REFilo

Seção especial:

 

Arquivo Mês ANPOF

Ensino de Filosofia: por uma cidadania filosófica do campo

 

 

1. APRESENTAÇÃO.................................................................................................................................4

 

Ensino de Filosofia: por uma cidadania filosófica do campo.............................................................4

Patrícia Del Nero Velasco

 

2. COLUNAS ANPOF...............................................................................................................................8

 

2.1. Ensino de Filosofia em risco: considerações conjunturais...........................................................8

Christian Lindberg

 

2.2. Formação docente e ensino de filosofia em questão: razões para resistência..........................10

Deodato Ferreira da Costa, Pedro Rodolfo Fernandes da Silva & Valcicléia Pereira da Costa

 

2.3. A produção educacional na área de Filosofia...............................................................................13

Felipe Gonçalves Pinto & Taís Silva Pereira

 

2.4. Produção de material didático pedagógico para a Filosofia: ensinar como um jogo e

com o uso dos jogos..............................................................................................................................16

Angela Zamora Cilento & Pedro Gontijo

 

2.5. Avaliação da aprendizagem de Filosofia na Educação Básica e o

dilema subjetividade/objetividade......................................................................................................19

Marinês Barbosa de Oliveira

 

2.6. Ensino não-formal de filosofias.....................................................................................................22

Renata Lima Aspis

 

2.7. Filosofar, perguntar... dança do vento, dança do pensamento

na escola pública de periferia...............................................................................................................24

Edna Olímpia da Cunha

 

 

2.8. O que pode um professor de filosofia na prisão?........................................................................27

Marcio Nicodemos

 

2.9. Olimpíada de Filosofia do Rio de Janeiro, uma viagem!..............................................................29

Lara Sayão & Daniel Gaivota

 

2.10. Filosofia, democracia e status quo: filosofar e ensinar a filosofar no Brasil hoje....................32

Joana Tolentino

 

3. FÓRUM DE DEBATE...........................................................................................................................36

 

3.1. Cânone, herança historiográfica e exclusão.................................................................................36

Rodrigo Marcos de Jesus

 

3.2. O Ensino de Filosofia em números: a consolidação de um campo de conhecimento...............38

Patrícia Del Nero Velasco

 

3.3. Filosofia do ensino de filosofia: por uma cidadania-filosófica....................................................42

Rodrigo Gelamo & Augusto Rodrigues

 

4. RODAS DE CONVERSA.......................................................................................................................46

 

4.1. A Filosofia no contexto do Novo Ensino Médio...........................................................................46

Participantes: André Luís La Salvia (UFABC), Marinês Oliveira (CEFET-MG) & Pedro Gontijo (UnB), sob a mediação de Christian Lindberg (UFS).

 

4.2. Memórias da constituição da área de Ensino de Filosofia no Brasil:

homenagem ao prof. Marcos Antonio Lorieri.....................................................................................47

Participantes: Walter Kohan (UERJ) & Marcos Antonio Lorieri.

 

4.3. Ensino de Filosofia como campo de conhecimento: revendo o cânone filosófico.....................47

Participantes: Patrícia Del Nero Velasco (ANPOF/UFABC), Paulo Margutti Pinto (FAJE) & Silvio Gallo (UNICAMP).

 

5. ENTREVISTAS......................................................................................................................................47

 

5.1. Mestras e mestres que nos formam filósofas/os e docentes de filosofia..................................47

Entrevista com Maria Lucia de Arruda Aranha & Edgar Lyra, por Joana Tolentino.

 

5.2. Olimpíadas de Filosofia e formação do pensamento filosófico..................................................54

Entrevista com Maurício Langón, por: Lara Sayão & André Pares.

 

5.3. Ensino de Filosofia na Pós-Graduação..........................................................................................60

Entrevista com Antonio Edmilson Paschoal & Taís Silva Pereira, por: Maria Cristina Theobaldo.

 

6. PODCAST ANPOF...............................................................................................................................68

 

Meta (podcast) “Filosofia e Formação”.

Produção coletiva de Debora Fofano (Perdidos na Paralaxe), Douglas Lopes (Hiperbólico), Felipe Pinto (Pensatório e Rádio Murucututu), Janyne Sattler (Uma Filósofa por Mês), José Teixeira Neto (Falando por Você), Maurício Cossio (Uma Filósofa por Mês), Marcelo Guimarães (Pensatório e Rádio Murucututu) & Márcio Jarek (Hiperbólico).

 

7.MANIFESTO.........................................................................................................................................69                                                         

 

Manifesto em defesa da Filosofia do Ensino de Filosofia como subárea de pesquisa filosófica

GT Filosofar e Ensinar a Filosofar

 

1. APRESENTAÇÃO

 

Ensino de Filosofia: por uma cidadania filosófica do campo

 

O propósito da criação do Grupo de Trabalho (GT) da ANPOF Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, era reunir professoras e professores que, a partir de distintas regiões do país, assumem o Ensino de Filosofia como objeto de investigação filosófica; pesquisadoras e pesquisadores que problematizam o ofício e a formação docente a partir da literatura filosófica em sua interface com as questões educacionais e com a prática do filosofar nos diferentes níveis de ensino. Objetivava-se dar organicidade à área, fomentando sua potência no âmbito das pesquisas de pós-graduação.

Nas últimas duas décadas, o GT da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia que se dedica ao filosofar e ao ensinar a filosofar foi responsável pela publicação de cerca de 500 artigos, 170 livros, 540 capítulos de livros e 270 trabalhos completos publicados em anais de eventos, além de ter desenvolvido 145 projetos de pesquisa. As pesquisas de pós-graduação na área, por sua vez, são desenvolvidas com regularidade desde 1989. Desde então, foram defendidas cerca de 240 dissertações e 53 teses acadêmicas em/sobre Ensino de Filosofia, além de 265 dissertações em programas profissionais de pós-graduação. Um aspecto importante de ser sublinhado é o fato de que as produções são assinadas por 57 pesquisadoras e pesquisadores, de Caicó, no RN, à Santa Maria, no RS, o que mostra a capilarização da temática em território nacional e a efetiva consolidação do campo da Filosofia do Ensino de Filosofia no Brasil.

Em 2021, o GT Filosofar e Ensinar a Filosofar completou 15 anos. Como parte das comemorações, o grupo – com o apoio da Diretoria da ANPOF (biênio 2021-2022) e a curadoria de Patrícia Velasco (UFABC/ANPOF) e Lara Sayão (NEFI/UERJ - SEEDUC/RJ) – promoveu o mês “Ensino de Filosofia: por uma cidadania filosófica do campo”, ocupando a página institucional, o canal do YouTube e as redes sociais da ANPOF com uma amostra dos temas e problemas debatidos no âmbito do Ensino de Filosofia no Brasil. Uma ação que visou à publicização das iniciativas na área e à abertura do debate sobre o Ensino de Filosofia como subárea de pesquisa filosófica.

Nesta seção especial da REFilo, reunimos o material criado para o evento supramencionado em um arquivo único, registrando todas as iniciativas realizadas para a ocasião. Os links das publicações originais constam na presente apresentação – em forma de hiperlinks vinculados aos nomes dos autores e autoras ou aos títulos dos trabalhos. Passemos, pois, à indicação mais precisa daquilo que a leitora e o leitor encontrarão nas páginas que se seguem.

No contexto pós-reformas educacionais, notadamente a lei nº 13.415/2017 e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), quais são as perspectivas do ensino da Filosofia na última etapa da educação básica? Que ações têm sido feitas para um ensino efetivamente significativo de Filosofia? Em que medida as pesquisas realizadas na pós-graduação brasileira permitem atestarmos a existência de um campo filosófico autônomo intitulado Filosofia do Ensino de Filosofia? Estas foram algumas das questões que instigaram a comunidade filosófica no mês de outubro de 2021 – a partir de colunas, entrevistas, rodas de conversa, fórum de debate e podcast.

As publicações foram abertas com a atualíssima discussão sobre a situação do Ensino de Filosofia na conjuntura política que vivemos, cerne do texto de Christian Lindberg (UFS). Também a partir da perspectiva do contexto político, Deodato da Costa, Pedro Rodolfo da Silva e Valcicléia da Costa (UFAM) refletiram sobre formação docente e ensino de filosofia. Já Felipe Pinto e Taís Pereira (CEFET-RJ) compartilharam pesquisas que há tempos vêm desenvolvendo sobre a produção educacional na área de Filosofia. A produção de material didático pedagógico para a Filosofia a partir do filosofar com jogos foi a temática escolhida por Angela Cilento (UPM) e Pedro Gontijo (UnB). Marinês Barbosa de Oliveira (CEFET-MG), por sua vez, debateu a avaliação da aprendizagem de Filosofia na Educação Básica. O ensino não-formal de filosofias também constou de nossas publicações, fruto da escrita de Renata Aspis (UFMG). Trouxemos à baila, igualmente, o filosofar com crianças e a educação filosófica a partir da experiência de Edna da Cunha (NEFI/UERJ) com o projeto “Em Caxias, a filosofia en-caixa? A escola pública aposta no pensamento”. Acompanhamos o olhar de Marcio Nicodemos (DIESP/SEEDUC-RJ) diante e entre as dobras da prisão, perguntando, com ele, “o que pode um professor de filosofia na prisão?”. Viajamos com Lara Sayão e Daniel Gaivota (SEEDUC/RJ; NEFI/UERJ) pela “popular, inquieta, materialista, macumbeira, coletiva, amorosa, pobre, vagabunda, vadia...” filosofia vivenciada na Olimpíada de Filosofia do Rio de Janeiro, voltando ao olhar político sobre o filosofar e o ensinar a filosofar no Brasil hoje no derradeiro texto, assinado por Joana Tolentino (Colégio Pedro II).

Além das colunas, fomentamos o fórum de debate sobre o cânone filosófico institucionalizado, iniciado pelo diretor de comunicação da ANPOF Érico Andrade (UFPE). Enquanto Rodrigo Marcos de Jesus (UFMT) recuperou a herança historiográfica para atentar às dimensões raciais, sexistas e eurocêntricas incrustadas no cânone, Patrícia Velasco (UFABC) apontou, com números, para a existência de um campo de pesquisa de pós-graduação intitulado Filosofia do Ensino de Filosofia. Na esteira de Velasco, Rodrigo Gelamo e Augusto Rodrigues (UNESP) não só defenderam a criação do referido campo de conhecimento profissional autônomo, como também reivindicaram uma cidadania-filosófica deste campo, “o que inclui não só as questões de financiamento para desenvolvimento das pesquisas, mas também o questionamento dos pressupostos e práticas hegemônicas que qualificam a legitimidade do que é ou não filosófico”.

A discussão sobre a cidadania filosófica da Filosofia do Ensino de Filosofia também foi abordada na roda de conversa “Ensino de Filosofia como campo de conhecimento: revendo o cânone filosófico”, da qual participaram Patrícia Velasco (UFABC/ANPOF), Paulo Margutti Pinto (FAJE) e Silvio Gallo (UNICAMP). “Em que medida o Ensino de Filosofia se constitui como um diferencial das pesquisas de pós-graduação realizadas no Brasil?” e “estaria a comunidade da ANPOF disposta a dar cidadania filosófica ao Ensino de Filosofia, revendo o cânone?” foram algumas das perguntas debatidas pela mesa.

Outras duas rodas de conversa foram transmitidas ao vivo pelo canal do YouTube da ANPOF. Na primeira, intitulada “A Filosofia no contexto do Novo Ensino Médio” e sob a mediação de Christian Lindberg (UFS), André La Salvia (UFABC), Marinês Oliveira (CEFET-MG) e Pedro Gontijo (UnB) debateram a (não) presença da Filosofia no contexto da lei nº 13.415/2017, da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD). Na segunda mesa, Walter Kohan (UERJ) conduziu a conversa com o homenageado Marcos Antonio Lorieri, percorrendo a constituição da área de Ensino de Filosofia no Brasil a partir de memórias da trajetória pessoal e acadêmica do próprio Lorieri. A mesa contou também com a participação especialíssima de Elisete Tomazetti (UFSM), oferecendo um belíssimo texto de abertura para a ocasião. Cabe notar que, durante as transmissões das três rodas de conversa, 21 (AL, AM, BA, CE, ES, GO, MA, MT, MG, PB, PR, PE, PI, RJ, RN, RS, SC, SP, SE, TO e DF) dos 27 estados brasileiros estiveram representados nos chats.

No mês dedicado ao Ensino de Filosofia, não poderia faltar a pergunta: “Quem são as mestras e mestres que nos formam filósofas/os e docentes de filosofia?”. Ciente de que a história destas mestras e mestres se entrelaçam com a trajetória da presença-ausência da Filosofia nas escolas e nas universidades, Joana Tolentino (Colégio Pedro II) entrevistou, com reverência e afeto, Maria Lucia de Arruda Aranha (professora aposentada, autora de livros didáticos) e Edgar Lyra (PUC/RJ). Com o mesmo carinho e admiração, Lara Sayão (NEFI/UERJ - SEEDUC/RJ) e André Pares (SMED/POA) conduziram a entrevista com Maurício Langón (professor e inspetor de Filosofia de Educação Secundária/Uruguai), intitulada “Olimpíadas de Filosofia e formação do pensamento filosófico”. Por fim, Antonio Edmilson Paschoal (UFPR) e Taís Silva Pereira (CEFET/RJ) foram entrevistados por Maria Cristina Theobaldo (UFMT). A pauta? O Ensino de Filosofia nos programas de pós-graduação profissionais da área – o PROF-FILO e o PPFEN/CEFET-RJ.

Fechando as atividades do mês, Felipe Pinto (CEFET-RJ) e Marcelo Guimarães (UNIRIO), responsáveis pelo Pensatório e pela Rádio Murucututu, convidaram o(a)s professore(a)s Janyne Sattler e Maurício Cossio (podcast Uma filósofa por Mês), José Teixeira Neto (Falando por você), Debora Fofano (Perdidos na Paralaxe), Douglas Lopes e Márcio Jarek (Hiperbólico) para uma produção coletiva: um “metapodcast” sobre os atravessamentos entre ensino de filosofia e divulgação filosófica a partir das diferentes experiências de podcasting. Ainda não ouviu? Clique aqui.

Em nome do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, agradeço a expressiva participação da comunidade filosófica nas atividades de outubro – forte indício de que a pauta “Ensino de Filosofia” é premente no debate filosófico nacional.Neste sentido, estendo os agradecimentos à diretoria da ANPOF para o biênio 2021-2022, por reconhecer a pertinência e a urgência do debate em questão, concedendo-nos os espaços virtuais da associação e a autorização para a presente proposta. Por fim, meu agradecimento à Revista Digital de Ensino de Filosofia – REFilo, por publicar este registro, em arquivo único, do mês ANPOF dedicado ao Ensino de Filosofia, o que significará, além da memória do evento, a possibilidade de continuidade do debate entre aquelas e aqueles que se dedicam à temática.

Findas as atividades do mês ANPOF “Ensino de Filosofia: por uma cidadania filosófica do campo” (e fazendo jus ao título do evento), o GT Filosofar e Ensinar a Filosofar publicizou um Manifesto em defesa da Filosofia do Ensino de Filosofia como subárea de pesquisa filosófica, documento no qual pleiteia o reconhecimento e a inclusão da Filosofia do Ensino de Filosofia como subárea da Filosofia dentro da árvore do conhecimento das agências de fomento à pesquisa e à formação de recursos humanos para a pesquisa no país. Convido a todas e a todos que reconhecem as pesquisas e demais produções que têm o Ensino de Filosofia como objeto e problema filosófico a subscreverem e compartilharem com os pares a referida carta, documento que finda o material ora compartilhado.

 

Patrícia Del Nero Velasco

22 de março de 2022


 

2. COLUNA ANPOF

2.1. Ensino de Filosofia em risco: considerações conjunturais

Christian Lindberg

UFS; GT Filosofar e Ensinar a Filosofar

 

Sabe-se que a democracia colaborou para que a Grécia desenvolvesse sua Filosofia. De igual modo, costuma-se afirmar que nosso País é, do ponto de vista cultural, herdeiro da tradição ocidental, tradição que recorre aos antigos gregos em muitos aspectos, muito embora a constituição do povo brasileiro tenha sua raiz nos povos africanos, ameríndios e lusitano.

Começo meu texto recorrendo a esse aspecto, sob o risco de ser reducionista, para abordar algo que tem posto o Ensino de Filosofia em risco, a escalada autoritária que tem sido desenvolvida por parte do Governo Federal.

Perto de concluir o terceiro ano do mandato presidencial, nota-se que o Jair Bolsonaro (sem partido) e seus ministros/as sentem certo prazer em pronunciar palavras com caráter autoritário, como também elaborar políticas públicas que atentam contra os pilares da democracia.

No caso específico do Ministério da Educação (MEC), a impressão que se tem é a de que as ações desenvolvidas pelo MEC têm por objetivo promover o esvaziamento do espaço público, notadamente as escolas e as universidades públicas, além de impor uma única perspectiva de pensamento social.

Para tanto, a implementação das escolas cívico-militares, a tentativa de regulamentar a prática do homeschooling, a adoção do voucher na Educação Básica e a intervenção na gestão democrática de diversas universidades e institutos federais exemplificam bem o que estou tentando afirmar.

Não obstante, iniciativas inspiradas no projeto Escola sem partido (ESP), embora tenham sido sepultadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ajudaram a propagandear a criminalização dos conteúdos educativos que tendem a contribuir com a formação cidadã das crianças e jovens, a exemplo da Filosofia, como também colaboram para que setores da sociedade persigam professores/as, especialmente os/as da área de Humanidades.

Talvez, não por acaso, alguns especialistas têm apontado que o MEC é um dos pilares do que tem sido denominado de “revolução cultural”, processo que visa a fortalecer valores morais com forte apelo anti-Iluminista, a todo custo, nem que sejam adotadas medidas autoritárias para que ela se concretize.

Essa onda, identificada pela literatura especializada por neoconservadora, não pode ser considerada como um ato promovido por um governo composto por lunáticos, por pessoas que não sabem o que estão fazendo ou até mesmo por incompetentes. Quando a ministra Damares Alves, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, afirmou que o País estava entrando em uma nova era, onde meninos vestem azul e meninas vestem rosa, o recado foi dado.

Autores como John Holt e Roger Scruton são mencionados como possíveis fontes para a promoção desse movimento político que tem atingido a Educação brasileira. Não obstante, essas vozes encontram ressonância nos clássicos do neoliberalismo, especialmente Milton Friedman e Friedrich Heyek, ou até mesmo em vozes do ultraliberalismo, a exemplo de Robert Nozik.

Penso, portanto, que está em curso uma aliança entre o neoconversadorismo e neoliberalismo. Explico. A noção de Estado mínimo, típica do neoliberalismo, tem aspectos peculiares no campo educacional. O corte de recursos para a Educação, sucateando as instituições públicas de ensino ou até mesmo retirando-lhes a gratuidade, talvez seja o sinal mais evidente.

Friedman, expoente do neoliberalismo, defende que o Estado pode propiciar, de forma gratuita ou cedendo voucher diretamente para as famílias das crianças, incentivos para que todos/as possam ter acesso aos conhecimentos mais elementares para o convívio social. Por outro lado, qualquer tipo de ensino que impacte a qualificação dos indivíduos para o mercado de trabalho deve ser cobrado, visto que os dispêndios são elevados, oneram os cofres públicos, e os únicos beneficiados são as próprias pessoas.

Talvez isso explique frases do tipo “a sociedade brasileira tem um fetiche por universidade” ou “a universidade não é para todos” ter sido proferida por ministros da Educação do Governo Bolsonaro (sem partido). Em verdade, elas não foram ditas aleatoriamente.

Holt nega o papel da escola como espaço educativo e destaca um conjunto de argumentos. A degeneração social causada pela violência nas escolas, pela impossibilidade de ter um ensino público e gratuito com qualidade para todos/as, um suposto direito natural que os pais têm para educar os/as filhos/as e a maior aceitação da Educação a distância como substituta da escola convencional. Ao defender o homeschooling, Holt privilegia o espaço privado, e não o público, como local apropriado para educar.

Como resultado, pode-se ter a constituição de seitas religiosas e/ou políticas no recinto doméstico, medida que tende a impactar a constituição de uma sociedade democrática. Por outro lado, com a propagação de serviços educacionais a distância, a possibilidade da expansão de um mercado educacional privado tende a se tornar uma realidade.

Ora, e como isso pode atingir o Ensino de Filosofia em nosso País? Posso afirmar que é de diversas formas. As acusações de que os departamentos/faculdades de Filosofia nas universidades públicas são recintos de consumo e tráfico de drogas, que os/as professores/as fazem militância e doutrinação política, em vez de ministrar aulas, que o curso é reduto de comunistas são expressões comuns na narrativa palaciana.

Ao observar os programas que compõem a Política Nacional de Formação de Professores, constata-se que o número de bolsas para o PIBID e Residência Pedagógica foi reduzido entre as edições 2018-2020 e 2020-2022. A Licenciatura em Filosofia, por fazer parte do que é denominado de Humanidades, sofreu de forma direta.

No âmbito do novo Ensino Médio, nota-se que sua implementação nos estados tem reduzido a presença da Filosofia nos arranjos curriculares dos estados, medida que se soma à nova arquitetônica curricular da última etapa da Educação Básica, pautada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e pelos itinerários formativos, caracterizada pela diluição e fragmentação dos conteúdos filosóficos.

A aliança entre neoliberalismo e neoconservadorismo, além de propiciar o sufocamento do espaço público no campo educacional, tem utilizado medidas autoritárias para se impor no interior das escolas e universidades.

Como tenho sustentado ao longo do texto, tais eventos não são obras do acaso. O que está em jogo é a constituição de um projeto educativo que valorize a formação de indivíduos submissos aos ditames de uma elite escravocrata, ignorante e que se submeteu, na condição de vassalos, ao mercado financeiro internacional.

Se a dita revolução cultural for efetivada plenamente, há forte tendência de amplos setores da sociedade serem submetidas a opressão, notadamente aqueles que compõem as camadas sociais mais marginalizadas pelo processo histórico do País, como também ficarem privados do espaço público e de gozar dos direitos sociais mais elementares.

Recorrer aos primórdios da democracia na Grécia antiga é mais do que uma tentativa de exercitar uma suposta erudição, é um esforço para promover uma reflexão genealógica dos dias atuais. Como se sabe, o diálogo entre os diferentes e a participação ativa dos homens e de mulheres livres no espaço público para a tomada de decisão caracterizam, minimamente, os regimes democráticos.

Ao sufocar o Ensino de Filosofia, estrangulando financeiramente os cursos de Filosofia nas universidades públicas e/ou fragilizando seu ensino na Educação Básica, permite-nos diagnosticar qual é o caminho que os atuais mandatários do país querem levar a sociedade brasileira.

Em suma, Sócrates, ao se submeter ao envenenamento por cicuta, mesmo sabendo que sua condenação foi injusta, preferiu defender os valores que julgava pertinentes ao seu tempo. Com esse gesto, deixou-nos o legado de que resistir contra a arbitrariedade dos assassinos da liberdade e da democracia é o caminho mais oportuno para defender a Filosofia e, de forma específica, o Ensino de Filosofia.

 

2.2. Formação docente e ensino de filosofia em questão: razões para resistência

Deodato Ferreira da Costa

Pedro Rodolfo Fernandes da Silva

Valcicléia Pereira da Costa

UFAM/PROF-FILO

 

Atualmente a comunidade filosófica encontra-se em estado de mobilização devido ao cenário atual de implantação de uma política educacional com a finalidade de fornecer as diretrizes para melhorar a qualidade do ensino médio em nível nacional. A despeito da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) preconizar a adoção de “princípios universais” (éticos, direitos humanos, justiça social e sustentabilidade ambiental) necessários à interação e à atuação docente, e contemplar preceitos inovadores ao processo do ensinar e aprender (educação integral, interdisciplinaridade), nem todos os agentes que atuam direta e indiretamente com a docência sentem-se representados, notadamente devido à ausência de um diagnóstico que expresse e concatene a diversidade e pluralidade da realidade brasileira. Nesse cenário predominam incertezas e dúvidas quanto à presença de algumas áreas do saber, dentre eles a filosofia, apesar do reconhecimento de sua importância e de sua presença no Brasil desde o Período Colonial, à época sob a direção do sistema educacional jesuíta. Assim, rememorando um pouco da história, sua presença começou a enfrentar oscilações primeiro com a reforma de Marquês de Pombal, depois com a independência do Brasil e, entre uma e outra política educacional, ainda persistem até os nossos dias.

A presença dos saberes na política educacional nacional sempre esteve atrelada ao modelo educacional adotado pelos governos, o que incide sobre quais saberes estarão presentes nas escolas brasileiras sob a forma de disciplina. A filosofia consta entre os saberes considerados importantes para a formação de um pensar crítico, reflexivo e autônomo, mas nem sempre bem-vinda devido aos seus efeitos críticos e de esclarecimentos sobre formas de organização e atuação governamental, atreladas a um sistema econômico que não valoriza a pessoa humana como deveria, o que incide na valorização dos saberes voltados para o desenvolvimento e o crescimento do mercado, quantitativos quanto ao lucro desmesurado, em detrimento daqueles voltados à formação integral da pessoa, que interrogam o status quo da organização sócio-política e educacional,  dos qualitativos quanto ao bem comum e à dignidade humana.

A mobilização atual pela filosofia e seu ensino, na Educação Básica - Ensino Médio, não pode ser realizada de forma isolada, precisa e deve ser efetivada através da união de forças entre as diferentes instituições de ensino (Educação Básica e Superior), entre as instituições e a comunidade em geral. Também não pode ser condicionada por concepções filosófico-pedagógicas consideradas hegemônicas em detrimento das outras, o que comprometeria a própria natureza reflexiva da filosofia, aberta à investigação sobre todas as coisas e sobre si mesma, incluindo a sua própria atuação, seu ensino, seja na universidade, seja nas escolas.

Por sua própria natureza, a filosofia é plural e diversa, reúne/integra diferentes concepções e correntes filosóficas, o que dificulta a atuação dos professores do ensino médio quanto à busca de repostas a duas questões recorrentes: a primeira, quanto ao significado da filosofia e a segunda quanto a sua utilidade. Portanto, a mobilização também precisa considerar a pluralidade e a diversidade dos diferentes segmentos envolvidos na atuação da filosofia e do filosofar: professores(as) que atuam nas instituições formadoras; professores(as) que atuam com jovens iniciantes no pensamento filosófico; licenciandos(as) em formação para atuar em instituições escolares do nível médio; alunos(as) do ensino médio, jovens em sua maioria que já ouviram algum comentário sobre a filosofia (elogioso ou depreciativo).

              As diretrizes nacionais recomendam que os cursos formativos procurem fornecer aos seus alunos uma sólida formação filosófica; que procurem concatenar teoria e prática em todas as suas disciplinas (filosóficas e pedagógicas), o que implica no conhecimento da situação real da filosofia e seu ensino nas escolas básicas e superiores. Infelizmente, nem sempre as diretrizes educacionais são conhecidas e atendidas em sua totalidade ou parcialidade, nem sempre os agentes que atuam com a filosofia estão atentos aos problemas gerados pela adoção de políticas educacionais que não obedecem a natureza dos saberes, nem sempre os agentes aplicam os princípios (ético, estético, epistemológico) preconizados para a formação e atuação filosóficas.

Daí, a necessidade de manter um diálogo constante na reflexão e na busca coletiva de caminhos para sair do atual cenário de incertezas quanto à presença da filosofia e seu ensino em nível médio, com destaque na própria atuação formativa dos cursos de filosofia (graduação e pós-graduação). No processo de discussão algumas questões precisam ser consideradas: Será que as instituições formadoras, que ofertam curso de filosofia, realmente preparam os(as) licenciandos(as) para a realidade escolar em nível médio?  Será que todos os professores formadores conhecem a realidade de atuação dos seus egressos? Há diálogo entre as instituições formadoras em filosofia com as instituições escolares do ensino médio? Se sim, como ocorre esse diálogo (unilateral, bilateral ou multilateral)?

              A mediação do diálogo aqui propugnada, como elemento metodológico-epistemológico, para encontrar caminhos que efetivamente contribuam para a melhoria da formação e atuação da filosofia e seu ensino, já não nos é estranha. Por ela as diferenças, as alteridades se encontram para definir os aportes e os rumos possíveis e passíveis de serem integrados frentes aos conflitos e impasses ou dificuldades que parecem insolúveis e de difícil resolução prática. A título de exemplo, lembramos o diálogos entre os professores da Educação Básica com os professores das universidades que resultou na criação de um programa de pós-graduação para dar continuidade à qualificação docente em filosofia e seu ensino em nível médio. O Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO) é política pública presente em 16 universidades, e tem a finalidade de contribuir com a formação docente em estreita correspondência com a rica e complexa realidade brasileira vivenciada nas cinco regiões do país: Norte, Nordeste, Centro oeste, Sul e Sudeste.

              Portanto, mediação dialógica, reflexão crítica e ação prudente, estratégica e cooperativa constituem condições sem as quais não se pode fazer frente aos tempos de ataques às Ciências Humanas e Sociais; de desvalorização das artes, da cultura e de suas experiências sensíveis; de tentativas de golpes e retrocessos na democracia e nas políticas públicas em todos os âmbitos e esferas; da implantação do “novo ensino médio” pela Lei 13.415 repleta de elementos estranhos à singularidade da realidade brasileira; da homologação e imposição da Resolução CNE/CP 2/2019 que, contrariamente ao diz, precariza os cursos de licenciatura exercendo maior controle pedagógico sobre a formação inicial e continuada em detrimento da autonomia dos cursos, além de implantar, sub-repticiamente, uma concepção tecnocrática cuja lógica empresarial e privatista beneficia o mercado como lugar último para onde deve se dirigir toda educação.

              Enfim, nesses tempos, cujo cenário dramático de desestruturação institucional e ausência de um claro projeto de país calcado no bom senso do estado democrático de direito, a filosofia e seu ensino parecem alcançar, por estímulo e caráter próprios de sua natureza, a clareza de que, ao contrário do que se prega e se pretende impor, mais que nunca tem papel decisivo na configuração, ou mesmo na reconfiguração, da realidade que ora sofre, de assalto, os desmandos e truculências da ignorância dos “engenheiros do caos” que, na disputa e no afã do poder, não respeitam nem vida nem dignidade humanas, e submetem ou tentam submeter, a seus caprichos, o espírito de racionalidade civilizada presente nas instituições, em especial nas instituições da educação. Lutar contra essa situação caótica, resistir à mordaça e à cultura do silêncio pelas armas da reflexão crítica e autônoma, parece ser um recurso própria da filosofia, cuja experiência, ao longo de sua história, a qualifica para o enfrentamento.

 

2.3. A Produção Educacional na Área de Filosofia

Felipe Gonçalves Pinto & Taís Silva Pereira

PPFEN/CEFET-RJ; GT Filosofar e Ensinar a Filosofar

 

A ideia de produto educacional, já consolidada, por exemplo, na área de Ensino, parece atrair ainda pouca atenção dos Programas de Pós-Graduação em Filosofia. Os livros didáticos recebem, é verdade, atenção de pesquisadores e pesquisadoras em estudos, discussões e proposições de natureza filosófica reconhecida pela área, sobretudo com a entrada da disciplina de Filosofia no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). No entanto, além de vivenciarmos hoje um momento delicado na trajetória do PNLD, o livro didático está longe de ser a única forma que pode tomar a produção classificada como material didático – como atestam as diferentes experiências docentes na educação básica, sobretudo –, assim como tampouco o material didático é a única forma disso que chamamos produto educacional.

Ao longo dos últimos cinco anos de funcionamento, os mestrados profissionais em filosofia vêm se debruçando sobre a pesquisa, produção e avaliação de objetos e processos no âmbito do ensino que poderiam contribuir para as ações futuras dos Programas de Pós-graduação da área. Decerto, as reflexões empreendidas apontam para importância de um tratamento filosófico sobre os produtos educacionais.  Neste sentido cabe a questão: deve a elaboração e a discussão sobre produtos educacionais ficar restrita aos cursos profissionais? Ou melhor seria que a área buscasse tornar o produto educacional uma questão premente também para os cursos acadêmicos? Como fazer isso ou aquilo? Um caminho que se mostra oportuno é atentar para outra novidade com a qual a área tem se confrontado, embora ainda de forma acanhada e pouco organizada: a classificação e avaliação da Produção Técnica-Tecnológica (PTT).

Em 2018 foi criado um Grupo de Trabalho na Capes com a finalidade de elaborar proposta de classificação da PTT a partir dos resultados alcançados pelo GT 06 CAPES (2015/2016), que compilou 62 tipos de produção técnica de acordo com 4 eixos: produtos e processos; formação; divulgação da produção; e, por fim, serviços técnicos. Em 2019, o GT de Produção Técnica elaborou relatório em que elenca 21 tipos de PTT. Seguindo recomendação do relatório, cada área selecionou até 10 tipos de produto que seriam relevantes para a avaliação da produção dos programas. A área de Filosofia enumerou como relevantes os seguintes tipos: 1. Material didático; 2. Curso de formação profissional; 3. Evento organizado; 4. Produto bibliográfico (apenas para os PPGs que oferecem cursos de mestrado profissional); 5. Produto de editoração; 6.  Produto de comunicação; 7. Acervo; 8. Produto de editoração; 9. Tecnologia social; 10. Tradução.

Ainda que já exista uma plataforma da Capes para publicização de objetos educacionais (eduCAPES) e que estejam disponíveis campos para registro de PTT na Plataforma Lattes (CNPq), esse tipo de produção ainda é pouco valorizado na avaliação de PPGs da área de Filosofia, assim como em concursos e processos seletivos. Por contemplar estratégias e resultados de processos de pesquisa para o ensino de filosofia e a divulgação filosófica, a ideia de produto educacional pode orientar a maneira como a área virá a se organizar com relação à produção e avaliação de PTT, não apenas como material didático, mas também nos demais tipos indicados acima. 

Mesmo reconhecendo as críticas ao que seria um excesso de normatização destinada à avaliação e estratificação, sobretudo quando alinhadas a imperativos de produtividade em descompasso com as condições de trabalho e pesquisa, é por essas normas avaliativas que se orientam, em larga medida PPGs e pesquisadores. Trata-se, então, de um ponto estratégico de indução para incrementar a qualidade e a quantidade da PTT na área de Filosofia, diversificando assim a produção educacional e as trocas entre a Pós-Graduação e a Educação Básica, para além dos cursos de mestrado profissional. Nesse sentido, novamente, a ideia de produto educacional, embora não se confunda com a de PTT, pode orientar e movimentar o debate em torno de como a área se preparará para debater, promover e avaliar esse tipo de produção. 

Há ainda outro elemento que compõe o contexto esse em que o produto educacional aparece como uma necessidade e oportunidade para a área de Filosofia: o já citado momento delicado por que passa o PNLD. O caminho imposto para a formação filosófica na Educação Básica pela lei 13.145/17 e seus efeitos já visíveis na nova edição do PNLD Ensino Médio é de retrocesso. Com edital atrelado a uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) cuja homologação foi marcada pela ruptura com relação ao processo pelo qual vinham sendo elaboradas as versões anteriores da base, e que contava com representantes dos componentes curriculares reconhecidos pelas respectivas comunidades científicas dispostos a dialogar e acolher as críticas apresentadas por meio de consulta pública, o atual PNLD impõe nova ruptura à produção educacional ao dispor os livros didáticos por grandes áreas. O programa faz, assim, desaparecer o livro didático de filosofia do seu quadro de volumes, oferecendo às escolas, professores e estudantes livros didáticos de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas nos quais os objetos e procedimentos do fazer filosófico encontram-se diluídos nas obras e dissociados de uma concepção refletida e justificada a respeito do ensino de filosofia e das práticas filosóficas.

Neste contexto, parece-nos necessário e oportuno que a comunidade de professores e pesquisadores da nossa área envide esforços para contribuir com estratégias e produtos educacionais na e para a educação básica, avaliando e discutindo publicamente, nos espaços acadêmicos (eventos, revistas, currículos), as experiências e processos educacionais comprometidos com uma ideia de formação filosófica.

De que modo isso pode acontecer? Estimulando que pesquisadores da área, no âmbito dos PPGs, produzam não apenas artigos e livros que ficarão restritos a especialistas, cuja importância não está aqui em questão, mas também objetos (textos, estratégias e sequências didáticas, jogos, percursos, produtos audiovisuais, oficinas) destinados a qualificar, complexificar e contribuir com os estudos e práticas filosóficas que a área entende ser imprescindíveis para a formação humana. Também encorajando que essas contribuições aflorem do diálogo e da articulação entre os sujeitos envolvidos nas pesquisas realizadas no âmbito da Pós-Graduação, na atuação docente e nas ações de formação docente inicial e continuada da área.

Uma segunda finalidade que os PPGs de Filosofia e futuras coordenações de área podem tomar como prioritária, além da finalidade didática no âmbito da educação básica de que vínhamos falando, é a disseminação do conhecimento produzido pela academia. Trata-se não apenas de divulgar as pesquisas para que se saiba que e como foram realizadas, mas, especialmente, propagar o exercício filosófico do diálogo, da reflexão franca e do exame crítico de pressupostos para uma sociedade plural cujos grupos são frequentemente assediados pelo dogmatismo irrefletido, pela terceirização do pensamento e pelas promessas de liberdade e felicidade. Esse caminho ao qual exortamos implicaria um esforço de comunicação com as pessoas e grupos que não compõem o estrito círculo de especialistas, filósofas e filósofos dedicados à minuciosa pesquisa de autores e temas, um esforço por ocupar o mundo com objetos e procedimentos filosóficos, além, claro, de cuidar das questões, espantos e frustrações emergentes desse esforço.

No âmbito das ciências da natureza e das matemáticas, há vasta literatura e discussão constante a respeito das formas de comunicação do conhecimento científico, compreendidas em torno de noções que guardam diferenças mais ou menos sutis como “divulgação científica”, “alfabetização científica” e “letramento científico”, expressões que traduzem, sob diferentes perspectivas, a noção de “scientific literacy”. Na área de Filosofia, as discussões nesse sentido ainda parecem tímidas, assim como o envolvimento de pesquisadores/as da área na elaboração de produtos de comunicação extrapares e na reflexão sobre esse tipo de produção.

A valorização dos produtos educacionais de filosofia pelos PPGs da área no país traz para o terreno da discussão acadêmica filosófica essas duas urgências de nosso tempo, reforçando o impacto social das pesquisas, reconhecendo e qualificando as atividades profissionais, como a pesquisa e a produção desenvolvidas na atuação docente, e consolidando o sentido da PTT no cruzamento na área de Filosofia e de seu ensino. Apostamos que por essas vias a área será mais capaz de induzir cursos de Pós-Graduação que não limitem sua produção aos castelos pouco habitados da razão universitária e tampouco a subjuguem ao gosto insensível dos consumidores, dedicando-se à formação de públicos filosofantes e à popularização das filosofias.

Contemplando as duas dimensões, didática e divulgação, a ideia de produto educacional esboça uma unidade para os múltiplos trabalhos de PTT que vêm sendo realizados nos PPGs da área nas formas, por exemplo, de produção de podcasts, vídeos, cursos, eventos, oficinas, páginas, acervos, perfis e campanhas em redes sociais. Nesse sentido tem atuado também a Anpof, seja criando e estimulando, seja reunindo e divulgando essa produção. Com o conceito de produto educacional buscamos, assim, ampliar os espaços e processos que promovam o exame, o debate e a popularização dessa produção. A considerar que o ofício de qualquer professor é elaborar percursos, objetos, processos, estratégias e exercícios, em suma, produtos educacionais, as práticas refletidas na educação básica constituem uma experiência riquíssima para construirmos este caminho em aberto, não sob o signo da subalternidade, mas enquanto parceiros de uma causa em comum.

 

2.4. Produção de material didático pedagógico para a Filosofia: ensinar como um jogo e com o uso dos jogos

Angela Zamora Cilento

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Pedro Gontijo

UnB

GT Filosofar e Ensinar a Filosofar

 

Sem negligenciar que a educação sofre interferências da economia vigente e nem tampouco dissociá-la das relações de poder que comportam, em todas as esferas, grandes assimetrias, podemos afirmar que produção de materiais didáticos para o ensino de filosofia no Brasil vive um momento singular em função da sua qualidade e variedade. Evidencia o empenho e a dedicação dos docentes em busca de um ensino significativo num país com baixo letramento. Destacamos três políticas públicas que nos parecem ser impulsionadoras dessa produção mais recente:

a)         Uma década do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID/Filosofia permitiu a criação de diferentes tipos de produção de material didático.

b)        O Programa de Pós-Graduação Profissional em Filosofia – PROF-FILO. Em quatro anos de existência já gerou mais de duas centenas de trabalhos.

c)         O Programa Nacional do Livro Didático – PNLD que em três edições (2012, 2015 e 2018) implicou em maior difusão de material didático.

Por mais que seja importante o uso dos textos da tradição filosófica, a gramática pedagógica a que a filosofia precisa estar vinculada exige uma diversificação nos modos de acessibilidade. A própria tradição nos permite verificar uma diversidade de estilos literários e modos de produção filosófica. A abertura teórica e metodológica para o uso de diferentes materiais, inclusive de jogos no ensino de filosofia nos parece ser possível se vivenciarmos de um jeito singular a docência em filosofia, que pode ser considerada enquanto uma criação poética, o que também não deixa de ser um jogo: um jogar que produz implicações, inclusive na produção de material didático. Propomos, portanto, pensar essa docência como um jogo e, em seguida, pensar a prática do jogo como recurso metodológico para o ensino de filosofia.

As possibilidades metodológicas do ensino de filosofia na educação básica nos levam a encarar o ofício da docência como criação poética, visto que seu fazer eclode e reverbera em sua produção, afetando e sendo afetado por outras subjetividades. Este ofício é análogo ao do fazer artístico: “mas o artista só tem em si a poíesis na medida em que ele é o que ele é no vigorar do ser. A obra de arte opera na medida em que ela contém em si a poíesis” (HEIDEGGER, 2002, p. 16). Neste sentido, o artista/professor potencializa seu ser no devir e suas produções revelam as marcas de sua atuação no mundo.

Ora, mas tal criação poética não deixa de ser um jogo na extensão do termo tal como elaborado por Huizinga em Homo Ludens. Só desta maneira conseguiremos dimensionar o valor do jogo no universo simbólico. A extensão do termo jogo, nos esclarece o autor, concerne à dificuldade na tradução do termo ludens para o português. Em inglês, ‘play’ indica jogar, brincar e fazer de conta. O autor segue apresentando em outras línguas, o significado. O jogo antecede o reino da cultura, mas também não deixa de ser seu produto, um fenômeno cultural.

As brincadeiras entre os animais indicam concomitantemente um excesso de energia e o preparo para a vida futura dos filhotes – o jogo se coloca para além dos instantes em que ele acontece - e, de modo análogo, é observável também nos jogos infantis. O jogo ‘diverte’, ‘alegra’, mas também incorpora um elemento imprevisível – o ‘irracional’. Algo paradoxal, pois é elaborado, permeado por regras que permitem sua efetivação se e apenas se forem cumpridas. Além disso, não é ‘sério’, mas levado a efeito pelos participantes. Acreditamos que podemos transpor para o ensino de filosofia tais paradoxos: as regras versus o caráter ‘irracional’ e imprevisível do jogo; a brincadeira e a seriedade.

A elaboração do material didático seja ele qual for exige um grau de destreza que só pode ser alcançado pelo domínio pedagógico do conteúdo. Isto não deixa de ser um jogo: um quebra-cabeça, onde cada peça deve ser cuidadosamente deliberada – no tempo estimado de sua duração; na seleção dos conteúdos (critérios de inclusão e de exclusão); na hierarquização, o que implica auferir uma ordem, uma racionalidade que deve ser detectável em seu conjunto.

Qualquer produção: do plano de aula à proposição de uma atividade a ser realizada requer esta racionalidade[1]. Por outro, há o ‘imprevisível’ do jogo: o que implica em uma dinâmica que foge ao controle do docente: enquanto o papel resguarda e delimita a ‘ordem’ das ideias a serem expostas, na prática, aquilo que nele estava inscrito ganha vida na sala de aula e, portanto, excede a delimitação prévia de seus contornos. Ela se torna uma espécie de ‘ideias em movimento’, isto é, um acontecimento único e irrepetível ainda que seja a mesma.

Implica em considerar as distopias e diferenças entre eles, pois não há uma receita única. O jogo transita entre a necessidade e o acaso, permite experienciar as possibilidades e limites – a sala de aula é o tabuleiro onde as peças se movem de acordo com as jogadas e decisões precedentes. A docência também não deixa de sê-lo, transita entre o que pode ser e o que deve ser, entre o previsto e o imprevisível. Em segundo lugar, este fazer carrega consigo as marcas da subjetividade que as produz.

Toda produção de material didático compreendido como jogo implica em abarcar aquilo que precisa ser apropriado pelos sujeitos, a fim de possibilitar uma aprendizagem significativa – marcas da formação por um docente como criação poética.

A filosofia que vai à escola é uma filosofia que interage com o conjunto de saberes próprios dos espaços escolares e, também, com as diferentes metodologias de ensino existentes. Para promoverem esse encontro entre o lúdico e a aprendizagem filosófica e, mais especificamente o jogo e filosofia na escola, docentes e pesquisadores que enfrentam esse desafio combatem preconceitos na construção dos fundamentos filosóficos e científicos (sociológicos, antropológicos e psicológicos) dos jogos, buscando a desconstrução de uma imagem meio que petrificada em algumas arenas filosóficas a respeito da exclusividade do texto como acesso à filosofia e ao filosofar.

Os jogos usados para o ensino de filosofia, além dos diferentes aspectos que diretamente proporcionam enquanto interação social e aprendizagens, servem como poderosa ferramenta de avaliação diagnóstica: possibilitam a ruptura com o cotidiano, estabelecem interações diferenciadas entre os participantes, promovem o desempenho de outros papeis diferentes dos adotados, permitindo o desempenho de outros. Podem desinibir, criar laços afetivos e quebrar estereótipos entre os alunos. Consente ao professor observar as regras de convivência explícitas ou não naquele grupo.

Em nossas reflexões sobre este tema procuramos sublinhar, primeiramente, que há uma relação direta entre as políticas públicas das últimas décadas e a docência e a produção de material didático-pedagógico para o ensino de filosofia. Em segundo lugar, afirmamos que a docência, sobretudo em filosofia – por sua extensão e pelas inúmeras possibilidades deste fazer – implica na possibilidade de uma criação poética. Este fazer, vinculado ao professor, carrega das marcas de sua subjetividade, de seu planejamento, mas há sempre um fator imprevisível que foge ao seu controle: a aula é um acontecimento. Carrega consigo a ordem e o lampejar do caos – ela se torna um jogo que se reconstrói a cada nova aula, produto imaterial da cultura, bem como sobre o potencial do uso de jogos como recurso metodológico. O jogo foi tomado, portanto, em seu sentido amplo. Em seu sentido restrito, são criados e/ou utilizados em sua materialidade de modo significativo – o que abrange a apropriação dos conteúdos e mudanças atitudinais nos discentes.

O volume desta produção e sua qualidade podem servir de inspiração para os enfrentamentos decorrentes ao Novo Ensino Médio (além de todas as implicações que a pandemia trouxe para a educação como um todo), constituindo um campo urgente, necessário e fértil para práticas e pesquisas sobre o ensino de filosofia na educação básica.

 

 

Referências bibliográficas:

FAVARETTO, Celso. Notas sobre o Ensino De Filosofia. In A Filosofia e Seu Ensino. São Paulo: Vozes/EDUC-SP, 1995.

HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2002.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.

 

2.5. Avaliação da aprendizagem de Filosofia na Educação Básica e o dilema subjetividade/objetividade

Marinês  Barbosa de Oliveira

CEFET-MG; GT Filosofar e Ensinar a Filosofar; Doutoranda do PPGFil/UFABC

 

As questões que envolvem a avaliação da aprendizagem escolar perpassam a discussão sobre a prática pedagógica em todas as áreas do conhecimento. As perguntas sobre instrumentos, modelos e momentos ideais para avaliar os estudantes refletem diferentes concepções sobre o processo de ensino e aprendizagem, trazendo mais dúvidas do que certezas para a maioria dos professores. No que se refere à avaliação das aprendizagens de Filosofia, as dificuldades em torno dos processos avaliativos evidenciam os desafios ainda a serem vencidos por aqueles que se dedicam a esse campo, seja no efetivo exercício nas salas de aula, seja no desenvolvimento de pesquisas e produção de conhecimentos na área.

Com efeito, muitos professores de Filosofia da Educação Básica, preocupados em garantir a objetividade de suas avaliações, optam por utilizarem instrumentos avaliativos como testes com questões de múltipla escolha ou questionários com pergunta direcionadas. Ora, tal posicionamento demonstra uma concepção tradicional da educação, a partir da qual a aprendizagem dos conteúdos de Filosofia é reduzida à capacidade de memorização de informações sobre fatos, teorias e conceitos. Aprender filosofia nessa perspectiva significa tão somente acumular informaçãoes sobre a história da Filosofia, ou sobre o que os diferentes filósofos disseram sobre determinado tema ou problema.

A outra posição, bastante comum nesse nível, defende que não é necessário – nem sequer possível – avaliar objetivamente a aprendizagem em Filosofia. Nessa perspectiva, são priorizados instrumentos avaliativos como dissertações, debates, juris-simulados. As avaliações são pautadas num posicionamento pessoal do aluno frente aos temas e problemas discutidos nas aulas. Essa posição parte na premissa de que a Filosofia, diferentemente de outras disciplinas escolares, possui um caráter eminentemente subjetivo, não apresentando conteúdos específicos passíveis de serem demonstrados pelos alunos e avaliados pelo professor.

Muitos professores de Filosofia parecem assumir e legitimar essas posturas antagônicas. No entanto, essa polarização demonstra um mau entendimento do que seja subjetividade e objetividade em contextos didáticos avaliativos e a falta de conhecimento acerca da especificidade da Filosofia enquanto componente curricular, com conteúdos e competências próprias.

Ora, é importante considerar que a diferença entre uma abordagem objetiva e uma abordagem subjetiva está no fato de que, na primeira, predomina aquilo que é observado; e na segunda, as impressões do observador sobre o observado (JÚNIOR, 2005). É preciso ressaltar, no entanto, que assim como não há subjetividade plena, também não há objetividade plena, uma vez que as palavras, os signos e seus significados são patrimônio de uma coletividade cultural, não de um sujeito. Se por um lado, nossos posicionamentos e escolhas dependem de um repertório que seja fruto de uma coletividade, por outro, fazemos escolhas individuais, mesmo que a partir do repertório coletivo. Ora, a escolha de um instrumento avaliativo está diretamente ligada ao modo como o professor compreende sua disciplina e, de modo mais abrangente, à maneira como concebe o próprio sentido da educação institucionalizada. Nesse sentido, as escolhas do professor por este ou aquele instrumento avaliativo estão repletas de subjetividade e interferem diretamente nos resultados que serão obtidos através deles. Nenhum instrumento avaliativo é totalmente subjetivo ou objetivo. Isso ocorre porque a avaliação que se rege por parâmetros subjetivos, no sentido simplista de que tudo depende da sidiossincrasias do aluno que é avaliado ou das preferências e opiniões pessoais, constitui-se em uma farsa sem valor educativo ou formativo (MURCHO,2009).

Um outro aspecto que gostaríamos de destacar é a prática bastante comum de escolher os instrumentos de avaliação antes da definição do que será avaliado. Ora, não se pode perder de vista que a avaliação é um processo sistemático que visa determinar em que medida os objetivos educacionais foram ou não foram atingidos. Em outras palavras, para que o professor possa ter clareza sobre como avaliar, ele precisa ter clareza sobre o que deverá ser avaliado. É absolutamente imprescindível, portanto, o estabelecimento de descritores avaliativos, ou seja, de critérios bem definidos que determinem o que se pretende avaliar em cada etapa conteúdo. O critério é a síntese do conteúdo e está vinculado à expectativa de aprendizagem, definindo de forma clara os propósitos e a dimensão do que se pretende avaliar (LUCKESI, 1999).

Com efeito, é o trabalho com determinado conteúdo e a clareza em relação às expectativas de aprendizagem que devem orientar quais instrumentos avaliativos serão mais apropriados. Isto significa que não faz sentido começar por escolher se os alunos farão um trabalho individual ou em grupo, se apresentarão uma exposição oral ou resolverão um teste escrito, sem antes saber o que será avaliado. Portanto, o caráter objetivo ou subjetivo de uma avaliação não está ligado simplesmente ao instrumento utilizado, mas sim, às intenções pedagógicas que orientam a escolha, elaboração e utilização desses instrumentos. Uma vez que critérios pessoais são aplicados em detrimento de critérios relativos à expectativa de aprendizagem, o professor se vê diante do seguinte dilema: ou não tem como justificar a avaliação feita, ou, ao justificá-la, tem que reconhecer e aceitar a possibilidade de que sua justificativa venha a ser questionada por qualquer um que “pense de outro modo”. Em qualquer um dos casos, o resultado é pedagogicamente inócuo.

Mas, afinal o que cabe ao professor de Filosofia avaliar?

Cabe a ele avaliar se seus alunos dominam ou não aquelas competências e aqueles conteúdos que dão corpo e identidade à sua disciplina e que, por isso mesmo, a distinguem de qualquer outra área do conhecimento. Cabe, portanto, ao professor de Filosofia avaliar a aprendizagem dos conteúdos filosóficos e das competências filosóficas.

Num sentido amplo, conteúdos são conhecimentos ou formas culturais considerados essenciais num contexto de educação escolar e que devem ser assimilados por estudantes, a fim de alcançarem seu desenvolvimento e socialização. São os conhecimentos sistematizados, selecionados das bases das ciências e dos modos de ação acumulados pela experiência social e organizados para serem ensinados na escola. Os conteúdos não se limitam a fatos ou informações, são também habilidades e hábitos vinculados aos conhecimentos, incluindo métodos e procedimentos mentais, além de atitudes e posturas que envolvem os modos de agir, sentir e compreender o mundo.

A disciplina Filosofia possui conteúdos específicos a serem ensinados pelo professor e aprendidos pelos alunos. Tais conteúdos possuem uma estrutura tridimensional, constituída por uma dimensão conceitual-formal, uma dimensão histórica e uma dimensão procedimental. De acordo com Almeida e Costa (2003), esses conteúdos são expressos por problemas, teorias e argumentos. Os problemas filosóficos são um conjunto de interrogações cuja resposta não é dada pelo senso comum ou por outros saberes. As tentativas de respostas sistematizadas a essas indagações constituem as teorias filosóficas. Os argumentos filosóficos constituem o meio de construção e apresentação dos problemas e teorias filosóficos. A ideia de argumentação aqui apresentada se opõe radicalmente à retórica que limita a adesão a aspectos subjetivos, parciais e emocionais, responsáveis por discussões pseudo filosóficas.

Dessa forma é possível verificar através de diferentes instrumentos avaliativos se os estudantes sabem identificar, formular, comparar problemas filosóficos, se são capazes de identificar, comparar, interpretar, opor e relacionar teorias filosóficas e se conseguem formular, analisar, comparar e avaliar argumentos filosóficos. As competências críticas, reflexivas e investigativas dos alunos são nesse momento requeridas, incentivadas e desenvolvidas, quer como capacidade de compreensão e de análise dos problemas, teorias e argumentos clássicos em filosofia, quer como aptidão para empreender criativamente na fundamentação de posições pessoais sobre os problemas e as soluções tradicionalmente disponíveis (ALMEIDA e COSTA, 2003).

Acreditamos que para a elaboração de critérios justos, rigorosos e adequados para avaliar as aprendizagens em filosofia, faz-se necessário que o professor saiba diferenciar conteúdos filosóficos de não-filosóficos e identificar competências filosóficas de competências não-filosóficas. São estritamente tais conteúdos que deverão configurar-se em objeto de avaliação, uma vez que configuram a especificidade da Filosofia escolar e justificam sua inclusão nos currículos.

Na perspectiva aqui apresentada, avaliar um estudante em Filosofia é uma tarefa tão objetiva ou subjetiva quanto avaliar um estudante de Matemática, História, Física ou de qualquer outra disciplina escolar. É uma questão de reconhecer, identificar e escolher conteúdos e competências e de saber como elaborar descritores avaliativos. Isso não é simples. Compreendemos que essa concepção do que deve ser levado em conta na avaliação da aprendizagem de Filosofia afasta-se radicalmente da ideia popular da Filosofia como disciplina de caráter subjetivo, sem conteúdos, e vem rebater as posições unilaterais, responsáveis por direcionamentos metodológicos que, ou limitam a aprendizagem nessa área à memorização de informações ou, simplesmente, eliminam a possibilidade de avaliar a aprendizagem nessa área.

 

Referências

ALMEIDA, Aires e COSTA, Antônio Paulo. Avaliação das Aprendizagens em Filosofia. Diponível em: http://aartedepensar.com/avalição.html. Acesso 21 de jun 2021. Acesso: 23 set. 2021.

JUNIOR, José B. de Almeida. Avaliação de Filosofia. Princípios. Natal, vol. 12, nº17-18, jan-dez. 2005, p. 145-156.

LUCKESI.C.C. Avaliação da aprendizagem escolar. SãoPaulo: Cortez,1999.

MURCHO, Desidério. Avaliação em filosofia e subjetividade.

http://criticanarede.com/subscrever.html. Acesso em21 de jun de 2009.

 

2.6. Ensino não-formal de filosofias

Renata Lima Aspis

UFMG; GT Filosofar e Ensinar a Filosofar

 

O que foi feito daquela filosofia que se dava na rua? O que foi feito da filosofia que é um trabalho sobre si mesmo e só tem sentido se é ação, aquela que é produzida na relação com os outros?  Sabemos que na tradição grega antiga as filosofias eram praticadas, não havia cisão (e muito menos contradição) entre o que se falava e o que se fazia. As buscas da verdade não eram discursos conceituais descolados das práticas da vida. A filosofia era feita com o corpo, com o corpo e com a alma, sem descompasso. A conjunção entre o falar/pensar e o fazer/ação no mundo se constituíam como duas dimensões de uma mesma coisa, indissociáveis e sem contradição. O que foi feito com aquele pensamento que só era posto em movimento quando o corpo também se movimentava?

Hoje, a filosofia está sentada, sentada à mesa, diante de um papel ou tela, a serem preenchidos com ideias, palavras que poderão se lidas por outros corpos também sentados. Sentada à mesa em um escritório, em um gabinete, isolada. Poderá haver uma conexão entre os cérebros que compartilham essas ideias na escrita e na leitura, mas nada se passará nos corpos, nada se modificará no mundo, os corpos continuam obedecendo à ordem da produção e consumo das indústrias: produção de artefatos, produção de cultura, produção de informações, modelagem e modulação dos corpos vazios de ações e abarrotados demais de dados e comandos. A produção de conhecimento filosófico passou por muitos processos, que a transformaram em discurso separado do mundo. Arriscamos dizer que, a partir da Modernidade, quanto mais os corpos foram sendo confinados e disciplinados, mais extenso foi ficando o vão entre o que se faz e o que se fala. Não há tempo para se fazer nada além de trabalhar (ou procurar trabalho), os sonhos e os outros mundos possíveis se dão apenas nos discursos vazios de sentido, regurgitados do consumo de cultura em forma de mercadoria. Para Nietzsche a cultura moderna não é viva, não é uma cultura efetiva, “[...] mas apenas uma espécie de saber em torno da cultura; fica no pensamento-de-cultura, no sentimento-de-cultura, dela não resulta nenhuma decisão-de-cultura” (NIETZSCHE, 1978, p.62). Hoje, movimentos de transformação de si e do mundo são os dos pixels, dos fluxos eletrônicos que entram pelos olhos e ouvidos de um corpo inerte sentado em uma cadeira, mexendo um dedo no mouse, ou na telinha sensível ao toque.  Sensações atravessam esse corpão parado e nele se encerram.

Em uma perspectiva individual é possível para alguns tomar alguma decisão em relação a diminuir o abismo entre o que fala/pensa e o que faz/age no mundo. A adoção de determinadas dietas (não apenas alimentares), a atenção a determinados comportamentos, o esforço em não ser um vetor de reprodução de valores alheios, etc., ou seja, a busca de novos e autênticos modos de agir consigo mesmo e com os outros, na composição do mundo, que seja coerente com seus desejos, com suas ideias e com a posição política que deseja ocupar. Esse seria um corpo cheio de contradições e desvios, na busca constante de re-existir a cada captura dos sistemas de modo único de vida que se impõem.

Para além disso, em uma perspectiva do ensino de filosofia, como poderíamos pensar (im)possibilidades de fazer filosofia de outras maneiras, que não sejam a dos discursos sentados isolados da vida? É possível encontrar modos de mexer o corpo, que levem o pensamento a colocar-se também em movimento? É possível mexer o corpo de modo tal a enxamear signos que disparem o pensamento? Fazer filosofia com o corpo. Criar uma nova disciplina no pensamento que aconteça e se constitua no corpo? Estamos trabalhando aqui em acordo com a ideia de Gilles Deleuze de que pensamento é criação. O blablablá constante que se passa nas cabeças, as opiniões, os sensos comuns, jargões, memes, notícias, não são pensamento. O pensamento não é natural, “o homem é um animal racional”, não, o pensamento, para ser colocado a funcionar, precisa de um chacoalhão, precisa se encontrar com um signo que o instigue à decifração, que o perturbe, e o coloque em movimento de busca, de criação. O pensamento, para funcionar, não depende dele mesmo, de uma certa boa vontade do sujeito pensante, ele depende de algo alheio a si, de uma violência - para usar uma palavra que Deleuze usa – que o tire da inércia e o faça elaborar problemas ao invés de procurar por essências. Quando se concebe o pensamento como natural, se está associando-o diretamente à criação de conhecimento e aliando-o à verdade, bastando se inventar um bom método para chegar a ela.  No entanto, seguindo Deleuze, se pensar é ter de lidar com o imprevisível e o imponderável, esse será necessariamente criação, sem um método universal que o possa salvar de ter de se movimentar em busca constante de modos de operar, sem garantias, sem pressupostos e fundamentos. A filosofia, a arte e a ciência são modos de pensamento.

Se assumirmos que pensamento é necessariamente criação, nos perguntamos: o que é o aprender? O que é o aprender senão ele também o encontro com signos que interessem e façam sentido? E qual a relação entre aprender e o ensinar? Nenhuma. Não necessariamente. Podemos planejar bem e de muitas formas o que vamos ensinar, mas não temos quaisquer garantias da correspondência disso com o aprender. Não sabemos como, o que e quanto vai aprender aquele a quem dirigimos o ensino. O ensino teria de ser um enxameamento de signos, um aspergir que se quer virótico, um vetor de problemas, sementes ao vento, movimento, com Nietzsche, de lançar flechas que, tomara, acertem alguém. Essa ideia de ensino é a ideia de um ensino sem forma, não-formal, que abandona a correspondência de si mesmo com o aprender, é um arriscar, é uma aposta.

As ideias que estou desenvolvendo aqui têm conexão com a pesquisa “Fazer filosofia com o corpo na rua: experimentações em resistência”, que realizei entre os anos de 2018 e 2019, junto com o grupelho, Grupo de Estudos e Ações em Filosofia e Educação, da Faculdade de Educação da UFMG, nas ruas de Belo Horizonte.

Nos aventuramos a buscar formas de fazer filosofia com o corpo na rua, diante da cidade. Uma filosofia com outrem, perante ele, que pretende afetá-lo. Lançamo-nos no desafio enorme de inventar gestos filosóficos que pudessem despertar interesse, que pudessem fazer se mover o pensamento dos transeuntes apressados. Fomos às ruas, praças, hall de faculdade, porta de restaurante do campus da universidade com nossas ações de filosofia com o corpo na tentativa de atiçar fagulhas de pensar, signos que instigassem a decifração, queríamos dar o que pensar. Tratou-se da necessidade de criar modos de resgatar uma relação intensa entre filosofia e vida. Qual o sentido de uma filosofia que não é vivida? Tratou-se da busca de uma filosofia tornada gesto, de uma filosofia incorporada. O que aprenderam as pessoas com quem nos encontramos na rua, na prática de nossos gestos filosóficos? Jamais saberemos. Isso é imponderável.

 

Referências

DELEUZE Gilles. Proust e os signos. Tradução Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

_____. Diferença e repetição. Tradução Roberto Machado e Luis B. Orlandi. São Paulo: Graal, 2006.

NIESTZSCHE Friedrich. Considerações extemporâneas II – Da utilidade e desvantagem da história para a vida. In: _____. Obras Incompletas. Seleção de textos de Gérard Lebrun. Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Coleção Os Pensadores.

 

2.7. Filosofar, perguntar... dança do vento, dança do pensamento na escola pública de periferia

Edna Olímpia da Cunha

Mestre em Filosofia da Educação pela UERJ; Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI/UERJ)

“A primeira coisa que eu faço é abrir a janela e contemplar o espaço”

Carolina Maria de Jesus

 

Perguntar, perguntar-se. O que uma escola pública de periferia e uma universidade podem quando estudam, partilham perguntas, entrelaçam vozes, bordam desenhos inusitados na pesquisa em educação? Quando nasce uma pergunta? O que fazemos quando ela surge e se traduz em palavras? Não sabemos quando uma pergunta pode surgir, por quanto tempo ela nos acompanhará e até onde pode nos levar. Uma das características mais potentes e singulares das crianças é o gosto por perguntar. Na cena pedagógica quase que invariavelmente as perguntas tornam-se instrumento de testagem. Perguntamos aos/às nossos/as estudantes para classificá-los/las entre os/as que sabem e os/as que não sabem. Este é um percurso muito conhecido, que Freire (2017, p. 74) chamou de “burocratização” das perguntas. É essa a relação com a pergunta que o projeto de pesquisa e extensão Em Caxias, a filosofia en-caixa? A escola pública aposta no pensamento, em parceria com o Núcleo de Filosofias e Infâncias - NEFI/UERJ, tem nos convidado a pensar e repensar.

O projeto teve início em 2007 em duas escolas do município de Duque de Caxias: Joaquim da Silva Peçanha e Pedro Rodrigues. Atualmente ainda resiste na primeira escola referida, sob a coordenação da professora Vanise Dutra Gomes. Foi pensado para atender apenas as turmas de crianças do primeiro segmento do ensino fundamental em seu momento inaugural. Na escola Joaquim da Silva Peçanha se estendeu para todos os segmentos, inclusive para EJA – Educação de Jovens e Adultos.

O gosto pela roda, pela dança do pensamento com as perguntas desenhou movimentos inesperados, potentes e desafiadores. Os tempos de pandemia trouxeram mais perguntas em torno do que significa estar juntos, sobre os sentidos da escola, das nossas relações. Queremos voltar para a roda, sentir o pensamento bailar com a intensidade das vidas que habitam a periferia. Sim, nossos/as estudantes da periferia estão retornando às aulas presencias. Nas rodas de filosofia já nos perguntávamos o que significa estar presente na escola, na universidade. Depois de meses em que muitos/as de nós nos encontramos através de uma tela planificada, sentimos saudade dos encontros, dos abraços. Perguntamos, perguntamos... suspendemos um pouco a urgência das respostas... nas salas de aula nos preocupamos demais com as respostas. E as perguntas sem respostas? O que fazer delas? O que fazem conosco? Por que insistimos em perguntar? Os nossos porquês... entramos, nos acomodamos em cadeiras, fechamos a porta. Mas eis que entre quatro paredes vão se abrindo janelas. Talvez as perguntas na roda do pensamento sejam janelas, sejam um modo de abrir, de deixar entrar ar nos lugares fechados. Abrir janelas, sentir o ar, o sopro e o canto, a dança do vento, a dança do pensamento. Perguntas-ventos, brisa. Desarrumar as coisas, desprender-se de algumas amarras, ventania.

A filosofia é bagunceira, irrequieta. Talvez por isso na escola a filosofia vire “fisolofia”. Por quê? Por que insistimos em perguntar? Vento que não para de ventar. As crianças parecem não ter medo de perguntar e quando o fazem não são apenas movidas por uma curiosidade peculiar, o fazem com desejo de partilha, para convocar a presença do outro, do diverso, do seu olhar, da sua escuta. Cuidar da nossa relação com a pergunta não seria um dos modos mais potentes de resistir às lógicas asfixiantes, opressoras? Buscamos pensar o exercício filosófico de perguntar como um modo de habitar um mundo em aberto, com as infâncias, na cena pedagógica. Nesse sentido, tomamos como nosso o desafio proposto por Freire de “reconhecer a existência como um ato de perguntar” (2017, p. 74). Desse modo, perguntar seria também “partilhar a própria partilha”, uma verificação da igualdade na “exposição de uns aos outros, de uns com os outros, de uns entre outros” (NANCY, 2016, p. 18). Muito além de uma mera expressão linguística, perguntar com as infâncias também nos faz pensar numa ‘poética da relação”, “naquilo que ao permutar com o outro nos/se transforma” (GLISSANT, 2005, p. 39).

Mais ainda: “como ser a si mesmo sem fechar-se ao outro, e como abrir-se ao outro sem perder-se a si mesmo?” (GLISSANT, 2005, p. 28). Que mundos dentro e fora de nós pode abrir uma pergunta? Talvez essa seja uma das dimensões mais potentes de uma educação filosófica, lidar com o tempo, com a intensidade das perguntas. Um/a professor/a, em sua formação, geralmente não é preparado para lidar com as indagações dos/das estudantes do modo como praticamos e vivenciamos nas experiências de pensamento, em que o perguntar dá movimento ao pensamento, permitindo que se pense o que ainda não foi pensado, tornando-se um modo de habitar um mundo em aberto.

Um desafio interessante de uma educação filosófica é estar em atenção à intensidade do perguntar e à fragilidade de uma pergunta, atender ao instante que surge como oportunidade, kairós, uma brisa que sopra para acolher algo que se desprende de nós para ser compartilhado com outro(s). O tempo de uma pergunta nos aproxima de uma certa poética do efêmero e do frágil, que nos convida a suspender a preocupação com os resultados tão esperados na lógica da escolarização. O que acontece na cena pedagógica quando o tempo das perguntas transborda o próprio limite do tempo cronológico numa sala de aula? Além de ensinar/aprender a curiosidade indagadora, faz-se necessário criar condições para atender, para cuidar das perguntas, da intensidade de quem pergunta, dos desdobramentos de uma dimensão filosófica que tensiona vários aspectos da lógica de escolarização, inclusive o lugar do professor como aquele que sabe e está autorizado a falar, a perguntar para obter respostas. É como se perguntar abrigasse o som de um chamado, de algo que nos convoca a estar no mais íntimo de nós mesmos e ao mesmo tempo compartilhar a própria solidão em abertura ao outro, ao mundo, à vida... ar, brisa, ventania...

 

Referências:

FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antônio. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.

GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética do diverso. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.

JESUS, Maria Carolina de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014.

KOHAN, Walter O.; OLARIETA, Fabiana Beatriz (Org.). A escola pública aposta no pensamento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

NANCY, Jean-Luc. A comunidade inoperada. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.

 

2.8. O que pode um professor de filosofia na prisão?

Marcio Nicodemos

Professor de filosofia da DIESP/SEEDUC-RJ; Doutorando em Educação pelo ProPEd/UERJ

“Amar e mudar as coisas me interessa mais”

Belchior

 

Esta pergunta provocadora me acompanha há quase uma década, desde que pisei pela primeira vez em uma prisão como professor de filosofia. Entre curiosidades, conselhos, advertências e provérbios, atrás de muros, grades e cadeados, durante aulas, projetos e reuniões, lá está ela, sempre, a me deslumbrar. Por muito tempo, em vão, eu procurei uma resposta, até entender que a prisão nunca oferece respostas, muito pelo contrário, ela faz emergir incessantemente muitas perguntas que me põem a pensar e a repensar a minha atividade por lá. O ensino de filosofia em prisões está fundamentado em uma proposta política de educação em direitos humanos e inserida em uma perspectiva jurídica que considera a educação como um direito social de todo e qualquer cidadão, inclusive aquele que está preso. Ele é ofertado em escolas públicas, localizadas dentro de estabelecimentos penais, no nível do ensino médio, na modalidade de educação de jovens e adultos, como um dos elementos da instrução formal escolar. Há inúmeras especificidades pedagógicas contextuais a serem consideradas visando a criação de uma experiência transformadora que possibilite a construção de uma multiplicidade de identidades pessoais e da vivência de uma pluralidade de práticas da vida social. Mas o que pode um professor de filosofia na prisão?

Pode habitar as instituições provocando o amor à sabedoria para praticar a sabedoria do amor com seus sujeitos? Pode criar conceitos, traçar um plano e encarnar personagens para desterritorializar os pensamentos e as ações? Pode provocar movimentos de maravilhamento e esperança entre seus sujeitos para fazer emergir aquilo que constitui a instituição com o propósito de alterá-la? Pode intensificar os agenciamentos para despertar potencialidades revolucionárias? Pode aprender com os sujeitos novas formas de resistência para empreender ali uma potente máquina de guerra contra um destruidor aparelho de Estado? Pode procurar e percorrer os segmentos das linhas duras que constituem a instituição e seus sujeitos, com vistas às linhas flexíveis e seus fluxos com o intuito de fazê-las abrir linhas de fuga possíveis?

Estas questões me atravessam sempre quando me encontro diante, dentro e entre aquilo que toma forma e se constitui como um processo contínuo de espoliação de vida por meio da restrição de movimentos, do confinamento do espaço e da subtração de tempo. Aquilo que funciona ininterruptamente reprimindo e castigando por meio de mecanismos exaustivos e violentos de controle com o propósito de fazer desaparecer aqueles que não mais puderem ser aproveitados como pequenas peças bem encaixadas e bem aproveitadas em sua engrenagem maior. Aquilo que se estrutura como uma macro maquinaria disciplinar de instrumentos e procedimentos perversos para fabricar micro autômatos adestrados e sem desejo fabricantes de micro autômatos adestrados e sem desejo fabricantes de... Aquilo que deveria ser inominável, mas que tem muitos nomes e é invocado a todo momento em um imperceptível ritual cotidiano: Vigilância! Punição! Disciplina! Controle! Vingança! Prisão!

Estar diante da prisão, do lado de fora, é estar diante do impenetrável. É estar em um tempo que lentamente começa a estagnar, é estar em um espaço que lentamente começa a desaparecer, e, em alguma medida, é sentir a si mesmo lentamente estagnar e desaparecer também. Os muros de concreto com arame farpado no topo são tão altos que o sol tem seu caminhar interrompido e a brisa já não pode correr. Os muros e os portões de ferro são tão grandes que não possibilitam a visão de nenhum ser. O asfalto sob os pés é irregular e propício a muitos tropeços e tombos. E é tudo cinza: muros, portões e asfalto. Nenhum som se ouve. Talvez, o único som que se ouça do lado de fora seja o som do ferrolho da portinhola que abre e fecha quando o agente responsável pela portaria lança um olhar sobre você antes de permitir sua entrada. A boca fica seca. 

Estar na prisão, do lado de dentro, é estar dentro do inescapável. É estar em um tempo fora do tempo, é estar em um espaço fora do espaço, e, em alguma medida, é sentir a si mesmo fora de si mesmo por estar dentro. O olho que tudo vê está por toda parte e te vê antes que você possa vê-lo... Sempre. Pelas câmeras de segurança que estão por toda parte, seguindo todos os seus passos, pelos olhos dos agentes que te examinam e te revistam, observando todos os seus pertences, pelos olhos dos guardas nas guaritas e no alto das torres. Há tantas grades de ferro e tantos cadeados trancados que a impressão é que mesmo quando são abertos é apenas para te aprisionar mais. Os corredores são todos iguais e parecem labirintos sem saída. No chão há sempre pequenos buracos ou poças formadas pela última chuva que entrou pelas goteiras do teto. E é somente por esses pequenos furos que o sol pode entrar. Aqui dentro, além do cinza, há também o branco encardido das camisas, o preto suado da pele, e, muitas vezes, o vermelho sangue escorrido em algum lugar. Há sempre alguém falando alto em algum lugar, mas, em geral, é um som incompreensível, abafado pela dureza das paredes. Como não há nenhuma corrente de ar, o cheiro podre do lixo que se acumula em algum canto está sempre presente. A boca fica com um gosto ruim.

Estar entre a prisão, em suas dobras, entre o lado de fora e o lado de dentro, é ver a possibilidade de estar transitando no intransitável, de estar penetrando no impenetrável, de estar escapando do inescapável. É vislumbrar outros tempos possíveis, outros espaços possíveis e outros modos de ser possíveis. É encontrar a rachadura no muro de concreto, por onde é possível ver o sol e sentir a brisa. É encontrar a ferrugem das grades, descobrir um meio de destravar o cadeado. É descobrir um jeito de escapar por um pequeno instante aos olhos do que tudo vê e ver a saída nos olhos de um outro. É subitamente perceber que o chão ruim não te deixa fincar raízes e te impele a andar. É atentar que com o cinza, o branco, o preto e o vermelho é possível fabricar outras cores. É possível falar incessantemente para unir sua voz às outras vozes que ali se levantam para fazer com que os murmúrios se transformem em clamor. É conseguir sentir o aroma da vida e sentir a boca salivar para abocanhá-la.

É nessas brechas que, talvez, seja possível a um charlatão de boa vontade como eu, intensificar um processo constante de ruminação de questões que me atravessam para encontrar e percorrer os caminhos que vazam, que fogem, que movimentam, rumo àquilo que é livramento de vida, ampliação de territórios e multiplicação de acontecimentos. Rumo àquilo que desestrutura a instituição, que desarticula seus dispositivos e que faz reaparecer os seus sujeitos. Rumo àquilo que se configura como uma máquina de guerra capaz de produzir mais e mais vagabundos eficazes desejantes de novos modos de vida, novas formas de organização e novas maneiras de relação. Rumo àquilo que é o inusitado, que é o inesperado, que é o impossível. Rumo àquilo que assusta por ainda não ter nome, mas que é possível invocar nos rituais cotidianos de pequenas rupturas.

Não é fácil ver o caminho da brecha rumo à ruptura, pois não há um mapa geral pronto. O caminho só aparece quando o primeiro passo é dado. O caminho é feito no próprio ato de caminhar agindo criativamente frente aos acontecimentos mais diversos. É caminhando que o caminho vem. É fazendo o caminho no caminhar que é possível desarticular rotas prontas, conectar novas rotas possíveis e encontrar uma rota de fuga. É preciso ser uma espécie cartógrafo do impossível: sair sem bússola para caminhar nas regiões fronteiriças de um mapa sempre por fazer, explorar a mobilidade das linhas comuns e errantes que o constituem e se orientar por pontos cardeais não dicotômicos. É preciso caminhar para mapear o imapeável e, assim, imaginar o inimaginável.

Caminhar pelas dobras, caminhar para encontrar brechas e rupturas, caminhar para mapear e imaginar outros caminhos possíveis. Em uma instituição que cerca, paralisa, identifica e classifica, estar sempre em movimento é vital aos sujeitos que a habitam. É preciso, incessantemente e simultaneamente, ir de um lugar a outro, ir de uma ideia a outra, ir de um caminho a outro. Estimular pôr os pés e o pensamento para andarem juntos pelos caminhos como se fossem uma coisa só em busca da mesma rota de fuga. Caminhar, pensar e repensar abrindo caminhos entre o medo, o entendimento, o poder e a aflição para, quem sabe, poder trilhar o caminho que se abre com uma outra pergunta: algo de novo está acontecendo nas prisões e em torno das prisões?[2]

 

2.9. Olimpíada de Filosofia do Rio de Janeiro, uma viagem!

Lara Sayão

(NEFI/UERJ - SEEDUC/RJ; GT Filosofar e Ensinar a Filosofar)

Daniel Gaivota

(NEFI/UERJ - SEEDUC/RJ)

 

O que é uma olimpíada de filosofia? Pode a filosofia ser olímpica? Uma competição? Quais seus fundamentos, qual sua origem, a que se propõe, a quem interessa? Que contribuições pode trazer para o ensino de filosofia? O que é avaliado, mensurado? A retórica, a lógica, a estrutura dos textos? Os textos? Seria um jogo? O que estaria em jogo?

Entre algumas modalidades de olimpíadas de filosofia, a do Rio de Janeiro, que acontece desde 2013, é uma atividade educativa filosófica onde não há competição, mas colaboração na discussão de um tema. Então, por que o nome olimpíada? Em que essa atividade educativa se aproxima dos jogos olímpicos? Quais virtudes são fomentadas nesses encontros? São eles uma experiência filosófica?

Inspirados no pensamento do filósofo uruguaio Maurício Langón, professores e estudantes de todo o Estado do Rio se reúnem em torno de uma temática filosófica, a cada ano, com o objetivo de juntos, enfrentarem o problema filosófico em questão.  Em tempos nos quais persiste na educação a premiação dos melhores nos rankings universitários, nas qualificações, nas provas internacionais, numa perspectiva reducionista dos saberes e das possiblidades de invenção, onde muitas vezes são premiadas e reconhecidas as reproduções que mantém as diferenças educacionais e sociais, essa atividade educativa filosófica vem experimentando modos de propor experiências de pensamento filosófico.

              A cada início de ano, a partir da demanda percebida nas aulas, é lançado um tema e, em cada escola, estudantes e professores estudam, discutem e elaboram textos, filmes e apresentações artísticas. Ao final do ano, encontram-se para rodas de conversa, oficinas e debates sobre a produção textual e audiovisual trazida pelos próprios estudantes, a partir dos estudos realizados nas unidades escolares. Nas olimpíadas de filosofia, encontram-se para oferecer ao outro o melhor de si para o diálogo filosófico. Assim, o espírito olímpico persiste: não o desejo de vencer o outro, não o desejo subjetivo de ser o número 1, mas o esforço coletivo de aprimorar um gesto, de levar o potencial humano ao limite e superá-lo: quão alto pode um ser humano saltar? Quão rápido pode correr? E, na filosofia: quão longe, rápido, baixo, profundo pode chegar o pensamento? Até onde podemos desenvolver, juntos, a sutileza e a beleza do gesto de pensar?

Aventurar-se aí é, por si só, uma atividade filosófica: questionadora, intrigante, desafiadora, perturbadora para todos os envolvidos, talvez, até, de modo especial, para os professores, pois são mais fortemente deslocados de seus espaços confortáveis de formação e de atuação para estar num movimento junto a outros, de outros lugares de formação e atuação sem protagonizarem e conduzirem. Numa encruzilhada que alarga as gramáticas porque convoca ao desconforto das ruas que se cruzam, dos muitos caminhos que se encontram para contestar rumos marcados e fazer caminhar por vias desconhecidas, alargando as formas de compreensão e de pensamento sobre o que seja o filosofar e a filosofia, no exercício do caminhar juntos, ouvindo os parceiros de viagem.

Desde seu início, o grupo de professores do Rio optou pelo espírito colaborativo e pelo fomento do encontro-acontecimento numa atitude de abertura para o que pode se dar no encontro. As atividades que acontecem nos encontros das olimpíadas do Rio consistem em momentos de fomento do pensamento a partir de reflexões propostas, breves provocações sobre a temática escolhida, feitas por convidados que podem ser professores, pensadores, cientistas, poetas, pessoas comuns. Sua atividade principal é a formação de comunidades de diálogo entre os jovens, os protagonistas das olimpíadas. Todas as propostas anteriores às comunidades de diálogo consistem em provocações sobre o tema geral que têm como objetivo estimular o diálogo entre os jovens. Ao final do encontro, é prevista uma partilha sobre o que as comunidades dialogaram com o grande grupo, traduzidas em expressões artísticas, músicas ou comunicações. Enquanto os estudantes estão em comunidades de diálogo, os professores também se encontram para a partilha sobre a prática de ensino de filosofia ou para participarem de alguma oficina.

Outra escolha das olimpíadas do Rio foi pelo caráter itinerante, viajante. Em detrimento da opção por uma “sede”, a cada ano o encontro faz um exercício nomádico de deslocar-se para um lugar novo. Isso faz com que não só as pessoas precisem se deslocar geograficamente, mas também que o próprio sentido das olimpíadas, a própria experiência do encontro desloque-se: não é o mesmo encontrar-se na praia e na montanha, no interior e na capital, longe de casa e perto de casa. Assim, não se trata somente de uma relação estudantes-tema, como poderia ser o caso de uma olimpíada de filosofia mais “formal” ou mais parecida com as olimpíadas propedêuticas e escolares. Nas olimpíadas de filosofia do Rio, há dois elementos a mais que fazem dessa experiência de pensamento exponencialmente intensa: o tempo e o espaço.

Ao deslocar-se para um novo território, é preciso aos estudantes e professores pensarem de outra maneira, ou pensarem com outros sotaques. Não existe preparação para o desconhecido, e por isso, a experiência geo-filosófica das olimpíadas de filosofia sempre opera um encontro radical com a diferença e com o inesperado. O território outro faz com que essa experiência de estrangeiridade que acontece nos próprios corpos contagie também o tema – percebemos que não sabíamos tão bem assim o que é a felicidade ou o amor –, contagie a relação com os colegas e, finalmente, contagie a própria filosofia. Some essa experiência de deslocamento a uma imersão de dois ou três dias dormindo e comendo juntos (ou seja, fazendo filosofia à maneira da viagem, com o corpo, com as mãos, com a boca). As olimpíadas de filosofia inventam uma temporalidade difusa, um tempo que não é muito nem pouco, em que há inúmeros perigos (o imprevisível é sempre perigoso) mas que ao mesmo tempo garante a segurança de que tudo vai ficar bem no fim. Abre espaço para o improviso. Que tipo de pensamento pode brotar das fendas desse espaço-tempo?

As olimpíadas de filosofia do Rio, como uma invenção coletiva, estão sendo, num devir educação, num devir filosofia, em caminho, uma experiência. É uma experiência filosófica sobre educação filosófica, porque faz pensar, mas também faz pensar sobre o fazer pensar. E faz isso no entre professores, estudantes, leituras, viagens, cultura, artes, lugares, vida. É um encontro entre pessoas que se arriscam a sair para ver o que acontece quando se colocam entre outras para pensar junto. É filosófica porque formou uma roda e convidou os pensamentos para gingar e construir sentidos para estar ali, para pensar educação, para pensar espaços, para pensar conceitos e enfrentar juntos questões comuns.

Porque deixar as ideias e os meninos e meninas correrem soltos é transgressor, é subversivo e tem que acontecer hoje, nas praças públicas, para afirmar a vida, a comunidade e os anseios de professoras e professores de filosofia por uma práxis fortalecida no coletivo. As olimpíadas de filosofia do Rio representam um posicionamento político desses professores e estudantes ao ocuparem os espaços públicos das cidades para fazer algo diferente, convidando a prestar atenção numa dimensão do mundo que nem sempre é percebida nas práticas individualizadas da educação.

              Ao buscar fortalecer a potência do pensamento solidário, popular, fermental e original nas comunidades de diálogo, as olimpíadas do Rio tentam fortalecer também a percepção dos sujeitos como agentes e de sua própria reflexão como parte essencial da comunidade, como afirmou o estudante Marllon (2017), ao dizer que depois da experiência das olimpíadas de filosofia, nunca mais pensou sem respeitar as suas próprias ideias. Não se trata de um encontro para afirmar o eu, para fortalecer as subjetividades, e é justamente por isso que é possível aos estudantes, professores e a todas as pessoas que participam da experiência se observarem como forças na realidade, como movimentos, fluxos, que afetam a realidade e são afetadas por ela de volta. Ao voltar a filosofia para o mundo – que é seu movimento inaugural e mais bonito – somos capazes de nos compreender como parte deste mundo. Perceber nossas palavras e ideias e observar o lugar delas na trama de pensamento que se cria quando nos pomos juntos a pensar.

              O que é uma olimpíada de filosofia é difícil responder. E é por isso mesmo que suspeitamos que ela seja intimamente, intensamente filosófica. É por apostar a cada ano num trajeto desconhecido, num mapa invisível, guiados sem bússola, mas na convicção de que todas as pessoas têm igual capacidade de pensar filosoficamente que afirmamos essa ideia de filosofia – não fundamentada em nenhum tratado, mas nessa forma de teoria que se faz com as mãos –: popular, inquieta, materialista, macumbeira, coletiva, amorosa, pobre, vagabunda, vadia...

 

2.10. Filosofia, democracia e status quo: filosofar e ensinar a filosofar no Brasil hoje

Joana Tolentino

Colégio Pedro II; GT Filosofar e Ensinar a Filosofar

 

O esforço deste breve escrito é pensar alguns elementos da difícil relação entre filosofia e status quo, nesse campo híbrido entre filosofia, políticas educacionais e estado, no tempo-espaço dos dias atuais, situado no Brasil, no contexto complexo que vivenciamos de país periférico colonizado. Vivemos, quando muito, numa democracia asfixiada. Focarei na micropolítica, propondo um recorte que entrecruza os campos da filosofia e da educação. Nesse enredo ganha destaque a reforma do ensino médio (lei 13.415/2017), cuja adequação vem sendo cobrada a fórceps, por parte do MEC, às secretarias estaduais de educação, principais responsáveis pela oferta pública dessa etapa da educação básica.

Essa jogada do “novo ensino médio” emerge como estratégia prioritária no projeto de asfixiar a jovem e imatura democracia brasileira, de estrutura frágil e saúde instável. Mesmo em plena pandemia, continua a pressão pela adoção da reforma por parte dos estados, o que já ocorreu na maioria, a despeito do modo antidemocrático com que se pretende promover tamanha alteração na constituição federal, reformulando a fase final da educação básica - entendida em nossa carta magna como um direito de todes e dever do estado (garantir a sua oferta). Alterar a LDB (Diretrizes e Bases da educação – lei 9.394/96) é alterar parte da constituição nacional. Assim, já éramos sufocados com a reforma do ensino médio e a ânsia por rasgar a constituição cidadã, menos de um mês após a concretização do último golpe de estado no Brasil, em 2016, muito antes da preocupação em aprovar a reforma trabalhista ou da previdência. Talvez tenha havido pudor quanto à legitimidade de fazer as outras reformas logo após um golpe de estado, durante um governo que, afinal, não tinha sido eleito – porém não houve o mesmo pudor em relação ao esquartejamento do projeto de educação básica, que havia sido recentemente reiterado, com ampla participação de diferentes setores sociais, no Plano Nacional de Educação (PNE/2014-2024) em vigência.

Reformas na educação costumam demorar a se sedimentar, o que fazia essa soar como “urgente” para alguns setores da sociedade, diante das insurgências que não paravam de crescer. Só se ampliavam demandas sociais a interseccionar o recorte de classe com outros segmentos de luta, como o movimento estudantil, camponês e as lutas identitárias de gênero, sexualidades, étnico-raciais. As primeiras ocupações estudantis nas escolas do Brasil, em 2015, surgiram como resposta às tentativas de reorganização do sistema escolar em determinadas localidades da federação, mas já associavam à sua pauta central uma maior qualidade e investimento na educação pública, evocando a meta 20 do PNE: 10% do PIB para a educação. As ocupações que as sucederam (2016), pós-golpe, já lutavam contra o teto de gastos públicos em áreas sociais, o combate ao racismo e sexismo nos espaços escolares e muitas reivindicavam também mais tempos de aula de filosofia e sociologia na carga horária do ensino médio.

A lei 13.415/17 foi primeiramente imposta como medida provisória 746/2016 (instrumento que deveria se restringir a acelerar demandas emergenciais, nunca para mudanças estruturais) e, posteriormente, houve sua surpreendente aprovação relâmpago: em seis meses foi aprovada no congresso nacional, sem discussão com a sociedade, estudantes e associações estudantis, docentes e suas entidades. A fala exclusiva foi a propaganda do “novo ensino médio”, veiculada na grande mídia, criando falsas expectativas de escolha por parte do alunado, quando à escola sequer é exigido oferecer mais de um itinerário formativo. Na prática, observamos que a lei é uma grande desregulamentação da oferta de ensino nessa fase final da educação básica, em especial para a gestão pública. Isso porque impõe o formato de “áreas de conhecimento” (i. Matemática, ii. Linguagens e códigos, iii. Ciências da natureza, iv. Ciências humanas e sociais aplicadas, v. Formação técnica e profissional), mas sem regulamentar a presença de nenhuma outra disciplina, exceto matemática, língua portuguesa e inglesa. Na realidade brasileira em que mais da metade dos municípios tem uma única escola pública de ensino médio, geralmente distante das localidades periféricas: o que escolher quando haverá apenas um caminho a seguir?

O que exatamente o novo ensino médio, etapa na qual historicamente se insere a filosofia na educação básica (ainda que com hiatos e intermitências), e sua reforma, podem interessar à comunidade de pós-graduação em Filosofia da ANPOF? Quando falamos da ANPOF, diferente da estruturação entre saberes e poderes em outros países, nos referimos a uma comunidade de docentes – mais especificamente de professoras/es universitárias/os de filosofia, em sua maioria atuando em universidades públicas, em departamentos com majoritário número de matrículas no curso de licenciatura em filosofia. Assim, questões que se referem ao ensino de filosofia são parte importante das atividades docentes. Se ainda há quem defenda a elitização do ensino de filosofia, acessível apenas à classe dominante, a uma oligarquia (ou vanguarda) esclarecida - essa não parece ser a posição da comunidade da ANPOF que reitera suas escolhas em eleições de diretorias que, seguidamente, valorizam a expansão institucional da mesma, com abertura de novos espaços para a filosofia na educação institucionalizada. Estes espaços, mesmo na pós-graduação, se ampliaram na última década alavancados pela obrigatoriedade do ensino da filosofia no ensino médio, o que forçou a criação de novos departamentos de filosofia nas universidades de todo o país, impulsionados pela necessária formação docente em filosofia.

A situação agora é outra e, ao contrário, a presença da filosofia na educação básica encontra-se ameaçada com o novo ensino médio e sua dissolução por áreas. Não faço aqui uma defesa da filosofia imbricada na disciplinaridade, aos moldes denunciados por Foucault, em Vigiar e punir, como um incremento nos dispositivos de disciplinarização, em instituições disciplinares como a escola (ou a universidade). A história dos sistemas massivos de ensino das instituições modernas, criados na Europa na consolidação do capitalismo, evidencia esse propósito de obter máxima produtividade, na mesma proporção em que se alcança máxima docilização dos mesmos corpos. Esse projeto, quando exportado, via colonização industrial capitalista moderna, às supostas periferias da humanidade, como a Latino América, só intensificaram suas contradições e subalternizações.

Porém, parece pouco estratégico dissolver a presença da filosofia na educação básica, quando se trata de formação, seja da: juventude, criança, adulto ou idoso. Pode, a comunidade filosófica brasileira, na atualidade, renunciar à sua faceta mais pública, que é sua presença na educação básica? E, assim, abster-se de dialogar com pessoas que não escolheram a filosofia como trabalho ou projeto de vida, mas que podem acessar, desde a filosofia, importante tônico existencial, desenvolvendo ferramentas críticas de compreensão das problemáticas do mundo e, assim, contribuir para a criação de ouros modos de inserção social das subjetividades. Podemos, nesse momento em que estamos vivenciando, no império das fake news, em meio à pós-verdade, diante da acelerada algoritmização da existência, perder esse espaço de encontro, troca, escuta, fala compartilhada, investigação, elaboração argumentativa, fundamentação, tessitura de discursos, posicionamento na coletividade – e tudo o mais que cabe numa aula de filosofia? (E que se insere na colcha de retalhos do filosofar). Pensamos que cabe à comunidade filosófica, situada e contextualizada, fazer a si mesmo essa pergunta, além de outras que perpassam o filosofar e o ensinar a filosofar, a relação entre filosofia, educação e vida, lançando-se na busca - se não de definições, que mais encerram do que abrem possibilidades - pelo menos de caminhos para trilharmos atitudes filosóficas capazes de potencializar a vida e a com-vivência.

Diante da ausência de regulamentação no novo modelo de Ensino Médio, o que temos presenciado é o gradual apagamento do filosofar nas escolas – talvez restando algo como conteúdo transversal, porém não mais a atitude filosófica, a centelha do filosofar, isso que é próprio à filosofia, seu modus operandi, sua especificidade. Poderia parecer interessante o convite para a filosofia dialogar com outras matrizes de conhecimento, caso se mantivesse sua especificidade. Porém, hoje, na prática, vemos a filosofia circunscrita às humanidades e, com o excesso de fragmentação a tornar prescindível a própria formação em filosofia, o risco real de virar mais um item imperceptível no interior de conteúdos transversais, perdendo o espaço de diálogo público e a contribuição na formação.

No entanto, quando pensamos em nos lançar novamente à defesa da filosofia como conhecimento necessário às gerações em formação, é indispensável dar um passo atrás e, em profunda atitude filosófica, nos perguntar que filosofia é essa que entendemos como necessária, devendo estar acessível a todes. Queremos a presença de uma filosofia que, ao invés de libertária, provoca a alienação de si na maior parte das subjetividades que a praticam? Uma filosofia eurocentrada que exclui pessoas não-brancas, não-binárias, não-heteronormativas (brasileiras/os e latino-americanas/os)? Aonde está a autocrítica filosófica que finge não perceber o epistemicídio provocado por seu cânone branco-hetero-patriarcal-urbano-eurocentrado? Uma comunidade filosófica sem consciência de si, que não se percebe como agente da colonialidade? Reitero aqui o convite para essa comunidade se questionar mais e mais, se perguntando: quais filosofias quer praticar?; que filosofares alimentar?; que espaços estratégicos ocupar? Não para impor limites, mas, ao contrário, para romper muros, ruir barreiras e criar mais acolhimento a diálogos e existências filosóficas.


3. FÓRUM DE DEBATE

 

              O primeiro ano da diretoria da ANPOF para o biênio 2021-2022 foi aberto com uma proposta de fórum de debate à comunidade filosófica: “será a hora de revisar o cânone?”. No texto inaugural do fórum“Cânone - uma proposta de debate”, o diretor de comunicação da ANPOF, prof. Dr. Érico Andrade (UFPE), indagou: “iremos derrubar as estátuas dos filósofos?”.

              A fim de dialogar com Andrade, Rodrigo Marcos de Jesus recuperou a herança historiográfica para atentar às dimensões raciais, sexistas e eurocêntricas incrustadas no cânone. Já Patrícia Velasco, Rodrigo Gelamo e Augusto Rodrigues, em seus respectivos textos, incluíram na pauta a discussão do campo de pesquisa de pós-graduação intitulado Filosofia do Ensino de Filosofia, reivindicando uma cidadania-filosófica para o campo-cerne da presente Seção Especial da REFilo. Os textos criados no âmbito do fórum para o evento “Mês ANPOF - Ensino de Filosofia: por uma cidadania filosófica do campo” constituem a terceira parte do Arquivo ANPOF.

 

3.1. Cânone, herança historiográfica e exclusão

Rodrigo Marcos de Jesus

Filósofo e professor de filosofia da UFMT

 

Podemos ou não derrubar as estátuas dos filósofos. Mas não podemos ignorar as marcas de racismo, de sexismo e de eurocentrismo presentes em suas ideias e em suas obras. Isso não seria filosófica e cientificamente rigoroso e honesto. Nesse sentido, as observações de Érico Andrade no texto “Iremos derrubar as estátuas dos filósofos?” me parecem pertinentes e levantam problemas que a filosofia acadêmica brasileira precisa enfrentar. Quero contribuir nesse debate sobre o cânone a partir de uma outra perspectiva, destacando uma herança do ensino de filosofia na universidade, cujas repercussões no ensino básico são perceptíveis.

O ensino de filosofia carrega, a meu ver, uma herança pouco questionada: a herança historiográfica. Esta toca mais de perto o tema do cânone, compreendido como o elenco dos filósofos e dos textos considerados clássicos e que não poderiam faltar em nenhum curso de filosofia. Perguntas fundamentais sobre esse ponto são: Quem criou o cânone? Quando foi elaborado? Quais critérios foram utilizados para estabelecer o que tem ou não relevância filosófica? Tais perguntas suscitam o problema da história da filosofia. Afinal, que história é essa que canoniza determinados indivíduos e obras? A menos que apelemos para a bizarrice de uma história sagrada da filosofia, escrita por sabe-se lá qual mão divina (ou quem sabe uma razão absoluta?), é necessário reconhecer que, como toda história, a história da filosofia está atravessada por condicionantes sociais, econômicos, políticos, raciais, de gênero e coloniais. Se assim é, deveria causar estranheza como a história da filosofia narrada por distintos autores e reproduzida em currículos, pesquisas, sistemas de avaliação, manuais e transmitida em aulas seja tão pouco variada. Ainda que historiadores ou filósofos adotem posições teóricas diversas, há lugares comuns e personagens que se repetem nessa história. Alguns exemplos de marcadores temporais: o começo da filosofia na Grécia e a contraposição entre pensamento conceitual ocidental e pensamento religioso/alegórico/mítico oriental, a filosofia medieval balizada pela patrística e a escolástica, a modernidade fundada pelo cogito cartesiano e elegendo o conhecimento como tema principal, a contemporaneidade contrapondo analíticos e continentais. Alguns exemplos de personagens canônicos: Platão e Aristóteles, Agostinho e Tomás de Aquino, Descartes e Locke, Kant e Hegel, Heidegger e Wittgenstein.

Essa breve relação de marcadores e filósofos aponta um outro aspecto: as fronteiras geográficas e epistêmicas da filosofia. O que é considerado filosoficamente relevante para entrar na história da filosofia fica circunscrito a determinadas e poucas regiões do mundo, em regra, no norte, do ponto de vista geopolítico. E os representantes da filosofia tida como mais elaborada apresentam basicamente uma cor (branca) e um sexo (masculino). Além disso, existem línguas curiosamente privilegiadas (o grego, o latim, o francês, o inglês e o alemão). Alguém poderia objetar que não é bem assim, pois Agostinho é do norte da África, o que é verdade. Mas esse dado não costuma ser digno de maior atenção ao se apresentar o filósofo.

A herança historiográfica, que perpetua o cânone e erige as fronteiras da filosofia, não é algo tão longínquo no tempo. Pelo contrário, é bastante recente, tem pouco mais de dois séculos. A maneira de contar a história da filosofia de modo a excluir o Oriente, a África, a cultura árabe-muçulmana, línguas como o espanhol, o português ou outras línguas não ocidentais e que tornou a história da filosofia uma história fundamentalmente de homens brancos da Europa central e do norte (com seus descendentes nos EUA e Austrália) remonta ao final do século XVIII e começo do século XIX. Peter Park investiga como isso se deu em uma obra instigante e infelizmente pouco conhecida no Brasil, mesmo em círculos de pesquisadores e pesquisadoras que questionam o cânone, intitulada Africa, Asia, and the history of philosophy: racism in the formation of the philosophical canon, 1780–1830 (New York: SUNY Press, 2013). Park aponta como o idealismo e autores como Kant, Meiners (hoje um desconhecido mas à época importante historiador e antropólogo), Hegel e seus discípulos promoveram uma verdadeira mudança na maneira de escrever a história da filosofia excluindo povos não-brancos e elevando as construções teóricas de europeus (mas nem todos, portugueses, espanhóis ou eslavos mereciam pouco apreço) como as únicas dignas de serem tomadas como filosóficas, sendo o critério para tal exclusão baseado em concepções antropológicas racistas. Assim, as categorizações raciais encontradas no filósofo de Königsberg, por exemplo, não podem ser tomadas como meros deslizes ou problemas conjunturais, mas revelam uma concepção antropológica que marca a estrutura de sua filosofia e repercutirá em historiadores kantianos responsáveis por promover a reescrita da história da filosofia. O resgate desse embate historiográfico expõe o racismo embutido na história da filosofia e as exclusões presentes no cânone. Situar quem, quando e os pretensos critérios utilizados na construção da narrativa histórica contribui para o necessário exercício de reflexão sobre a herança historiográfica da filosofia acadêmica. Estudos como o de Park somam-se aos trabalhos desenvolvidos pelas correntes pós-coloniais, decoloniais, de filosofias africanas, latino-americanas e feministas e nos obrigam a encarar com maior rigor como esse campo do conhecimento chamado filosofia se constituiu e se estrutura.

Enfim, é preciso investigar as heranças que formam isso a que se dá o nome de “filosofia”, desconfiar de uma história da filosofia que se pretenda imaculada e abandonar a compreensão ingênua que desconsidera as dimensões raciais, sexistas e eurocêntricas incrustadas no cânone.

 

3.2. O Ensino de Filosofia em números: a consolidação de um campo de conhecimento

Patrícia Del Nero Velasco

UFABC; GT Filosofar e Ensinar a Filosofar

 

              Pensar o Ensino de Filosofia como um campo (ou subárea) de conhecimento permite algumas abordagens distintas (embora correlacionadas). Uma possível entrada para o tema diz respeito à discussão do estatuto epistemológico do campo em voga: quais as singularidades das pesquisas e demais ações realizadas em/sobre Ensino de Filosofia? Em que medida podem ser consideradas filosóficas? Quais os limites e as interfaces desta subárea com relação à Filosofia, à Educação e à subárea Filosofia da Educação? Alguns resultados neste sentido já foram debatidos (cf. Velasco, [no prelo]). Outra perspectiva para a discussão em pauta compreende problematizar a institucionalização da área, ou seja, pensar as razões pelas quais historicamente o Ensino de Filosofia não foi considerado subárea da Filosofia nas universidades e nas agências de fomento à pesquisa e à formação de recursos humanos para a pesquisa no país, entender a constituição dos departamentos e dos programas de pós-graduação em Filosofia, assim como os espaços de luta concorrencial (Bourdieu, 1983) que envolvem essa problemática.

              O enfoque considerado neste fórum não concerne aos supra referidos aspectos epistemológicos e político-institucionais do campo. Interessa ao presente texto uma ação pouco usual em Filosofia: a publicização de números (e iniciativas), oferecendo um breve mapeamento do que já há em termos de pesquisa em Ensino de Filosofia no Brasil. Um primeiro esforço de apresentação do estado da arte do campo de conhecimento ora tematizado foi divulgado no número inaugural da Revista Estudos de Filosofia e Ensino (cf. Velasco, 2019), periódico do Programa de Pós-graduação em Filosofia e Ensino do CEFET-RJ. No texto em questão, foram citadas as coleções e as revistas que trazem de forma regular textos de Ensino de Filosofia, assim como foram indicados dossiês sobre a temática organizados por periódicos da área de Filosofia.

              No supracitado artigo “Ensino de Filosofia como campo de conhecimento: brevíssimo estado da arte”, foram igualmente destacados os eventos na interface entre Filosofia e Educação (assim como aqueles propriamente de Filosofia da Educação), os quais tradicionalmente acolhem trabalhos sobre Ensino de Filosofia. Indicaram-se, também, os encontros acadêmicos criados especificamente para discutir a temática – eventos em número significativo desde o ano 2000, data em que aconteceu o Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia. Exploraram-se, por fim, iniciativas fundamentais ao crescimento do campo Ensino de Filosofia (ou Filosofia do Ensino de Filosofia), tais como o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID/CAPES), as Olimpíadas de Filosofia (cuja tradição brasileira data de 2008) e a aprovação de dois mestrados profissionais na área de Filosofia (o Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ensino (PPFEN) do CEFET-RJ e o Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO), em rede nacional). Não obstante o reconhecido papel de cada ação mencionada para o fortalecimento da subárea aqui discutida, especial destaque foi dado à criação do Grupo de Trabalho (GT) da ANPOF Filosofar e Ensinar a Filosofar e às produções dele oriundas.

              Em 2021, o GT da ANPOF que se dedica às pesquisas de pós-graduação em e sobre Ensino de Filosofia completa 15 anos de existência. Como parte das comemorações, foi publicado o livro Filosofar e Ensinar a Filosofar: registros do GT da ANPOF – 2006-2018 (NEFI Edições). A obra, de 2020, investiga “o histórico do crescimento do GT, recuperando os eventos realizados, as publicações coletivas e documentando o acervo individual dos pesquisadores e pesquisadoras que [até 2018] compõem os núcleos de sustentação e apoio do GT” (VELASCO, 2020, p. 20). O referido acervo foi arquivado levando em conta duas décadas, 1997 a 2007 e 2008 a 2018. Tendo como marco divisor dos períodos a obrigatoriedade da Filosofia como disciplina escolar (cf. Lei nº 11.684, de 2 de junho de 2008), foi possível averiguar o crescimento do Ensino de Filosofia como campo de conhecimento.

              Embora seja responsável por uma parcela pequena das produções na área (tendo em vista o número de pesquisadores e pesquisadoras que hoje se dedicam à temática), o GT reúne profissionais que sistematicamente vêm investigando o tema em programas de pós-graduação e, neste sentido, os números encontrados são significativos das pesquisas neste nível de ensino. A tabela abaixo indica as principais referências bibliográficas do GT, em números:

 

 

 

Artigos

Livros

Capítulos

Trabalhos Completos

TOTAL

 

2008-2018

303

100

335

181

919

32,97%

10,88%

36,45%

19,69%

100%

 

1997-2007

97

42

136

92

367

26,43%

11,44%

37,06%

25,07%

100%

Fonte: VELASCO, 2020, p. 522.

 

              Nota-se que os membros do GT publicaram, na última década estudada, 3,12 vezes mais artigos em periódicos; 2,38 vezes mais livros; 2,46 vezes mais capítulos de livros; 1,97 mais trabalhos completos em anais de eventos. Outrossim, coordenaram 2,74 vezes mais projetos de pesquisa em/sobre Ensino de Filosofia (96) do que na década de 1997 a 2007 (35). No livro do GT, consta igualmente que houve aumento similar no que tange aos projetos de extensão e de ensino, às demais produções contempladas na Plataforma Lattes (como prefácios, apresentações de livros, organização de dossiê etc.), assim como nas participações dos membros do GT em entrevistas, mesas redondas, programas e comentários na mídia. Sublinha-se, por fim, que na segunda década analisada as produções foram assinadas por um número muito maior de pesquisadoras e pesquisadores, de norte a sul do país, o que mostra a capilarização da temática em território nacional e “representa um significativo aspecto da efetiva solidificação da área de Ensino de Filosofia no Brasil” (VELASCO, 2020, p. 522).

              Outros números de interesse para sustentar a consolidação da subárea pautada neste fórum dizem respeito às dissertações e teses defendidas. Até o fechamento deste texto, contabilizam-se na Plataforma Sucupira 38 dissertações defendidas no PPFEN e 209 no PROF-FILO, além de 18 realizadas em outros programas profissionais e que contemplam Ensino de Filosofia em seu escopo. A discussão do Ensino de Filosofia como campo de conhecimento filosófico, todavia, passa pela defesa de que esta subárea não se encerra em sua dimensão profissional (cf. o já indicado Velasco [no prelo]). Prova disso é que, a despeito de não haver uma única linha de pesquisa nos programas de pós-graduação em Filosofia que contemple o Ensino de Filosofia em seu bojo (e desta subárea não constar nas agências de fomento à pesquisa e à formação de recursos humanos para a pesquisa no país), desde 1989 até meados de 2021 foram defendidas 239 dissertações acadêmicas que versam sobre Ensino de Filosofia, assim distribuídas por Programas de Pós-Graduação em: Educação (216), Interdisciplinar/Ensino (12), Filosofia (3), Interdisciplinar/Relações Étnico-Raciais (2), Psicologia (1); Bioética (1), Processos Socioeducativos (1), Integrado em Desenvolvimento Regional (1), Ciências Humanas (1), Comunicação (1).

              A primeira tese sobre Ensino de Filosofia, por sua vez, data de 1992 e desde então outras 52 foram somadas a esta pesquisa inaugural. Desses 53 trabalhos, 5 foram defendidos em Programas de Pós-Graduação em Filosofia e 48 em Programas de Pós-Graduação em Educação(embora orientados, em grande medida, por filósofas e filósofos de formação). A aludida capilarização das discussões sobre Ensino de Filosofia é notada no número de instituições em que as teses foram realizadas. Os Programas de Pós-Graduação (PPGs) de Filosofia são todos sediados em instituições públicas e se concentram nas regiões Sul (UFSC e UFSM) e Sudeste (UFRJ (2) e USP). As instituições de ensino superior às quais pertencem os PPGs de Educação em que as teses aqui enumeradas foram defendidas, por sua vez, apresentam maior diversidade regional (além das regiões Sul e Sudeste, inclui-se a região Nordeste) e orçamentária (além de instituições públicas federais e estatais, verificam-se instituições privadas, com e sem fins lucrativos): PUC-RJ (1), UERJ (3), UFBA (1), UFF (2), UFMG (3), UFPB (1), UFPE (1), UFPel (3), UFPI (1), UFPR (3), UFRN (1), UFRS (1),UFSCar (1), UFSM (2), UNESP (5), UNICAMP (9), UNINOVE (1), USF (1) e USP (4).

              O crescimento e a capilarização das produções em Filosofia do Ensino de Filosofia permitem a identificação de um campo autônomo em que atuam os agentes e as instituições que produzem, reproduzem e difundem o conhecimento filosófico-científico (BOURDIEU, 1983, p. 122) relativo ao ensinar e aprender Filosofia. Um campo que dispõe de capacidade técnica e visibilidade social, mas que não goza de legitimidade outorgada pela comunidade filosófica. Uma cidadania necessária para que pesquisadoras e pesquisadores da área tenham acesso tanto a bolsas de pesquisa e outros tipos de fomento quanto a uma situação mais justa nas avaliações de seus trabalhos pelos pares. Projetos de Lógica não são avaliados por especialistas em História da Filosofia, assim como artigos de Ética não são enviados a pareceristas da área de Epistemologia. Não raro, projetos e artigos de Ensino de Filosofia são recusados sob a alegação de não serem do escopo da Filosofia. Cabe perguntar: de qual Filosofia?

              Neste sentido, fazendo coro às inquietações de Érico Andrade no texto que inaugura o fórum “Cânone - uma proposta de debate”, estendemos a pauta colocada pelo colega a respeito dos estudos pós-coloniais para a temática da Filosofia e de seu ensino: não estaria na hora da comunidade filosófica brasileira dar cidadania à problemática do Ensino de Filosofia? Uma problemática que – como atestado em números neste texto – é uma das peculiaridades das pesquisas desenvolvidas na pós-graduação brasileira. Primeiro coordenador do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, Walter Kohan observa sobre o grupo de trabalho que ajudou a fundar:

 

Há, claro, outra potências; por exemplo, grupos trabalhando solidamente faz décadas na pesquisa sobre o ensino de filosofia na Argentina; professores associados e comunicados com força e expressão pública para além do campo acadêmico, como no Chile; uma formação específica e um acompanhamento ao trabalho dos professores e professoras muito cuidadoso e com uma continuidade histórica invejável, como no Uruguai; associações que acompanham a produção e prática no campo e ao mesmo tempo pressionam as instituições legisladoras para incluir como obrigatória a disciplina na educação básica, como no México; trabalho nas comunidades e em escolas rurais profundo e significativo como na Colômbia, por citar só alguns exemplos e certos aspectos de cada um. Mas não há nada que se compare em termos de inserção na comunidade acadêmica de pós-graduação em filosofia como o Grupo de Trabalho [Filosofar e Ensinar a Filosofar]. (KOHAN apud VELASCO, 2020, p. 16)

 

              Como relata Kohan, embora haja inúmeras iniciativas, de diferentes naturezas, sobre Ensino de Filosofia na América Latina (e outras regiões do mundo), o Brasil possui a peculiaridade de abraçar, de modo sistemático e cada vez mais capilarizado, pesquisas de pós-graduação sobre a temática em pauta, as quais tomam o ensino da Filosofia como objeto e problema filosófico (cf. CERLETTI, 2009). Ao não reconhecer as produções da área contabilizadas neste texto, a comunidade filosófica fecha os olhos a uma parte significativa das pesquisas que já são realizadas na pós-graduação brasileira. Não só: acaba por ignorar todo um campo que já é – e pode ser, com ainda mais vigor – um dos diferenciais das pesquisas realizadas no país.

              Ademais, cabe indagar se a institucionalização da subárea de Ensino de Filosofia, até então pensada por e para um grupo de pesquisadoras e pesquisadores que se dedicam à temática, não poderia compreender, na luta concorrencial pelo capital científico com outros campos (BOURDIEU, 1983), o fortalecimento do poder social da própria grande área da Filosofia. Que outra subárea filosófica contempla as questões do nosso tempo de forma tão sistemática e constante? Que outro campo cumpre este papel de divulgação filosófica junto a um público leigo que não pretende se especializar em Filosofia, mas para o qual a Filosofia certamente pode ter algum valor formativo? Recentemente, a Filosofia na Educação Básica assistiu à revisão dos direitos conquistados pela área nos documentos legais; os impactos desse processo nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia ainda serão contabilizados, embora algumas graduações sinalizam desde já uma procura menor de ingresso para os seus cursos. Pergunta-se: com a Filosofia presente de modo significativo e efetivo nas escolas, nas praças públicas, nas bibliotecas, nas comunidades de base, nas bancas de jornal, nos curtas-metragens, nas redes sociais, não seria mais difícil aos discursos que a menosprezam, encontrar ouvidos e ter alguma repercussão? Em tempos em que a Filosofia é continuamente aviltada, em todos os níveis de ensino, não seria o reconhecimento institucional do Ensino de Filosofia como subárea filosófica também uma forma de resistência?

 

 

Referências:

BOURDIEU, Pierre. “O campo científico”. In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. Tradução de Paula Montero e Alicia Auzmendi. São Paulo: Ática, 1983, p. 122-155. - (Coleção Grandes Cientistas Sociais).

CERLETTI, Alejandro. O ensino de filosofia como problema filosófico. Tradução de Ingrid M. Xavier. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. – (Coleção Ensino de Filosofia).

VELASCO, Patrícia Del Nero. Ensino de Filosofia como campo de conhecimento: brevíssimo estado da arte. Revista Estudos de Filosofia e Ensino, v. 1, n. 1, p. 6-21, 2019.

_______. Filosofar e Ensinar a Filosofar: registros do GT da ANPOF – 2006-2018. Rio de Janeiro: NEFI Edições, 2020. – (coleções; 4).

_______. O estatuto epistemológico do Ensino de Filosofia: uma discussão da área a partir de seus autores e autoras. Pro-Posições, Campinas, SP [no prelo].

 

3.3. Filosofia do ensino de filosofia: por uma cidadania-filosófica

Rodrigo Gelamo & Augusto Rodrigues

UNESP; GT Filosofar e Ensinar a Filosofar

 

O ensino de filosofia, seja na universidade, na educação básica ou mesmo em espaços não formais, não costuma estar listado entre as pesquisas desenvolvidas no âmbito da filosofia acadêmica brasileira. São raros os programas de pós-graduação em filosofia que acolhem, em suas linhas de pesquisa, projetos que problematizam filosoficamente as experiências, as relações e as práticas de ensinar e aprender filosofia. 

É bem verdade que, recentemente, a criação de dois mestrados profissionalizantes, PROF-FILO e do PPFEN (Programa de Pós-graduação em Filosofia e Ensino), alterou um pouco este cenário, permitindo que muitos professores de filosofia, que desejavam fazer o mestrado em filosofia, o fizessem. No entanto, aqueles que, por um lado, desejam cursar mestrado e doutorado acadêmico nesse tema, e por outro, os pesquisadores que querem um lugar institucional para desenvolver suas pesquisas em torno do ensino de filosofia, precisam buscar programas de pós-graduação em outras áreas, ou ainda moldarem seus projetos de tal modo a se adequarem às linhas de pesquisa já consolidadas nos programas de filosofia.

Assim, o entre-lugares se revela, se não a principal, uma das características da produção acadêmica do ensino de filosofia no Brasil. Isso porque, historicamente, ela se formou entre as frestas institucionais acadêmicas das áreas de filosofia e de educação. Quem primeiro acolheu as demandas de pesquisa sobre o tema, e continua a ser uma grande aliada, foi a filosofia da educação. Em diferentes circunstâncias históricas, seja no período da redemocratização e da defesa de uma educação crítica filosófica, seja diante da indefinição do lugar da disciplina de filosofia na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, seja ainda depois do retorno obrigatório da filosofia à educação básica em 2008, a filosofia da educação atendeu às demandas por pesquisas em torno do ensino de filosofia e as incentivou. Isso possibilitou que as inquietações com a filosofia e seu ensino se transformassem em pesquisa acadêmica, formando novos quadros de pesquisadores, para os quais o ensino de filosofia se tornou a problemática central e não apenas uma produção colateral, efeito das discussões momentâneas. Por sua vez, mesmo que não houvesse muita abertura dos programas de pós-graduação acadêmicos em filosofia para o ensino de filosofia, foi possível forçar as possibilidades institucionais e se infiltrar nas frestas deixadas na área de teoria do conhecimento, ética, estética, política e até história da filosofia, desenvolvendo, em um plano periférico, a temática. Até porque, ao contrário do que muitas vezes é pressuposto, as tensões que irrompem da pesquisa com o ensino de filosofia encontram seu apoio, principalmente, na própria tradição filosófica e, por conseguinte, ressoam as problemáticas típicas da área da filosofia. 

Talvez esteja na hora de nos indagarmos, primeiramente, se aqueles que desejam pesquisar filosoficamente o ensino de filosofia precisam continuar a se adequar às frestas dos campos acadêmicos consolidados em cenário nacional e, se sim, por que isso ainda acontece. O contexto desse questionamento encontra suas razões de ser na percepção sobre o ensino de filosofia como um campo de conhecimento. Depois de décadas entre áreas, questionamo-nos se as pesquisas com o ensino de filosofia já não teceram os contornos epistêmicos específicos, alcançando uma produção acadêmica significativa, novos quadros de pesquisadores e mecanismo próprios de divulgação científica, de modo a criar um campo de conhecimento profissional autônomo, cujas produções se dão mais em convivência central com pesquisadores do ensino de filosofia do que com as pesquisas propriamente de filosofia da educação, como uma linha dentro do campo educacional, e filosofia, em seu aspecto mais tradicional de investigação. 

Recentemente, esse debate adquiriu força com as pesquisas da filósofa Patrícia Velasco. A partir de uma análise comparativa da produção acadêmica de duas décadas dos integrantes do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar – de 1997-2007, 2008-2018 –, Velasco (2020) afirma que houve um crescimento significativo e sintomático – cujos detalhes foram reapresentados pela autora nesse fórum. Na última década, os núcleos formativos se diversificaram e a temática deixou de ser objeto concentrado nas mãos de poucos pesquisadores, proporcionando à discussão brasileira uma rica diversidade cultural e conceitual. São desenvolvidos mais projetos de pesquisa e de extensão, e são publicados mais artigos, capítulos de coletâneas e livros, como também o ensino de filosofia passa a ser um tema de pesquisa mais recorrente nos programas de pós-graduação, seja na Educação ou em Filosofia, e nos trabalhos de conclusão de cursos. Talvez um exemplo paradigmático da relevância atual do ensino de filosofia no contexto brasileiro de pesquisa filosófica seja o XVIII Encontro da ANPOF, realizado em Vitória, no Espírito Santo, em que “cerca de 10% dos trabalhos diziam respeito à temática em questão” (VELASCO, 2020, p. 19). 

Mesmo que seu olhar esteja circunscrito ao GT, sua análise não deixa de ser relevante à pesquisa com o ensino de filosofia no Brasil, uma vez que este corresponde ao núcleo que concentra os pesquisadores e seus grupos que, a partir das diferentes regiões do país, assumem, sistematicamente, a responsabilidade filosófica pela temática. Desde a sua primeira reunião em 2006, a proposta do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar era constituir-se como local propício à concentração de pesquisadores do ensino de filosofia, a fim de que as produções ganhassem organicidade e, consequentemente, potência expansiva em território nacional. E parece que isso se tornou realidade, uma vez que o GT permanece um ponto estratégico para incluir e fortalecer as relações entre filosofia e ensino no registro das pesquisas filosóficas brasileiras. 

 

Vale dizer que, para tanto, algumas condições contextuais brasileiras foram também cruciais. Nos últimos anos, tivemos o retorno obrigatório da filosofia à grade curricular da educação básica e o aparecimento de programas de aperfeiçoamento e valorização da formação de professores são fatores relevantes para despertar interesse acadêmico à área. Não podemos esquecer também que, com a criação recente de dois mestrados profissionais na área, somada à organização periódica de eventos nacionais, de coleções, dossiês e à criação de revistas – Revista NESEF Filosofia e Ensino (UFPR), Revista Digital de Ensino de Filosofia (UFSM) e a Revista Estudos de Filosofia e Ensino (CEFET- RJ) – há, atualmente, mais condições institucionais que impulsionam e acolhem as produções. Porém, dentre todo esse contexto, é difícil ignorar o papel fundamental dos integrantes do GT. São seus membros que, em muitos dos casos, estão envolvidos na criação das novas revistas, na luta pelo PROF-FILO, na organização de dossiês e nos muitos eventos nacionais na área. Portanto, se o contexto é importante para esses inúmeros acontecimentos históricos que envolvem o “Ensino de Filosofia”, um campo de conhecimento não se faz sem a participação e o investimento vital direto dos agentes que o constituem. É a presença direta e indireta dos integrantes do GT e/ou de pesquisadores que foram formados pelos seus membros que nos permite dizer que, tal como acontece aos diferentes objetos e práticas com a filosofia acadêmica – filosofia política, filosofia moral, filosofia da lógica, filosofia da linguagem, filosofia da arte, etc. –, cria-se uma filosofia do ensino de filosofia (VELASCO, 2019, p. 79-80), um campo de conhecimento inerente à área da filosofia brasileira. 

Afinal, o que seria uma Filosofia do ensino de filosofia? Este conceito, apesar de consonante com outros campos da filosofia como bem explicitou Velasco (2019), é histórico para o ensino de filosofia no Brasil, pois marca um movimento político-filosófico de professores de filosofia que desenvolveram as questões da filosofia e seu ensino como um problema genuinamente filosófico. De tanto terem habitado as frestas, de terem ocupado os terrenos concedidos, os diferentes grupos de pesquisa do ensino de filosofia, impulsionados por essa política-filosófica, conseguiram forçar e alargar os limites epistêmicos, éticos, estéticos e políticos da filosofia acadêmica brasileira. Utilizando o GT Filosofar e ensinar a filosofar como núcleo agenciador, criou-se um espaço para a realização de pesquisa filosófica que territorializa, dentro da própria comunidade acadêmica filosófica, novos conteúdos, objetos e problemáticas. Apropriou-se das ferramentas da filosofia, obviamente que em consórcio, em transversalidade com a educação e outras áreas, para poder pensar com profundidade as questões relacionadas com o ensino de filosofia. 

Aqui temos de, talvez, ensaiar uma resposta às questões colocadas anteriormente. Se na contemporaneidade o tema ensino de filosofia foi elevado ao estatuto de pesquisa filosófica, não temos ainda o alargamento institucional acadêmico suficiente que dê maiores condições para sua consolidação e expansão como campo de conhecimento em cenário nacional. Ou seja, ainda temos que habitar as frestas institucionais, caso queiramos ter como objeto principal de pesquisa o ensino de filosofia. Porém, precisamos questionar os porquês de as pesquisas com o ensino de filosofia, apesar de terem um GT dentro da ANPOF e de sempre ocuparem uma parte significativa desse encontro nacional, não encontram espaço institucional nas linhas de pesquisa dos programas de pós-graduação de filosofia brasileiros e, tampouco, são reconhecidas como uma subárea de pesquisa pelas agências de fomento nacionais. Teria sido o espaço concedido, naquela associação, apenas uma estratégia oportuna ao momento histórico que vivia a temática com a iminência do retorno da filosofia à escola, ou acreditou-se em um projeto de constituição e desenvolvimento de um campo, que hoje parece realidade? Sublinhar essa conjuntura é colocar em debate uma luta pelo esgarçamento dos limites-identitários institucionais postos pela filosofia acadêmica aos contornos do campo filosofia no Brasil, dentro dos quais se disputa cidadania-filosófica em editais, financiamentos, acolhimento e alocação do que já se desenvolve fora dela. O que se reivindica é uma cidadania-filosófica aos pesquisadores para que suas pesquisas e projetos, que assumem há algumas décadas o ensino de filosofia como um problema genuíno do campo da filosofia acadêmica, possam ser reconhecidos como tal e figurar como área nas agências de fomento e de avaliação.

Não se trata, no entanto, de defender a aquisição de um passaporte para que o ensino de filosofia se torne uma questão canônica, operada segundo os limites e os registros tradicionalmente postos pela filosofia acadêmica. Desde a emergência coletiva de um projeto de campo para o ensino de filosofia, isto é, da filosofia do ensino de filosofia em cenário nacional, a defesa de uma cidadania-filosófica à temática e seus pesquisadores implica uma participação e disputa pelo comum da filosofia universitária, o que inclui não só as questões de financiamento para desenvolvimento das pesquisas, mas também o questionamento dos pressupostos e práticas hegemônicas que qualificam a legitimidade do que é ou não filosófico.

Nesse ponto, um dos pressupostos comumente questionados dentro do campo filosofia do ensino de filosofia, por exemplo, é a separação histórica universitária entre ensinar e fazer filosofia, que serve para ofuscar os aspectos educacionais da filosofia, aspectos esses que, com a emergência desse novo campo, ganham uma nova dimensão na atualidade. Querendo ou não, são os filósofos que se dedicam ao ensino que, geralmente, lutam pelos cursos de licenciatura e também por inventar novos espaços para democratizar a experiência filosófica para além dos muros universitários. São esses pesquisadores que assumem um compromisso com a filosofia brasileira de tal forma que as salas de aulas, ou espaços educacionais, sejam também espaço por excelência da prática filosófica e os professores e estudantes possam, dentro dos papéis educacionais, experimentarem a filosofia. Principalmente no momento de incertezas diante da BNCC e dos ataques às ciências humanas, não será estratégico garantir cidadania-filosófica para esse campo em emergência?

Que utilizemos, portanto, da filosofia para pensar os nossos próprios pressupostos, no caso, aqueles que fornecem uma identidade para nossa filosofia acadêmica ou que, ao contrário, não nos outorgam o direito de exercermos nossa plena cidadania de pesquisadores em filosofia.

 

Referências

 

VELASCO, Patrícia Del Nero. Filosofar e Ensinar a Filosofar: registros do GT da ANPOF – 2006-2018. Rio de Janeiro: NEFI Edições, 2020a. – (coleçõeS; 4)

VELASCO, Patrícia Del Nero. O que é isto – o PROF-FILO? O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v. 28, n. 44, p. 76-107, jan.-jun. 2019

 

4. RODAS DE CONVERSA

 

              Como parte das atividades que constituíram o “Mês ANPOF - Ensino de Filosofia: por uma cidadania filosófica do campo”, foram realizadas três mesas de discussão, nas quais se procurou aprofundar temáticas caras e urgentes à área. Uma vez que a proposta central do mês especial dedicado ao Ensino de Filosofia era publicizar à comunidade da pós-graduação as iniciativas realizadas no âmbito da Filosofia do Ensino de Filosofia, fundamentando a existência desta última como um campo de pesquisa filosófico, a discussão sobre a cidadania filosófica da Filosofia do Ensino de Filosofia foi um dos temas abordados na roda de conversa “Ensino de Filosofia como campo de conhecimento: revendo o cânone filosófico”. Participaram da mesa em questão Patrícia Velasco (UFABC/ANPOF), Paulo Margutti Pinto (FAJE) e Silvio Gallo (UNICAMP).

              As perspectivas para o ensino da Filosofia na última etapa da educação básica, no contexto pós-reformas educacionais, não poderiam deixar de ser debatidas no evento virtual. Intitulada “A Filosofia no contexto do Novo Ensino Médio”, a roda de conversa em questão foi mediada por Christian Lindberg (UFS) e teve a participação de André La Salvia (UFABC), Marinês Oliveira (CEFET-MG) e Pedro Gontijo (UnB).

              A terceira e última roda de conversa transmitida ao vivo pelo canal do YouTube da ANPOF consistiu em uma homenagem ao professor Marcos Antônio Lorieri, um dos pesquisadores pioneiros nas investigações sobre o (no) campo e professor formador de toda uma geração de professoras e professores pesquisadoras/es. Ficou a cargo de Walter Kohan, outra indiscutível referência na área, conduzir a conversa que mesclou as memórias da trajetória pessoal e acadêmica de Lorieri com as da própria constituição da Filosofia do Ensino de Filosofia enquanto campo de pesquisa. A mesa contou também com a participação especialíssima de Elisete Tomazetti (UFSM), oferecendo um belíssimo texto de abertura para a ocasião.

              Seguem as sinopses das rodas de conversa, assim como os respectivos links de acesso, de forma que a leitora e o leitor possam (re)ver os encontros aqui registrados.

 

4.1. A Filosofia no contexto do Novo Ensino Médio

 

Participantes: André Luís La Salvia (UFABC), Marinês Oliveira (CEFET-MG) e Pedro Gontijo (UnB), sob a mediação de Christian Lindberg (UFS).

Sinopse: A mesa intitulada A Filosofia no contexto do Novo Ensino Médio tem por objetivo discutir a (não) presença da Filosofia no contexto pós-reformas educacionais, notadamente a lei nº 13.415/2017, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino médio (DCNEM) e o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD). Parte-se, portanto, da seguinte questão: após conquistar o caráter obrigatório enquanto disciplina escolar em 2008, quais são as perspectivas do ensino de Filosofia na última etapa da educação básica?

Data: 07/10.

Link: https://www.youtube.com/watch?v=7dwg3UEy6T8

 

4.2. Memórias da constituição da área de Ensino de Filosofia no Brasil: homenagem ao prof. Marcos Antonio Lorieri.

 

Participantes: Walter Kohan (UERJ) e Marcos Antonio Lorieri.

Sinopse: Marcos Antonio Lorieri formou inúmeras gerações de professoras e professores de Filosofia e é um dos precursores nas pesquisas e orientações na área de Ensino de Filosofia no Brasil. A roda de conversa do dia 13/10 pretende rememorar a trajetória de Lorieri, a qual se entrelaça com a própria constituição da área de Ensino de Filosofia. Para conduzir esta conversa, teremos a presença de Walter Kohan, primeiro coordenador do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar e personagem crucial desta história.

Data: 13/10.

Link: https://www.youtube.com/watch?v=S4HoLgNNd9A

 

4.3. Ensino de Filosofia como campo de conhecimento: revendo o cânone filosófico.

 

Participantes: Patrícia Del Nero Velasco (ANPOF/UFABC), Paulo Margutti Pinto (FAJE) e Silvio Gallo (UNICAMP).

Sinopse: A mesa de encerramento do mês ANPOF dedicado ao Ensino de Filosofia debaterá a temática sob o viés do campo, refletindo sobre as seguintes questões: qual o estado da arte do Ensino de Filosofia enquanto subárea de conhecimento? Em que medida se constitui como um diferencial das pesquisas de pós-graduação realizadas no Brasil? Estaria a comunidade da ANPOF disposta a dar cidadania filosófica ao Ensino de Filosofia, revendo o cânone da Filosofia Brasileira?

Data: 28/10.

Link: https://www.youtube.com/watch?v=UfxksF8B-oY

 

5. ENTREVISTAS

5.1. Mestras e mestres que nos formam filósofas/os e docentes de filosofia

Entrevista com Maria Lucia de Arruda Aranha & Edgar Lyra

Por: Joana Tolentino

(Doutora em filosofia pelo PPGF-UFRJ)

 

Ensinar a filosofar no Brasil tem uma trajetória e vem constituindo sua história, da qual a ANPOF é parte importante nas últimas décadas, com a expansão da pesquisa, programas de pós-graduação, departamentos de filosofia e a respectiva formação de professoras/es e, em especial, com a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar (2006). Quem são as mestras e mestres que nos formam filósofas/os e docentes de filosofia? Sua história e a relação com a filosofia se entrelaçam com a história (recente) da presença da filosofia nas escolas e universidades do Brasil – algumas quase centenárias, mas muitas jovens instituições. Nas últimas décadas, a presença da filosofia nas políticas públicas oscilou entre a expansão universitária, vinculada à obrigatoriedade na educação básica e a demanda associada por formação docente em filosofia (inclusive formação continuada) e ataques ao fazer filosófico (científico e intelectual, em geral), com foco especial contra as ciências humanas, área a qual a filosofia é mais imediatamente associada e encontra-se articulada nas políticas públicas para a educação.

Os últimos tempos marcam transformações nos currículos universitários e na formação docente – antes predominava o modelo bacharelesco clássico, em que a/o licencianda/o se formava no bacharelado, cursando todas as disciplinas de Filosofia e, em separado, cursava as disciplinas pedagógicas e a prática de ensino que, associada ao estágio (mas muito dissociadas do filosofar), garantiam a titulação de licenciatura em filosofia. Mas e a formação dessa pessoa que está em processo de tornar-se o/a professor/a de filosofia, como se dava? Nesse cenário, muitas vezes o livro didático foi o principal parceiro da/o docente de filosofia quando, após a graduação, adentrou à escola (tantas vezes a/o única/o prof/a de filosofia naquele espaço). Usado como suporte ao trabalho docente no ensino médio, auxiliava nas propostas metodológicas, escolha dos temas, problematização, oferta de recortes acessíveis de textos originais de filósofos (infelizmente, pouco de filósofas). Livros como o Filosofando: introdução à filosofia, de Maria Lúcia Aranha e Maria Helena Pires, merece destaque por ser largamente usado para subsidiar o trabalho de ensinar a filosofar no ensino médio, tendo sido o livro de filosofia mais adotado pelas escolas públicas no PNLD (Programa Nacional do Livro Didático). Isso justifica o convite à sua autora, Maria Lúcia de Arruda Aranha, por sua contribuição para o ensino-aprendizagem de filosofia na educação básica, para ganhar a cena com a sua obra longeva, que esse ano completa 35 anos – além de outros livros que publicou sobre filosofia e educação: queremos saber um pouco mais sobre a autora por trás da obra e suas vivências de décadas com a filosofia e seu ensino nas escolas. Convidamos também para esse encontro, o professor Edgar Lyra, que, desde a universidade e a pós-graduação se entrelaçou com as questões de filosofar e ensinar a filosofar, com a formação docente em filosofia, supervisionando estágios, orientando a iniciação à docência, pesquisando sobre estratégias didáticas e metodologias, aproximando escola e universidade. Participou, assim, das recentes mudanças na formação docente em filosofia, que aproximaram teoria e prática num entendimento do filosofar como problema filosófico - parafraseando outro mestre também presente em nossa formação, Alejandro Cerletti.

Foi uma tarde deliciosa, em que conversamos (virtual e afetuosamente) sobre filosofar e ensinar a filosofar. Edgar falou sobre o seu trabalho para o componente curricular de Filosofia nas primeiras versões da BNCC e as últimas e drásticas mudanças no ensino médio, além de ter publicado, esse ano, um livro que é fruto de suas pesquisas sobre filosofia e ensino: O Esquecimento de uma Arte – retórica, educação e filosofia no século XXI. Maria Lúcia nos brindou com relatos de décadas de chão da escola, da dificuldade em acompanhar o mestrado na PUC/SP, junto com o trabalho de professora e os dois filhos pequenos, que passavam entre ela, o livro e o vão da cadeira em que estava sentada (muitas mulheres da nossa comunidade filosófica hão de se identificar com essa cena – ao fim e ao cabo, não titulou-se), ao mesmo tempo em que falou de metodologia do ensino de filosofia e da profunda alteração nos livros didáticos na última versão do PNLD, elaborados por áreas, já em acordo com a reforma do EM. Delicioso registro que eu agradeço por ter sido veículo.

 

1. Peço que vocês se apresentem, falem de suas trajetórias: a formação, o trabalho, sintam-se à vontade para pontuar elementos marcantes na infância ou juventude. Como foi o encontro com a filosofia? E a profissionalização? Como se dá ainda hoje a relação com a filosofia e seu ensino?

 

Maria Lúcia: Tive uma infância e adolescência bastante atípicas, em razão do trabalho de meu pai, funcionário público que passou por diversas cidades do interior de São Paulo. Por isso para a formação nos cursos primário e ginasial (que correspondem ao Ensino Fundamental), a aprendizagem foi fragmentada e às vezes incoerente, pelas lacunas deixadas pelo caminho. No Ensino Secundário público, ainda eram vigentes as Leis Orgânicas do Ensino promulgadas em 1942 por Gustavo Capanema, ministro do presidente Getúlio Vargas. No então chamado curso colegial optei pela alternativa do curso clássico (com foco em humanidades), descartando o curso científico (focado nas matemáticas e nas ciências da natureza). Essa divisão, criticada por pedagogos em razão de compartimentar a aprendizagem em um período em que o currículo deveria ser mais abrangente, arrisca ser a preferência do momento atual. Resta lembrar que sempre cumpri as tarefas escolares e tive tempo para outras atividades, além de consultar livros da biblioteca de meu pai, de preferência os de história geral, psicologia, sociologia e filosofia, ampliando os recursos de argumentação em dissertações escolares, ao mesmo tempo que reforçou a inclinação para ciências humanas.

Ao finalizar a última etapa de estudos, em 1959, chegara o momento de decidir sobre os rumos para o ensino superior. Não me lembro de ter uma opção diferente do que a carreira de professora e a escolha pela filosofia talvez por identificação com as leituras. E assim aportei na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras São Bento, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Por que não a Universidade de São Paulo (USP)? Na verdade, eu não tinha noção da importância da USP, por isso devo a meu pai a opção mais adequada à sua visão cristã e conservadora. Dei início a meu curso de filosofia em 1960. Desde então vivo em São Paulo, cidade que apreendi a acolher no coração. O curso de Filosofia na PUC de São Paulo não foi satisfatório em razão do paradigma doutrinal, com predomínio da orientação tomista e pouco interesse por filosofia contemporânea. O mais antigo professor foi Alexandre Correia, nascido em São Paulo e que, entre diversas obras, traduziu do latim a Suma Teológica, de Tomás de Aquino. Vieram outros, formados na Bélgica, como Leonardo Van Acker e o padre Michel Schooyans.

Na década de 1970 o governo militar implantou o programa de pós graduação de mestrado e doutorado. Matriculei-me em Filosofia da Educação na PUC/SP, onde cumpri quase todos os créditos, até interromper o curso em 1976, em razão de diversas dificuldades profissionais no magistério escolar e de obrigações da vida doméstica, com filhos ainda pequenos. Este último curso valeu muito mais do que o anterior, em razão do posicionamento dos professores dispostos a refletir sobre o pensamento filosófico contemporâneo e a compreensão dos fenômenos da educação, como Dermeval Saviani e Antonio Joaquim Severino entre outros igualmente mais jovens. Naquele período entrei em contato com autores como Marx, Heidegger, diversos filósofos da Fenomenologia, Paul Ricoeur.

Vale lembrar que o ofício de professor representa um fator significativo de continuidade da aprendizagem de filosofia. Expandi minha biblioteca pessoal, comprando livros sugeridos na bibliografia daqueles já comprados por mim. Diante dessas “descobertas” solitárias e “garimpadas”, reforço a importância da formação continuada de professores.

 

Edgar Lyra: Nasci em Ipanema, mas fui criado, desde criança muito pequena, no Rio Comprido, bairro da zona norte do Rio de Janeiro. Fiz minha primeira graduação em Engenharia Química na UERJ, de 1977 a 1981, portanto ainda durante a ditadura militar. No ambiente em que cresci, escolhia ser professor quem não fosse suficientemente inteligente para fazer coisa mais sofisticada ou rentável. Trabalhei até 1987 na Refinaria de Petróleo de Maguinhos, de onde pedi demissão por falta de motivação, apesar de bastante bem remunerado. O dinheiro poupado me permitiu ficar sem trabalho fixo durante bom tempo. Dediquei-me à pintura e aos estudos de história e filosofia da arte. Cheguei a comercializar minhas pinturas e desenhos numa galeria de arte do Rio de Janeiro e a atuar como carnavalesco em escolas de samba de Teresópolis (Rainha do Alto e Gaviões da Colina), cidade para onde me mudei após a demissão da refinaria e onde chegaria a ser secretário municipal de cultural, entre 1991 e 1992. Estive também nesse período muito envolvido com a prática e a história da capoeira. Apenas em 1996, por sugestão de um amigo artista plástico, apliquei e fui aprovado no mestrado em filosofia da PUC-Rio, onde posteriormente fiz doutorado e me fixei como professor do programa de pós-graduação.

 

2. Sobre a presença da Filosofia no ensino superior, em especial a formação de professoras/es: Como vocês entendem a relação entre teoria e prática na formação docente em filosofia no Brasil?

 

Edgar Lyra: Tive minha primeira chance como professor do ensino superior em 1998, ao final do meu mestrado e, como grande parte de nós, sem qualquer formação docente. Rapidamente me dei conta de que havia uma lacuna a ser preenchida, um saber a ser explorado, saber, todavia, muito pouco valorizado na academia, seja porque tido como intuitivo, seja porque depreciado como medida de produtividade. Importante mesmo era a pesquisa, como ainda hoje, por razões que seguem sendo objeto de minha aberta reflexão. Essa hipertrofia da valorização da pesquisa em detrimento da docência tem decerto outras consequências, entre elas um grande distanciamento entre o que se faz nos programas de pós-graduação e o ensino de filosofia na educação básica, enfim, a falta de investimento nos diálogos com a pólis em geral. Esse distanciamento é, inclusive − em parte, sejamos justos −, responsável pela insólita possibilidade de vermos acolhida no Brasil, por jovens e adultos, com pretensões de profundidade filosófica, narrativas conspiracionistas e demonizações do pensamento crítico das mais alucinadas. Por óbvio, são coisas muito diferentes coordenar reuniões de grupos de pesquisa, onde as competências hermenêuticas costumam bastar, e dar aulas para estudantes de ensino médio, fundamental ou infantil. Mesmo as atividades de extensão e a conversa interdisciplinar carecem de competências retórico-pedagógicas que garantam sua qualidade. Essa foi, aliás, a percepção que levou à elaboração e publicação do meu escrito mais recente, de título O Esquecimento de uma Arte – retórica, educação e filosofia no século XXI.

 

3. Sobre a presença da Filosofia na educação básica, falem um pouco da relação com a filosofia no chão da escola, quais elementos seriam indispensáveis para ensinar a filosofar e depois façam uma breve análise da história recente, com a obrigatoriedade da Filosofia nas três séries do Ensino Médio, a partir de 2008, e o atual contexto de reforma do Ensino Médio, com a lei 13.415/2017, que se entrelaça à Base Nacional Curricular Comum (BNCC), ambas estruturadas por áreas de conhecimento e não mais por componentes curriculares.

 

Maria Lúcia: Iniciei a profissão de professora em 1965, lecionando em escolas públicas nos cursos Clássico e Científico, período em que era vigente a primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB), de 1961, que tornara a Filosofia disciplina complementar. Sempre em São Paulo, lecionei na Escola Estadual de Segundo Grau Brasílio Machado e, posteriormente, fui removida para a Escola Estadual de Segundo Grau Carlos Augusto de Freitas Villalva Jr.

Precisei abandonar o magistério nas escolas públicas em razão da assinatura da Lei 5.692/71 para o 1º e 2º graus, que implantou o ensino profissionalizante, com declarada participação dos Estados Unidos. Além da excessiva burocratização do ensino e da imposição de uma metodologia externa aos interesses da educação e à liberdade de professoras/es, deu-se o desmantelamento do currículo com a diminuição da carga horária de disciplinas fundamentais, além da exclusão definitiva da Filosofia. O projeto de profissionalização resultou em meta não cumprida, até porque o governo não se interessou por torná-la viável. Migrei para escolas particulares (Santa Cruz, Palmares, Galileu Galilei e Nossa Senhora das Graças) que não cumpriam à risca as diretrizes oficiais, continuando, ao contrário, a oferecer formação integral e crítica, o que garantiu a permanência da Filosofia em mais de uma dezena de escolas, apenas na cidade de São Paulo. Vale destacar a importância das reuniões semanais de professoras/es, facilitadoras da integração entre disciplinas, quando necessário.

Quanto aos procedimentos metodológicos, desde o início optei pela centralidade de temas filosóficos para, a partir deles, seguir buscando as referências da história da filosofia, com o cuidado de apresentar a história de maneira filosófica, ou seja, interpretando os conceitos criados, enfim, dialogando com o pensamento da/o filósofa/o no seu tempo e com as ressonâncias no momento presente. Esse trabalho era enriquecido com o recurso a passagens de obras filosóficas para aprender o processo de leitura analítica (composta de análise textual, análise temática, análise interpretativa e problematização). Concomitante à leitura analítica, a dissertação ocupa um lugar importante na tradição filosófica por aperfeiçoar a competência discursivo-filosófica e, portanto, a autonomia de pensamento. Um caminho para o plano da dissertação costuma atender a três procedimentos - a introdução, o desenvolvimento e a conclusão -, com destaque para o segundo momento, calcado no rigor da argumentação.

Preciso, ainda, esclarecer o fato de que pisei “no chão da escola” até 1994, embora eu continue trabalhando com filosofia no setor de produção de livros didáticos. O primeiro deles foi a obra Filosofando: introdução à filosofia, publicado em 1986, fruto do trabalho docente. As frequentes revisões permitiram sua constante atualização, além da oportunidade de apresentar outros filósofos que se ocuparam com a metodologia do ensino de filosofia, criando novos paradigmas.

 

Edgar Lyra: Coordenei a licenciatura e supervisionei os estágios curriculares na PUC/Rio durante mais ou menos 10 anos. Vivi a aprovação da Lei 11.684/2008, que tornou obrigatório o ensino de filosofia e sociologia nos três anos do Ensino Médio brasileiro. Foram enormes e múltiplos os esforços empreendidos pela comunidade filosófica, de construção de interfaces com o novo segmento de ensino e de dignificação da formação docente, entre eles a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, de mestrados profissionalizantes e o advento da seção ANPOF - Ensino Médio. Fui também durante 6 anos, a partir de 2013, coordenador do PIBID de Filosofia da PUC/RJ. Esse programa foi crucial para o crescimento e consolidação das licenciaturas em geral; mas, infelizmente, foi sendo alterado ao longo dos anos numa direção que dificultou a participação das licenciaturas em filosofia. O revés maior viria, já no governo Temer, com a aprovação da Lei 13.415/2017, que, entre outros prejuízos, revogou a lei que instituiu a obrigatoriedade do ensino de Filosofia no Ensino Médio. Participei como consultor do MEC da elaboração das duas primeiras versões da BNCC, que vi serem inteiramente transformadas após a promulgação da referida lei. A filosofia figurava nas primeiras versões como “componente curricular” e a proposta da equipe por mim coordenada era a de construir um documento participativo, regido por um espírito “minimalista” que deixasse livres as/os professoras/es para mobilizarem o melhor da sua formação em busca da materialização de “experiências de pensamento” com suas/eus alunas/os. Resguardadas prescrições mínimas, que deveriam garantir uma “base comum” para todo o país, cada docente, estado ou rede poderia curricularizar essa base de modo a aumentar a chance de trabalhar qualitativamente a filosofia em sala de aula, sobretudo de modo a fomentar o interesse das alunas e alunos pelo seu futuro estudo e respeito. A versão final da BNCC, contudo, a reboque da Lei 13.415/17, destituiu a Filosofia da condição de componente curricular e definiu que seus “estudos e práticas” deveriam ser curricularizados a partir de competências gerais elencadas para a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Dada a complexidade da reforma em epígrafe, ademais com sua prescrição de “percursos formativos” e, claro, dadas as dificuldades postas pela pandemia de Covid, ainda não temos hoje em nenhum estado brasileiro uma implementação integral de suas diretrizes. Percebe-se aqui e ali uma redução da carga horária da Filosofia e teme-se sua diluição na área de Ciências Humanas, sobretudo dadas as condições precaríssimas da flexibilização ou interdisciplinarização propostas. Já é igualmente perceptível – ainda que sem estudo comprobatório – a diminuição da procura pelos cursos de licenciatura em filosofia em todo o país. Ainda mais problemática que a restrição do “mercado de trabalho” para professoras/es de filosofia me parece, entretanto, ser o déficit formativo que essas novas políticas públicas estão a fomentar. Sobretudo num momento de hegemonia tecnológica tremenda, de advento de novos e ubíquos processos de formação de subjetividades, o desinvestimento no ensino de filosofia é no mínimo anacrônico. Houvesse um pingo de lucidez formativa, haveria de se incentivar que a filosofia se constituísse como lugar privilegiado de questionamento dessas novas realidades, especialmente de modo a evitar a formação de novas gerações de “meros usuários de novas tecnologias” − zumbis, na pior das hipóteses. Há decerto quem hoje esteja a garimpar nas linhas da BNCC questões que concedam sobrevida à filosofia, como componente curricular, ou transversalmente, em oficinas, laboratórios, núcleos, incubadoras, conforme sugerido no documento. Seja como for, o cenário me parece ainda muito indefinido. Dependendo do resultado das próximas eleições presidenciais – se chegarem a acontecer – a discussão deverá ser reaberta, sendo muito aconselhável que a comunidade filosófica amadureça uma defesa formativa do ensino de filosofia na educação básica, tanto quanto possível propositiva e exequível.

                                                                            

4. O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), em sua existência de uma década no formato que adotou desde 2010, para todas as disciplinas, nesta edição em curso (2021), em atendimento à BNCC e ao novo formato do EM, permitiu grandes alterações no formato dos livros didáticos, com livros integrados por área, para cada itinerário formativo. Como vocês avaliam essas alterações nos produtos educacionais que estão sendo propostos e o impacto sobre os livros didáticos específicos de Filosofia?

 

Maria Lúcia: Ao descrever meu percurso profissional, assinalei diversos momentos de inserção e de exclusão do ensino de filosofia. No momento presente, estamos passando por outra reforma, com base na Lei 13.415/17 vinculada à aplicação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Aberta a muitas críticas, a decisão de aplicá-la precipitadamente no próximo ano de 2022, professoras/es e alunas/os entrarão em sala de aula sem entender bem como será o novo trabalho. A exposição excessivamente minuciosa da reforma não teve o cuidado – eu ainda diria, o respeito – de preparar professoras/es com tempo suficiente para entender o que se espera delas/es. Existe ainda outro complicador, o da própria estrutura da escola, com salas isoladas, sem condição de reunir docentes para discutir a respeito dos trabalhos que visariam os exercícios de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, a fim de proceder ao estudo por áreas, como foi posto pela reforma. Outra questão “desconcertante” trata-se do “engano” de reduzir a Filosofia ao campo restrito das ciências humanas, quando se sabe que ela abrange todas as áreas. Ao contrário disso, recusar o ensino filosófico a estudantes de outras áreas significa negar o acesso à reflexão filosófica, necessária para todos os humanos, indistintamente.

 

Edgar Lyra: Examinei apenas por alto, não com a necessária atenção, a atual lista de 14 livros aprovados pelo PNLD para a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Há de ser um exercício interessante conferir como os vários professores e professoras envolvidos na sua elaboração equacionaram a interdisciplinaridade demandada pela BNCC. Igualmente importante será ter atenção às demandas postas pela implementação de qualquer um deles no “chão das escolas” – tudo isso, por óbvio, entrelaçado com as soluções curriculares a serem finalmente adotadas nos vários estados e redes do país. Como dizia ao falar da minha participação nas primeiras versões da BNCC, a proposta da filosofia era minimalista, e assim o era para deixar espaço para mobilização, por parte de vários professoras/es, das suas melhores capacidades. O grupo de questões norteadoras dos “direitos e objetivos de aprendizagem” (linguagem daqueles primeiros documentos e do PNE/2014-2024) foi elencado de modo a cobrir as várias áreas do debate filosófico, a saber: a ideia mesma de filosofia, questões existenciais, epistemológicas, éticas, estéticas, políticas, lógicas e retóricas. Não se induzia o uso de quaisquer filósofos, filósofas ou tradições. A prioridade era dar ocasião a interrogações tão filosóficas quanto possível, sem as quais quaisquer justas intenções ético-políticas se diluiriam em especulações históricas, sociológicas, puramente opiniáticas ou mesmo doutrinárias. De 2015 para cá, registre-se, ganhou atenção na comunidade filosófica a questão do descentramento da filosofia, com crescimento do interesse por tradições não europeias e por autorias femininas, cabendo discutir como esse movimento pode ou não dialogar com as atuais propostas de interdisciplinarização. Acima de tudo problemático me parece ser o modo pouco democrático e desacompanhado de providências estruturais com que todas essas transformações curriculares têm se dado. Oxalá tenhamos mais para adiante ocasião para retomar, no âmbito governamental, um debate realmente aberto, plural e demorado, à altura da complexidade das questões envolvidas e do real formativo posto pelos desafios e impasses do século XXI.

 

5.2. Olimpíadas de Filosofia e formação do pensamento filosófico

Entrevista com Maurício Langón

Por: Lara Sayão[3] & André Pares[4]

 

As olimpíadas de filosofía do Rio de Janeiro, de São Paulo e do Rio Grande do Sul têm, há mais de uma década, realizado atividades que envolvem inúmeros docentes e estudantes do ensino médio e da graduação em torno do filosofar e do ensinar a filosofar e vem sendo um espaço importante de formação, discutindo as práticas e potencializando a reflexão na área do Ensino de Filosofia. Entrevistamos o filósofo uruguaio Maurício Langón, nascido em Montevideo, 1943, seu principal referencial teórico, para nos ajudar a pensar alguns conceitos que fundamentam tais práticas e as repercussões dessas atividades na formação do pensamento filosófico.[5]

 

1. Seu pensamento é fundamento para as atividades educativas das olimpíadas de filosofia do Rio Grande do Sul, de São Paulo e do Rio de Janeiro, atividades filosóficas não competitivas, que movimentam vários estudantes e professores brasileiros em torno do pensamento colaborativo e da percepção da filosofia como experiência de comunidade, comprometida politicamente. Conte-nos sobre sua trajetória como professor e supervisor de Filosofia em seu país, Uruguai.

 

Entiendo que esto no es una pregunta, sino una especie de acápite. Hay que explicar que, en Uruguay, las Inspecciones Nacionales de Asignaturas dependen de la Educación Secundaria de la Administración Nacional de Educación Pública, que es un Ente Autónomo. Que “Filosofía” existe en todas las orientaciones de los tres últimos años de educación media (“Bachillerato”), con una carga de unas tres horas semanales, desde el siglo XIX. Que los inspectores visitan las clases de los profesores de todas las instituciones públicas y privadas del país y realizan un “informe” que califica esa clase, y busca orientar al docente em la discusión para la mejora de su aula y sus cursos. Esta tarea y otras funciones administrativas los inspectores postdictatoriales de Filosofía las acompañamos con salas em las distintas instituciones o Departamentos, concursillos, seminarios, charlas y Jornadas anuales em los que se trabajan tanto lo didáctico-filosófico como el intercambio de experiencias concretas en diálogo entre docentes.

La Inspección de Filosofía juega un rol importante al relacionar la educación filosófica en todo el país, lo que permite la mejora constante de la enseñanza de la materia y los vínculos entre docentes. La activa participación de los profesores posibilitó reformas radicales de los programas em um proceso que se dio desde 1991 y se generalizo en 1995, aunque no se conto com el apoyo que hubiera sido necesario.

Desde 1968 fui profesor es Educación Secundaria, em Formación Docente y em la Universidad hasta 1973 cuando me exilié en Argentina. Ahí solo trabajé en Universidades y Profesorados, pero no com los más jóvenes. Mi interés filosófico se orienta hacia la filosofia latinoamericana de la liberación e intercultural. Vuelto al Uruguay en 1985 me reintegro a la docencia secundaria, universitaria y de profesorado. Accedí al cargo de Inspector por concurso y lo ejercí entre 1992 y 1999.

 

2. Em seus textos, o senhor discute os conceitos de rigor filosófico e função filosófica. Poderia nos falar um pouco sobre a relação deles com a formação docente e a formação dos estudantes secundaristas?

 

El concepto “función filosófica” surge em la discusión interna de AFU ante una consulta de las autoridades de entonces (2003) respecto a cómo podría mejorar se la enseñanza de la filosofia em el seno de un cambio curricular de la “educación media superior” basado em competencias. AFU respondió con una crítica de forma a la manera de discutir cambios, y de fondo al pseudo concepto “competencias”. Después de explicar los sentidos básicos de una educación em filosofía a este nivel, desarrolló el concepto “función filosófica”, extendiendo libremente la noción de Roig “función utópica”. Hay un tipo de discurso que es la “utopía”, y hay una “función utópica”: un modo de vincularse com lo futuro, lo deseado, etc., que está presente en todo discurso. De modo análogo hay un segmento curricular llamado “Filosofía”, y hay una “función filosófica” (reflexiva, dialogal, cuestionadora, crítica, creativa, solidaria) que se cumple (o falta) en toda educación a través de todo lo que pasa em un centro educativo, del currículo y de cada disciplina. Esta función no se asegura com la mera presencia de una asignatura, la Filosofía, que bien puede ser enseñada de modo no-filosófico. Es necesario que la función filosófica esté, además, en todo el currículo. Em ese documento la AFU concreto en concepto em propuestas. Una, basada em la noción de “diezmo” de Morin, consistió sugerir que cada asignatura dedicara el diez por ciento de su tiempo a plantear sus propioslímites y paradojas; a discutir desde su perspectiva los límites o insuficiencias de otras; a dejarse cuestionar por los nuevos problemas, y a informarse, reflexionar y debatir caminos em los cruces y límites de los saberes. Otra, proponía crear um espacio curricular especial de “articulación de la función filosófica”, donde se consideraran a fondo problemas de esta índole. Tomábamos em cuenta la idea de un núcleo curricular común como el que funciona em el llamado “Bachillerato Internacional”, pero de carácter más problematizador y explícitamente filosófico.

La primera idea no fue atendida, pero la segunda cuajó em la propuesta de la Inspección de un “Espacio curricular de crítica de los saberes” de dos horas semanales em los três años, com profesores especialmente formados. Se aplicó desde 2004 em el primer año de Bachillerato, aunque con una sola hora semanal y a cargo del docente de Filosofía. Hubo um seminario de preparación, de unos días de trabajo intensivo, y las experiencias llevadas a cabo, a veces publicadas y siempre compartidas desde entonces en Jornadas Nacionales siguensiendo de muy alto valor.

Es de lamentar que las autoridades posteriores no la desarrollaran también em los otros dos años y que no haya habido formación sistemática específica para que pudiera ser desarrollada interdisciplinariamente.

El esfuerzo posterior por sistematizar (más o menos) algunos caracteres de lo, en rigor, filosófico, así como algunos aportes posteriores (incluso mi reciente Filosofar em la nueva normalidad) surge de una investigación realizada junto con Marisa Berttolini e Isabel González en que trabajamos tres conceptos claves que surgieron como problemáticos en grupos de discusión com profesores: el rigor filosófico, el vínculo pedagógico y los textos. A mí me correspondió la primera parte en que analicé el concepto de rigor em su sentido etimológico, intelectual y científico, en vínculo com las normas técnicas de calidad, así como su uso em filosofía para intentar caracterizar un rigor propio de lo filosófico y marcadamente diferente de los otros. Partí de los trabajos de Alejandro Ranovsky (de Argentina), lo amplié com otros elementos y discuti alguno de sus puntos. Luego los presente específicamente referidos al aula de filosofía y sugiriendo la posibilidad de su validez como criterio para valorar cualquier actividad que se pretenda filosófica o de filosofía.

Estos conceptos surgen de prácticas de nuestros docentes de filosofía. También los discutimos con colegas de España y Argentina. Em realidad, no sé hasta qué grado son utilizados em la formación de docentes y em educación secundaria, pero un grupo muy importante de Didáctica de la Filosofía em Formación Docente trabaja em sintonia com estos conceptos y en la mejora y profundización de las teorías y “prácticas docentes” con los estudiantes de profesorado de filosofia en todo el país. Van mucho más allá de utilizar “aplicarlos”. Numerosos profesores de filosofía de nivel secundario están desarrollando en el aula y fuera de ella, con sus estudiantes o de modo abierto, en lo presencial, en lo virtual o “a distancia”, actividades en fuerte consonanciacon estas conceptualizaciones.

Por supuesto, la formación docente también puede ser castradora e incidir en la formación de profesores, en términos rancièrianos: “embrutecedores”. Hay formadores de docentes que se orientan en el modelo académico clásico de transmitir el corpus de la filosofía occidental, en “falsa oposición” con nuestras propuestas. Digo que falsa porque, como es obvio, nosotros procuramos un rigor filosófico que no desconoce esa tradición, aunque no la considera “sabia” (lo que implicaria la negación de la filosofía) ni única, pero sí digna de entrar endia-logosvitales, críticos y creativos (filosóficos) con otras culturas, saberes, ethos, pathos y logos. Incluidas las neogeoculturas que se gestan en nuestros barrios y que ya integran y constituyen a nuestros jóvenes. Justamente esse punto me parece clave para pensar y desarrollar una educación filosófica endia-logos entre culturas. Muchas veces nuestras aulas constituyenese entre diversas culturas: se trata de hacerlas filosóficas y hacer filosóficos otros espacios, las Olimpíadas, la educación, nuestras sociedades…

 

3. As olimpíadas de Filosofia são atividades de educação filosófica? Quais as contribuições que tais atividades, como os acampamentos filosóficos, podem dar para a efetiva formação filosófica de estudantes e professores, bem como para o fomento, o estímulo do interesse pela Filosofia?

 

Nosotros las llamamos Olimpíadas Filosóficas. Es un matiz importante. Es claro que conviven distintas concepciones de la Filosofía. Todas (como la que sustentamos nosotros) dignas de ser discutidas. Pero estas preguntas suponen dudas y objeciones que parecen sustentarse em otras concepciones de lo filosófico; en críticas que suelen hacerse a nuestra perspectiva que de algún modo la niegan, no la entienden y atacanun estafermo o um hombre de paja, en vez de atacar nuestras propuestas. Entonces, corremos el riesgo de caricaturizar al preguntón.

Cuando se pregunta por la “efectivaformación filosófica de estudiantes y profesores” o por el “fomento o estímulo de linterés por la Filosofía”, parece darse por sentado que hay otras actividades (que no se explicitan) que indudablemente contribuyen a esas finalidades, por su parte indiscutibles, sin fundamentación y ni explicitación.

Pero principalmente, se siembra la duda de que las Olimpíadas, campamentos, y otras actividades puedan ser incompatibles con una formación filosófica y con despertar interés por la filosofía. Se siembra la sospecha de que sean actividades antifilosóficas o -peor- pseudofilosóficas.

Entonces cabe preguntarse ¿qué es “filosofía”? ¿qué es filosofar? ¿qué es enseñar filosofía y a filosofar? ¿qué es lo filosófico? ¿quién es son los filósofos?...

Para nosotros… para quienes intentamos um hacer filosofía que procura a hacer más filosófica la enseñanza de la filosofía, las educaciones, las convivencias humanas; a hacer más inciertos, más problematizadores, más insatisfechos más reflexivos más dialogales y argumentativos a los seres humanos, lafilosofía es una cosa.

Para otros es algo distinto. Quizás muchas cosas diferentes que se esconden bajo el concepto, filosofía que abstrae de todas las filosofías existentes, como el concepto caballo no es ningún caballo. Pero lo que hay son filosofías, modos de pensar, modos de concebir… que difieren cada una de cada otra… que se reconocen como distintas y que, por tanto, entranen debate, en discusión, en diálogo. Acciones filosóficas, para nosotros. 

Entonces, filosofar enseñando filosofía y a filosofar, filosofar con otros cotidianamente en el contexto problemático en que estemos, filosofar desde nuestros problemas, desde y sobre nuestras convicciones…es (al menos para mí) un aspecto sustantivo de toda formación filosófica. Digamos, algo que no puede faltar en una formación filosófica. Y claro que fomenta, estimula y busca generar interés por lafilosofía. Y, en la práctica, suele despertarlo.

Pero se dirige a todos, no selecciona sus interlocutores. En las aulas de las escuelas primarias o secundarias caben quienes ya son plenamente seres humanos vivirán sus vidas ejerciendo los más diversos trabajos. No se trata de propagandear a “la Filosofía” de reclutar estudiantes para que cursen carreras profesionales o profesorales de Filosofía. No es como procurar vocaciones sacerdotales, como incentivar a cursar carreras científicas, o como conseguir adherentes a los partidos políticos. Las concepciones de filosofía que quisieron ser siervas de lateología (o se con-fundieron con ella), y las que buscan hacerla hoy sierva de la ciencia (o se identifican con ella) son respetables, pero no son la nuestra.

Los que nos dedicamos profesionalmente a tareas filosóficas nos formamos en la construcción y tradición occidental (que se pretende universal) que fijasu “origen” en la Grecia “clásica” y continúa una línea que va fijando un canon de autores, un corpus de obras y escritos, y desarrollado espacios y métodos de trabajo y discusión que implican una normalidad que garantiza cierta continuidad acumulativa que vuelve sobre símisma, y se va especializando cada vez más en aspectos más limitados o parciales. Nosotros pertenecemos a esa cultura. Y ella nos perteneceen tanto es aquello de que disponemos, lo que nos parece más valioso, a la vez es lo que nos limita y nos unilateraliza.  Es importante dominarla y que haya quienes la dominenaún más. Es importante establecer diálogos entre el pensar nuestro americano liberador (básicamente filósofos europeodescendientes formados en educaciones europeocéntricas y nacionalistas), con los filósofos europeos y norteamericanos. Pero también desde y con el pensar de nuestra América Profunda, indígena, afrodescendiente y mestiza, con el asiático, con el africano, con el de Oceanía, y tantos “negados” internos, como las mujeres, los LGTB, los empobrecidos, que no ocupan casi lugar alguno en nuestra formación (y, si lo ocupan, es para negarlos o dominarlo, como sistemáticamente se hizo a través de todo el pensamiento filosófico occidental… o sea de la llamada “Historia de la Filosofía”. Que no es la historia ni la filosofía, sino un modo particular de pensarlas, contarlas y hacerlas.

Porque filosofar, hacer filosofía (criticarla, transformarla, crearla, interculturalizarla, establecerdia-logos filosóficos) es lo que hacemos con niños y jóvenes en las aulas y en los demás espacios filosóficos que estamos creando y en los que vive lafilosofía.

 

4. No Brasil hoje, novamente se discute a presença da Filosofia na educação básica. Estamos passando por uma reforma educacional que limita e dilui sua presença. A experiência de pensamento filosófico é realmente fundamental na educação básica? Por quê?

 

Morin decía que no se trata de llenar cabezas sino de formar buenas cabezas. Los gobernantes y las clases dirigentes saben muy bien la potencia del filosofar. Tanto que los colegios privados la incluyen habitualmente en sus planes de estudio. Aunque puedan incluir solo algunas partes o aspectos o darle outro nombre: teoría, gnoseología, lógica, argumentación, valores, religión, historia de…

Todos sabemos que -enrealidad- siempre se enseñan ideas. Hasta sin palabras con puros gestos o señas se muestra (se enseña) lo que hay y lo que no hay, lo que es bueno y lo que es malo, lo que hay que hacer, lo que hay que leer, lo que hay que comer, lo que hay que creer, lo que hay que destruir y lo que se debe construir… Se imponen actitudes y hábitos, se “educa por competencias”, se generan expectativas de futuro, se enseñalo que es útil y lo que es fútil, se impone cierta educación… Como si los viejos supiéramos qué tipo de hijos queremos, qué “es por tu bien, nene”, y qué tipo de hijos querríamos que tuvieran los demás. Todo eso y mucho más son posiciones filosóficas. Aunque uno no sepani de qué se trata la filosofía, sabe que “no sirve”; aunque no tenga idea de matemáticas o de ciencias “duras”, saben que sirven.

Es extraordinariamente difícil educar sin dominar; no ver al alumno como una arcilla a moldear o una piedra a cincelar. Diría, incluso, que no hayeducación humana que no tenga algo de esavoluntad paterna, gubernamental, de secta, o de mera preferenciapersonal.

La filosofíasiemprepensó y discutiócuestiones como las que se planteaba Kant: ¿qué podemos conocer? ¿qué debemos hacer? ¿qué nos cabe esperar? y, como resumiéndolas todas ¿qué es el hombre? Y queda um hueco para preguntarse quién y quiénes sabemos, conocemos, actuamos, esperamos, estamos siendo…  O preguntarse ¿por qué? ¿para qué? ¿y ahora qué? ¿y después qué?

Y, claro: se puede domesticar, se puede amaestrar, se puede adoctrinar, se pueden fabricar competentes para lo que sea. Hoy, cuando parece que el mundo ya no necesita seres humanos, parece que ya no hay trabajo porque ya no se necesitan trabajadores, ya no los requiere la industria, ni el comercio, ni la explotación ni la plusvalía, ya no se necesitan maestros ni educadores. Y, por supuesto, ya no se necesita filosofía ni filosofar, ni filósofos de los que hacen incómodas preguntas infantiles sobre el por qué, el para qué, el para quién. Y a veces se animan a preguntarse tímidamente qué necesitan todos los seres humanos. Y, entonces, podría ser que lo fútil, lo innecesario, lo negativo, lo que no debería haber, es un sistema socio-político-ideológico-mundial que puede prescindir de los seres humanos.

Eliminar la filosofía de los planes de estúdio no será suficiente para eliminar lo humano. Aparecerán caminos para preguntarse desde los seres humanos ¿no habría que eliminar un sistema (educativo y más) que no parte de las necesidades, derechos y deseos humanos y poner sobre el tapete (educativo y más) ¿qué caminos filosófico-educativos habría que transitar para construir educaciones interculturales que pongan en diálogo experiencias educativas valiosas entre formas de vida diversas en construcción dia-lógica de una convivencia humana? ¿Debería eliminarse de esas educaciones las ideologías que proponen imponer una única educación mundial orientada a la preservación de un “sistema-mundo” que no necesita seres humanos y enseña la irrelevancia e inutilidad de los mismos? ¿Habrá que exigir de cada educación nacional la eliminación de un currículo basado en adiestraren las competencias que ese sistema necesita para perpetuarse?

 

5.3. Ensino de Filosofia na Pós-Graduação

Entrevista com Antonio Edmilson Paschoal[6] & Taís Silva Pereira[7]

Por: Maria Cristina Theobaldo (UFMT)

 

Às portas da implantação do “Novo Ensino Médio”, onde a Filosofia, conforme a BNCC e o PNLD, ocupa um novo lugar enquanto matéria escolar nas matrizes curriculares, entrevistamos a Profa. Tais Silva Pereira* e o Prof. Antonio Edmilson Paschoal** sobre formação de professores de filosofia para a educação básica e os dois cursos de mestrado profissional em Filosofia – o PPFEN/CEFET-RJ e o PROF-FILO. Em seus comentários a Profa. Tais Pereira nos devolve a instigante pergunta: “qual filosofia ensinamos e aprendemos?”, que por sua relevância pode ocupar o núcleo das questões que percorrem a entrevista – as tendências das pesquisas na área de Ensino de Filosofia e seus impactos na docência e na divulgação da filosofia, e as expectativas futuras dos mestrados profissionais de filosofia. Nos dias que correm, marcados por acirrada pressão ideológica sobre as Humanidades, trazer à discussão o ensino de filosofia e a formação de professores na pós-graduação, como bem nos faz entender o Prof. Antonio Edmilson Paschoal, configura ato de resistência. Vamos à entrevista!

 

1. Dada a atual política educacional do governo federal para o ensino médio, notadamente a BNCC e o PLND, quais impactos podemos esperar para o ensino da filosofia na educação básica e nos mestrados profissionais em filosofia?

 

Taís Silva Pereira: A última versão da Base Nacional Comum Curricular, seguindo a orientação do chamado Novo Ensino Médio altera os pressupostos da formação dos estudantes na educação básica, com acento no desenvolvimento das chamadas competências e habilidades e na resolução de problemas. A proposta do novo currículo, em vias de implementação nas diferentes regiões do país, prevê a organização da formação por meio de itinerários formativos e áreas do conhecimento, como a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, na qual o agora componente curricular de Filosofia está inserido. Por sua vez, o edital do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) 2021 é a primeira edição em que a distribuição de livros para as escolas públicas seguirá os parâmetros da BNCC para a oferta de diferentes coleções organizadas por área do conhecimento, as quais indicarão as primeiras leituras e discursos possíveis sobre o que é proposto pela Base. Nosso desafio inicial, a meu ver, consiste na análise destas obras que terão de alguma maneira um caráter indutor no que tange as concepções de interdisciplinaridade e do modo como a Filosofia – hoje sob o tratamento legal de “estudos e práticas – figurará nesta configuração não disciplinar.

Um impacto anunciado é a tendência de desespecialização dos docentes no ensino médio. No caso específico de professores de filosofia, tudo indica um aprofundamento desta desespecialização já existente e que remonta a uma condição anterior ao “Novo Ensino Médio”: docentes de outras formações que atuam no ensino de Filosofia. Alinhada a este fator, temos uma redução significativa de carga horária, tanto em função da própria organização da BNCC quanto das disputas e tensões presentes nas redes pela presença na grade curricular. Neste cenário, não podemos desconsiderar que o histórico intermitente da Filosofia nas escolas não está a nosso favor. Com a redução dos tempos em sala de aula, a tendência mais uma vez é que o professor tenha de complementar sua carga horária em diferentes escolas, afetando a qualidade de suas condições de trabalho e atuação. Por seu turno, a filosofia corre o risco de ser apagada no cotidiano das unidades escolares. Mesmo se acolhêssemos de forma otimista a proposta da BNCC, qualquer planejamento coletivo e interdisciplinar ficaria fragilizado frente às condições que se delineiam. Até mesmo a plena utilização dos livros didáticos que teremos disponíveis nas escolas, cujo pressuposto é uma abordagem transversal em diálogo com diferentes áreas e componentes curriculares, seria prejudicada.

Há também impactos pedagógicos e filosóficos cruciais. O primeiro deles diz respeito a qual(quais) ensino(s) de Filosofia e prática(s) filosófica(s) cabe(m) no formato da BNCC. Esta problematização me parece fundamental porque a discussão sobre o ensino de filosofia envolve a pergunta sobre qual filosofia ensinamos e aprendemos. Uma pergunta que é também situacional, pois está imbricada na prática docente realizada em distintas realidades. O segundo, talvez mais diretamente ligado aos mestrados profissionais, no âmbito da pesquisa prática-teoria-prática, precisarão buscar alternativas para a promoção dos saberes e práticas filosóficos tanto na educação básica quanto no espaço público, físico ou digital. Uma vez observadas restrições à formação filosófica, teremos, como professores-pesquisadores, o desafio de identificar e propor estratégias para a sua promoção a despeito do cenário dado.

 

Antonio Edmilson Paschoal: Começo esta conversa lembrando que os mestrados profissionais em Filosofia no Brasil surgiram para atender as exigências de formação dos professores que atuam no ensino de Filosofia no Ensino Médio, tendo em vista especialmente o retorno da disciplina de Filosofia naquela fase de formação dos jovens no país. Poderíamos dizer que esses programas correspondem a um desdobramento das lutas que levaram ao retorno da disciplina. Muitas das pessoas que estavam engajadas naquela luta, envolveram-se direta ou indiretamente na criação de programas como o Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ensino, o PPFEN-CEFET-RJ e o Mestrado Profissional em Filosofia em Rede Nacional, o PROF-FILO. Isto porque, o próprio retorno da Filosofia demandava a criação de espaços próprios, em especial na pós-graduação, para os debates, aprofundamentos de temas concernentes e trocas de experiências relativos à disciplina. Essa era uma necessidade urgente, pois, diferentemente de outras áreas do saber, como a História e a Geografia, por exemplo, a Filosofia não tinha uma tradição consolidada enquanto disciplina no Ensino Médio. O que se deve, em grande parte, ao fato de ela ter sido retirada do currículo na década de 70, mas também porque em seu histórico, sua presença naquela fase de formação dos jovens foi sempre intermitente, interrompida, cheia de lacunas que precisavam ser preenchidas tendo em vista o novo cenário nacional que se apresentava a partir de 2008.

Particularmente no que se refere ao PROF-FILO, que é o meu lugar de fala, é importante notar que o ao iniciar suas atividades, em 2016-17, o novo Programa já encontra uma mudança nesse cenário, especialmente em função das constantes ameaças de retirar novamente da Filosofia o caráter de disciplina obrigatória no Ensino Médio. O que de fato ocorre nesse período por meio da Lei nº 13.415/2017 e ganha corpo com a nova Base Nacional Comum Curricular, a BNCC e, por decorrência, com o novo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), que é orientado pela BNCC.

Como é conhecido, a nova Base Nacional Comum Curricular, a partir de 2017, passou a ser delineada não mais a partir de um grande debate público, como vinha acontecendo até então, mas por instituições privadas como é o caso da Fundação Lemann, Instituto Ayrton Senna, Instituto Natura, Instituto Unibanco, Fundação Itaú Social, Fundação Roberto Marinho. Sendo que algumas dessas instituições passaram a conduzir o próprio processo de construção da BNCC, desviando-a de seu foco inicial e aprofundando aquilo que nela era controverso, como era o caso dos itinerários formativos e da redução do papel de disciplinas como Filosofia e Sociologia no Ensino Médio.

De fato, a nova BNCC que teve seu processo de finalização e implementação acelerada pelos últimos governos, apresenta inúmeros problemas, dentre os quais vamos nos ater neste momento, e de forma muito breve, apenas no que diz respeito diretamente ao espaço e ao papel conferido à disciplina de Filosofia no chamado “novo ensino médio”. Nesse sentido, cabe lembrar que o novo Ensino Médio dispõe para os estudantes um total de 3.000 horas. Dessas, 1800 são destinadas à formação geral, onde apenas as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática são obrigatórios, e 1.200 destinadas aos itinerários formativos, onde, conforme o itinerário escolhido, outras disciplinas serão requisitadas, sem excluir as primeiras. Como é conhecido, são cinco os itinerários formativos, o de Linguagens e suas tecnologias, o de Matemática e suas tecnologias, o de Ciências da natureza e suas tecnologias, o de Ciências humanas e sociais aplicadas, e o de Formação técnica e profissional. Sendo que a Filosofia só é requerida no de Ciências Humanas. O que não apenas reduz drasticamente a sua presença no Ensino Médio, como retira dela o propósito de contribuir para a preparação dos estudantes para a vida ou para o exercício da cidadania, como constava na LDB. Assim, mantendo-a apenas no âmbito aquele itinerário formativo, como uma disciplina voltada para estudantes que queiram atuar na área de Ciências Humanas, a Filosofia é alijada de seu papel formador, sendo forçada do mesmo modo como as demais disciplinas específicas da área de Ciências Humanas a dialogarem apenas consigo mesmas e não mais atuarem na formação dos jovens.

Nesse contexto, como é notório, com a redução da disciplina de Filosofia no Ensino Médio, houve também uma drástica redução da área de atuação dos professores formados nos cursos de Licenciatura em Filosofia. Ao certo, por um longo tempo, não haverá concurso para professores de Filosofia no Ensino Médio em muitos Estados, em função dessa redução, mas também do oportunismo de alguns governos estaduais, como é o caso do Governo do Estado do Paraná, que reduziu, em 2020 pela metade a atual oferta da disciplina de Filosofia no Ensino Médio. Até essa data, os estudantes do Ensino Médio tinham duas aulas semanais de Filosofia, a partir de então, passaram a ter apenas uma. O que dificulta ao extremo o trabalho dos professores que, de resto, passam a acumular um número infindável de turmas e de alunos para fecharam uma carga horária razoável para sua sobrevivência.

 

2. Tendo em vista sua experiência na pós-graduação, particularmente no mestrado profissional em filosofia, quais tendências podem ser notadas nas pesquisas sobre ensino de filosofia?

 

Antonio Edmilson Paschoal: No âmbito do PROF-FILO, programa no qual atuo, as pesquisas desenvolvidas seguem duas linhas bem amplas. A primeira, denominada “Filosofia e Ensino”, que agrupa especialmente as pesquisas que enfatizam o papel formador da Filosofia, com ênfase na formação dos jovens alunos do Ensino Médio. Entre essas pesquisas encontram-se aquelas sobre o papel de textos filosóficos clássicos nesse processo formativo e o seu uso em sala de aula, bem como os estudos sobre o livro didático e outros materiais de ensino, tendo em vista sempre o papel formativo da Filosofia e o propósito de filosofar sobre o ensino de Filosofia. A segunda linha de pesquisa, denominada “Práticas de Ensino de Filosofia”, engloba as pesquisas com enfoque na realização efetiva da experiência filosófica, tendo em vista em especial o ambiente de sala de aula do Ensino Médio. No seu âmbito são debatidos, por exemplo, as experiências de ensino de Filosofia, envolvendo metodologias, atividades didáticas, modelos de avaliação, a produção e o uso de material didático etc.

Há uma expectativa de que as pesquisas realizadas no PROF-FILO estabeleçam um forte diálogo com a prática da sala de aula, tendo em vista o papel formador da Filosofia com os jovens do Ensino Médio. Nesse sentido, a maioria das dissertações defendidas apresentam um processo planejado pelos professores que fazem o PROF e implementado em suas escolas, de tal forma que os resultados alcançados possam suscitar discussões e motivar outras intervenções similares.

 

Taís Silva Pereira: Embora o PPFEN, onde atuo, admita em seu quadro discente graduadas e graduados provenientes de diferentes áreas, a maioria de nossos estudantes é formada por docentes da educação básica que atuam no Ensino de Filosofia. Tal diversidade expressa a proposta do programa é pensado a partir de um caráter interdisciplinar. Assim, compreende que o Ensino de Filosofia, especialmente em espaços formais, é atravessado por questões e tensões institucionais, de política pública, de condições de trabalho, cujas implicações também precisam ser refletidas filosoficamente junto com nossa atuação cotidiana na sala de aula.

Por um lado, as pesquisas do vêm acompanhando a característica mais geral de nossa área no que diz respeito à pluralidade de abordagens teóricas e metodológicas. Das 47 dissertações defendidas até dezembro de 2020, verificamos que o aporte filosófico é bastante amplo tanto na referência a pensadores consagrados na história da filosofia quanto no diálogo com pensadores e teorias que se situam foram do cânone mais tradicional. Por outro lado, a motivação de pesquisa é, sobretudo, a atuação docente singular das mestrandas e mestrandos. Sobre este segundo ponto, acho que o trabalho do professor e colega do PPFEN, Felipe Pinto, nos ajuda a identificar as tendências nas pesquisas sobre o ensino de Filosofia no mestrado profissional do CEFET/RJ. Ao analisar os indicadores do programa, sobretudo os TCCs, entre os anos de 2016 e 2018, o professor Felipe Pinto e seus orientandos levantam três categorias de análise tendo em vista um primeiro mapeamento da produção dos egressos. A primeira, na qual se apresenta a maioria das dissertações defendidas, compreende as práticas e experiências no ensino de Filosofia; uma segunda categoria reúne, à luz de determinada corrente filosófica ou pensador, pesquisa sobre concepções de ensino de filosofia ou mesmo da educação, de forma mais ampla; e por fim e em menor número, um conjunto de trabalhos cujo foco de investigação reside no estudo sobre determinações legais ou rearranjos institucionais nos quais o Ensino de Filosofia está implicado. O mapeamento realizado me parece bastante profícuo para compreender de forma mais aprofundada duas tendências interessantes sobre a motivação das dissertações defendidas. Primeiro, a pesquisa em âmbito profissional não se restringe à instrumentalização de técnicas a serem aplicadas em sala de aula ou em outros espaços de formação. Antes, ela diz respeito a uma reflexão rigorosa sobre ensinar e fazer filosofia, ainda que seja a partir de uma experiência específica de um professor específico que atua diretamente no ensino de Filosofia ou se apropria da Filosofia e do filosofar a fim de enriquecer a sua atuação em outra área, seja na escola, seja fora dela. Significa dizer que a prática formativa, em sua singularidade, torna-se ela mesma uma questão filosófica. Segundo, as pesquisas sobre Ensino de Filosofia, por serem inseparáveis da atuação do mestrando, parecem apontar também para uma investigação sobre os processos e materiais elaborados. Em espaços formais ou não formais, o professor de Filosofia é autor de práticas de ensino-aprendizagem e pode problematizar, atualizar e testar seus produtos à luz de critérios filosóficos e debate com seus pares. Os produtos educacionais produzidos pelos mestrandos caminham neste sentido.

 

3. Quais as perspectivas futuras para os mestrados profissionais em Filosofia e de que modo estes mestrados contribuem para a consolidação da área de Ensino de Filosofia no Brasil?

 

Taís Silva Pereira: Percebo que os programas de mestrado profissional, tanto o PPFEN quanto o PROF-FILO, revelam algo latente em nossa área, a saber, a compreensão de que a prática do ensino de filosofia é, ela mesma, uma questão filosófica. Apesar de se aproximarem das áreas de ensino e educação, as pesquisas sobre ensino de filosofia no Brasil vêm consolidando um campo de produção filosófica original e plural. Penso, então, que os mestrados profissionais podem ser um primeiro movimento de reunião de pesquisas que estariam mais dispersas nos programas de Educação e nos programas de Filosofia, sob orientação de docentes sensíveis às propostas voltadas para o ensino de Filosofia. Então, acredito que PPFEN e PROF-FILO contribuem de forma valiosa para a divulgação do campo de Ensino de Filosofia entre os nossos pares e, indiretamente, na sociedade. Em outro sentido, e voltando ao que mencionei anteriormente, os mestrados profissionais em nossa área mostram-se muito distantes de um possível temor quanto à instrumentalização da Filosofia nas escolas. Antes, o que estamos acompanhando nos referidos programas são pesquisas que trazem a Filosofia praticada em instituições de ensino e outros espaços formativos no centro da investigação filosófica propriamente dita. Esta aproximação não é somente profícua para os locais de atuação de mestrandas e mestrandos, mas de igual maneira para a universidade, a pós-graduação e os centros de formação de professores.

O reconhecimento da pesquisa a partir dos lugares onde se faz, se ensina e se aprende filosofia, institucionalizada pelos mestrados profissionais, traz um elemento que também considero promissor em um horizonte futuro: assumir a investigação do ensino-aprendizagem de Filosofia para além dos muros da escola e refletir sobre modos de divulgação filosófica para diferentes públicos e em diferentes lugares, a exemplo das atividades da Olimpíada de Filosofia que ocorrem aqui no Rio ou ainda na elaboração de materiais e processos. Os mestrados profissionais em ensino de ciências já possuem uma longa caminhada na relação entre ensino-aprendizagem e divulgação científica. Penso que a área de ensino de filosofia pode aprender com eles.

 

Antonio Edmilson Paschoal: Os mestrados profissionais em Filosofia, em especial o PROF-FILO, do qual posso falar com mais propriedade, possui como campo de atuação vários Estados da Federação, cobertos por seus 16 núcleos. A ideia inicial do PROF, contudo, era que ele pudesse cobrir todo o território nacional onde, de forma indistinta, tem-se o ensino de Filosofia. Contudo, isso não foi possível à época de sua criação porque, naquele momento, para atender às demandas da área de avaliação da CAPES, houve uma redução do número de núcleos propostos inicialmente. Nesse sentido, e tendo no horizonte aquele projeto inicial, a expectativa é que o PROF-FILO amplie sua área de atuação nos próximos anos. Isto porque logo após o início de seu funcionamento teve início as tratativas para a sua ampliação, o que foi autorizado em 2021 e, com isso, deverá ser lançado em breve o edital para a criação de novos núcleos, preferencialmente em Estados que ainda não são atendidos pelo PROF-FILO.

Tal expansão, quando considerado que deve atingir Estados mais carentes em relação à pós-graduação em Filosofia, deve significar uma oportunidade para professores de Filosofia desses Estados se inteirarem com os debates que ocorrem em outros centros e em especial em formas de se pensar a disciplina a despeito das dificuldades impostas ao seu funcionamento. O que confere ao PROF-FILO um importante papel na resistência – talvez essa seja a sua perspectiva futura mais importante - frente ao quadro descrito na resposta à primeira pergunta desta entrevista.

 

4. Já é possível avaliar o impacto dos mestrados profissionais na atuação profissional dos seus egressos?

 

Antonio Edmilson Paschoal: É importante registrar, inicialmente, que é muito difícil apontar algum parâmetro objetivo que possa aferir a mudança da qualidade das aulas de um professor que tenha feito, por exemplo, o PROF-FILO. Não é fácil, nesse sentido, estabelecer uma medida objetiva para o “antes” e o “depois”. Contudo, é possível afirmar que a experiência da reflexão oportunizada por esse tipo de programa de pós-graduação constitui um diferencial para aqueles professores que têm com o Mestrado Profissional, a oportunidade de refletir de forma metódica e orientada, sobre o seu trabalho em sala de aula, com a disciplina de Filosofia. Essa experiência tem início, no caso do PROF-FILO, com os debates ocorridos nos seminários de projetos e de pesquisas, e se desdobra no planejamento meticuloso de uma prática, na sua condução, avaliação e, por fim, na escrita dessa experiência, com embasamento teórico e metodológico. É possível afirmar também que as dissertações apresentadas, nas quais são registrados processos formativos planejados, implementados e avaliados, possuem um papel que extrapola o ambiente no qual se desenvolveu aquela pesquisa, em especial quando esse material é publicado, podendo ser replicado ou, conforme o caso, tornando-se referência para novos debates e novas práticas. Desse modo, os egressos do PROF-FILO, com suas pesquisas, cumprem um importante papel na ampliação dos debates sobre a disciplina de Filosofia no Ensino Médio, que é indispensável para o amadurecimento da disciplina, em termos teórico-práticos.

 

Taís Silva Pereira: Os últimos dois anos foram muito difíceis para nossos colegas que, como eu, atuam na educação básica. Pelo menos aqui no Rio de Janeiro, observamos um número significativo de demissões nas redes privadas de ensino que podem ser atribuídas, sim, às políticas educacionais que estão se delineando em nosso país, mas também à própria situação de grave crise sanitária em que enfrentamos. Em relação à rede pública, a ausência de concursos para professores efetivos também dificulta a inserção ou ampliação da carreira docente. Dada a conjuntura em que nos situamos, qualquer avaliação sobre a progressão da carreira destes egressos torna-se nebulosa.

Ainda assim, é possível vislumbrar dados interessantes ao longo dos seis anos de funcionamento do PPFEN. Parte dos concluintes tem dado continuidade a seus estudos nos cursos de doutorado acadêmico. Como a área de Filosofia optou por não autorizar a abertura de cursos de doutorado profissional, observamos uma migração para doutorados acadêmicos na área da Filosofia ou Educação. Em ambos os casos, os egressos têm aprofundado a pesquisa iniciada no mestrado profissional, isto é, dedicam-se à pesquisa em Ensino de Filosofia. Alguns de nossos egressos também estão atuando na rede pública através de concursos para vagas temporárias, quando a titulação se torna um fator classificatório para o cadastro de reserva da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro – SEEDUC/RJ – por exemplo.

Outro impacto significativo é que boa parte das pesquisas realizadas retornam para a sala de aula e outros contextos formativos enquanto projetos, atualização de materiais e reformulação de processos de ensino-aprendizagem. Algumas destas produções começam, inclusive, a serem disponibilizadas em plataformas digitais, acessíveis a outros professores que, por sua vez, podem adaptar os produtos educacionais para atender as demandas de seu local de atuação. Contudo, e julgo ser mais importante, é que na singularidade do cotidiano escolar de cada egresso se consolida o reconhecimento de si como coautor e coautora da experiência formativa na parceria com estudantes e outros públicos ao se explorar possibilidades de ensinar, aprender, divulgar e fazer filosofia. Em suma, a orientação filosófica de sua própria prática promove novas possibilidades de atuação. Talvez esse aspecto possa parecer um otimismo não muito razoável seja pelas circunstâncias antes mencionadas, seja pelo fato de que se é dificílimo (senão impossível) mensurar o impacto na experiência singular docente, mas o próprio gesto de falar sobre ela, de significá-la e comunicá-la, parece ser um indício relevante desse impacto. Tais relatos, registrados pelos egressos na última autoavaliação do PPFEN contribuem para pensarmos sobre o caráter peculiar dos mestrados profissionais e sua importância na formação continuada de professores.

 

5. Na sua opinião, como a Anpof pode ampliar sua contribuição para o ensino da filosofia na educação básica?

 

Taís Silva Pereira: A iniciativa de aproximação entre a educação básica e a pós-graduação, especialmente com a criação e consolidação da ANPOF Ensino Médio na última década, foi um marco para a divulgação dos saberes e práticas filosóficas realizados em espaços não acadêmicos. A ANPOF EM é um evento importante e, me parece, não precisa ser confundida com a produção desenvolvida nos mestrados profissionais ou pesquisas acadêmicas na área de Ensino Filosofia. Antes, o comprometimento de se dialogar com a educação básica, passa, sobretudo, por se reconhecer professores e demais funcionários que atuam nas escolas e outros espaços formativos como parceiros reais de conversação.

Me parece que ANPOF continua realizando esta aproximação com a ampliação da comunicação de eventos voltados para temáticas que tocam a educação básica e o ensino de Filosofia. Neste sentido, acho que uma forma de contribuir para o ensino de filosofia na educação básica é também manter a periodicidade futura da ANPOF EM nos encontros bienais e investir em pontes de comunicação, não apenas diretamente com o professor, mas também com sociedades de professores de filosofia presentes em diferentes regiões do país. Julgo que parcerias desta natureza são muito proveitosas, tendo em vista os enfrentamentos diante da atual situação da educação e do ensino de Filosofia no país.

 

Antonio Edmilson Paschoal: É inegável que a ANPOF tem apoiado de forma muito solícita, especialmente ao longo das últimas décadas, as pautas relativas ao ensino de Filosofia na Educação Básica. Mais do que ações pontuais, contudo, ao certo muito importantes, coloco em relevo aqui o papel político da Associação. Faz parte desse papel, em especial neste momento crítico para a Filosofia no país, manter-se atenta às pressões que a disciplina sofre e também aos dilemas dos professores que atuam nela, tendo em vista a redução de seu campo de atuação e todas as implicações e consequências dessa redução. Isto porque, o ensino de Filosofia no Ensino Médio e os debates relativos a ele produzem um interessante enraizamento da Filosofia no solo tupiniquim, conferindo à Filosofia em geral uma interessante perspectiva de reflexão e sentido nesse ambiente.

 

6. (META)PODCAST: Filosofia e Formação

 

              Na edição de outubro, o Podcast ANPOF reuniu professores e professoras de filosofia que, além de tocarem suas pesquisas na área, vêm participando ativamente da produção de podcasts. O número de podcasts cresceu significativamente durante a pandemia de Covid-19. Uma visada breve na Comunidade ANPOF nos dá uma amostra da variedade de podcasts de filosofia existentes hoje, produções que, embora ainda pouco reconhecidas no âmbito acadêmico, dedicam-se a contribuir para a qualificação do debate público e do ensino de filosofia em diferentes níveis. Alguns, como o Hiperbólico, são anteriores à pandemia. A maior parte, no entanto, como o próprio Podcast ANPOF, emergiu no contexto do teletrabalho e do ensino remoto, sem esquecer do Falando por Você que, antes de ser podcast, foi (e continua sendo também) programa de rádio. Rádio, aliás, que há cerca de cem anos atrás se consolidava enquanto sistema de broadcast, com seus aparelhos, programas e redes de transmissão, como testemunhou Walter Benjamin em meio à ascensão de regimes totalitários para a qual o controle dos meios de comunicação de massa foi decisivo. Quase cem anos depois, em um contexto de crise educacional e comunicacional, em meio a circuitos tóxicos de fake news, negacionismo científico e retrocessos históricos no âmbito da educação e da pesquisa no país, conversamos sobre os atravessamentos entre ensino de filosofia e divulgação filosófica a partir das diferentes experiências de podcasting.

 

Participaram desta produção coletiva:

Debora Fofano (Perdidos na Paralaxe), doutoranda no PPGE-UFC e professora da rede estadual do Ceará.

Douglas Lopes (Hiperbólico), doutorando do PPGE-UFPR, pesquisador do NESEF-UFPR, professor da rede estadual do Paraná e instituição privada de ensino superior.

Felipe Pinto (Pensatório e Rádio Murucututu), professor do CEFET/RJ Maria da Graça e do PPFEN-CEFET/RJ

Janyne Sattler (Uma Filósofa por Mês), professora do PPGFIL-UFSC.

José Teixeira Neto (Falando por Você), professor da UERN e do PROF-FILO.

Maurício Cossio (Uma Filósofa por Mês), doutorando do PPGFIL-UFSC, professor da rede estadual de Santa Catarina.

Marcelo Guimarães (Pensatório e Rádio Murucututu), professor da UNIRIO e do PPFEN-CEFET/RJ.

Márcio Jarek (Hiperbólico), professor da UFRJ e pesquisador do NESEF-UFPR.

 

Ouça o (meta)podcast “Filosofia e Formação” no Castbox ou Spotify.

 

7. MANIFESTO EM DEFESA DA FILOSOFIA DO ENSINO DE FILOSOFIA COMO SUBÁREA DE PESQUISA FILOSÓFICA

 

              Tendo em vista os expressivos números de produções, orientações, pesquisas e grupos de pesquisa em/sobre ensino de filosofia na pós-graduação brasileira, convidamos a comunidade acadêmica a subscrever o Manifesto em defesa da Filosofia do Ensino de Filosofia como subárea de pesquisa filosófica, apoiando nosso pleito: o reconhecimento e a inclusão da Filosofia do Ensino de Filosofia como subárea de conhecimento da área de Filosofia dentro da árvore do conhecimento das agências de fomento à pesquisa e à formação de recursos humanos para a pesquisa no país.

              Eis o link para o referido Manifesto: https://forms.gle/v3sEnbH5feVRy5KA9

 

GT Filosofar e Ensinar a Filosofar

 


 

 

MANIFESTO EM DEFESA DA

FILOSOFIA DO ENSINO DE FILOSOFIA COMO SUBÁREA DE PESQUISA FILOSÓFICA

 

              Há vinte anos, notadamente desde o I Congresso Brasileiro de Professores de Filosofia realizado em outubro de 2000 na UNIMEP, em Piracicaba, está em curso a constituição de uma Filosofia do Ensino de Filosofia – nome, aliás, da coletânea oriunda do referido congresso. A partir deste evento que pode ser considerado o marco inaugural do campo, o debate em torno do ensino de filosofia possui uma agenda repleta, construída em torno do movimento de professoras e professores de filosofia que assumiram o ensino da filosofia como um problema filosófico de pesquisa. Tomado como objeto de investigação, o ensino de filosofia é indissociável da questão metafilosófica “o que é filosofia?”; as pesquisas sobre a temática (assim como o ofício docente) são permeadas de problemas sobre a natureza do filosofar e de seu ensino e, neste sentido, são – forçosamente – filosóficas.

              A natureza filosófica das pesquisas na área foi considerada na nomeação do Grupo de Trabalho (GT) da ANPOF que se dedica ao tema, Filosofar e Ensinar a Filosofar, fundado em 2005. Embora seja responsável por apenas uma parte das produções na área (tendo em vista o número de profissionais que hoje se dedicam à temática), o GT reúne pesquisadoras e pesquisadores que sistematicamente vêm investigando o tema em programas de pós-graduação e, por conseguinte, os números das produções oriundas do GT podem ser considerados significativos das pesquisas neste nível de ensino. Nas últimas duas décadas, o GT foi responsável pela publicação de cerca de 500 artigos, 170 livros, 540 capítulos de livros e 270 trabalhos completos publicados em anais de eventos, além de ter desenvolvido 145 projetos de pesquisa. Um aspecto importante de ser sublinhado é o fato de que as produções são assinadas por 57 pesquisadoras e pesquisadores, de Caicó, no RN, à Santa Maria, no RS, o que mostra a capilarização da temática em território nacional e a efetiva consolidação do campo da Filosofia do Ensino de Filosofia.

              O GT Filosofar e Ensinar a Filosofar promoveu, desde 2006, 14 encontros, 7 deles no âmbito dos encontros nacionais da ANPOF e os outros 7 em eventos próprios. Se em 2020 o VII Encontro Nacional do GT da ANPOF Filosofar e Ensinar a Filosofar ocorreu de forma virtual, dois anos antes – durante o XVIII Encontro Nacional da ANPOF e IV Encontro Nacional ANPOF Ensino Médio (Vitória, 2018) – a temática do ensino de filosofia esteve presente em 199 comunicações – totalizando cerca de 10% das apresentações de todo o evento. Indubitavelmente, um aspecto da relevância e inserção do ensino de filosofia na agenda filosófica nacional, também corroborado por outras substanciais publicações: contabilizam-se, desde a década de 2000, 80 coletâneas sobre o tema e 35 dossiês temáticos sobre ensino de filosofia em periódicos científicos.

              Ademais, reforçando a defesa do ensino de filosofia como objeto de pesquisa, pode-se mencionar a existência de inúmeros grupos de pesquisa sobre a temática cadastrados no CNPq, sendo 17 deles liderados por integrantes do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, os quais são vinculados às seguintes instituições: CEFET RJ, UEL, UERJ, UERN, UFABC, UFAL, UFBA, UFCG (2), UFMA, UFMG, UFPB, UFPE, UFSM, UNESP (3).

              Por fim, mas não menos importante, ressalta-se que aconsolidação da Filosofia do Ensino de Filosofia como campo de conhecimento pode também ser mensurada pelas pesquisas de pós-graduação. Até meados de 2021, era possível identificar na Plataforma Sucupira 265 dissertações defendidas em programas profissionais e que contemplam ensino de filosofia em seu escopo. Somam-se a estas pesquisas de natureza profissionalizante, 240 dissertações e 53 teses acadêmicas que versam sobre Ensino de Filosofia, defendidas em 20 instituições diferentes, de distintas regiões do país – reforçando a capilarização das discussões sobre ensino de filosofia em território nacional.

              As produções, orientações, pesquisas e grupos de pesquisa em/sobre ensino de filosofia permitem sustentar a existência de uma subárea de pesquisa filosófica, de um campo de conhecimento autônomo que, a despeito dos números supracitados e da visibilidade científico-social em praticamente todo o território nacional, não consta como subárea nas agências de fomento à pesquisa e à formação de recursos humanos para a pesquisa no país. A inserção da Filosofia do Ensino de Filosofia na árvore do conhecimento destas agências é fundamental para que pesquisadoras e pesquisadores da área tenham acesso a bolsas de pesquisa (e outros tipos de fomento) e a uma situação mais justa nas avaliações de seus projetos e demais trabalhos pelos pares – representando, igualmente, o reconhecimento de uma parte significativa de ações, produções e pesquisas que já são realizadas na pós-graduação brasileira.

              Os pesquisadores e pesquisadoras abaixo assinados manifestam-se a favor da solicitação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar de reconhecimento e inclusão da Filosofia do Ensino de Filosofia como subárea de conhecimento da área de Filosofia dentro da árvore do conhecimento das agências de fomento à pesquisa e à formação de recursos humanos para a pesquisa no país.

 

28 de novembro de 2021

 

 



[1] Favaretto em Notas sobre o Ensino de Filosofia: “Os alunos, através da passagem pelos textos, conceitos e doutrinas filosóficas, aprendem a ‘marcar o sentido de todas as palavras’, educando-os para ‘inteligibilidade’, pois ‘onde os ingênuos só veem fatos diversos, acontecimentos amontoados”, a filosofia permite discernir uma significação, uma estrutura. (...) até mesmo as crianças gostam de encontrar um encadeamento e uma conclusão nos contos. (...) Especificamente filosófico é o problema de compreender o funcionamento de uma configuração a partir de uma lei que lhe é infusa (é preciso que haja uma), conforme à ordem que se exprime nela (é preciso que haja uma) – quer se trate de compreender a possibilidade do juízo a partir de afinidade dos materiais sintáticos ou, de maneira mais desembaraçada, a sociedade feudal a partir dos moinhos de vento...” (FAVARETTO, 1993, p.79).

[2] Àqueles que desejarem saber mais sobre o tema, sugiro a leitura do artigo Escola, cárcere e pandemia o que pode uma educação filosófica? (2021) que escrevi em coautoria com o professor Dr. Walter Kohan (PROPED/UERJ) e que foi publicado no dossiê Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos, da REVEDUC/UFSCar (http://www.reveduc.ufscar.br/index.php/reveduc/article/view/4436) e a dissertação de mestrado Filosofia e ensino no cárcere: leis, conceitos, contextos e sujeitos (2019), resultado da pesquisa que realizei no PPFEN/CEFET-RJ(http://dippg.cefet-rj.br/ppfen/attachments/article/81/39-M%C3%A1rcio%20Daniel%20Nicodemos.pdf).

[3] Lara Sayão é professora de filosofia da Secretaria Estadual do Rio de Janeiro, doutora em Filosofia da Educação (NEFI-UERJ).

[4] André Pares é professor de filosofia da Secretaria Municipal de Porto Alegre, é jornalista e mestre em Ciências da Comunicação (UNISINOS).

[5] Optamos por deixar as respostas no original pelo importante caráter do diálogo com o pensamento latinoameroicano, marca das atividades das olimpíadas de filosofía em questão. A entrevista completa será publicada na Revista Estudos de Filosofia e Ensino do PPFEN/CEFET-RJ, no Dossiê Olimpíadas de Filosofia.

[6] O Prof. Antonio Edmilson Paschoal foi o 1º coordenador do PROF-FILO, entre os anos de 2016 e 2019.

[7] A prof. Taís Pereira participou da primeira equipe de coordenação do Programa de Pós-graduação em Filosofia e Ensino do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (PPFEN/CEFET-RJ), tornando-se coordenadora efetiva entre os anos de 2017 a 2020.