber que uma proposição tem diversos entendimentos: na linguística a oração, a frase, a sentença com suas subdivisões – sujeito e predicado (aquilo que se diz sobre o sujeito, o próprio Acontecimento); na filosofia o enunciado, a afirmação verdadeira (e por isso polêmica, há quem negue o sentido de verdade da proposição filosófica); na arte a provoca (ação) artística e a relação estética; na matemática o problema; na ciência a tese; na educação o dispositivo mobilizador. Deleuze afirma que o acontecimento se relaciona com a linguagem por ser parte exprimível (expressa dos enunciados) das proposições: “é próprio aos acontecimentos o fato de serem expressos ou exprimíveis, enunciados ou enunciáveis por meio de proposições pelo menos possíveis” (DELEUZE, 2015, p. 13). Nesse sentido encontramos na ideia de proposição deleuzeana uma importante contribuição, pois a partir do conceito de exprimível/expressivo tocamos a arte e filosofia, consequentemente a educação. A arte contemporânea, segundo Celso Favaretto (2000, p. 114), “configura numa ‘obra’ que não é mais ‘obra de arte’, mas uma proposição, uma ideia, uma ação. Os trabalhos contemporâneos são, assim, táticos, diferentemente dos modernos, estratégicos.” Assumimos, assim, uma preferência pelo entendimento de proposição pela ótica artística e educativa, articulando com a proposição deleuzeana, filosófica, mas qualquer que seja terá o cunho de linguagem. A obra Setamancos de Lia Chaia pode nos ajudar a entender a acepção da arte contemporânea como proposição, e aqui salientamos que se trata de uma proposição filosófica.

 

Figura 2: Setamancos.

Uma imagem contendo Diagrama

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Lia Chaia, 2009. Disponível em: https://liachaia.com/SETAMANCO

 

A ideia de proposição é para nós a chave para se pensar o ensino de filosofia e de arte. Deleuze (2015) aponta a existência de três relações distintas da proposição: 1ª designação/indicação, 2ª manifestação e 3ª significação; também afirma o sentido como sendo uma quarta relação. A designação/indicação “é a relação da proposição a um estado de coisas exteriores (datum[3])” (DELEUZE, 2015, p. 13). A designação traz a perspectiva da relação entre os corpos por meio de indicadores formais: isto, aquilo, este, aqui etc. Os nomes próprios são designantes especiais por estarem na formação de singularidades materiais. Essa relação se dá no nível da associação entre as palavras e as coisas, aquilo que nomeamos e significamos, parte de um movimento de seleção de ideias e imagens da coisa a ser significada, é isto, não é isto. Portanto a designação trata da afirmação verdadeira ou falsa:

 

Verdadeiro significa que uma designação é efetivamente preenchida pelo estado de coisas, que os indicadores são efetuados, ou a boa imagem selecionada. "Verdadeiro em todos os casos" significa que o preenchimento se faz para a infinidade das imagens particulares associáveis às palavras, sem que haja necessidade de seleção. Falso significa que a designação não está preenchida, seja por uma deficiência das imagens selecionadas, seja por impossibilidade radical de produzir uma imagem associável às palavras. (DELEUZE, 2015, p. 14)

 

            Já a manifestação relaciona a proposição ao sujeito que se expressa e se exprime, desta forma a manifestação se coloca como o expresso dos desejos e crenças correspondentes à proposição, pois se trata da fala do EU: o que para a designação está o nome próprio, o EU está para a manifestação - singularidade material, manifestante base como: eu, tu, amanhã, sempre, em toda parte, etc (DELEUZE, 2015). “Enfim, da designação a manifestação se produz um deslocamento de valores lógicos representado pelo Cogito: não mais o verdadeiro e o falso, mas a veracidade e o engano” (DELEUZE, 2015, p. 14). A significação busca relações das palavras com conceitos universais, do ponto de vista da proposição, as significantes buscam se relacionar com outras proposições, para chegar à conclusão por meio de uma figura de demonstração e pela relação direta de uma condição de verdade; na linguagem os significantes são: implica e logo (DELEUZE, 2015)[4]. Do ponto de vista da verdade, a significação não se refere ao falso, mas ao absurdo.

 

A proposição condicionada ou concluída pode ser falsa, na medida em que designa atualmente um estado de coisas inexistentes ou não é verificada diretamente. A significação não fundamenta a verdade, sem tornar ao mesmo tempo o erro possível. Eis por que a condição de verdade não se opõe ao falso, mas ao absurdo: o que é sem significação, o que não pode ser verdadeiro nem falso. (DELEUZE, 2015, p. 15)

 

            A proposição no ensino de Arte e Filosofia mobiliza o aluno no agenciamento do EU ↔ TU → NÓS, no percurso do acontecimento coletivo, comungamos com o que disse Favaretto ao afirmar que arte contemporânea deixa de ser uma obra de arte para ser uma proposição, da mesma forma podemos pensar a educação e o ensino: uma proposição mobilizadora de Acontecimentos-fissuras. Assim o Acontecimento pedagógico é a emergência de criação de sentido, o grão de areia que provoca no sujeito a elaboração de si e do mundo, o ensino como produção de sentido é um ensino acontecimental, que não estará no campo da memória, mas sim no campo da presença, que agregará sentido cada vez que for atualizada.

 

Considerações finais

            A perspectiva do Acontecimento no campo de possibilidades da educação nos permite olhar para situações de ensino e aprendizagem numa via que admite o imponderável como parte desse processo, o imponderável das relações, o tecido que compreende o entrecorpos, o incorporal, aquilo que não pode ser escolarizado e disciplinarizado, na verdade se encaminha para uma outra possibilidade que não passa pela disciplinarização do mundo mas admite o mundo como um campo de aprendizado, basta que possamos ver. Lembramos de uma cena do filme La lengua de las mariposas[5], 1999, quando inesperadamente entra pela janela da sala de aula uma borboleta, captando a atenção tanto dos alunos quanto do professor e a partir desse imprevisível, dessa fissura da rotina, desse Acontecimento, o professor muda seu plano de aula para admitir a existência da borboleta, passando a construir outro caminho pedagógico, o caminho da borboleta. O professor vê e permite que os alunos também vejam.

 

Referências

 

BRÉHIER, Émile. A teoria dos incorporais no estoicismo antigo. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2012. Disponível em: https://lelivros.love/book/baixar-livro-a-teoria-dos-incorporais-no-estoicismo-antigo-emile-brehier-em-pdf-epub-mobi-ou-ler-online/ Acesso em: 24 jul. 2022.

 

DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2015.

 

FAVARETTO, Celso. Arte do tempo: o evento. Sexta Feira, São Paulo, n. 5, p. 110–117, 2000. Disponível em: https://issuu.com/gersontung2/docs/n5-web_1?viewMode=doublePage. Acesso em: 24 jul. 2022.

 

MIRANDA, Wandeilson S. De. A Teoria dos incorporais e a Filosofia do acontecimento de Gilles Deleuze. Rev. Interd. em Cult. e Soc. (RICS), São Luis, v. 5, n. 2, p. 1–17, 2019. Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/ricultsociedade/index. Acesso em: 24 jul. 2022.

 

REICHERT, M. C. Deleuze, Educação e Acontecimento:Um percurso rizomático. Kalagatos , [S. l.], v. 20, n. 1, p. eK23005, 2023. Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/kalagatos/article/view/8533. Acesso em: 25 fev. 2023.

 

TEMPLE, Giovanna. C. Poder e resistência em Michel Foucault: uma genealogia do acontecimento. 2011. Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2011. Disponível em:

https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/4792/4527.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 24 jul. 2022.

 

 

Notas



[1] Precisamos admitir os diversos entendimentos sobre a ideia de Acontecimento que surgem em diferentes tempos e locais, a saber: efeito, fato, exprimível, incorporal e sentido.

 

[2] Médico e filósofo grego de origem incerta, um dos representantes mais importantes do ceticismo pirroniano, cujos escritos têm sido fonte da maioria das referências desta corrente filosófica. Fonte: Brasil Escola, s/d.

 

[3] Do latim: dados, detalhes, pormenores; na cartografia são os dados de localização: longitude e latitude.

 

[4] A implicação é o signo que define a relação entre as premissas e a conclusão; logo é o signo da asserção, que define a possibilidade de afirmar a conclusão por si mesma no final das implicações (DELEUZE, 2015, p. 15).

 

[5] Filme espanhol que retrata o início da Guerra Civil Espanhola, direção: José Luis Cuerda. Disponível em: https://youtu.be/UYNyrPVTbIk.

 

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