É possível educar o pensamento?

O Programa de Filosofia para Crianças de M. Lipman

 

Is it possible to educate thought?

The Philosophy for Children program by M. Lipman

 

Josué Cândido da Silva

Professor Doutor na Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, BA, Brasil.

josil@uesc.br – https://orcid.org/0000-0003-0915-6522

 

Amanda Santos da Silva

Graduada pela Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, BA, Brasil.

assilva.fls@uesc.br – https://orcid.org/0000-0003-3911-0138

 

Recebido em 05 de maio de 2022

Aprovado em 22 de setembro de 2022

Publicado em 26 de outubro de 2022

 

RESUMO: Um dos pontos centrais do Programa de Filosofia para Crianças (PFC), criado por Matthew Lipman, é a proposta de uma educação para o pensar através do ensino de filosofia. Se, por si só, a ideia de ensinar filosofia desde as séries iniciais já é inovadora, seu enfoque pragmático de melhorar as habilidades cognitivas das crianças e adolescentes através do diálogo filosófico ainda soa como um desafio timidamente realizado. Neste artigo, pretendemos discutir a proposta de uma educação para o pensar e a crítica dos pressupostos da educação formal, além de investigar porque a filosofia seria a disciplina mais adequada para realizar essa tarefa. Em seguida, exploraremos os conceitos de habilidades cognitivas e comunidade de investigação e a relação dos mesmos com a linguagem. Por fim, discutiremos as críticas feitas ao PFC e a nossa resposta a elas, reconhecendo o alcance e os limites de cada uma delas.

Palavras-chaves: Filosofia para crianças; Habilidades cognitivas; Pragmatismo.

 

ABSTRACT: One of the central aspects of the Philosophy for Children Program (P4C), created by Matthew Lipman, is the proposition of an education to think through philosophy. If by itself, the idea of ​​teaching philosophy yet in the earliest grades is already innovative, its pragmatic approach to improving the cognitive skills of children and teenagers through philosophical dialogue still seems like a diffidently taken up challenge. In this paper, we intend to discuss the proposal of an education for thinking and criticize the presuppositions of formal education, in addition to inquiry why philosophy would be the most appropriate discipline to carry out this task. Next, we will explore the concepts of cognitive skills and community of inquiry and their relationship to language. Finally, we will discuss the critiscisms made of the P4C and our response to them, recognizing the scope and limits of each of them.

Keywords: Philosophy for children; Cognitive skills; Pragmatism.

 

 

Introdução

          No início do Discurso do Método, Descartes afirma que o “bom senso é a coisa no mundo melhor partilhada”, portanto, não se trataria de tornar as pessoas mais bem pensantes, mas de ensiná-las a conduzirem bem seus pensamentos através do método. Hoje, a psicologia da aprendizagem e as ciências da cognição nos mostram que o pensamento não só tem uma história evolutiva que definitivamente nos afastou dos nossos primos, como chimpanzés e bonobos, mas também que uma série de fatores em nossa história individual pode promover ou dificultar nossa capacidade de pensamento (Cf. TOMASELLO, 2019). O pensamento, assim como a linguagem, é algo que se desenvolve e que, portanto, pode ser educado. Na verdade, essa educação está ocorrendo o tempo todo, mesmo que de maneira não intencional, as nossas interações, principalmente com as crianças, são sempre momentos de descoberta, embora elas nem sempre sejam ricas e construtivas.

          Contraditoriamente, o papel da escola seria o de desenvolver, por assim dizer, o pensamento “mal educado”, ou seja, o pensamento questionador, autônomo, livre, justamente o contrário das intenções hegemônicas do Estado que são de disciplinamento e controle, a começar pelo corpo. Há mais de um século, Maria Montessori observava ironicamente que as carteiras escolares projetadas para manter as crianças imóveis durante a aula teriam conseguido uma façanha que nem as duras lutas do homem primitivo e os trabalhos do homem civilizado foram capazes de produzir. A coluna vertebral “que não se dobrou nos embatestes travados contra os leões do deserto, ou quando o homem subjugou o mamute, que manteve a sua posição quando o homem escavou a pedra, dobrou o ferro, submeteu a terra ao seu domínio [...] não resiste, e cede sob o jugo da escola!” (MONTESSORI, 2017, p. 26). Ao invés de desenvolver o governo de si, a escola ostensivamente deixa claro seus mecanismos heterônomos de controle: horários, filas, grades, carteiras, regras. O resultado é o pensamento acrítico e dócil ou inconformismo e revolta, ambos de interesse das instituições de poder, pois de um lado criam o conformismo, e de outro justificam o uso legítimo da violência por parte do Estado com o aval da opinião pública.

            De modo geral, todo sistema educacional, seja formal ou não, procura incutir nas crianças certa “visão de mundo”, mas quando estamos falando de habilidades cognitivas estamos tratando de outro nível de formação. Espera-se que as crianças sejam capazes de realizar certas operações matemáticas complexas; comparar diferentes períodos históricos ou conjugar verbos adequadamente. Para tanto, é necessário o desenvolvimento de habilidades cognitivas que compõem o que Lipman chamou de pensamento de ordem superior. Ocorre que nos processos formais de educação esse desenvolvimento aparece como suposto, ou como resultado, mas não como algo a ser desenvolvido. Por exemplo, no Sistema de Avaliação Nacional da Educação Básica (SAEB) para ciências humanas espera-se que os alunos nas séries finais do Ensino Fundamental sejam capazes de estabelecerem relações de causa e efeito entre eventos históricos ou geográficos (BRASIL, 2020, p. 8). Para isso, supomos que os alunos sejam capazes de identificar o que é uma conexão necessária e não apenas de contiguidade. Ou seja, que D. Pedro I declarou a independência do Brasil para contornar a instabilidade política e não porque se encontrava, naquele momento, com um desarranjo intestinal (relação de contiguidade). Para desenvolver tal habilidade, o aluno precisa comparar uma série de casos até que o conceito de conexão necessária se apresente para ele e seja capaz de perceber que vacinas não podem alterar nossa genética ou controlar nossas mentes por serem eventos desconexos.

Dito isto, nos perguntamos em que momento o professor de história ou de qualquer outra disciplina realiza exercícios para desenvolver tais habilidades ou é capaz de identificar quais alunos já às possuem? A resposta mais geral é que educadores e educadoras estão tão ocupados em desenvolver o conteúdo que lhes é exigido, que não encontram espaço nas aulas para trabalhar as habilidades cognitivas. Embora seja óbvio que as habilidades devam ser aprendidas, pois são cobradas nas avaliações nacionais, não parece tão claro que elas devam ser ensinadas. Para sermos justos, nas séries iniciais do Ensino Fundamental esta preocupação até existe, mas vai sendo negligenciada quando justamente as exigências aumentam. É quando os professores se sentem mais frustrados ao perceberem que as habilidades necessárias ao desenvolvimento de sua disciplina não estão presentes. A maior parte das queixas dos professores de Filosofia, por exemplo, refere-se às dificuldades dos alunos com interpretação de texto e não propriamente com os conteúdos trabalhados. Tais habilidades deveriam ter sido desenvolvidas em séries anteriores, mas se não foram, o que fazer? Como observa Lipman, possivelmente “os professores de outras disciplinas repitam essas mesmas perguntas e discutam se as habilidades específicas necessárias ao domínio de uma dada disciplina não deveriam ser sempre adquiridas antes. Esperar até que a matéria tenha de ser estudada é esperar muito” (LIPMAN, 1990, p. 49). Mas supor que o professor ensine os conteúdos de sua disciplina e, ao mesmo tempo, prepare as habilidades requeridas para a série seguinte talvez seja exigir demais. Portanto, teríamos que imaginar uma disciplina que buscasse tanto o seu próprio desenvolvimento quanto das outras disciplinas, ou seja, que fosse capaz de desenvolver as habilidades cognitivas exigidas por todas as outras. Segundo Lipman, essa disciplina é a filosofia, isso porque a filosofia ocupa-se de conceitos essencialmente contestáveis.

 

A filosofia é atraída pelo problemático, pelo controverso, pelas dificuldades conceituais que se escondem nas frestas e interstícios de nossos esquemas conceituais. Não é que os filósofos estejam inclinados a celebrar apenas essas dificuldades e não fazer qualquer esforço para removê-las, propondo esclarecimentos e elucidações. É que simplesmente eles reconhecem tais esforços como inerentes ao sisifismo: o problemático é inesgotável e se reafirma desumanamente, quaisquer que sejam nossos esforços (LIPMAN, 1990, p. 51).

 

            O caráter aberto e questionador da filosofia a constitui como solo fértil para o aperfeiçoamento das habilidades cognitivas necessárias para o desenvolvimento das outras disciplinas. Por isso, ela deve ser ensinada, não só na universidade, mas desde as séries iniciais.

 

O Programa de Filosofia para Crianças (PFC) e as habilidades cognitivas

          O Programa de Filosofia para Crianças (PFC) foi desenvolvido pelo filósofo norte-americano Matthew Lipman (1923-2010). Como professor na Universidade de Columbia, já se preocupava em como desenvolver a criticidade nos alunos nas aulas de filosofia, mas efetivamente tais preocupações só tomaram forma quando percebeu que, para enfrentar o problema, teria que iniciar o cultivo da criticidade nas crianças desde as séries iniciais[1]. Foi assim que nasceu a ideia de criar as novelas filosóficas como conteúdo problematizador para estimular as crianças e adolescentes a refletirem filosoficamente sobre as questões que as histórias as faziam pensar. A primeira novela foi criada em 1968 e publicada em 1970 e chamava-se A descoberta de Ari dos Telles, um trocadilho com o nome de Aristóteles e estava voltada para o ensino de lógica para alunos do sexto e sétimo ano. Com o sucesso inicial da aplicação do seu trabalho nas escolas, Lipman foi encorajado a criar outras novelas, então vieram Luísa, para discutir questões éticas com alunos do oitavo e nono ano, Mark, sobre teoria social, e Suki sobre estética e filosofia da arte (estas seriam voltadas para o Ensino Médio e não tiveram tradução para o português). Posteriormente, já nos anos 80, Lipman criou as novelas para séries iniciais: Pimpa para o quarto e quinto ano, Issao e Guga para o segundo e terceiro, e Elfie para pré-escola ou primeiro ano. No Brasil, para as crianças da pré-escola, foi adotada a novela Rebeca escrita por Ronald Reed. Juntamente com as novelas, Lipman viu a necessidade de criar manuais para orientação dos professores no uso das novelas e os produziu em colaboração com Ann Sharp. A ideia é que após a leitura de um capítulo ou episódio da novela, os alunos fossem provocados a fazer questões sobre o que a novela os fez pensar. A partir das questões levantadas pelos alunos dá-se início ao diálogo na comunidade de investigação.

          As intervenções do professor nesse diálogo buscam fazer os alunos refletirem sobre suas próprias falas e sobre as falas dos colegas de modo a sair de uma mera conversa para construção de um verdadeiro diálogo. É justamente através do diálogo sobre os temas filosóficos que as habilidades cognitivas vão sendo desenvolvidas. Para efeitos didáticos, Lipman organizou as habilidades cognitivas em quatro grupos: Habilidades de investigação, raciocínio, formação de conceitos e tradução.

 

Investigação é uma prática autocorretiva onde um tema investigado com o objetivo de descobrir ou inventar maneiras de lidar com aquilo que é problemático. Os produtos da investigação são os julgamentos.

Raciocínio é o processo de ordenar e coordenar aquilo que foi descoberto através da investigação. Implica em descobrir maneiras válidas de ampliar e organizar o que foi descoberto ou inventado enquanto era mantido como verdade.

A formação de conceitos implica na organização de informações para grupos relacionais e, então, analisar e esclarecê-los para facilitar sua utilização na compreensão e no julgamento. O pensamento conceitual envolve relacionar conceitos entre si a fim de formar princípios, critérios, argumentos, explicações, etc.

Tradução implica na transmissão de significados de uma língua ou esquema simbólico, ou modalidade de sentido, para outra, mantendo-os intactos. A interpretação se faz necessária quando os significados traduzidos não são capazes de fazer um sentido adequado no novo contexto no qual foram colocados. Consequentemente, o raciocínio preserva a verdade e a tradução preserva o significado (LIPMAN, 1995, p. 72).

 

Nos manuais dos professores há uma série de indicações de exercícios, atividades e planos de discussão voltados especificamente para o desenvolvimento das habilidades cognitivas. De modo que o professor possa ter algum parâmetro de como o desenvolvimento dos alunos está ocorrendo, quais habilidades precisam ser mais bem trabalhadas, etc. Isso cria um currículo flexível que se orienta de acordo com a própria comunidade, por assim dizer, a comunidade pauta o currículo e não o contrário. Assim, é comum que em uma sala os alunos estejam discutindo mais profundamente um determinado tema e que, em outra, tal tema sequer lhes tenha chamado a atenção. Isso torna as aulas extremamente dinâmicas com resultados sempre surpreendentes. Todas essas ocasiões são oportunidades para desenvolver as habilidades cognitivas, tendo em vista que o papel da educação é contribuir para que as crianças possam pensar melhor.

 

A educação não é, portanto, uma questão de aquisição de habilidades cognitivas, mas de fortalecimento e aperfeiçoamento de habilidades. Em outras palavras, as crianças estão naturalmente inclinadas a adquirir habilidades cognitivas, do mesmo modo que adquirem naturalmente a linguagem, e a educação é necessária para fortalecer o processo (LIPMAN, 1995, p. 65).

 

No centro do diálogo estão as questões filosóficas, que por sua natureza radical e aberta permitem que as crianças e jovens realizem o filosofar livre de coerção. Não existe no programa uma preocupação em fazer uma citação direta aos filósofos ou que as crianças saibam quem foi Platão, o que ele pensava etc. Aliás, este é um problema de muitas propostas de ensino de filosofia para crianças que tentam apresentar a filosofia como um conjunto de doutrinas. Junto com essas doutrinas, vem a ortodoxia do pensamento, ou seja, a interpretação correta que a criança deve fazer daquilo que estudou. Assim, a filosofia se torna uma disciplina como outra qualquer, com coisas para decorar e responder na prova. Ensinar a disciplina de filosofia nesses moldes, pode se tornar um grande desfavor à filosofia, além de um amontoado de informações inúteis para as crianças, prontas para serem esquecidas no dia seguinte ao da prova. Isso não quer dizer que não exista conteúdo filosófico nas novelas de Lipman, apenas que tal conteúdo não está lá para ser ensinado e sim refletido dialogicamente. Por exemplo, na novela de Pimpa, a personagem diz que as relações não são reais, que na rua entre desconhecidos, ninguém poderia dizer que ela e Marina são irmãs. Nesse caso, Pimpa está defendendo uma posição nominalista. No momento da discussão algumas crianças discordam de Pimpa e defendem posições mais próximas do realismo, mas o objetivo não é que ao final o professor apresente as definições de nominalismo e realismo, se as crianças chegarem a formar esses conceitos por si mesmos será ótimo, mas já é uma grande conquista que elas tenham percebido o problema filosófico a partir de uma reflexão sobre a experiência cotidiana. A partir de situações como essa, as crianças vão começando a refletir filosoficamente sobre suas próprias experiências. É justamente esta atitude filosófica e não a assimilação de conteúdos irrefletidos que torna o Programa de Filosofia para Crianças algo original. Essa originalidade está alicerçada em duas grandes referências filosóficas: Sócrates e Dewey.

          Destaca-se, do primeiro, o método do “partejar de ideias”, ou seja, parir novas ideias através do diálogo. Nesse modelo de investigação, os envolvidos têm total liberdade para desenvolver mecanismos e estratégias para criação de ideias e pensamentos críticos, examinando cuidadosamente a temática estabelecida para se discutir. Uma das lições de Sócrates, que está em paralelo com o pensamento de Lipman, é que “um dos melhores meios de estimular as pessoas a pensarem, é envolvê-las no diálogo” (LIPMAN, 2001, p.14).Conforme Lipman, no que se refere à prática filosófica:

 

Contudo, aplicar filosofia e fazer filosofia não é a mesma coisa. O paradigma do fazer filosofia é a figura altiva e solitária de Sócrates. Para ele não se tratava de uma aquisição nem de uma profissão, mas de um modo de vida. O que Sócrates nos exemplifica não é uma filosofia conhecida nem aplicada, mas praticada. Ele nos desafia a reconhecer que como obra, como forma de vida, a filosofia é algo a que qualquer um de nós pode dedicar-se. (LIPMAN, 1990, p. 28)

 

            Com base nessa filosofia socrática, podemos transformar a sala de aula em uma comunidade de investigação em que a reflexão tem livre curso em um ambiente democrático. Pois para filosofar basta apenas refletir de forma consciente sobre determinado assunto, analisando o que está sendo explorado através do diálogo. Portanto, Lipman evidencia a ideia central de Sócrates:

 

Em nenhum lugar Sócrates jamais estabeleceu um limite de quando fazer filosofia com pessoas de idades diferentes, pois fazer filosofia não é uma questão de idade, mas de habilidade em refletir escrupulosa e corajosamente sobre o que se considera importante. (LIPMAN, 1990, p.31)

 

            Com Dewey, a influência deu-se a partir das propostas sobre democracia e educação, com lampejos que também contribuíram para originar a comunidade de investigação, como uma prática educativa. Tanto para Lipman como para Dewey, a democracia vai além de um sistema político, sendo um ideal de vida que todas as pessoas deveriam seguir, na construção de uma sociedade mais justa (KOHAN, 1998).

           É possível notar as particularidades do pensamento de Dewey nas propostas sobre democracia e educação. Para ele, a democracia estabelecida em uma sociedade tem como principal objetivo fazer com que todos os cidadãos sejam tratados de forma igualitária, visando sempre o bem-estar do coletivo. Para que esse objetivo seja atingido, todos, que compõem a comunidade, devem ser ouvidos, e também participar de forma direta nas decisões políticas (KOHAN, 1998, p.114).

          Desse modo, o bom encaminhamento de uma comunidade democrática implica a tolerância e o respeito às diferenças de cada pessoa, concebendo a ideia da existência de uma pluralidade heterogênea, pois o contrário disso, a padronização homogênea de interesses minoritários, implanta a ditadura. Segundo Dewey, a democracia e a educação andam de mãos dadas, pois os hábitos democráticos levam ao crescimento pessoal e coletivo, que superam os preconceitos referentes às diferenças, enriquecendo as experiências individuais e compartilhadas. Uma sociedade democrática busca sempre a autocorreção, por isso, está sempre se renovando. Desse modo:

 

[...] Não se trata apenas de educar para a democracia, mas de democratizar para educar. Esta relação recíproca se fundamenta em que ambas, democracia e educação, são modos sociais de questionamento e investigação cujo propósito comum é enriquecer a experiência humana (KOHAN, 1998, p.119).

 

            Compreendendo que a educação fortalece a democracia, a qualidade da mesma, em uma determinada sociedade, está intrinsicamente ligada à qualidade da educação efetuada.      Em razão disso, é relevante a harmonia, nesses dois âmbitos, para o sucesso de uma sociedade. “A qualidade de vida de uma democracia, enquanto modo de vida associado depende da qualidade da educação e da filosofia que nela são praticadas” (KOHAN, 1999, p.130).

          Nesse contexto, a escola pode ser um espaço propício para exercer com qualidade o pensamento e o julgamento. Essa, por possuir a responsabilidade de cumprir com dois papéis básicos, a socialização e a democratização da aquisição de conhecimento, pode contribuir na formação moral e ética dos alunos através do fortalecimento tanto da autonomia intelectual quanto da autonomia moral ao estimular as crianças a pensarem por si mesmas e a refletirem sobre suas ações e atitudes. Dessa forma, a escola pode fornecer às crianças bons modelos de práticas dialógicas e de correção do pensamento, como afirma Lipman, é possível:

 

[...] dar as crianças uma prática sistemática no emprego de critérios no decorrer de sua escolaridade de modo que na época em que estiverem prontas para a cidadania ativa elas estarão muito bem preparadas para realizar o gênero de avaliação das instituições que cidadãos democráticos têm de saber fazer (LIPMAN, 1990, p.39).

 

Comunidade de investigação e habilidades cognitivas

Como vimos acima, a ideia de comunidade de investigação está ligada ao ideal regulativo de uma democracia forte, ou seja, uma democracia que não seja apenas formal, mas que faça parte do cotidiano das pessoas. Gostaríamos agora de aprofundar um pouco mais sobre como a metodologia da comunidade de investigação do Programa de Filosofia para Crianças desenvolve as habilidades cognitivas através do diálogo. Afinal, se poderia alegar que todas as pessoas fazem uso cotidiano da linguagem e suas habilidades cognitivas não se desenvolvem espontaneamente por causa disso. Deve haver, portanto, uma diferença significativa entre nossas conversas corriqueiras e a forma como o diálogo se desenvolve na comunidade de investigação. Segundo Lipman, o conceito de comunidade de investigação “cunhado por Charles Sanders Peirce, foi originalmente restrito aos profissionais da investigação científica, todos podendo ser considerados como formando uma comunidade por estarem igualmente dedicados à utilização de procedimentos semelhantes no desenvolvimento de objetivos idênticos” (LIPMAN, 1995, p. 31). Obviamente, Lipman ampliou o conceito para além da comunidade científica, mas reteve o caráter normativo da comunidade presente no conceito de Peirce. Na concepção pragmática de conhecimento de Peirce,

 

O real é, pois, aquilo em que, cedo ou tarde, informação e razoamento finalmente resultariam, e que é, portanto, independente dos nossos caprichos. Assim, a própria origem da concepção de realidade mostra que esta concepção envolve essencialmente a noção de uma COMUNIDADE, sem limites definidos, e capaz de um aumento definido de conhecimento (CP 5.311)[2].

 

Esta concepção de realidade de Peirce é o que poderíamos chamar de realismo crítico do significado, que se opõe tanto ao ceticismo de Hume como à lógica transcendental de Kant ao postular o caráter hipotético e falível de todas as proposições científicas, cuja verdade é sempre provisória, na medida em que novas descobertas podem falsear o que hoje consideramos como verdade científica. O conhecimento está sempre em processo, cujo progresso está longe de ser linear e cumulativo. Nesse sentido, surge o problema de como podemos verificar se a comunidade de investigação não está indo na direção errada e se afastando da verdade ao invés de aproximar-se dela. Duas condições, segundo Peirce, regulam a investigação da comunidade e lhe garantem tanto a autocorreção quanto o melhorismo em direção a um maior conhecimento. De um lado, a própria realidade que se confronta com nossas hipóteses e nos obriga a modificá-las e, por outro, a lógica da investigação que implica naquilo que Peirce veio a chamar de “socialismo lógico”. O socialismo lógico seria o princípio regulativo segundo o qual cada indivíduo é compelido a abandonar os seus interesses particulares em prol da comunidade ilimitada de investigadores. Como afirma Peirce, “aquele que não sacrificaria a própria alma para salvar o mundo inteiro, é ilógico em todas as suas inferências, coletivamente. Assim o princípio social é intrinsecamente arraigado na lógica” (CP 5.354). Ou seja, o engajamento na comunidade de investigação implica em se assumir igualmente os componentes sociais e éticos da comunidade em que o interesse particular dá lugar ao interesse da comunidade. Como observa Karl-Otto Apel,

 

O consenso postulado de maneira senso-crítica é a garantia da objetividade da cognição que surge em lugar da “consciência geral” transcendental kantiana; ela funciona como um princípio regulativo que ainda está por ser realizado como ideal comunitário na comunidade real e através dela; e aí a incerteza quanto ao alcance factual do objetivo precisa ser substituída por um princípio ético de engajamento e de esperança: o princípio peirceano do “socialismo lógico” (APEL, 2000, 218).

 

O compromisso ético-normativo que surge do engajamento na comunidade de investigação inspirou o filósofo Karl-Otto Apel a desenvolver, juntamente com Jürgen Habermas, o que chamaram de ética do discurso. Embora Lipman tenha extraído consequências éticas da comunidade de investigação em sala de aula, não se preocupou em desenvolver exaustivamente os pressupostos filosóficos desse processo, focando mais em seus aspectos pedagógicos. Por isso, cremos que as contribuições da ética do discurso de Apel e Habermas podem contribuir para subsidiar a fundamentação teórica da comunidade de investigação.

Segundo Apel, todo aquele que argumenta levanta uma pretensão de validade. As pretensões de validade podem ser classificadas em diferentes tipos de acordo com o tipo de racionalidade que reivindicam. Por exemplo, o sujeito reivindica uma pretensão de verdade quando se trata de atos de fala constatativos que se referem a estados de coisas no mundo objetivo. Já na ação regulada por normas nas relações interpessoais do convívio social o critério de validade é o de retitude ou de correção frente às normas éticas. Por fim, no campo da expressão de sentimentos e emoções subjetivas, a exigência de validade refere-se à veracidade ou sinceridade subjetiva (Cf. HABERMAS, 2016, pp. 147-195). Um único ato de fala, portanto, pode ser objeto de análise de mais de um critério de validade, por exemplo, se o sujeito está falando a verdade, se está sendo sincero ou ainda se está agindo com retitude ou não. Cabe à comunidade avaliar criticamente cada argumento dos participantes no diálogo. O que gostaríamos de destacar aqui é que necessariamente todo aquele que realiza uma fala no diálogo está simultaneamente esperando que sua fala seja levada a sério pela comunidade e que seu argumento esteja sujeito às regras do diálogo público livre de coerção. Ou seja, todo aquele que argumenta já admite a priori a existência de determinadas regras que regem o discurso, sem as quais este não seria possível. Tais regras não pertencem a nenhum participante em particular, mas constituem as bases intersubjetivas de validade do próprio processo argumentativo. São elas que tornam possível o jogo de linguagem, no sentido de Wittgenstein, já que não existe um jogo sem regras. As regras, por sua vez, não pertencem a nenhum dos participantes, elas se constituem pragmaticamente enquanto jogamos, já que são constitutivas da própria linguagem.

É claro que é sempre possível deixar de jogar segundo as regras: um participante pode sofrer constrangimento ou ser “cancelado”; podemos tentar enganar os outros, ou simplesmente ignorar os argumentos. Em nossas conversas cotidianas vemos coisas assim ocorrem o tempo todo. É por isso que toda comunidade real, em que as normas nem sempre são levadas em conta, reconhece a priori uma comunidade ideal de comunicação que fundamenta todo discurso possível. Daí deriva-se o princípio da ética do discurso de que cada participante no diálogo crítico renuncie

 

[...] ao uso estratégico – retórico ou de algum modo manipulativo – de métodos para conseguir que outros aceitem sua opinião – ou dogmaticamente imuniza o próprio pensamento de toda crítica possível. Para razão prática (ética ou política), significa sabermos que só podem ser legitimadas todas as normas éticas e leis obrigatórias através da capacidade de todos os participantes para encontrar um consenso em um discurso livre de toda a força (APEL, 1998, pp. 93-94).

 

            Assim, para que a comunidade real de comunicação, na qual participamos todos, possa aspirar a uma aproximação do modelo de uma comunidade ideal de comunicação é preciso que estas práticas sejam institucionalizadas progressivamente. A comunidade de investigação na sala de aula é uma das formas de institucionalização da prática do diálogo livre de coerção. É claro que se trata de uma aproximação do modelo, já que ainda é preciso a presença do professor para garantir o cumprimento das regras do diálogo. Ao passo que as crianças e jovens vão se tornando mais autônomos intelectual e moralmente, o papel moderador do professor vai diminuindo, ao mesmo tempo em que se reforça o rigor filosófico.

Resumindo, uma comunidade de investigação filosófica não é uma mera conversa já que se trata de um diálogo disciplinado tendo como ideal regulativo a busca da verdade e o respeito às regras de validade argumentativa. No caso de uma investigação filosófica, acrescenta-se ainda o exame crítico dos conceitos, a investigação dos pressupostos envolvidos e a fundamentação das posições defendidas. Isso significa a renúncia ao relativismo de que “toda opinião é válida”, pois toda argumentação está sujeita ao exame crítico da comunidade, ao qual, posições pouco consistentes dificilmente sobrevivem.

Retomando a questão inicial de como a comunidade de investigação leva ao desenvolvimento das habilidades cognitivas, torna-se claro, pelo exposto até aqui, que não se trata simplesmente de colocar as crianças em roda e deixá-las falar livremente, mas de um diálogo regido por normas em que cada participante é motivado a dar razões para o que pensa. Tais razões não se reduzem ao uso da lógica, já que existem várias pretensões de validade discursiva nas quais fazemos uso de analogias, metáforas, figurações, exemplos, etc. Cabendo ainda o papel do professor de provocar a comunidade a examinar possibilidades de reflexão ainda não exploradas com questões, como por exemplo: alguém pode dar um exemplo para o que ela disse? O que ele diz não é contraditório? Podemos imaginar uma situação em que isso não se aplica?

No processo de investigação filosófica, as crianças e jovens precisam não só elaborar discursivamente seus pensamentos, mas também refletir sobre as falas dos colegas e a reexaminar seus próprios pontos de vista. Quando esse processo é realizado de modo metódico e consistente, o resultado é que a linguagem possibilita a melhor elaboração do pensamento e da organização das ideias. Além disso, o papel autocorretivo da comunidade permite que as crianças e jovens aprendam uns com os outros e consigam identificar diferentes estilos de pensamento. No decorrer do desenvolvimento dos temas filosóficos, é possível que o professor perceba o progresso coletivo e individual de seus alunos e quais habilidades ainda precisam ser melhor desenvolvidas, utilizando exercícios e planos de discussão apropriados para cada uma delas.

Fazer da sala de aula uma comunidade de investigação não é tarefa fácil e exige muito empenho do professor e engajamento dos alunos, tanto quanto em outros métodos tradicionais de ensino, mas uma vez alcançados os requisitos mínimos, pode se tornar uma atividade até mesmo muito divertida. Afinal, os jogos de linguagem não deixam de serem também jogos, embora o diálogo na comunidade de investigação não seja do tipo de jogo em que se tem interesse em vencer o oponente, mas se assemelha mais a uma escalada em que a equipe inteira está tentando alcançar o topo. 

 

Filosofia para crianças e ensino de filosofia

            Desde os trabalhos pioneiros de Lipman na década de 1970 até hoje, o Programa de Filosofia para Crianças (PFC) se desenvolveu e hoje é reconhecido pela UNESCO e está espalhado em mais de 60 países com uma vasta produção de materiais pedagógicos (contos, filmes, livros, etc.) que podem ser encontrados no site p4c.com. Porém, desde os esforços pioneiros do Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças e sua consolidação em muitas escolas no Brasil, a proposta ainda encontra muitas resistências. A primeira delas, cremos que está associada à mudança de paradigma na educação com o enfoque nas habilidades cognitivas e não na transmissão de conteúdos.

 

O P4C [Filosofia para Crianças] não trata da vida ou pensamentos de grandes filósofos, mas da questão prática de aprimorar o pensamento crítico e criativo. O P4C tira proveito da curiosidade natural das crianças para envolvê-las no diálogo filosófico, ou seja, em uma discussão profunda de questões que não têm resposta clara e sobre as quais diferentes pontos de vista podem ser desenvolvidos, explicados e justificados. (UNESCO, 2020, p. 9).

           

Outra fonte de resistência, que gostaríamos de explorar em detalhe, é justamente o questionamento sobre a natureza filosófica da proposta. Essa crítica aparece de forma mais sistematizada e rigorosa na obra de Renê Trentin Silveira, intitulada A filosofia vaià escola? Nessa obra a reprovação ao PFC é justamente também a mais frequente, a saber, que o PFC não é ensino de filosofia, pois lhe faltaria os elementos essenciais para que possa ser considerado como tal, “o contato com os conteúdos específicos da Filosofia, ou seja, a História da Filosofia e a linguagem filosófica. Sem essa mediação dos conteúdos [...] a discussão realizada na Comunidade de Investigação, por mais logicamente disciplinada que possa ser não poderá ultrapassar os limites do senso comum...” (SILVEIRA, 2001, p. 111).

Na verdade, ao se definir como sendo o cânone do ensino de filosofia o conhecimento da História da Filosofia e a leitura das obras clássicas dos filósofos, se está defendendo uma prática filosófica que é do ponto de vista da sua produção e organização, algo muito recente e que se opera na cisão entre filosofia acadêmica, que interessa aos especialistas, e filosofia mundana, que interessa necessariamente a todos. Mesmo na contemporaneidade, muito das mais elevadas e influentes reflexões filosóficas desenvolveram-se fora e marginalmente ao que se passava na academia. “A filosofia acadêmica tem de concorrer doravante com docentes privados e afastados de seus postos, escritores e pessoas que vivem de renda, como Feuerbach, Ruge, Marx, Bauer e Kierkegaard, e também com um Nietzsche, que renunciara à sua cátedra na Basileia” (HABERMAS, 2000, p. 75). Ou seja, durante boa parte do curso de nossa história, a filosofia e seu ensino prescindiu tanto da compilação de seus desdobramentos históricos, quanto da atividade de leitura e interpretação de textos que se institucionalizou na escolástica. Nada mais estranho a Sócrates, por exemplo, discutindo questões filosóficas com quem passava na rua do que ensinar seus discípulos a fazer análise de texto.

Não estamos aqui dizendo que o conhecimento da História da Filosofia e das obras clássicas deva ser negligenciado, apenas que esta não é a única forma de se fazer filosofia e, pelo menos, durante cerca de mil anos, não foi. Se considerarmos que o ensino dos conteúdos de filosofia é importante no Ensino Médio para que o aluno esteja em condições de prestar o Enem etc., o mesmo não se pode dizer das crianças, tanto é que o ensino de filosofia sequer faz parte do currículo do Ensino Fundamental.

A segunda parte do argumento de que sem o contato com a História da Filosofia e seus conteúdos, as crianças não poderiam superar “os limites do senso comum”, é mais problemática. Deixando a questão do “senso comum” momentaneamente de lado, o centro da argumentação é que a Comunidade de Investigação fica girando em torno da troca de opiniões sobre o assunto sem nenhum progresso. Isso porque, segundo Silveira, “não há compromisso com a verdade, mas somente o processo de investigação”. Como vimos acima, o processo de investigação tem como ideal regulativo a verdade, o que não implica obrigatoriamente que a mesma possa ser alcançada. Seria maravilhoso se em um congresso de filosofia pudéssemos chegar a “uma conclusão definitiva e consensual sobre o assunto debatido” (SILVEIRA, 2001, p. 115). A explicação de porque isso raramente ocorre não está na falta de interesse dos filósofos pela verdade, mas justamente porque os notáveis resultados de séculos de reflexão filosófica estão longe de serem definitivos. Eleger uma resposta como definitiva é dogmatizar a filosofia e interromper arbitrariamente a investigação. Mesmo porque, talvez o que possamos fazer sobre determinados temas é produzir mais clareza sobre eles, o que não é pouco! Como diria Wittgenstein, às vezes, tudo o que temos que fazer é “mostrar à mosca a saída do vidro”.

Tais objetivos pragmáticos, entretanto, são insuficientes para Silveira. Para ele, a filosofia tem como objetivo a superação do senso comum. Senso comum aqui é tomado como a forma assistemática, acrítica e a-histórica de pensar, ou seja, o pensar alienado. O pensar alienado seria resultado das relações reificadas de produção capitalista e incluiria, segundo Lukács, a racionalidade lógico-formal do pensamento burguês que é incapaz de perceber a totalidade do real, própria do pensar dialético. Lukács imaginava que somente a classe operária seria capaz de apreender a totalidade do real pelo pensamento. Curiosamente, o próprio proletariado não é capaz de atingir a consciência de classe sem a ajuda de um ator externo, que na concepção leninista, é o partido revolucionário. No caso da proposta de Silveira, essa função é ocupada pelo professor de filosofia que deve fornecer aos alunos das classes populares “os instrumentos de luta pela transformação da sociedade” (SILVEIRA, 2001, p. 161). Não está muito claro como os conteúdos dos manuais de filosofia escapam ao processo de retificação do pensamento como o restante dos conteúdos científicos, a ponto de se transformarem em “instrumentos de luta”. Sem uma crítica dos conteúdos e da semiformação, no sentido de Adorno, não fazemos mais do que reproduzir as visões alienadas de mundo. Os conteúdos, por si mesmos, são incapazes de produzir a crítica que surge da prática social concreta e não da ilustração. Frequentemente, lideranças populares que foram historicamente privadas do acesso aos bens simbólicos, mas que passaram por experiências dialógicas de formação, tornaram-se mais críticos que muitos que frequentaram os bancos universitários e hoje engrossam as fileiras do neofascismo. Não é, portanto, qualquer conteúdo que liberta tampouco qualquer metodologia que conscientiza.

Para Silveira, porém, “a educação para realizar sua dimensão transformadora, há que se dar prioridade aos conteúdos, fincando a metodologia (que, evidentemente, também é de grande importância) subordinada a esse objetivo primeiro” (Idem, p. 213). A conclusão é taxativa: sem conteúdos não há transformação e tampouco ensino de filosofia. Mesmo reconhecendo a validade do argumento de Silveira e o papel do professor revolucionário de ensinar filosofia para libertar as massas alienadas, não podemos admitir que esta fosse a única forma de fazer filosofia. Tampouco que o PFC não seria filosofia porque não contempla tais objetivos. Lipman tinha como ideal uma democracia forte, o que implica cidadãos e cidadãs capazes de dialogar e de argumentar crítica e criativamente. É com base em tais objetivos que devemos avaliar o PFC e não com base em objetivos que ele não possui.

Por último, é verdade que Lipman tinha uma visão instrumental da filosofia, isso aparece em seu relato de como surgiram às novelas. Mas é preciso reconhecer que há um primado pedagógico em todas as concepções de ensino de filosofia, o que justifica, entre outras coisas, as idas e vindas da filosofia no currículo, estando em permanente ameaça de exclusão e diluição nas “humanidades” e nos chamados “itinerários formativos”. A questão fundamental é que o ensino de filosofia para crianças permite que elas desenvolvam as habilidades cognitivas através da filosofia, o que torna o filosofar o eixo do programa. Esperamos que com a retomada desse debate possamos suscitar a reflexão sobre os benefícios significativos que o PFC pode trazer para as crianças das séries iniciais tão carentes de uma verdadeira transformação na educação.

 

Referências

APEL, Karl-Otto. From a transcendental-semiotic point of view. Manchester/New York: Manchester University Press, 1998.

 

APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação.  São Paulo: Edições Loyola, 2000.

 

BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Matriz de referência de ciências humanas do SAEB. Brasília, DF: INEP, 2020.

 

HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 

HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes, 2016.

 

KOHAN, Omar. Filosofia para Crianças: a tentativa pioneira de Matthew Lipman. Rio de Janeiro, RJ: Vozes, 1998.

 

KOHAN, Omar. Et al. Filosofia para Crianças na Prática Escolar. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

 

KOHAN, Omar; WUENSCH, Ana Míriam. Filosofia para crianças: a tentativa pioneira de Matthew Lipman. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

 

LIPMAN, Matthew. A filosofia vai à escola. São Paulo: Summus, 1990.

 

LIPMAN, Matthew. O pensar na educação. Petrópolis: Vozes, 1995.

 

LIPMAN, Matthew. Palestras de Mendham, maio de 1997. Tradução e transcrição de Melanie Wyffels. São Paulo: CBFC, 1997.

 

MONTESSORI, M. A descoberta da criança. Campinas: Kírion, 2017.

 

PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Editada por C. Hartshome, P. Weiss e A. Burks. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1931-1958, 8 volumes.

 

SILVEIRA, Renê J. Trentin. A filosofia vai à escola?Contribuição para a crítica do Programa de Filosofia para Crianças de Matthew Lipman. São Paulo: Autores Associados, 2001.

 

TOMASELLO, M. Origens culturais da aquisição do conhecimento humano. São Paulo: Martins Fontes, 2019.

 

UNESCO. Filosofia para crianças. Série Práticas Educacionais 32, 2020, disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000373403

 

Notas



[1] Lipman conta que a ideia de criar sua primeira novela filosófica para crianças surgiu de uma conversa com uma amiga advogada. “Eu fazia parte de rodízio de pais para levar as crianças para a escola. Um dos outros motoristas era uma amiga advogada. Um dia nós conversamos sobre a escola dos nossos filhos. O que tinha de bom, o que estava faltando. Eu disse que achava que as crianças precisavam de um curso sobre raciocínio, porque o raciocínio delas era muito fraco. Eu disse que não sabia o que fazer para melhorar aquilo. Ela me sugeriu que eu escrevesse uma história sobre o assunto. Foi ela quem realmente me deu a ideia” (LIPMAN, 1997, p. 11).

 

[2] Utilizamos aqui a versão dos Collected Papers of Charles Sanders Peirce editada por C. Hartshome, P. Weiss e A. Burks. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1931-1958, 8 volumes, assim como a numeração dos parágrafos elaborada pelos editores e que já se tornou padrão como forma de citação nos trabalhos sobre Peirce.

 

 

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