Um relato intempestivo

 

An ultimely report

 

Daniel Temp

Doutor pela Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil.

daniel_temp_@hotmail.com - https://orcid.org/0000-0003-0329-2195

 

Recebido em 14 de março de 2022.

Aprovado em 25 de abril de 2022.

Publicado em 30 de maio de 2022.

 

RESUMO: O presente texto é uma versão revista do relatório que apresentei ao final do estágio supervisionado em filosofia. O detalhe é que a realização do estágio remonta aos idos de 2014 — ou seja, lá se vão pelo menos sete anos, muitas coisas não são mais as mesmas, a começar pelas políticas educacionais que estruturam o Ensino Médio: julguei, pois, que seria mais apurado qualificar meu relato como um relato intempestivo. Mas apesar dessa extemporaneidade — ou justamente por causa dela — pode ser que o texto ainda conserve algum interesse para o leitor de hoje: pois embora remonte a um contexto em que as políticas educacionais do ensino médio eram outras, muito diferentes das de agora, o presente relato trata, sobretudo, de um problema ele próprio extemporâneo, a saber, as contrariedades com que se depara um professor-aprendiz ao tentar pôr em prática tudo o que planejou.

Palavras-chave: estágio curricular; ensino de filosofia; relato de experiência.

 

ABSTRACT: The present text represents the revised version of the report that I presented at the end of the supervised practice in philosophy. The detail is that the completion of the supervised practice dates back to 2014 — that is, at least seven years have passed, many things have changed, starting with the organization of High School: I thought, therefore, that it would be more accurate to qualify my report as an untimely report. But despite this extemporaneousness — or precisely because of it — it may be that the text still retains an interest for today's reader: for the text deals, first of all, with a problem that is itself extemporaneous, notably, the setbacks with which is confronted a trainee-teachertrying to put into practice everything he has planned.

Keywords: supervised practice; philosophy teaching; experience report.

 

Introdução

          Dentre os adeptos do estoicismo, costumava-se descrever a situação dos homens no mundo através de uma metáfora curiosa[1], mas bastante eloquente: de acordo com os estoicos, a situação do homem semelha à situação de um cão amarrado a uma carroça. A corda que prende o cão à carroça é comprida o suficiente a ponto de permitir que ele possa andar para cá e para lá, porém o que guia a sua direção, no fim das contas, é o rumo da carroça, e mesmo podendo movimentar-se um pouco, o cão se vê obrigado a segui-la — do contrário acaba arrastado. Para os estoicos, o homem tem certa liberdade de decisão frente ao mundo, porém os acontecimentos em geral estão fora de seu poder e, ao fim, são justamente eles que determinam a direção que toma a sua vida. Evidentemente, a metáfora almeja passar adiante um conselho de natureza moral: uma vez que não é possível escapar-lhe às mãos, o melhor é reconhecer o Destino como necessário. Pois, revoltando-se, o homem seria como o cão que tenta não seguir a carroça, ou que quer permanecer imóvel quando esta anda, ou andar quando ela está parada, e dessa forma acaba arrastado por ela. Mais do que uma apologia à resignação, a imagem empregada pelos estoicos coloca em evidência os dois polos em redor dos quais a vida humana perpetuamente oscila: de um lado, a vontade, as aspirações e os desejos que os homens alimentam, e, de outro, os limites, os fatos, a força implacável dos acontecimentos do mundo.

          Neste pequeno ensaio busco expor alguns pensamentos a respeito desses dois elementos, colocando-os no contexto de minha experiência como docente estagiário durante as atividades da disciplina do estágio curricular supervisionado, no ano de 2014. Paralelamente a essas reflexões, a tão cara distinção entre teoria e prática, incansavelmente discutida ao longo de minha formação docente, aparecerá também sob a forma do problema estoico citado. Sendo assim, a problemática geral exposta nas páginas que se seguem diz respeito à possibilidade de conciliar nossos desejos, propósitos ou mesmo teorias, com o mundo dos fatos e seus limites, ou seja, a prática. Ao expor e discutir esses problemas, pretendo apresentar de forma geral o desenvolvimento de minhas atividades como docente estagiário da disciplina de filosofia, bem como a forma com que enfrentei o problema de concatenar o aparato teórico de que dispunha à realidade com que me deparei.

          Por apresentar uma experiência de formação relatável, preferencialmente, em primeira pessoa, o texto assume a forma de um ensaio. Assim, de forma mais livre, as informações e ideias vão aparecendo conforme o texto avança, sem uma preocupação metodológica e formal mais severa que, creio, acabaria por suprimir uma parte significativa da experiência pessoal que o estágio representou. De resto, uma pequena, mas importante observação se faz pertinente: as políticas educacionais da época a que remonta este relato não são as mesmas de hoje: muita coisa mudou no que diz respeito às legislações que estruturam a organização do ensino médio. Por isso, ao longo do texto inseri uma série de notas explicativas no intuito de situar melhor o leitor acerca do contexto em que me encontrava no que tange às políticas educacionais do ensino médio do ano de 2014.

          O texto está dividido em três partes: a primeira dedicada aos conteúdos, a segunda à metodologia e a terceira à avaliação. A divisão tem aspecto teórico, visando uma melhor organização interna do texto, bem como uma exposição com enfoque mais explícito no tema em questão. No entanto, no decorrer do texto busco relacionar as três partes evitando limitá-las a blocos teóricos independentes e separados. Ao final, as três partes falam de uma mesma coisa, a saber, a experiência do estágio curricular supervisionado (e por experiência entendo também a preparação teórica anterior ao início das atividades práticas) e o seu papel na minha formação docente.

 

Primeira parte

          A escolha da turma e da série com a qual eu viria a desenvolver as atividades do estágio esteve relacionada diretamente com os conteúdos a serem desenvolvidos. A escola, conforme me informou a professora titular, seguia o conteúdo programático do vestibular e do Enem, de forma que os planos de ensino relativos a cada série eram elaborados com vistas a essas provas. À parte os contratempos a respeito da realização ou não da prova do vestibular, que na época ainda não tinham vindo à tona[2], os conteúdos pelos quais eu nutria maior interesse eram trabalhados, normalmente, com o segundo ano do ensino médio, correspondentes à ética e filosofia da arte. Manifestei interesse pela turma do segundo ano e, ao saber que esta consistia em um grupo de oito alunos (que vieram a ser seis após a transferência de dois alunos no início do trimestre), quis ainda mais tê-la como turma de estágio. Ao contrário do que sugeriram alguns colegas, o fato de ser um grupo pequeno não diminuiu o desafio, afinal a turma mesma foi a prova de que mesmo poucas pessoas podem vir a estabelecer alguns entraves disciplinares. De qualquer forma, o fato de a turma ser menor que as turmas do ensino médio de escola pública geralmente são, não se segue que seja mais fácil de lidar com ela do que com qualquer outra. Ao contrário, parece-me que a responsabilidade do professor aumenta, afinal ele tem maior possibilidade de acompanhar o desenvolvimento dos alunos de perto. E era essa possibilidade que me interessava. Desenvolver conteúdos como ética, respondendo questões que envolvem diretamente uma tomada de posição, e filosofia da arte, avaliando a possibilidade de julgar as preferências estéticas de alguém, pareceram-me perfeitamente convenientes para uma experiência docente onde se busca fazer com que o aluno se envolva de modo mais direto com o conteúdo. Sendo assim, uma turma menor deixava em aberto a possibilidade da análise do envolvimento e desempenho de cada aluno frente a esses temas.

          Tendo entrado em acordo com a professora e os outros colegas estagiários sobre qual turma cada um iria assumir, foi-me incumbida a tarefa de elaborar um novo plano de ensino para minha turma, o segundo ano. Nos conteúdos do plano de ensino contemplei as recomendações do conteúdo programático do vestibular[3], pressupondo o conhecimento dos conteúdos do primeiro ano, perpassando noções básicas de filosofia prática, a ética aristotélica, utilitarista e deontológica, noções básicas de filosofia da arte, a filosofia de Platão, a estética e o juízo de gosto, etc. A esses conteúdos adicionei aqui e ali alguns tópicos que julguei relevantes, como uma aula sobre a crítica às éticas racionalistas tradicionais e outra sobre Tolstói e suas concepções artísticas.

          A respeito dos conteúdos gostaria de destacar principalmente dois pontos. O primeiro diz respeito ao modo como foi elaborado o plano de ensino. Na época, as disciplinas estavam classificadas em áreas[4], sendo que a filosofia pertencia à área das ciências humanas. Ao lado dela estavam as disciplinas de geografia, sociologia e história. No contexto da reestruturação do ensino médio no Rio Grande do Sul, a proposta da organização do currículo em áreas compostas por componentes curriculares visava uma maior interação entre estes últimos, com o objetivo de superar a suposta fragmentação do currículo por meio da interdisciplinaridade. Durante a elaboração do plano de ensino, em nenhum momento consultei nem fui aconselhado a consultar os professores de outras áreas, de forma que se a exigência da interdisciplinaridade como elemento presente nas aulas for uma aspiração da escola, ao que tudo indica ela está mais relacionada à metodologia de ensino do que aos conteúdos de cada componente curricular. É o que parece acontecer na maioria das escolas, onde cada disciplina continua com seus conteúdos fixos e particulares, e a suposta interdisciplinaridade consiste em uma ou outra atividade paralela em que os conteúdos de duas disciplinas coincidam ou se aproximem. Ou então, como ocorreu na minha experiência, os espaços reservados ao seminário integrado[5] é que, por vezes, cumpriam essa função, assim como a prova integrada da área, como se verá mais adiante.

          O segundo ponto a destacar diz respeito aos conteúdos de filosofia e à relação que os alunos mantiveram com eles. Como disse antes, ética e filosofia da arte são conteúdos que particularmente me agradam dentro da filosofia, mas para além do gosto, parecem-me os conteúdos que mais perto estão dos assuntos cotidianos não só dos alunos, mas das pessoas em geral. São assuntos que envolvem um posicionamento e uma defesa a nível mais pessoal, mesmo que reclamem uma justificação sob a forma de razões. Do mesmo modo, são conteúdos de mais fácil acesso, mais palpáveis, por assim dizer, afinal as pessoas ao longo de suas vidas costumam enfrentar diversos dilemas morais, bem como a enunciar diversos julgamentos de gosto estético, mesmo que muitas vezes não o façam conscientemente. Ao eleger temas clássicos de ética e estética como conteúdos, eu pensava que com algum esforço metodológico conseguiria fazer com que os alunos apresentassem um grande interesse pelo tema. A carroça, neste instante, puxou-me para o lado oposto. Sem contar algumas considerações esporádicas e algum interesse bastante particular (a implicância com os exemplos, por exemplo), em nenhum momento vi os alunos tratando os conteúdos diferentemente de algum objeto de estudo qualquer, como se a questão “como devo viver?” não despertasse maior interesse do que uma exposição química acerca da composição de um átomo. Algumas das questões expostas, de fato, configuram-se em teorias complexas que se apresentam fastidiosas até para quem já nutre algum gosto pela atividade filosófica. Nesse sentido, estranho seria que os alunos em geral se empolgassem com, por exemplo, as teorias ética e estética de Kant, como se ela representasse para eles a possibilidade de esclarecimento a respeito de como um agente dotado de capacidade racional se comporta em face de alguma vicissitude qualquer. O ponto que se destaca, no entanto, diz respeito à maneira como os alunos encaram um problema filosófico. Creio que o entendimento de um problema ético, por exemplo, passa pelo reconhecimento do problema como algo inerente a própria vida, e a relação com quem o estuda não é a de mero objeto de estudo, mas a de uma investigação que implica a revisão das crenças mais básicas de cada indivíduo. Sendo assim, ao manterem certa distância e encararem os conteúdos filosóficos como alguém frente a um prato que lhe desagrada, mas que se vê obrigado a engolir, pergunto-me até que ponto se deu um aprendizado filosófico relevante, e não apenas uma troca de informações e opiniões.

          Assim como o cão, na metáfora dos estoicos, não pode ir além da corda que o prende a carroça, não faz sentido exigir dos alunos algo além de seu alcance. Dessa forma, os limites do interesse e das capacidades dos alunos determinam quais serão os limites de atuação do professor. Não é possível exigir de um aluno um interesse mais pessoal pela disciplina, e mesmo que o fosse, parece-me que o interesse e o envolvimento subjetivo de cada um é algo inescrutável. Em contrapartida, pode-se ver claramente quais alunos dedicam mais atenção (o que muitas vezes não coincide com estar interessado), quais se esforçam e participam da aula, assim como quais deles conseguem dar uma resposta de acordo com aquilo que foi exigido (a nível objetivo, em um trabalho, por exemplo). Aqui já começam a aparecer elementos avaliativos, que desenvolverei mais na terceira parte. O que resta reconhecer é que o encantamento pelos conteúdos de filosofia não é algo presente nos alunos em geral, e essa foi uma das limitações com a qual mais dificilmente me resignei. Mas por fim, cedi. É possível ainda fazer e ensinar filosofia de forma mais objetiva, desenvolvendo habilidades inerentes à disciplina, por exemplo. Começo a pensar, inclusive, que minha exigência de que os alunos gostassem dos conteúdos é que era descabida, tal qual a exigência do cão que quer ir para onde a carroça não vai. O contato com os alunos, creio, possibilitou o reconhecimento de que se pode aprender filosofia ou fazer alguns raciocínios filosóficos mesmo sem gostar de filosofia. Não gostar dela e tentar dizer o porquê pode já ser um exercício filosófico, como de forma muito sagaz apontou-me um colega. Gostando ou não, a filosofia ressurge, e parece difícil fugir a ela. Assim como o cão, ao reconhecer que estará melhor se seguir a carroça, ao invés de contrariar seu movimento, reconhecer como necessárias coisas aos quais é difícil escapar tornam melhor o convívio com elas. Nesse reconhecimento, quem sabe não seja possível uma espécie de aprendizado tácito, o aprender a gostar. Tive de reconhecer que a maioria dos alunos era indiferente à filosofia, inclusive aos tópicos geralmente mais interessantes. Fazer com que eles reconhecessem a importância e a necessidade da filosofia, quem sabe não poderia fazer com que desenvolvessem alguma relação mais próxima a ela. Essa é uma tarefa que se encontra no campo de atuação de um docente. Para realizá-la, no entanto, os conteúdos neles mesmos não bastam, afinal pressupõe-se já uma distância entre os alunos e os conteúdos, ou ao menos o não necessário reconhecimento da filosofia como algo relevante. A forma como se apresentam os conteúdos nas aulas parece o meio de transpor essa distância. Aqui entra, então, a metodologia do ensino.

 

Segunda parte

          Em meu projeto de estágio, no item “Metodologia”, descrevi como sendo de minha preferência a metodologia dos quatro momentos didáticos, exposta no livro “Metodologia do ensino de filosofia”, do professor Sílvio Gallo (2012). De forma geral ela tem por pressuposto que a aprendizagem se dá pela compreensão de problemas filosóficos, e essa compreensão se dá através do contato com signos. Daí então se seguem os quatro momentos: a sensibilização, onde se busca fazer com que o aluno seja afetado pelo tema; a problematização, onde o tema assume a forma de um problema filosófico; a investigação, momento em que se busca soluções para o problema em questão (geralmente na história da filosofia); e a conceituação, momento final onde o aluno vai produzir uma síntese do que foi visto, chegando ele mesmo a ressignificar o conceito inicial, produzindo um novo conceito.

          Essa metodologia parece cumprir muito bem a função de ponte entre o conteúdo e o aluno, aproximando-o gradativamente dos problemas filosóficos, e por fim, envolvendo-o de todo no tema em questão. Esse é, no entanto, o objetivo ideal a ser atingido pelo método. O próprio autor ressalta a importância de não tomar a metodologia como uma receita pronta, prevenindo contra uma utilização repetida e sem consideração para com o contexto escolar. Nesse sentido, a metodologia dos quatro momentos serviu-me como uma orientação geral quanto à forma de apresentar os conteúdos para os alunos. Procurando evitar a repetição e a transformação do método em receita, em vez de utilizá-lo em cada aula, busquei antes organizar cada unidade didática conforme os passos descritos no método, fazendo uso da metodologia apenas em algumas aulas específicas (e nesses casos, utilizei-me do método regressivo[6], que se assemelha aos quatro momentos, porém sem a sensibilização). Deste modo, a primeira aula de cada unidade didática ficou dedicada exclusivamente para a sensibilização (a unidade de filosofia da arte, por exemplo, teve em suas primeiras aulas um documentário).

          Nas aulas seguintes, aulas expositivas com apresentação geral do problema e a configuração que ele toma em cada autor ou época, seguida da investigação das soluções apresentadas. Esses dois momentos, problematização e investigação, da forma como os inseri dentro da unidade didática, acabaram por não ter caráter sucessivo, mas sim simultâneo. Por ocuparem maior número de aulas dentro da unidade e pelo caráter majoritariamente expositivo das aulas correspondentes a esses momentos, vez ou outra utilizei o método regressivo para essas aulas. O momento da conceituação, aos quais foram reservadas as últimas aulas de cada unidade, foi onde houve maior mudança em relação à concepção original do professor Sílvio Gallo. No contexto de minha turma de estágio (e acredito que em qualquer outra turma), o momento de conceituação, entendido como uma compreensão do conceito do autor dentro de seu pensamento,desde logo aparece como um critério suficiente para julgar se o objetivo geral da aula foi atingido, haja vista as limitações apontadas nas páginas precedentes. Pretender que o aluno produza um conceito, creio, é uma exigência que em minha experiência não faz muito sentido. Em primeiro lugar porque não sei nem se concordo com a definição de filosofia como “arte de criar conceitos”, de Deleuze, a qual influenciou a concepção de metodologia do professor Sílvio Gallo. Um segundo motivo diz respeito ao fato de que, mesmo assumindo que a filosofia seja uma criação de conceitos, a exigência de criar conceitos após aulas de filosofia do ensino médio mostra-se uma tarefa descabida, ainda mais se for levado em conta que nem filósofos clássicos criaram mais do que meia dúzia de conceitos durante a história da filosofia.

          Na sua caracterização de conceituação, no entanto, o próprio Sílvio Gallo deixa espaço para um entendimento menos rigoroso de produção de conceitos. Assim, o momento da conceituação seria um momento em que o aluno compreende o conceito sob uma óptica própria, não necessariamente criando um conceito novo e nunca antes visto. A expressão “criar conceito”, dessa forma, abriga uma dimensão significativa mais ampla, tendo em vista que o resultado do processo de assimilação do conceito por parte do aluno, isto é, sua ressignificação a partir de seu contexto, é também entendida como criação de um conceito. Particularmente, a expressão “compreensão” ou “ressignificação” de um conceito me agrada mais do que “conceituação”, sendo que na organização das unidades didáticas, bem como nas aulas em geral, tive em mente as primeiras expressões.

          À parte essas considerações específicas, a metodologia dos quatro momentos didáticos mostrou-se útil não somente no planejamento e organização das aulas, mas também como elo entre o conteúdo e os alunos. A forma como os conteúdos são apresentados, seguindo a sequência dos momentos, parece dar mais sentido ao que se expõe. Assim, o método como ponte entre os conteúdos e os alunos confere uma aproximação entre ambos, de forma não só a facilitar a transposição da distância que tradicionalmente se tem entre eles, mas também a aumentar a possibilidade do envolvimento dos alunos com a atividade filosófica.

          Nesse sentido, ao longo do estágio a utilização desse método na organização das unidades didáticas mostrou-se uma tática das mais eficazes para o desenvolvimento do conteúdo, dando consistência ao seguimento das aulas dentro da unidade, facilitando, deste modo, o entendimento do conjunto das aulas como um todo. Quanto à aproximação entre os conteúdos e os alunos, confesso não ter certeza até que ponto se possa imputar à metodologia a responsabilidade por seu envolvimento ou não. Embora o método didático seja o elemento proposto para que se dê essa aproximação, em nenhum momento os alunos envolveram-se de forma mais intensa com o conteúdo, assumindo-o como um problema próprio e não somente o objeto de estudo de uma disciplina obrigatória para eles. Porém, não creio que disso se deva concluir que nesse aspecto a metodologia não teve eficácia, apenas penso que não se pode mensurar até que ponto ela funcionou. E do fato de não se poder mensurar até que ponto ela funcionou, não se segue que ela em absoluto não tenha funcionado. Pelo contrário, penso que algumas experiências possam mesmo ser reveladoras no que diz respeito aos indícios de sua eficácia. Por exemplo, a nítida diferença da relação dos alunos com os conteúdos na unidade de filosofia da arte. Nessa unidade, o momento de sensibilização foi um documentário chamado “Why Beauty Matters – Porque a beleza importa”, produzido pela BBC. A primeira metade da unidade, bem como a problemática geral nela proposta são ilustradas no documentário. Nas aulas seguintes os alunos mostraram mais envolvimento em comparação com a unidade precedente, de ética, na qual a sensibilização se deu com um texto de Sêneca e um poema de Vicente de Carvalho. Creio que o aumento do interesse geral dos alunos, mesmo que pouco, deu-se devido à melhor organização metodológica que, por sua vez, só foi possível graças a minha primeira experiência nem tão bem sucedida. A metodologia, dessa forma, apresenta-se como um elemento a se construir na atividade didática, dentro do contexto escolar. Um possível método fixo e pronto que apenas se “aplica” nos alunos mostra-se inútil, e mesmo metodologias mais abertas a modificações, como a dos quatro momentos, apresentam resultados mais positivos com o decorrer do tempo, conforme o professor a adapta a realidade em que está.

          Por fim, a experiência como meio de aperfeiçoamento da metodologia, conforme citei no caso do estágio, ilustra um caso mais geral que diz respeito à relação entre teoria e prática. A metodologia apresenta duas faces, a teórica e a prática. Enquanto teoria cabe a cada docente conhecê-la e estudá-la, e ela apresenta-se a mesma para todos. Porém, quando colocada em prática, o professor enfrenta uma situação singular na qual deve como que encaixar a metodologia. Isso não quer dizer que se deva modificá-la a ponto de ela perder suas características enquanto metodologia x e não y. Encaixar a teoria à prática significa, antes de tudo, colocar em formas reais aquilo que foi concebido teoricamente. Querendo ou não, a realidade trata de impor uma série de limitações, e esses limites práticos são o horizonte onde o docente adapta sua atividade da melhor forma possível. A analogia estoica aparece novamente como uma boa imagem do que quero dizer. Não se trata, no entanto, de se resignar e se deixar levar pelos limites impostos de fora. Trata-se de conjugar da melhor forma possível a teoria com a prática, e essa tarefa exige alguma resistência de quem se propõe a realizá-la. Resistência no sentido de não se deixar determinar de todo pelos limites, mas de permanecer sempre à procura de uma brecha a fim deprocurar expandi-los, não como o cão que bruscamente vai contra o movimento da carroça e no fim acaba por ser levado por ela, mas tentando aos poucos conseguir mais e mais corda, liberando devagar os movimentos, a ponto de cada vez mais se poder ir para o lado que se quer. Decerto que, para isso, é necessário antes que se aprenda o caminho onde se está, é necessário que se reconheça a situação em que se encontra. Só a partir daí é que se começa a atingir um equilíbrio entre os dois polos, entre teoria e prática, entre o que aspiramos e o que nos limita. A expectativa é que em algum instante desse processo os dois lados venham a se confundir: como se quer que as coisas sejam e como elas de fato o são. Se esse instante é possível ou apenas mais um ideal já é outro assunto. O fato é que, ainda que o consideremos apenas um ideal, trata-se de um ideal que nos dá um horizonte de ação mais realista e menos conformado que qualquer outra concepção. Pensar a atividade docente como uma resistência entre uma resignação pessimista e utopias que acabam mais por atrapalhar do que ajudar no avanço da atividade me parece o melhor meio para atingir os objetivos que se coloca para o ensino de filosofia no ensino médio.

 

Terceira parte

          É amplamente discutida a forma tradicional de avaliação, que consiste em uma prova onde se mede o conhecimento do aluno, baseada na concepção de que o ensino é pura transmissão. Esse pensamento, embora sempre retorne, há tempos é considerado arcaico por não dar conta do processo de construção de aprendizagem do aluno. Em uma disciplina como a filosofia, onde existem pelo menos duas habilidades principais, a saber, o conhecimento da história da filosofia e a atividade de filosofar, a avaliação concebida do modo citado não consegue dar um retorno satisfatório ao aluno, oferecendo apenas um atestado de que ele deu a resposta certa à determinada pergunta (a palavra “estímulo” aqui não seria exagerada, afinal a avaliação tradicional assemelha-se bastante aos famosos testes dos psicólogos behavioristas, onde se avaliava a resposta dada em função de um estímulo fornecido).

          Todavia avaliar é necessário. O desafio é não reduzir a avaliação aos mecanismos já descritos. A tarefa não parece ser das mais fáceis, afinal como apontado na primeira parte, a resposta que se tem por parte dos alunos se dá sempre a nível objetivo, com isso querendo dizer que o que se avalia, em última instância, é de fato a resposta do aluno ao estímulo dado pelo professor. No entanto, caso a avaliação se limite a isso, a exemplo dos behavioristas que queriam expulsar qualquer consideração sobre estados mentais subjetivos da psicologia, a própria avaliação acabará por desconsiderar o envolvimento efetivo do aluno com a disciplina, e, no fim das contas, impossibilitará uma análise mais completa da aprendizagem efetiva ao longo das aulas. O modo de avaliar que se procura, dessa forma, parece estar entre a consideração de elementos difíceis (se não praticamente impossíveis) de mensurar, como o envolvimento e a relação subjetiva do aluno com a disciplina, e as respostas mais visíveis que ele apresenta, seja na forma de comportamento ou de qualquer outro meio.

          Acrescente-se a essas considerações as mudanças ocorridas na estruturação do ensino médio, mencionadas mais atrás, onde as notas são convertidas em conceitos e passa a existir uma avaliação integrada, na forma do que na escola se chama de “prova de área”[7]. A proposta parece se adequar ao tipo de avaliação procurada, e uma das maneiras pelas quais se avalia é por meio de um “diagnóstico”. A avaliação, desse modo, é pensada sobretudo como investigação levada adiante por parte do professor: cabe a ele analisar o aprendizado do aluno como um processo, levando em conta elementos que escapam à avaliação tradicional. Esse diagnóstico é feito com base no acompanhamento dos alunos, na sua evolução (ou não-evolução) durante as aulas, enfim, na própria atividade de construção de conhecimento, e não apenas no seu resultado.

          No que diz respeito à minha experiência concreta do estágio, a avaliação consistiu em três tópicos, aos quais, em cada um, o aluno recebia um respectivo conceito. Foram eles: a nota de um trabalho ou prova realizado em sala de aula, a nota da avaliação integrada e um diagnóstico geral de desempenho. O trabalho teve como objetivo verificar as habilidades de leitura, escrita e interpretação filosófica dos alunos, sendo de cunho dissertativo. Na avaliação integrada, por ser uma prova interdisciplinar (ao menos em teoria), e também por ser uma prova maior por conter questões de todas as áreas, as questões elaboradas foram de cunho objetivo. Para essa prova, os professores das áreas se reuniram e foi escolhido um texto em comum para que cada professor elaborasse questões concernentes à sua disciplina específica. Por fim, o dito “diagnóstico” teve como intuito o acompanhamento geral do progresso dos alunos por via da observação. Nas primeiras aulas tentei utilizar um caderno, anotando as considerações relevantes e as respostas que os alunos davam a perguntas feitas, porém percebi que vez por outra a discussão se prolongava e eu acabava por me esquecer de fazer as anotações. Decidi então confiar em minha memória, e nas anotações que fazia na maior parte das vezes imediatamente após a aula. Pelo fato de a turma ser pequena, creio que pude observar de maneira justa o modo como cada aluno desenvolveu uma suposta aprendizagem ao longo do ano. Levados em consideração os conceitos obtidos nos três itens, tinha-se um conceito final da disciplina que era então levado para a reunião da área, da qual cada aluno saía com um conceito geral das ciências humanas. 

          Esse modo de avaliar foi o que me pareceu se aproximar mais do modo ideal, relevando aspectos variados do percurso que o aluno faz no decorrer das aulas, e não apenas a apreensão de determinado conteúdo ou não. Com ele, o aluno tem uma noção mais significativa do processo total de aprendizagem, podendo saber se seu desenvolvimento foi restrito (CRA – Construção Restrita de Aprendizagem), parcial (CPA) ou satisfatório (CSA). No entanto, o tema da avaliação, principalmente após a implantação do ensino médio politécnico, é ainda bastante controverso. Muitos professores utilizavam um sistema de notas, posteriormente apenas as traduzindo em conceitos. Também as discussões nas reuniões das áreas nem sempre acabam em consenso. Seja como for, essa me parece uma proposta interessante para superar o antigo modo de avaliar.O desafio, creio, é o mesmo que foi enfrentado quando falei dos conteúdos e da metodologia, a saber, adequar a proposta teórica à realidade a fim de que se tenha uma avaliação que dê conta do processo de aprendizagem do aluno de forma justa.

 

Considerações finais

          O presente texto que ora assumiu a forma de um ensaio, ora de um relato de experiência, buscou expor de forma geral algumas vivências e problemas surgidos durante a realização do estágio curricular supervisionado. Por ser um trabalho teórico, foram selecionados três principais temas sobre os quais fiz uma breve exposição: os conteúdos, a metodologia e a avaliação. Como bem se pôde notar, as três partes são atravessadas por assuntos variados, e a problemática geral da relação entre teoria e práxis fica implícita em todo o texto. É evidente que esses três temas não esgotam o que foi a experiência do estágio. Poderia falar ainda do trabalho da professora supervisora, da utilização do livro didático, etc. Porém, creio que a partir dos três pontos que selecionei seja possível delinear uma imagem geral do que foi a experiência docente. Conforme dito na permanente referência à conjunção de teoria e prática, assim como existem partes da teoria que podem revelar-se impraticáveis por estarem fora dos limites impostos pela realidade da experiência, também existem experiências que uma descrição teórica não suporta, e muito provavelmente no sentido wittgensteiniano da expressão, não se possa falar sobre elas. Desse tipo de experiência subjetiva e singular deixo aqui apenas o testemunho de que foram de grande importância para minha formação como docente.

          Por fim, devo dizer que o estágio me proporcionou a experiência necessária para o enfrentamento de questões que vem a lume apenas quando todo o aparato teórico é levado à prática. Sua contribuição para minha formação e compreensão da atividade docente, portanto, é de grande valor. Além do mais, aprender que ensinar não é uma ação cabal, e que a docência é uma atividade permanente, e não um feito estático, foi um indício mais de que as estratégias e tentativas pensadas para se conciliar da melhor maneira as teorias do aprendizado e a prática docente, ao fim, são construídas e efetivadas dentro da sala de aula. Quer dizer, o ensino semelha uma espécie de construção justamente na medida em que depende na conjunção permanente de teoria e prática, na atividade e na relação do professor e dos alunos, podendo assumir, portanto, tantas faces quantos sejam os diferentes contextos escolares, os professores e os alunos. Se há limitações inerentes ao processo de ensino, são elas mesmas que fazem com que seja possível alguma mudança. Aqui, creio, existem duas atitudes a se tomar: ou fecha-se os olhos e investe-se cegamente contra essas limitações, muito provavelmente com o destino infeliz do cão da metáfora estoica, ou então se reconhece que são os próprios limites que determinam um possível campo de atuação, fazendo com que seja possível, a partir de dentro deles mesmos, de dentro das salas de aulas, aspirar horizontes um pouco maiores. Dentre os aprendizados que tive no estágio, um deles foi o de preferir a segunda alternativa.                

 

Referências

AZEVEDO, José Clóvis de; REIS, Jonas Tarcísio (Org.). Reestruturação do ensino médio: pressupostos teóricos e desafios da prática. São Paulo: Fundação Santillana, 2013.

 

BOBZIEN, Susanne. Determinism and freedom in Stoic Philosophy. Oxford University Press, 1999.

 

CERLETTI, Alejandro. O ensino de filosofia como problema filosófico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

 

GALLO, Silvio. Metodologia do ensino de filosofia: uma didática para o ensino médio. São Paulo: Editora Papirus, 2012.

 

KOHAN, Walter. Filosofia: o paradoxo de aprender e ensinar. Belo Horizonte: Autêntica Editora. 2009.

 

RIO GRANDE DO SUL. Secretaria Estadual da Educação. Proposta Pedagógica para o Ensino Médio Politécnico e Educação Profissional Integrada ao Ensino Médio, 2011 -2014. Out/Nov, 2011.

 

Notas



[1] Por considerá-la sobretudo como um recurso estilístico, no relatório original não adicionei nenhuma referência a respeito dessa metáfora. Confesso que hoje, passados esses anos, não recordo exatamente de onde afinal tireia metáfora do cão e da carroça. Ao que parece, uma metáfora semelhante ocorre apenas de passagem algures na obra de Epiteto e de Zenão, porém não consegui encontrar a exata referência. Certo, no entanto, é que a metáfora remonta ao filósofo cristão Hipólito de Roma, mais precisamente à sua Refutação de todas as heresias. Para maiores detalhes historiográficos, ver BOBZIEN, 1999.

 

[2] Era comum que as escolas organizassem o Plano de Ensino conforme o conteúdo programático do vestibular, no caso da escola onde estagiei, o vestibular da Universidade Federal de Santa Maria. Em 2014, porém, a UFSM anunciou que aboliria o vestibular e passaria a aderir integralmente ao Exame Nacional do Ensino Médio como forma de acesso ao ensino superior.

 

[3] Conforme dito na nota acima, exatamente no ano de meu estágio, em 2014, a UFSM aderiu ao Exame Nacional do Ensino Médio como forma de acesso ao ensino superior. O processo seletivo do vestibular, no entanto, não foi abolido de imediato, e, por isso, o conteúdo programático do vestibular permaneceu durante algum tempo como a referência para a elaboração dos planos de ensino em algumas escolas.

 

[4] Cabe notar que, na época em que realizei o estágio (2014), a proposta de reestruturação do Ensino Médio que foi apresentada pela Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul ainda no ano de 2011 estava em fase final de implementação. A proposta se baseava na ideia de um ensino médio politécnico, e distinguia grandes áreas do conhecimento (ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e suas tecnologias, linguagens e suas tecnologias e matemática e suas tecnologias), cujo princípio unificador deveria ser o princípio da interdisciplinaridade. Além disso, a proposta alterava a forma de avaliação (discuto isso na terceira parte do texto), e instituía um seminário integrado (cf. nota abaixo) no propósito de consolidar a inserção de temáticas transversais no interior das diferentes áreas do conhecimento. Convém notar que todas essas mudanças instituídas na época foram posteriormente abolidas/alteradas por novas reformas, como a proposta de Reforma do Ensino Médio de 2021.

 

[5] De acordo com a proposta da época, “os seminários integrados se constituirão em momentos de interação e integração das diferentes áreas do conhecimento e a materialização da articulação com as dimensões Cultura, Trabalho, Ciência e Tecnologia” (SEDUC-RS, 2011, p. 27). Na prática, o seminário integrado era uma espécie de disciplina conjunta que ocupava, como qualquer outra, parte do currículo, e onde os professores de disciplinas de uma mesma área planejavam e desenvolviam atividades em conjunto. Atualmente, com as novas legislações que regulamentam o ensino médio, o seminário integrado não existe mais.

 

[6] Contrariamente ao procedimento usual, no método regressivo parte-se inicialmente de um conceito para ao fim se chegar a uma problematização ou problema. Ou seja, a partir de determinado texto, procura-se entender o conceito nele implícito para em seguida investigar o problema que ou conjunto de problemas que levaram o filósofo a cunhar o tal conceito.

 

[7] No contexto da proposta de reestruturação da época, a avaliação era como concebida como “avaliação emancipatória” (SEDUC-RS, 2011, p. 19-20). Em vez de receberem notas como resposta ao suposto aprendizado que demonstravam em provas, os alunos eram avaliados segundo conceitos (no corpo do texto discuto isso em detalhe), além de existirem provas integradas (elaboradas em conjunto pelos professores de disciplinas pertencentes a uma mesma área do conhecimento).

 

 

 This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)