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O uso de memes no ensino de filosofia no ensino superior: um relato de experiência e uma reflexão sobre o processo de ensino aprendizagem

 

The use of memes in the teaching of philosophy in higher education: an experience report and a reflection on the teaching-learning process

 

Felipe Gustavo Soares da Silva 

Professor doutor da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda, Olinda, PE, Brasil.

felipegustavopx@hotmail.com - https://orcid.org/0000-0002-8497-6101  

 

Recebido em 01 de março de 2022

Aprovado em 24 de julho de 2022

Publicado em 24 de agosto de 2022

 

RESUMO: O presente trabalho trata de relatar uma experiência positiva no ensino superior na disciplina Estudos dos saberes Filosóficos a partir do uso de memes como ferramenta útil e como metodologia ativa em sala de aula e, de modo especial, para a avaliação da aprendizagem. Faremos aqui uma análise do surgimento e evolução do termo meme, sua caracterização como gênero textual e, por fim, descrevemos a nossa prática em sala de aula destacando importantes aspectos observados. O uso dos memes em sala de aula representou uma importante experiência pedagógica e contribuiu para o atingimento dos objetivos planejados na disciplina e para o devido engajamento dos alunos nas atividades propostas.

Palavras-chave: Memes; Experiência filosófica; Ensino de filosofia; Aula remota.

 

ABSTRACT: The present work aims to demonstrate a positive experience in higher education in the discipline Studies of Philosophical Knowledge from the use of memes as a useful tool and as na active methodology in the classroom and, in a special way, for the assessment of learning. Here, we Will analyze the emergence and evolution of the term meme, its characterization as a textual genre and, finally, we will describe our practice in the classroom, high lighting important aspects observed. The use of memes in the classroom represented na important positive practice and contributed to the achievement of the planned objectives in the discipline and to the students' due engagement in the proposed activities.

Keywords: Memes; Philosophical experience; Teaching philosophy; Remote class.

 

Introdução

O presente trabalho trata de relatar e refletir sobre uma experiência realizada no ensino de Filosofia no ensino Superior na Faculdade de Ciências Humanas de Olinda – FACHO - na disciplina Estudos dos saberes filosóficos, ofertada no semestre 2021.2 aos cursos de Psicologia, Pedagogia e Letras da referida instituição. A disciplina está alocada no segundo período dos referidos cursos, ainda que não haja pré-requisito para cursá-la. Cumpre dizer que a estratégia foi realizada em meio à pandemia num cenário de aulas remotas via plataforma Google Meet com cerca de 50 alunos.[1]

Considerando que as redes sociais nos dias de hoje representam um forte veículo de comunicação e interação social, a Filosofia, enquanto inserida na realidade social, e sobretudo, estando atenta às mudanças tecnológicas e ao que elas provocam, pode, portanto, contribuir, pelo seu aspecto crítico, para transformação da sociedade, tornando os sujeitos mais conscientes de sua realidade, emancipados. Por isso, a Filosofia não é nem pode ser alheia às mudanças e a maneira como as coisas acontecem nos diversos ambientes da sociedade. Com isso, acreditamos que utilizar o meme, elemento contemporâneo das redes sociais e do cotidiano das pessoas, no ensino de Filosofia chega-se à realidade da sala de aula com uma facilidade e como um discurso que não pode ser desconsiderado quando o assunto é o processo de ensino-aprendizagem, sobretudo, quando se discute a interação do aluno na sala de aula, a participação, métodos de avaliação contínuos e eficazes e, é claro, metodologias ativas.

Enquanto inserido no ensino de Filosofia, o uso de memes nos fez pensar que a inserção dos alunos, independente do seguimento, de maneira correta no uso de tecnologias e no papel ativo do compartilhamento de informações e de produção crítica da realidade, é uma oportunidade de superar a realidade virtual criada diariamente pelos meios de comunicação, situação duramente criticada pelo filósofo francês Jean Braudillard (1929-2007). Ademais, como defende este mesmo autor, o homem se torna um elemento virtual dessa realidade criada e a tecnologia caracteriza o mundo moderno e de algum modo, essa realidade criada pela tecnologia triunfa sobre a existência humana.

Há de se considerar de que o uso de memes em sala de aula pode certamente suscitar algumas problemáticas em torno do uso filosófico do recurso. Ora, normalmente, o meme encerra uma frase de efeito que não abre muito espaço para o debate e para a crítica. Isso certamente se revela como um ponto que de algum modo coloca em questão a viabilidade do uso do meme com conteúdo filosófico, como mostra Fabrini (2005), o ensino de Filosofia, independente do nível em que se estabeleça, deve proporcionar um diálogo intenso entre os interlocutores. É claro, se consideramos o meme de maneira isolada, ele foge um pouco a proposta exemplificada pelo autor, todavia, precisamos enxergar a atividade que ora propomos como um todo, desde o planejamento, construção e compartilhamento das produções pelos alunos. O meme é o resultado de um processo de discussão, correção, consulta e crítica, afinal, as produções na maioria das amostras, estavam voltadas para situações do cotidiano dos alunos interpretadas à luz das teorias filosóficas estudadas. Portanto, o meme era resultado de uma discussão filosófica do professor com os alunos e da leitura e criação conceitual dos alunos através da arte. A velocidade de proliferação do meme também merece destaque, ao contrário do que se possa pensar, ainda que nessa velocidade presente no compartilhamento de informações das redes sociais, deve-se enaltecer que, produzido com conteúdo crítico, o meme filosófico acaba por compartilhar críticas sobre a realidade.

O debate após a produção do meme em sala de aula, basicamente se deu no âmbito das apresentações, explicações e fundamentações das críticas meméticas na história da Filosofia, nos autores e nos períodos específicos. Ou seja, a prática que aqui descrevemos e refletimos, visou também superar a banalização da visualização do meme e da reprodução de seu conteúdo nas redes sociais, atacando, portanto, as fakes news e as pós-verdades que são diariamente disseminadas no mundo virtual, sem reflexão, sem checagem dos dados e apenas com interesses e convicções pessoais. Como defende Shoshana Zubbof em seu livro, A era do capitalismo de vigilância, não se pode aceitar a dominação das plataformas digitais sobre o ser humano, é necessário, entretanto, empreender novas formas de uso da tecnologia e de comportamentos na internet que superem essa dominação tecnológica.

O uso de memes como estratégia metodológica no ensino de Filosofia já não é uma novidade, pelo contrário, cada vez mais se multiplicam experiências nas diversas áreas do conhecimento assim como mostram os estudos de Gonçalves (2016), Souza (2014), Stehlgens et all (2014), Ferrari (2019), Araújo (2019), dentre outros[2]. O interessante é que a maioria dos relatos está direcionado para experiências no ensino fundamental e médio. No ensino de Filosofia no ensino superior, quando realizada essa atividade, não encontramos literatura que fundamentasse tal prática, pelo contrário, apenas encontramo-las no nível médio, todavia, consideramos que, pelo contexto das aulas remotas, pelo fato de lidarmos com alunos que não eram do curso de Filosofia e pelo nível mais geral da disciplina, para alunos em sua maioria de segundo período, seria possível então fazer tal aplicação e usar tal metodologia.

          O uso e compartilhamento de memes são uma realidade que atravessam nosso cotidiano a todo momento, até mesmo daqueles que não usam as redes sociais. O conteúdo que o meme traz, normalmente com uma ou mais imagens associadas, por muitas vezes são mensagens resultantes de uma reflexão profunda ou ao entendimento de uma situação que acontece ou aconteceu e que de alguma maneira nos toca.[3] É claro, que não se pode desconsiderar que a dose de humor e ironia contribuem para a expectativa de visualização do meme. Todavia, ainda é preciso se perguntar: de que meme rimos? Que conteúdo ele nos traz? Que crítica pode se estabelecer à sociedade ao visualizar um meme? Este potencial não pode ser desprezado porque, certamente, o ambiente da sala de aula é bastante propício, considerando a quantidade de relações sociais que ali se estabelecem, para a criação e o compartilhamento destas ideias presentes em uma simples imagem combinada com texto.

Os memes, sobretudo considerando a maneira que a eles se tem acesso, são a linguagem mais comum da internet (HORTA, 2015) e caracterizam-se por serem mensagens curtas, de fácil leitura, e que são compartilhados também com velocidade e facilidade através das redes sociais, gerando uma comunicação rápida e engajada, sobretudo, porque é característico do meme, uma associação com o humor, elemento que reveste a construção da crítica e da reflexão e que acaba atraindo criadores, leitores e visualizadores de memes. A produção do meme pelo aluno representa uma possibilidade de expressão de sentimentos, emoções, percepções e opiniões diversas, mas é claro, para muito além de tudo isso, pode haver um efetivo discurso filosófico. Pedagogicamente, essa produção se dá em termos interacionistas, afinal

 

[...] os conhecimentos derivam da ação, não no sentido de meras respostas associativas, mas no sentido muito mais profundo da associação do real com as coordenações necessárias e gerais da ação. Conhecer um objeto é agir sobre ele e transformá-lo, apreendendo os mecanismos dessa transformação vinculados com as ações transformadoras [...] (PIAGET, 1970, p. 30).

 

Há quem possa pensar que o meme é uma oportunidade de expor questões pessoais da vida de uma pessoa, seus erros, chicles, vícios de linguagem, etc., o que de fato se mostra como um elemento perigoso, todavia, tudo o que hoje é compartilhado virtualmente, geralmente, reveste-se desse perigo. Ademais, a internet em si, como rede de comunicação, apresenta esse problema, sendo necessário compreender que o mau uso não pode obscurecer a potencialidade pedagógica da ferramenta ou inibir o seu uso enquanto tal. Há pessoas, por exemplo, que usam o meme para denegrir imagens de pessoas. Será então que o meme tem apenas utilidades pejorativas? Há outras pessoas que veem no meme apenas um veículo de imagens humorísticas. Mas será que o meme se limita a reproduzir um humor desvinculado da realidade? Não seria esta a sua essência e nessa essência não se revelaria sua potencialidade que o habilita a ser usado em sala de aula?

          Este trabalho tem justamente o objetivo de demonstrar como o meme, compreendido como algo que reflete um saber importante, pode ser usado em sala de aula. Mais especificamente, mostraremos como em nosso planejamento de disciplina, utilizamos tal recurso no cotidiano e como instrumento de avaliação contínua, levando humor e aprendizado no processo de ensino-aprendizagem no ensino superior. Neste trabalho, relatamos, num primeiro momento, a história e evolução do meme, depois, mostraremos alguns estudos que apontam o meme como um gênero discursivo a da atualidade e, por fim, descreveremos nossa experiência em sala de aula.

 

O meme em sua história em suas características básicas

          Historicamente, o termo meme aparece pela primeira vez utilizado pelo biólogo Richard Dawkins que com sua obra O gene egoísta, datada de 1979, define que a evolução humana é baseada nos genes e estes atuam como unidades autorreplicantes e portadoras de importantes informações genéticas responsáveis pela evolução da vida. Segundo Dawkins, certamente devem haver alguns outros genes especiais e que, de uma geração para outra, também atuam como replicadores.

A obra de Dawkins foi muito além de seu escopo e atinge também o social. Segundo ele, haviam genes que transmitiam valores culturais de uma geração para outra, através de uma replicação. Para se referir a esses termos ele passava a usar o termo memética derivando-a de mimene, que em grego significa imitação. O meme, enquanto valor cultural, seria uma espécie de genes situados em determinados contextos sociais e culturais, e situados historicamente (DAWKINS, 1979). Na década de 90, o público que trabalhava com internet, mais especificamente os que trabalhavam com imagens virais[4], resgataram o termo utilizado por Dawkins para explicar o que faziam: imagens repetidas que eram replicadas. De fato, se pensarmos a atualidade do uso dos memes nas redes sociais, ele replica ideias, críticas e reescreve muitas vezes algumas situações importantes do cotidiano, levando não apenas humor, mas sobretudo informação. Henry Jenkis (2009) acredita que os memes estão inseridos no que ele chama de novo modelo de comunicação suscitado e aparado em redes de socialização virtual onde a mídia é criada, compartilhada e ressignificada em diversos contextos.

          O meme tal qual é utilizado hoje nas redes sociais[5] tem algumas características que lhe são básicas e precisam ser destacadas.[6] Basicamente eles são imagens, vídeos ou gifs de conteúdo cômico e que acabam se espalhando na internet por meio das redes sociais e apenas nelas. Quanto a isso, é bom destacar que o meme é uma produção com vistas ao compartilhamento e edição, portanto, é digital, não pode ser feito em cadernos, por exemplo. Desta feita, aplica-se perfeitamente ao cenário do ensino remoto onde utilizamos ferramentas online para interagir com o aluno.

 

Figura 1 - Memes bastante conhecidos na internet

Teria a educação virado um Meme?

Fonte: Gazeta do Povo (2021)[7]

 

Perceba-se que os memes apresentados acima, bastante compartilhados nas redes sociais, tem um certo humor envolvido na sua composição e refletem sobre uma realidade bem atual. De fato, o meme é bastante efêmero, afinal, ele se dá num determinado contexto, onde é replicado, reelaborado e a sua mensagem se atualiza.

Normalmente, a expressão meme é usada na internet para se referir a qualquer informação que “viraliza”, sendo então imitada ou copiada. O meme pode ser produzido e publicado por qualquer pessoa e sua produção é feita de montagens, desenhos, falas de personagens de seriados ou filmes, sons ou músicas engraçadas. Quanto à forma, o meme possui uma dupla linguagem: a linguagem verbal, com textos ou falas (em caso de vídeos) e a linguagem não verbal, que é o caso das imagens (mais comum em memes com imagens fixas). Quanto ao conteúdo, é importante frisar que eles têm normalmente um tom de ironia ou humor de maneira curta e rápida, podendo ser uma crítica ao estado, pessoa ou comportamento humano. Por fim, e como característica certamente mais importante que permita o uso em sala de aula, o meme pode sofrer alterações em sua linguagem e ser adequado para diversos contextos e situações, dependendo dessa adaptação, com facilidade ele pode ser mais compartilhado. Cumpre destacar ainda que algumas pessoas costumam chamar de meme qualquer figura engraçada, todavia, não é bem assim. O meme para que assim seja chamado, precisa se tornar um padrão e repetido diversas vezes com alterações na linguagem. Abaixo mostramos um meme produzido por um grupo de alunos na nossa experiência e que, na verdade, ilustra bem as características do meme e já adianta o fruto da atividade produzida em sala de aula[8]:

 

Figura 2 - “Rio, logo existo”[9]

Fonte: O Autor (2022)

 

Perceba-se que o meme acima tem uma linguagem não verbal (o riso) e a verbal (o texto). Há uma espécie de paráfrase à máxima cartesiana. A imagem foi compartilhada e replicada em sala de aula e em redes sociais dos alunos, com algumas modificações na linguagem verbal, mas mantendo a imagem.

          A realidade mostra o meme como uma realidade do cotidiano das pessoas. Pereira (2020, p.29) caracteriza o meme apresentando os elementos principais do meme: “fotos, ilustrações, vídeos, frases, hashtags, entre outros. Além disso, podem também ser caracterizados por recursos linguísticos multimodais, tanto na parcela verbal quanto na imagética.” O meme, tem uma rápida reprodução e alteração da ideia, um ajuste necessário ao contexto em que precise aplicá-lo e não são necessários saberes técnicos aprofundados para realização de edição das imagens e ou textos. Qualquer smartphone viabiliza a edição. Esse elemento merece destaque porque facilita e inclui alunos a realizarem as atividades propostas pelo professor. Isso foi levado em consideração quando pensamos como fazer os alunos efetivamente interagirem e fazerem, a seu modo, Filosofia, ou seja, construírem, eles mesmos, um saber sobre a realidade.

 

A experiência do meme do planejamento à avaliação.

Essa realidade de uso do meme, considerando sua facilidade de construção, pode ser ilustrada e reforçada a partir do pensamento da comunicóloga Limor Shifman (2014) que pensa o meme em três caminhos de interpretação: o mentalista, o comportamentalista e o inclusivo. Segundo a autora, o meme é uma espécie de folclore moderno capaz de influenciar uma grande quantidade de pessoas. Na perspectiva mentalista, segundo ela, o meme não é apenas uma ideia, mas representa um complexo de ideias que o fundamenta. A visão comportamentalista aponta que o meme representa a possibilidade de influenciar comportamentos e refletir sobre comportamentos. Por fim, a visão inclusiva, destaca que o meme trata-se de uma imitação de imagens e reprodução de ideias. Se considerarmos esses três caminhos de entendimento do meme, percebemos que de fato é um instrumento que reflete um saber fazer, um criar, importante à sala de aula. Shifman é feliz ao enxergar como um elemento capaz de produzir a cada leitura e compartilhamento novas semioses, ou seja, novas maneiras de produção de significados.

Isso foi um fator importante quanto propomos em nosso planejamento utilizar o meme em sala de aula numa disciplina de caráter filosófico. O desafio maior do professor de filosofia, a nosso ver, não é de fazer o aluno compreender algumas das teses filosóficas de autores e os desdobramentos temáticos de algum aspecto ligado à história da Filosofia, pelo contrário, o maior desafio é fazer os alunos, primeiramente, pensarem autonomamente para depois poder fazer “pontes” com os clássicos. Os memes nos parecem uma importante ferramenta para lidar com essa necessidade do pensar autônomo na medida em que nos propormos a levar o meme para a sala de aula e propor outras construções, como mostraremos mais adiante. Por ora, cumpre dizer que a visão de Shifman sobre o meme é um importante fator a ser considerado ao conceber o meme como uma possibilidade pedagógica, afinal, o meme pode de fato, representar as ideias do aluno e seu contexto de vida, influenciar certos comportamentos criativos e críticos e, é claro, incluir o aluno que, muitas vezes não teve a oportunidade de estudar filosofia e pensar de maneira autônoma.[10]

A autora supracitada, portanto, acaba contribuindo conceitualmente para nossa proposta pedagógica ao conceber o meme como um poderoso instrumento comunicativo. Afinal, não seria a sala de aula um ambiente de comunicação? Não seria ainda um espaço de criação e de releituras que precisam cada vez mais da autenticidade do aluno? Não seria ela o veículo mais apropriado para produzir uma crítica e mudança social? A filosofia certamente não deve ser vista como meio para possibilitar esse processo, mas, com fim em si mesma, a realização desse fim, em si, já é uma atividade crítica, reflexiva e sistemática da realidade. Porém, a abordagem que propomos dialoga perfeitamente com a proposta, por exemplo, de Aspis e Gallo (2009) onde a Filosofia se articula com a vida do sujeito. Sendo assim, o desafio que assumimos e criamos como meio de realização o uso dos memes em sala de aula é de que o aluno possa filosofar, através do exame da própria vida, e a partir disso, a criar, a interagir, produzir uma crítica através de uma releitura de imagens.

Agora, já tendo visto que o meme nasce e se expande como um veículo rápido de comunicação, é necessário compreender que, ele mesmo é um saber, em outras palavras, considerando que é então veículo de comunicação, é necessário entendê-lo como gênero discursivo. Há uma mensagem no meme que precisa ser compreendida, um contexto do qual se pressupõe e para que o riso se estabeleça, é necessária uma certa dose de entendimento da leitura.[11]

 

A avaliação do processo

          A avaliação da disciplina teve um momento de culminância com a divulgação oficial dos memes e compartilhamento, todavia, também fizemos, ao longo da disciplina, uma avaliação contínua de modo que, a cada aula, os alunos pudessem participar ativamente do processo de ensino aprendizagem. Para isso, a cada encontro os alunos foram estimulados, a partir das imagens levadas à sala pelo professor, fazer as modificações de texto de acordo com o conteúdo vivenciado quanto ao tema filosófico ou questão debatida em sala. Num segundo momento, os alunos também eram convidados a elaborar seus memes, respeitando as características de forma e conteúdo desta forma de comunicação. Sempre deviam compartilhar nas redes sociais os resultados das atividades e comentar as postagens uns dos outros. Com isso, o ambiente pedagógico não só refletia, mas estendia-se para a vida cotidiana dos alunos. O processo de recriação e elaboração de imagens foi uma importante ferramenta para os alunos produzirem conteúdo não apenas para compartilhamento em redes sociais, mas sobretudo para a produção de um texto filosófico dialogando com os autores clássicos em suas principais e ideias e principalmente fazendo uma crítica social e aos problemas encontrados no cenário político e social do mundo durante o curso da disciplina. Ademais, o processo de criação, edição, delimitação, apresentação[12] e compartilhamento do meme, mostrou-se como uma proposta educativa prévia para qualificação do meme como resultado de uma prática séria e comprometida com a verdade, não sendo deste modo desqualificada pelo uso intuitivo e pelo compartilhamento indiscriminado de informações. Pelo contrário, os alunos foram sensibilizados para a compreensão da importância do uso correto e do potencial das tecnologias e redes sociais para compartilhar verdadeiros conhecimentos. Abaixo segue uma produção derivada das aulas em que estudamos Platão:

 

Figura 3 - Platão e seus mundos.

        Fonte: O autor (2021)

 

          O meme apresentado acima, a nosso ver, foi a melhor produção no semestre da disciplina. Afinal, a leitura é perfeita se considerarmos o contexto em que o meme está inserido. Trata-se de atribuir a Platão a criação do meme, veja-se a assinatura no canto direito da imagem. O texto centralizado “o meme ideal”, foi bastante editado pelos alunos trocando-se a palavra “meme” por amor, comidas, estudo, trabalho, etc. A ausência de uma forma para definir ou se relacionar à imagem muito bem representou o conceito de ideia na Filosofia Platônica. Este é um exemplo, dentre os possíveis de serem trazidos para este trabalho, das produções dos alunos e dos registros dos diversos entendimentos, releituras, criações e especulações através dos memes filosóficos.

 

Considerações finais

          Cumpre aqui registrar um agradecimento à Faculdade de Ciências Humanas pelo reconhecimento profissional após a conclusão desta atividade. Após a divulgação dos resultados, fomos convidados a compartilhar em seminário, com os demais colegas da instituição, a experiência exitosa nas aulas remotas. Na oportunidade, mostramos também os principais memes produzidos e compartilhados pelos alunos.

          A experiência na verdade foi uma oportunidade de repensarmos nossa prática pedagógica a partir da criação de novas metodologias de ensino e aprendizagem, onde o aluno pudesse cada vez mais assumir o protagonismo do processo e, no tocante ao pensamento filosófico, pudesse também assumir postura diante de determinados problemas provocados pelo professor. A releitura da informação e a criação do meme representa uma postura filosófica do aluno na medida em que há especificamente uma interpretação e elaboração do conceito ou da crítica em forma de imagem e texto. Admitimos, porém, que não é uma tarefa fácil produzir o meme com conteúdo filosófico, sobretudo porque se trata de produzir, a princípio, uma superação do uso comum e banal do meme, vinculado normalmente à velocidade de produção e compartilhamento das informações.

Certamente, o êxito da experiência se deu primeiramente pela superação dessa banalização e uso do meme no cotidiano mas também, pedagogicamente, pelo fato de o aluno ter sido desafiado por aquilo que ele lida o tempo todo, e compreender que aquilo que parece “bobo” não é. Infelizmente, como já dissemos, não pudemos reproduzir alguns memes elaborados porque envolvem fotos pessoais, todavia, são muitas as criações e elaborações onde os alunos se colocam a si mesmos como alvo da reflexão e criação, trazendo suas histórias e muitas vezes reconhecendo seus próprios dilemas. Cumpre destacar que, apesar de não darmos ênfase a um rigor formal, no tocante ao conteúdo filosófico presente na produção dos memes, os alunos foram bem conduzidos e produziram com certa lógica os questionamentos e reflexões que fundamentaram as produções. Essa nossa preocupação, observando as orientações de Aspis e Gallo (2009), nos permitiram, de modo “leve”, mas focado e sério, conduzir o processo de ensino aprendizagem e garantir a efetiva participação dos alunos bem como o empenho deles no processo.

          A experiência nos abriu a possibilidade de também trabalharmos a mesma metodologia em outros componentes curriculares, futuramente. Aos alunos, pudemos perceber a satisfação de verem suas produções devidamente reconhecidas e, é claro, perceberem-se como sujeitos que puderam, através dos memes, fazer filosofia.

 

Referências

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ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. São Paulo: Editora Intrínseca, 2021.

 

Notas



[1] O planejamento estava direcionado para um possível retorno das aulas presenciais, caso fosse possível. Diante do crescimento dos números de vítimas da COVID-19, este retorno foi impossível. Sendo assim, tivemos que fazer ainda alguns ajustes considerando o ensino remoto, para realização das atividades.

 

[2] Importante destacar que na página do Mestrado profissional em Filosofia, é possível encontrar pelo menos 7 dissertações sobre o uso de tecnologias no ensino de Filosofia, nos últimos anos.

 

[3] Para alguns leitores, nem sempre há uma profunda reflexão, em meio a pressa das relações humanas vivenciadas nas redes sociais. Isto só reforça o fato de que experiências como a que propomos precisam ser mais realizadas e divulgadas afim de superar certos preconceitos e discriminações em torno dos memes.

 

[4] Compartilham de muitos aspectos do meme, porém, são replicáveis, pelo contrário, são imagens fixas em conteúdo.

 

[5] Youtube, Facebook, Instagram, Whatzapp e Tiktok.

 

[6] Essas características básicas foram apresentadas aos alunos a fim de que pudessem, inseridos na proposta pedagógica, realizar efetivamente a atividade proposta.

 

[7] GAZETA DO POVO. Teria a educação virado um meme? Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/educacao-e-midia/teria-a-educacao-virado-um-meme/. Acesso em 29\12\2021.

 

[8] Muitos outros memes produzidos e compartilhados pelos alunos poderiam ser trazidos para este trabalho, todavia, por respeito às imagens e aos direitos autorais, resolvemos selecionar imagens mais abstratas ou que a figura utilizada fosse no caso o professor, que é autor deste trabalho.

 

[9] Este meme foi produzido por um dos alunos a partir de duas aulas, ou melhor dois temas que oportunamente relacionamos. Primeiramente, como é mais evidente, o Cogito de Descartes e um estudo da obra O riso, de Bergson.

 

[10] Lembrando que esta experiência foi utilizada no ensino superior, ouvimos muitas vezes os relatos de alunos que não tiveram no ensino médio uma experiência positiva com as aulas de filosofia. Muitos relatos apontam que as aulas se reduziam á meras reproduções de teorias filosóficas sem uma devida fundamentação, crítica, relação entre autores, etc. O ensino superior nos pareceu o espaço para uma “última cartada” na vida daqueles estudantes de maneira que pudessem conhecer a filosofia e incorporar em suas vidas a atividade filosófica.

 

[11] Foi a partir de uma aula sobre a teoria do conhecimento em Platão, uma aluna criou um meme interessante para falar da proposta platônica mundo das ideias-mundo sensível.

 

[12]As apresentações foram feitas pelos alunos, nas aulas virtuais. Cada aluno apresentava o meme, explicava seu contexto, as dificuldades para elaboração e edição e, por fim, fazia uma autoavaliação da sua contribuição na produção do recurso.

 

 

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